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Psicologia

versão impressa ISSN 0874-2049

Psicologia vol.12 no.1 Lisboa jan. 1998

https://doi.org/10.17575/rpsicol.v12i1.572 

O papel do amor na percepção de invulnerabilidade à sida

Love and perceived invulnerability towards AIDS.

 

Carla Costa*; Maria Luísa Lima**

*Professora na Universidade Fernando Pessoa, Porto.

**Professora no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa

 


RESUMO

O estudo apresentado pretendeu salientar a importância do conhecimento dos factores socio-cognitivos subjacentes à subestima do risco de infecção à Sida. O objectivo principal da pesquisa foi estabelecer um padrão típico dos determinantes da percepção de invulnerabilidade à doença considerando três níveis de análise: um nível individual, com base na teoria da adaptação cognitiva (Taylor e Brown, 1988), um nível interpessoal, com base na teoria do amor de Sternberg (1988), e um nível intergrupal, com base na teoria da identidade social (Tajfel, 1984). O estudo realizado por inquérito junto de 362 estudantes universitários mostra que, embora as variáveis de nível interpessoal sejam as que mais permitem prever a percepção de invulnerabilidade à Sida, todos os níveis apresentam contributos significativos. É apresentado um modelo de análise que pretende integrar as principais variáveis que contribuem para a explicação da percepção de invulnerabilidade à Sida.

Palavras-chave: percepção de riscos; percepção de invulnerabilidade; Sida.


ABSTRACT

This study aims toshow the importance of social and cognitive factors to understand the underestimation of AIDS risk.The main goal of this research was to establish the determinants of perceived invulnerability to this disease, considering three levels of analysis: an individual level based on the Cognitive Adaptation Theory (Taylor & Brown, 1988), an inter-personal level based on Sternberg Theory of Love (1984) and a inter-group level based on Social Identity Theory (Tajfel, 1984). 362 university students answered a structured survey. Results show that although interpersonal variables (specifically optimism about their partner) was the best predictor of perceived invulnerability to AIDS, all the other levels significantly contribute to the explanation of that variation.


 

Introdução

O impacte social causado pela Sida é explicado pelo aumento crescente do número de casos tanto a nível nacional, como internacional.1 Este facto assume particular relevância devido à tendência ascendente para o número de casos de Sida se verificar em categorias sociais não associadas inicialmente com a doença, como, por exemplo, os grupos de transmissão toxicodependente e heterossexual e grupos de idade cada vez mais jovens. Deste modo, existe um conjunto de características que revelam a gravidade do problema, tais como o aumento contínuo do número de casos de Sida e a propagação da doença não estar associada a grupos de transmissão específicos e a comportamentos sexuais particulares.

Por outro lado, não existe, até ao momento, uma cura, o que apela a uma prevenção eficaz. Embora a informação difundida pelas campanhas de prevenção pretenda sensibilizar os indivíduos para a gravidade da doença, existe por parte do público em geral uma subestima do risco de infecção que se reflecte na percepção de invulnerabilidade à Sida. Esta constatação foi revelada por um conjunto de estudos, nos quais se verificou que a informação possuída pelos indivíduos não tem implicações práticas na produção de julgamentos sobre o risco pessoal de infecção (Gladis et al, 1992; Woodcock et al, 1992; Cláudio et al, 1994), não influenciando, por outro lado, a adopção de medidas a nível comportamental (Brown et al, 1992; Mangan, 1988; Pilkington et al, 1994).

A dificuldade existente na sensibilização dos indivíduos para o problema, salienta a necessidade de compreender o modo como estes constroem a sua percepção de invulnerabilidade à doença. Partindo desta questão, considerou-se para o estudo da percepção da invulnerabilidade três ordens de factores, entendidos como enviesamentos perceptivos, os quais correspondem a três níveis de análise: individual, interpessoal e intergrupal. O objectivo principal da pesquisa foi assim o de estabelecer um padrão típico de percepção de invulnerabilidade à Sida considerando três ordens de factores correspondentes a diferentes níveis de abordagem, embora atribuindo a cada um igual importância para a compreensão de um fenómeno verdadeiramente complexo.

Perspectiva de nível individual na compreensão da percepção de invulnerabilidade à Sida

A nível individual, centrámo-nos nas perspectivas que analisam as características perceptivas responsáveis pela manifestação de uma tendência ao enviesamento positivo da informação em geral processada pelo indivíduo. Nesta linha, o estudo da percepção de invulnerabilidade à doença tem sido abordado no quadro da teoria da adaptação cognitiva (Taylor, 1989; Taylor e Brown, 1988), perspectiva que defende ser a percepção de invulnerabilidade à doença devida à existência de factores sociocognitivos, os quais são responsáveis pela manifestação de uma tendência ao enviesamento positivo da informação processada pelo indivíduo. A teoria da adaptação cognitiva (TAC) pretende explicar o processo normal de funcionamento cognitivo, consistindo o mesmo na percepção da realidade de forma mais positiva comparativamente às características objectivos dos factos. Esta tendência para o enviesamento da informação processada ocorre através da manifestação de um conjunto de ilusões perceptivas de carácter positivo com o objectivo de possibilitar uma adaptação constante do indivíduo à realidade que o rodeia. As ilusões positivas manifestam-se tanto na ausência de ameaça, sendo assim inerentes ao funcionamento normal do pensamento humano e sinónimo de saúde mental (Taylor, 1989; Taylor et al, 1989; Taylor et al, 1988), como na vivência de um acontecimento negativo ameaçador, como foi salientado pelas evidências empíricas em doentes com cancro da mama (Taylor, 1983) e em doentes com Sida (Taylor et al, 1992), sendo mais evidentes nestes casos.

O conjunto de ilusões positivas inerentes à organização perceptiva da realidade pelo indivíduo corresponde a três níveis categoriais (Taylor, 1983; e 1989; Taylor et al, 1988): autovalorização, ilusão de controlo e optimismo irrealista.

Auto valorização

Determinados estudos salientaram uma tendência para os indivíduos atribuírem a si próprios maior número de características positivas do que negativas, tendo mais facilidade em recordar informação positiva acerca de si próprios e dos sucessos alcançados, comparativamente com a informação negativa e dos fracassos (Taylor et al., 1988; Taylor, 1989, para uma revisão). A confiança em si próprio reflecte a crença de que se possui elevadas capacidades, as quais são percebidas como raras quando comparadas com a média das pessoas em geral. A estratégia da autovalorização, como reflexo de uma adaptação cognitiva saudável do indivíduo, contribui para a auto-estima. Assim, em indivíduos com baixa auto-estima não se encontra este tipo de distorções positivas na autopercepção: a percepção da informação positiva e negativa de si próprios tem a mesma intensidade, a atribuição de responsabilidade pessoal pelos acontecimentos negativos é frequente e não se verifica um desajustamento entre a avaliação que efectuam e a produzida por outros sujeitos acerca de si próprios (Taylor et al., 1988).

A estratégia cognitiva da autovalorização é também verificada em indivíduos expostos a acontecimentos ameaçadores. O estudo realizado numa população de risco homossexual masculina (Taylor et al., 1992) verificou que os seropositivos, comparativamente com os seronegativos, demonstraram possuir de forma mais alargada uma percepção de invulnerabilidade ao desenvolvimento da doença. Esta percepção era devida à crença de que tinham desenvolvido um tipo de imunidade, acreditando que o seu sistema imunológico era mais capaz de lidar com o vírus. A crença nas suas características pessoais face ao não desenvolvimento da doença nos seropositivos era acompanhada de comportamentos adequados pela manutenção de uma dieta, descanso e exercício físico. Em relação ao comportamento sexual envolvendo risco de Sida ambos os grupos, independentemente do seu estatuto em relação ao HIV, revelaram envolver-se em actividades sexuais de menor risco.

Deste modo, as ilusões positivas demonstraram desempenhar uma função adaptativa do indivíduo à ameaça, protegendo-o através do desenvolvimento de uma capacidade para lidar com ela. Verifica-se assim que a exposição à ameaça conduz a um maior desenvolvimento de ilusões positivas, aumentando as crenças nas capacidades pessoais e desencadeando, por outro lado, um maior número de comportamentos adequados tendentes à redução do risco a que o indivíduo está exposto.

Ilusão de controlo

A crença exagerada na capacidade de controlar os acontecimentos em geral indica um outro tipo de ilusão positiva, que também está relacionada com a manutenção e desenvolvimento da auto-estima (Taylor, 1989; Taylor et al., 1988). Os indivíduos tendem a sobrestimar as suas capacidades no controlo das situações devido, por um lado, à sobrevalorização da acção que exercem sobre o meio e, por outro, à frequente confusão entre o que se deseja que aconteça e as capacidades possuídas para concretizar o pretendido.

Alguns estudos revelaram que a inexistência de um sentido de controlo está relacionada com estados depressivos (Taylor et al., 1988), dado que os indivíduos que não desenvolvem ilusões demonstram uma percepção mais realista do controlo do que os não deprimidos.

A percepção e manifestação do controlo pode ocorrer de duas formas, como salientaram Rothbaum, Weisz e Snyder (1982), correspondendo cada uma a diferentes manifestações do fenómeno a nível comportamental. O primeiro processo, denominado controlo primário, corresponde a tentativas desencadeadas pelo sujeito tendentes ao exercício de uma acção directa sobre os acontecimentos. O segundo processo, designado por controlo secundário, é resultante de uma resposta à resistência do meio face à acção do indivíduo, atribuindo este a capacidade de agir a outros agentes. Segundo os autores, ambos os processos estão relacionados, nenhum deles existindo na sua forma pura.

O controlo percebido exerce também um papel fundamental na relação com a ameaça. Num estudo realizado com doentes cancerosos, Thompson et al. (1993) verificou que o sentimento de controlo está mais directamente relacionado com a capacidade de agir sobre as consequências associadas ao acontecimento ameaçador (neste caso, os efeitos da doença) do que com o facto de evitar o seu desenvolvimento. De igual forma os dois tipos de controlo (primário, secundário) exercem diferentes papéis na gestão da ameaça, como mostram Thompson, Nartnie Levine (1994) num estudo sobre o ajustamento cognitivo dos indivíduos com HIV positivo. Foi detectado que ambos os tipos de controlo estão associados com estados de menor depressão, tal como o previsto pela TAC (Taylor, 1983). Quando existe baixa crença de controlo primário, o controlo secundário surge como forma de reduzir a depressão, e deste modo a percepção de controlo está associado com menor depressão.

Optimismo irrealista

A tendência para o indivíduo se percepcionar como imune face a acontecimentos negativos manifesta-se em diversas áreas, facto largamente demonstrado por estudos sobre o risco percebido de acidente de automóvel, crime, doença (Weinstein, 1980, para uma revisão). Estes estudos demonstraram que a estimativa de probabilidades de o próprio viver um acontecimento negativo é sempre inferior comparativamente com a média dos indivíduos em geral e, inversamente, verifica-se uma sobreavaliação das probabilidades relativas do próprio de vivência de acontecimentos positivos. Esta tendência optimista constituí uma distorção perceptiva inerente ao julgamento produzido, reflectindo uma percepção de invulnerabilidade. O estudo realizado por Weinstein (1980) com estudantes universitários teve por objectivo determinar os níveis e as condições em que o optimismo irrealista ocorre, e os resultados demonstraram que está relacionado com diversos aspectos, tais como: o grau de desejabilidade do comportamento, a probabilidade percebida de ocorrência do comportamento, a experiência pessoal, o grau de controlo percebido sobre o acontecimento e a associação do comportamento a estereótipos. Relativamente a este último factor, a existência de estereótipos associados a indivíduos e grupos que vivem determinado acontecimento (Weinstein, 1980) mostra que ele conduz as pessoas a crerem que as suas hipóteses são inferiores à média, uma vez que não se incluem no grupo estereotipado, e assim os sujeitos comparam-se com o estereótipo da vítima, concluindo que os seus riscos são inferiores à média.

A tendência para o optimismo irrealista manifesta-se igualmente em situações de ameaça, facto demonstrado por Van der Velde, Hooykaas e Van der Pligt (1991) pela realização de um estudo numa população heterossexual com elevado risco de infecção ao HIV (prostitutas e seus clientes). Os indivíduos que manifestaram uma tendência optimista na percepção do risco da Sida, possuíam uma maior percepção de controlo, sendo este derivado do primeiro. Num estudo posterior, Van der Pligt et al. (1993) compararam a percepção do risco de Sida em cinco amostras que diferiam na sua vulnerabilidade objectiva: quatro amostras eram constituídas por heterossexuais, sendo a primeira de baixo risco (um único parceiro), a segunda formada por sujeitos que tinham múltiplos parceiros, a terceira e quarta correspondiam às amostras do estudo revisto anteriormente (prostitutas e seus clientes) e a última incluía homens homossexuais com múltiplos parceiros. Embora a avaliação do risco do próprio fosse correspondente ao risco objectivo (isto é, amostras em maior risco objectivo percebiam-se como mais vulneráveis), em qualquer dos grupos as percepções de risco próprio eram sempre acompanhadas por estimativas ainda mais elevadas para os outros, o que mostra a importância do optimismo irrealista.

TAC e construção cognitiva da invulnerabilidade à Sida

Vimos que o desenvolvimento de ilusões positivas, sendo reflexo do normal funcionamento cognitivo, é largamente activado em situações de ameaça. Estas ilusões são muito importantes porque têm consequência ao nível dos comportamentos de prevenção. Taylor et al. (1992) mostraram que é a consciência da ameaça e não o nível de ilusão positiva que está associada com o comportamento de prevenção. O estudo revelou que os seropositivos, comparativamente aos seronegativos, manifestavam de forma mais saliente ilusões positivas, acreditando ter desenvolvido uma imunidade à Sida e percepcionando-se como mais invulneráveis. No entanto, a nível comportamental, os seropositivos demonstraram o desenvolvimento de mais comportamentos de promoção de saúde, até como uma forma de manifestarem o seu controlo sobre o desenvolvimento da doença, do que os seronegativos.

É importante também analisar a existência de ilusões positivas ao nível da percepção do outro e a sua influência na percepção de invulnerabilidade à Sida. Paralelamente ao desenvolvimento de ilusões positivas face ao próprio, Murray, Holmes e Griffin (1996) demonstraram a existência de uma idealização da informação processada relativamente ao parceiro. A idealização do parceiro a nível afectivo é responsável pela satisfação com a relação, tal como a idealização da realidade a nível individual contribui para o bem-estar do sujeito. As construções idealizadas do parceiro resultam da atribuição de virtudes desejáveis, o que contribui para o desenvolvimento de sentimentos de confiança no outro.

Neste nível de análise pretendeu-se assim observar o modo como o indivíduo concebe a sua invulnerabilidade à Sida, considerando os três tipos de ilusões positivas inerentes ao funcionamento normal do processamento de informação. De acordo com os pressupostos teóricos e suas evidências empíricas, esperava-se neste nível de análise que os indivíduos com uma imagem mais positiva de si próprios, uma maior percepção de controlo e uma visão mais positiva do futuro se percepcionassem como menos vulneráveis à Sida.

Perspectiva de nível interpessoal na compreensão da percepção de invulnerabilidade à Sida

Neste nível de análise o objectivo foi o de verificar a percepção de invulnerabilidade à Sida tendo por referência o envolvimento do indivíduo numa determinada relação amorosa.

Embora se tivessem considerado os três níveis de análise como igualmente importantes, demos uma certa relevância ao factor afectivo devido à existência de poucos estudos que considerem como importante o conhecimento da percepção de invulnerabilidade num contexto afectivo, e os existentes evidenciarem uma clara correlação entre o envolvimento afectivo e a desvalorização dos comportamentos de prevenção face à doença (Cláudio et al, 1994; Pilkington et al 1994). Partindo desta evidência o presente estudo teve a intenção de questionar se diferentes tipos de envolvimento amoroso se relacionam de forma diferente com a percepção de invulnerabilidade à Sida.

A sustentação teórica de base deste nível de análise foi a teoria triangular do amor (TTA), proposta por Sternberg e Grajek (1984). O amor, segundo esta teoria, é conceptualizado como um conjunto de emoções, motivações e cognições e o autor procura identificar os vários tipos de amor existentes, resultantes da interacção entre indivíduos em relações íntimas. Referindo embora que o fenómeno do amor possa ser entendido pelos seus componentes diversos, é importante não perder o sentido do todo na análise das partes, servindo assim a teorização do fenómeno a função de facilitar a sua compreensão e não a negação da sua totalidade (Sternberg, 1986). Não negando o carácter instintivo que pode explicar o fenómeno do amor, o autor destaca a importância do factor social pela aprendizagem de um conjunto de características típicas, as quais permitem e possibilitam o desenvolvimento de um determinado tipo de amor numa dada relação (Sternberg, 1986).

A sua teoria parte da existência de três componentes, formando estes os vértices de um triângulo (sendo a sua ordem arbitrária): intimidade (afecto), paixão (motivação) e decisão/compromisso (cognição) (Sternberg, 1986,1988). Os componentes sendo dotados de propriedades próprias, podem estar presentes num grau mais ou menos importante em cada relação (figura 1).

 

 

A intimidade refere-se aos sentimentos de proximidade, vinculação, estabelecimento de laços nas relações amorosas e deriva do investimento emocional, através dos sentimentos que criam a afeição na relação, caracterizando as relações de longa duração.

À componente paixão correspondem os elementos de carácter motivacional, responsáveis por sentimentos que conduzem ao romance, atracção física e consumação sexual. Sendo a necessidade sexual a componente principal, outras necessidades contribuem para a experiência da paixão, tais como a necessidade de auto-estima ou de afiliação. A satisfação destas necessidades alcançam-se tipicamente através de excitação psicológica e fisiológica, este componente que caracteriza relações de curta duração.

A componente decisão/compromisso é dotada de um carácter cognitivo, consistindo em dois aspectos, um manifestando-se a curto prazo e outro a longo prazo. O primeiro corresponde à decisão de que amamos alguém, o segundo à manutenção da relação, aspectos que não se implicam necessariamente, mas estão com frequência associados. Este componente está presente nas relações de longa duração e normalmente envolve a formalização das relações.

Para Sternberg (1986,1988) todas as componentes são importantes, embora difiram ao longo do tempo numa relação e entre relações num dado momento. Ao longo do desenvolvimento de uma relação amorosa, a intimidade inicial desempenha um papel importante, facto devido ao elevado grau de incerteza existente no início da relação, que decresce à medida que aumenta o conhecimento em relação ao outro. Em relações bem sucedidas, o nível de intimidade latente continua a desenvolver-se mesmo que a nível observacional decresça. O desenvolvimento rápido da paixão devido à existência de uma forte estimulação é seguido de uma descida gradual que conduz à habituação. A paixão, ao contrário da intimidade, pode iniciar-se instantaneamente como resultado do conhecimento de outra pessoa. O terceiro componente decisão/compromisso está dependente do sucesso da relação, mas, em relações de longa duração, o aumento do nível de compromisso é gradual e, terminada a relação, volta ao ponto inicial.

Tipos de amor

Da combinação das três componentes, Stemberg (1986,1988) identifica oito tipos de amor relativos a extremos de relações.

Gostar/liking (componente único: intimidade)

Sentimento presente na relação de verdadeiros amigos, consistindo em sentimentos de proximidade, ligação e afeição em relação ao outro, inexistência de paixão intensa ou de compromisso de longo prazo.

Enfatuamento / infatuated love (componente único: paixão)

Amor à primeira vista, que se toma obsessivo pela idealização do objecto amado e não pelas suas características reais, reflectindo assim uma projecção das necessidades do sujeito em vez de um verdadeiro interesse pelo amado. Pode surgir instantaneamente e dissipar-se rapidamente, caracterizando-se por um grau elevado de excitação mental e física.

Amor vazio/empty love (componente único: compromisso)

Resulta da decisão de que amamos o outro quando não existe intimidade nem paixão. Este tipo de amor é característico de relações de longa duração, ou do estádio final das relações em que o envolvimento emocional mútuo e a atracção física cessaram. Em algumas sociedades, este tipo de amor pode ocorrer como uma primeira fase das relações de longo tempo.

Amor romântico/romantic love (componentes: intimidade e paixão)

Na sua essência adiciona o simples gostar com a atracção física pelo outro, não sendo o compromisso uma componente importante ou necessária. A definição deste tipo de amor distingue-se da noção de Hatfield (1988) e de Branden (1988) segundo os quais o amor romântico não difere do enfatuamento. Algumas relações deste último tipo podem não ultrapassar esta fase, embora outras, pelo contrário, dêem origem ao desenvolvimento de diverso tipo de amor. Por outro lado, o amor romântico não necessita de começar pelo enfatuamento, por vezes o simples gostar característico de uma amizade pode desencadear este tipo de amor.

Amor companheiro,/compationate love (componentes: intimidade e compromisso)

E essencialmente o compromisso de amizade que geralmente ocorre em casamentos nos quais a âtracção física cessou. A maioria das relações de amor romântico que sobrevivem tornam-se relações de amor companheiro, nas quais a paixão dissolve-se mas a intimidade permanece. A paixão pode ser substituída por um compromisso profundo e de longa duração.

Amor louco/fátuos love (componentes: paixão e compromisso)

Este tipo de amor caracteriza-se pela inexistência de intimidade, ocorrendo por exemplo quando dois indivíduos, após um curto período de namoro, resolvem casar. O compromisso é efectuado com base na paixão sem envolvimento íntimo. Quando a paixão cessa permanece o compromisso, o qual não assenta em bases sólidas.

Amor total/consummate love (componentes: intimidade, paixão, compromisso)

Amor completo, resultando da combinação dos três componentes.

Não amor/nonlove (ausência de componentes)

Caracteriza a maioria das nossas relações interpessoais, as quais são de tipo casual.

TTA e construção cognitiva da invulnerabilidade à Sida

Esta teoria permite a identificação do tipo específico de relação em que o indivíduo está envolvido num dado momento. As componentes de amor, sendo dotadas de características próprias, implicam diferentes intensidades e manifestações de sentimentos relativos aos tipos de amor a que dão origem. A componente característica do tipo de amor existente na relação é também responsável pela percepção que o indivíduo tem do seu parceiro. A paixão, sendo caracterizada pela atracção sexual, conduz a uma obsessão pelo parceiro, surgindo este como um objecto idealizado. Deste modo, a intensidade dos sentimentos apela a uma visão mais positiva do outro, podendo distorcer de forma acentuada a informação pela manifestação do efeito de halo. A avaliação positiva efectuada a determinadas características é generalizada para os restantes níveis de avaliação do parceiro. O componente intimidade, por seu lado, resultante de um contínuo investimento emocional pelo desenvolvimento de laços de proximidade entre os indivíduos, é responsável pelo surgimento de sentimentos de confiança no parceiro. As diferentes formas de perceber e avaliar a relação e o parceiro podem ter reflexos concretos no modo como os indivíduos percebem a sua invulnerabilidade à Sida quando envolvidos numa relação amorosa.

Poderia assim esperar-se uma relação entre a percepção de invulnerabilidade à Sida e o amor: uma maior invulnerabilidade à doença estaria associada a tipos de amor dotados da componente paixão devido ao estado psicológico de intensidade de sentimentos responsáveis por uma visão mais positiva do outro.

Perspectiva de nível intergrupal na compreensão da percepção de invulnerabilidade à Sida

A nível intergrupal o estudo teve por objectivo verificar qual a relação existente entre o facto de o indivíduo se percepcionar como pertencente a um grupo de não risco em oposição a um grupo de risco, e a percepção de invulnerabilidade à Sida. Neste nível de análise, a percepção de invulnerabilidade é assim explicada pelo conjunto de crenças sociais activadas pelos julgamentos que o indivíduo efectua, pela pertença real ou imaginária a determinada categoria social em detrimento de outra. Para a explicação do desenvolvimento de um conjunto de crenças sociais responsáveis pela percepção de invulnerabilidade, a sustentação teórica partiu da teoria da identidade social (TIS), de Tajfel (1981).

O conceito de identidade social — discriminação do outgroup e favoritismo pelo ingroup

Segundo esta teoria (TIS), as crenças sociais são geradas através do comportamento intergrupal, o qual impõe uma oposição entre o grupo próprio, ou ingroup e o grupo dos outros ou outgroup. Esta oposição geradora de uma distintividade resulta da construção e imposição de uma conformidade aos valores existentes, inerente à pertença individual ao ingroup. A diferenciação intergrupal e consequente discriminação social é explicada por Tajfel (1981a; 1981b) através do conceito de identidade social, o qual efectua uma articulação entre o nível individual e o nível social de análise.

Com o objectivo de explicar quais os aspectos responsáveis pelo favorecimento do grupo próprio e consequente discriminação face ao grupo dos outros, Tajfel e seus colaboradores (1981a; 1981b) realizaram uma experiência designada por "grupos mínimos". A experiência consistiu numa situação intergrupal, controlando-se todas as variáveis até então consideradas responsáveis pelo favoritismo do ingroup e pela discriminação do outgroup. Deste modo, não existia interacção face a face, conflito de interesses e hostilidade prévia entre os grupos, as respostas não implicavam um valor utilitário para o próprio, havendo alternativas de resposta pela adopção por parte do sujeito de um tipo de estratégia ou mais racional ou mais útil, em relação ao benefício do seu grupo em comparação com o grupo dos outros. Nesta situação, a maioria dos sujeitos demonstrou um comportamento de favoritismo pelo ingroup, ao atribuir um maior número de pontos aos sujeitos identificados como pertencentes ao seu grupo. Estes dados conduziram à interpretação de que o simples acto de categorizar independentemente da existência de conflito gera comportamentos de discriminação, manifestando-se a necessiadade de valorização do ingroup como uma estratégia de manutenção da auto-estima. Assim, a articulação entre o nível individual e o social é possibilitada através do conceito de identidade social, o qual contribui para a estruturação da auto-imagem, permitindo a identificação das semelhanças e das diferenças entre o sujeito e os outros. A identidade social caracteriza-se pelo conhecimento de pertença ao grupo e pelo significado emocional e avaliativo dessa pertença. A consciência de pertença estrutura-se assim em três componentes, sendo a cognitiva o facto de se saber que se pertence a um grupo e consequentemente o sentimento positivo e negativo associado a essa pertença — componente emocional. Por último, a componente comportamental corresponde aos actos de discriminação dirigidos ao outgroup.

A identidade social, ao assumir uma posição explicativa face à diferenciação e à discriminação sociais pela tendência de favorecer o grupo próprio, reflecte a manifestação do fenómeno do etnocentrismo. No entanto, este fenómeno não é generalizável a todos os processos de distinção social devido a verificar-se uma situação inversa no caso de indivíduos pertencentes a minorias.

TIS e a construção cognitiva da invulnerabilidade à Sida

O fenómeno da Sida, comummente apelidado de grande epidemia do século XX, veio pôr em causa, de maneira mais acentuada, determinados padrões de comportamento, dando lugar ao ressurgimento de valores morais que se interpõem criticamente na explicação das condutas indignas. A visão fatalista associada à comparação do fenómeno a uma epidemia (embora a sua transmissão se efectue de forma activa e não passiva) é explicada pela presença e difusão acelerada da doença, responsável por uma propagação social do medo. Este revela a vivência de uma incerteza face ao contágio da doença, a qual põe em causa as áreas mais sensíveis da vida humana, as relações íntimas e a morte, constituindo dois pólos reprimidos moralmente do quotidiano.

A percepção do risco da Sida é responsável por uma reestruturação avaliativa dos indivíduos e grupos face à normatividade das condutas sexuais, pondo em causa o sistema central de valores da sociedade no que respeita à sexualidade. O facto de o surgimento e transmissão da doença ter estado associado à homossexualidade e à promiscuidade foi responsável pelo relacionamento da mesma a determinados grupos desviantes (Herek e Glunt, 1988; Morin, 1996), o que explica as reacções homófobas. A percepção da existência de uma cultura do desvio, inerente a subculturas sociais entendidas como minorias desprivilegiadas e marginais, particulariza-se por um conjunto de práticas contrárias à normatividade das relações monogâmicas e heterossexuais. Verifica-se assim o surgimento de uma forte estigmatização social, levando a uma discriminação estruturadora de novas relações intergrupais. A percepção do outgroup pelo ingroup é efectuada por uma categorização baseada num estereótipo negativo, o qual reflecte um conjunto de preconceitos sexuais relativos à conduta dos membros pertendentes a esse grupo. A demarcação estereotipada entre os grupos permite ao ingroup preservar o seu sistema de valores e consequentes comportamentos no âmbito da sexualidade, verificando-se deste modo que a consciência de pertença a um grupo socialmente definido como dominante pelas suas práticas sexuais (heterossexuais) tem implicações na percepção do risco da Sida se esta estiver (como está) associada à pertença a um outro grupo definido pelas suas práticas sexuais minoritárias (homossexuais). A distintividade na percepção do risco do seu grupo e do outro grupo constituiria assim uma forma de controlar a incerteza face à transmissão da doença, contribuindo para a construção da invulnerabilidade e servindo, por outro lado, para justificar os comportamentos discriminatórios direccionados ao grupo de risco.

Partindo do quadro teórico acima referido, esperávamos que quanto maior a distintividade efectuada entre o sujeito enquanto membro do ingroup (concebido como grupo de não risco) face ao grupo de risco, maior seria a percepção de invulnerabilidade. A distintividade estabelecida pelo próprio face ao grupo de risco foi avaliada pelas crenças de transmissão e pelos estereótipos referentes a esse grupo.

Método

Sujeitos

A amostra do presente estudo foi constituída por estudantes universitários num total de 362 sujeitos. O facto de ser constituída por estudantes universitários justifica-se por existirem evidências de que os estudantes universitários, apesar de bem informados sobre o modo de transmissão da doença, não revelarem um comportamento adequado ao nível da prevenção (Mangan, 1988; Cláudio et ah, 1994). As características sociodemográficas da amostra são assim muito semelhantes à da população universitária tal como é descrita pelo Observatório Permanente sobre os Estudantes Universitários (Casanova, 1993): 70% da amostra é do sexo feminino; a amplitude de idade varia entre os 18 e os 45 anos (M=22 anos e DP=4,1); a quase totalidade da amostra é constituída por solteiros (91,7%), apenas 3,3% são casados, 2,5% vivem em união de facto e 0,8% são separados. Quanto à situação conjugal anterior, 81,2% referem nunca ter vivido em nenhum tipo de situação conjugal, contra 2,5% que viveram em união de facto e 1,4% que já foram casados, enquanto 8,6% afirmam nunca ter tido namorado (a). Relativamente à religião, o catolicismo salienta-se como a religião maioritária professada por 73,5% inquiridos (53>6% não praticantes e 19,9% praticantes), 21,3% afirmam não ter religião e em igual proporção encontram-se os protestantes (1,1%) e os de outra religião (1,1%). A situação religiosa revela uma estrutura semelhante aos resultados obtidos pelo inquérito à juventude portuguesa realizado em 1983 (França, 1985). Uma maior percentagem de indivíduos identifica-se ideologicamente com a esquerda, 46,7%, contra 34,5% que se posicionam à direita. Os dados descritos salientam o facto de a amostra, apesar de não ser representativa, apresentar características semelhantes às encontradas na população universitária.

A maioria dos inquiridos (59,4%) encontravam-se envolvidos numa relação amorosa na altura em que responderam ao questionário, cuja média de duração é de três anos aproximadamente (M=32,9 meses, DP=36,5 meses). Os sujeitos inquiridos definiram-se sexualmente, na quase totalidade dos casos, como heterossexuais (85,9%), seguidamente como bissexuais (2,8%) e como homossexuais (0,6%), sendo de salientar o facto de 11% dos indivíduos não terem expressado a sua orientação sexual. Abaixa percentagem dos que assumem ser homo ou bissexuais está conforme ao estudo de Lucas (1993), o qual revelou que a bissexualidade é mais comum do que a homossexualidade.

A maioria dos sujeitos já tiveram relações sexuais (69,1%), enquanto 28,2% afirmaram o contrário. O preservativo é usado, em média, com alguma frequência, embora se possa afirmar que não existe uma utilização de forma contínua devido a 24,3% afirmarem que nunca utilizam contra apenas 17,1% que usam sempre. No estudo de Alferes (1994) apenas 33,6% referiram ter utilizado o preservativo nas dez últimas relações sexuais. Contrariamente a esta tendência, Pilkington et al. (1994) verificaram que a maioria dos estudantes da sua amostra (64%) o usavam de modo regular, mas associado na quase totalidade dos casos (87%) com a contracepção.

Instrumento de análise

A recolha da informação foi efectuada através de um questionário escrito, cuja construção respeitou os três níveis de análise referidos anteriormente, tendo cada uma das dimensões do questionário uma subdimensão referente a conjuntos específicos de questões.

Na dimensão individual foram incluídas as variáveis que caracterizam de forma directa o sujeito, pela sua identificação demográfica, bem como pela percepção de invulnerabilidade à Sida, tais como autovalorização, ilusões de controlo e optimismo irrealista.

A dimensão interpessoal inclui as variáveis que pretendiam medir as características relacionadas com o sujeito, mas que envolviam directamente o parceiro, por exemplo: situação face ao envolvimento amoroso, satisfação com a relação, comunicação existente, hetero-valorização, ilusão de controlo, optimismo irrealista face ao parceiro e componentes de amor.

Na terceira dimensão, relativa ao nível intergrupal, era pedido ao sujeito que avaliasse determinadas questões relacionadas com crenças e estereótipos atribuídos a determinados grupos opostos àquele a que o sujeito julga pertencer no momento da avaliação, como, por exemplo: medo de contágio por grau de contacto, associação da doença a determinados grupos e homofobia.

O instrumento de análise foi aplicado no fim das aulas, tendo os sujeitos recebido previamente informação sobre o conteúdo e propósito do questionário.

Resultados

A apresentação dos resultados está dividida em quatro partes referentes aos dados mais relevantes de cada um dos três níveis de análise, aparecendo por último o modelo de análise proposto por este estudo.

Nível de análise individual-hipótese 1

Neste nível de análise esperava-se que quanto mais positiva a imagem possuída pelo próprio, mais elevada a sua percepção de controlo, e que quanto menor a probabilidade estimada de vivenciar acontecimentos negativos (ou maior fosse o optimismo), maior seria a percepção de invulnerabilidade à Sida.

Os resultados da análise de correlação entre os índices referentes à TAC expressos na hipótese e a percepção de invulnerabilidade à SIDA revelaram associações significativas. O optimismo apresentou a maior correlação com a percepção de invulnerabilidade (r=-0,33, p<0,001), indicando que quanto mais optimista é o indivíduo, menor a sua percepção de invulnerabilidade. Os índices de auto-imagem e controlo primário revelaram igualmente uma correlação negativa com a percepção de invulnerabilidade, pois os resultados indicam que quanto mais elevada a imagem positiva do próprio (r=-0,14; p<0,01), e quanto maior o grau de controlo primário (r=-.16, pc.Ol), menor a vulnerabilidade percebida. O controlo secundário não apresentou uma correlação significativa com a invulnerabilidade (r=0,08).

Para testar o poder preditivo dos índices relativamente à percepção de invulnerabilidade foram efectuadas análises de regressão (ver quadro 1). Os índices relativos à TAC contribuem com 12% para a explicação da variabilidade da invulnerabilidade, sendo o índice de optimismo o que revela maior contribuição (P=-0,32; p<0,0001).

 

 

Verificou-se ainda existir uma correlação positiva entre a origem sociocultural elevada e uma visão mais positiva de si próprio (r=0,18; p<0,001). O sexo do sujeito e a auto-imagem revelaram também uma correlação positiva significativa (r=0,10; p<0,05), indicando que na amostra as mulheres manifestam imagem mais positiva de si próprias do que os homens. Através de análises de regressão verificou-se que a origem sociocultural contribui para 3% da variação do optimismo do próprio e que a variável sexo tem uma contribuição de aproximadamente 1 % na variância da auto-imagem.

A hipótese foi confirmada, tendo-se verificado que o desenvolvimento de ilusões positivas está associada à percepção da invulnerabilidade à doença, particularmente o optimismo e o controlo primário.

Nível de análise interpessoalhipótese 2

Este nível de análise corresponde à principal hipótese de investigação referente à expectativa de uma maior invulnerabilidade à doença nos tipos de amor dotados da componente paixão.

Através das análises de correlação entre os três componentes de amor e a percepção de invulnerabilidade verificou-se que apenas o componente compromisso apresenta uma correlação significativa com a variável invulnerabilidade (r=-0,14; p<0,01), significando que quanto maior for o compromisso numa relação, menor a percepção de vulnerabilidade à Sida. Como se verifica, embora o valor da correlação seja baixo o sentido da mesma está de acordo com o que era esperado. Não se tendo verificado uma relação directa entre amor-invulnerabilidade, procedemos à análise de possíveis mediadores desta relação.

Todos os componentes de amor apresentaram uma correlação positiva significativa com o índice de qualidade da relação, indicando que quanto mais intimidade (r=0,67; p<0,001), paixão (r=0,62; p<0,001) e compromisso (r=0,59; p<0,001), maior a qualidade da relação. Esta apresentou por sua vez uma correlação baixa com a percepção de invulnerabilidade do próprio (r=-0,12; p<0,05), embora esteja mais fortemente associada com os indicadores de percepção de invulnerabilidade do parceiro (r=-0,37; p<0,001), significando que quanto maior for a qualidade de uma relação, menor a propensão atribuída ao parceiro no desenvolvimento da doença. De igual forma, quanto maior a qualidade da relação, menor a estimativa de probabilidade referente ao parceiro vir a desenvolver Sida (r=-0,33; p<0,001). Em relação ao controlo atribuído ao parceiro verifica-se que quanto maior for o seu grau, maior a qualidade da relação (r=0,16; p<0,05). O indicador probabilidade de o parceiro ser infectado, designado por optimismo face ao parceiro, revelou, comparativamente aos outros dois indicadores, o valor mais elevado da correlação com o índice de percepção de invulnerabilidade do próprio (r=0,46; p<0,001), indicando que quanto menos provável se considera a hipótese de o parceiro desenvolver Sida, menos vulnerável o sujeito se sente.

Com todas as variáveis descritas foi delineada uma relação causal entre as mesmas, que foi testada pelas análises de regressão efectuadas. Tendo-se considerado que a qualidade da relação e a percepção de optimismo em relação ao parceiro podem actuar como mediadores entre o amor e a percepção de invulnerabilidade do próprio, verificámos que os componentes de amor se apresentam como um bom preditor da qualidade da relação, contribuindo para a explicação de 49% da sua variância, e sendo a intimidade a que mais contribui para isso. A intimidade e a qualidade da relação contribuem com 15% para a explicação da variância do optimismo face ao parceiro e esta última variável está relacionada significativamente com a percepção de invulnerabilidade (r=0,45; p<0,001), contribuindo com 21% para a explicação da sua variância (quadro 2).

 

 

No conjunto dos dados inerentes a esta parte do modelo de análise, a confiança no parceiro face ao não desenvolvimento da doença, manifestando-se como um subproduto do amor, parece ser a verdadeira responsável pela percepção de invulnerabilidade à doença. Depreende-se dos resultados a existência de uma idealização da informação processada em relação ao parceiro devida aos sentimentos amorosos, responsável, de acordo com Murray et al. (1996) pelo desenvolvimento de sentimentos de satisfação com a relação e confiança no parceiro.

Os dados encontrados convergem parcialmente para as conclusões do estudo de Pilkington et al. (1994), no qual os sentimentos românticos e a confiança no parceiro explicaram a existência de uma menor preocupação face à Sida, sendo assim menos influenciados por esta no uso do preservativo.

Nível de análise intergrupalhipótese 3

A hipótese de nível grupal referia que se esperaria uma relação entre uma maior diferenciação estabelecida entre o sujeito e o grupo de risco (avaliada pelas crenças de transmissão e pelos estereótipos) e uma maior percepção de invulnerabilidade.

Ao nível dos índices relativos aos medos e preocupações face à Sida, a associação mais elevada com a percepção de invulnerabilidade é o medo de contágio (r=0,26; p<0,001, quanto maior o medo sentido em relação ao contágio maior a percepção de vulnerabilidade). Este facto sugere a existência de uma propagação social do medo, na qual está implícita um conjunto de crenças negativas. No que respeita aos indicadores de crenças de transmissão da doença, o facto de se associar a Sida a determinados grupos apresenta uma correlação negativa significativa com a percepção de invulnerabilidade (r=-0,17; p<0,001, quanto maior a associação da Sida a determinados grupos, menor a percepção de vulnerabilidade), o que está de acordo com Weinstein (1980), para o qual a existência de estereótipos associados a grupos que tipicamente vivem determinado acontecimento conduz as pessoas a estimarem as suas possibilidades como inferiores à média.

O índice de estereótipo de grupo de risco designado por homofobia apresentou uma associação negativa significativa, o que revela que quanto mais homófobo é o sujeito> menor será a sua percepção de vulnerabilidade à Sida (r=-0,18;p<0,001). Este facto poderá ser explicado pela existência de uma associação implícita entre a Sida e a homossexualidade, por parte dos sujeitos mais homófobos.

As variáveis sociodemográficas religião, sexo e posição política apresentaram uma correlação com a homofobia. O facto de ser católico (r=-0,27; p<0,001) e do sexo masculino (r=-0,18; p<0,001) está relacionado com uma maior homofobia. Quanto mais à direita o indivíduo se posiciona politicamente, mais homófobo tende a ser (r=0,22; p<0,001). As referidas correlações destacam o carácter socionormativo assumido pelas crenças sociais que se impõem como quadros de referência ao nível da percepção social da informação e consequente conformidade face à conduta a adoptar, imprimindo uma identidade própria a determinadas categorias sociais.

O poder preditivo das variáveis acima analisadas em relação à percepção de invulnerabilidade foi testado a partir da análise de regressão múltipla (quadro 3), verificando-se que apenas a variável medo de contágio e os índices de homofobia e doença de grupos específicos contribuem significativamente para a explicação da variância da percepção de invulnerabilidade (11%). As variáveis sociodemográficas referidas contribuem, por seu turno, para 16% da variância da homofobia.

 

 

Modelo integrativo final

A partir das análises de correlação e regressão parciais de cada um dos níveis de análise correspondentes a cada uma das hipóteses foi construído um modelo final de análise, no qual se incluíram apenas as variáveis e índices que demonstraram contribuir para a explicação da invulnerabilidade. O resultado final permite explicar 37% da variância da invulnerabilidade percebida à Sida.

Da leitura dos Betas podemos verificar que no modelo de análise final a segunda hipótese, por via do optimismo do parceiro, contribui de forma mais alargada para a percepção de invulnerabilidade. A primeira hipótese presta uma contribuição importante (sobretudo com o índice de optimismo do próprio), embora não tanto como a segunda, sendo a hipótese três a que menos contribui para a explicação da invulnerabilidade à Sida. Deste modo, salienta-se a importância do optimismo, sobretudo o que é atribuído ao parceiro na explicação da variância da invulnerabilidade (figura 2).

 

 

Conclusões

O trabalho apresentado teve por objectivo contribuir para a compreensão da percepção de invulnerabilidade à Sida, pela análise integrada de um conjunto relevante de factores socio-cognitivos. Deste modo, procedemos à análise de um conjunto de variáveis implicadas na percepção de invulnerabilidade a três níveis de análise, individual, interpessoal e intergrupal, sendo o nosso objectivo identificar os determinantes sociocognitivos da percepção de invulnerabilidade à Sida. Independentemente de considerarmos os três níveis de análise de igual importância, a nossa pesquisa incidiu principalmente sobre o nível interpessoal. Este facto é devido, por um lado, à existência de poucos estudos que visem a problemática da percepção da invulnerabilidade partindo de um contexto emocional e, por outro, à evidência de que o envolvimento afectivo poderá contribuir para a desvalorização da prevenção.

A principal hipótese de investigação referia-se à expectativa da existência de um efeito directo do tipo de amor (com componente de paixão) sobre a invulnerabilidade percebida. Ao contrário do que prevíamos, a relação amor-invulnerabilidade não é directa, mas mediada pela percepção de qualidade da relação e pelo efeito directo que esta exerce sobre o optimismo face ao parceiro, sendo esta variável que permite prever a invulnerabilidade de forma directa. Os dados parecem indicar que a confiança no parceiro face ao não desenvolvimento da doença, manifestando-se como um subproduto do amor e da qualidade da relação, é o verdadeiro responsável pela percepção da invulnerabilidade à Sida. Depreende-se de igual forma a existência de uma idealização da informação processada em relação ao parceiro devida aos sentimentos amorosos, responsável, de acordo com Murray et al. (1996), pelo desenvolvimento de sentimentos de satisfação com a relação e confiança no parceiro em qualquer tipo de amor.

Ao nível individual, a hipótese um foi comprovada pela verificação de que o desenvolvimento de ilusões positivas contribui para,a percepção de invulnerabilidade, particularmente o optimismo do próprio e o controlo primário. Este último índice revelou uma associação fraca, embora significativa, com a invulnerabilidade, tal como era esperado — quanto maior o controlo sentido pelo indivíduo sobre a doença, maior a percepção de invulnerabilidade. O optimismo, sendo o índice que mais contribui para a variação da invulnerabilidade, apresenta uma relação negativa com esta variável. Deste modo, ao nível da hipótese um os dados confirmam que a percepção positiva de futuro está associada a uma maior percepção de invulnerabilidade à doença.

No terceiro nível de análise — intergrupal — a hipótese é em parte confirmada, sendo o modo de contágio e a homofobia as variáveis que mais contribuem para a explicação da invulnerabilidade. O receio da contracção revela a existência de crenças negativas atribuídas à Sida. Não se verifica uma clara distintividade entre o grupo das pessoas infectadas e o grupo próprio — jovens —, a mesma encontra-se de forma implícita nos julgamento efectuados relativos a determinadas crenças de transmissão da doença e no estereótipo da pessoa com SIDA. Os sujeitos atribuem a presença a um grupo de risco como principal causa da doença, surgindo a homossexualidade, em parte, como sinónimo de uma pessoa com Sida. Os dados revelaram também uma certa homofobia em questões de confrontação com as vantagens sociais e a igualdade perante os heterossexuais. As crenças homofóbicas parecem ter uma clara origem social: de facto, são as únicas que se associam claramente às variáveis sociodemográficas posição política, género e religião. A crença de que a causa principal da contracção da doença é dada pela pertença a um grupo de risco parece explicar e mesmo determinar o estereótipo de a pessoa com Sida ser em parte homossexual. Em última análise, esta crença e este estereótipo justificam uma certa homofobia demonstrada pelos sujeitos.

Não obstante a pertinência do trabalho efectuado pela abordagem do estudo da percepção de invulnerabilidade, existem determinadas limitações relativas à generalização dos dados. A amostra utilizada é composta por estudantes universitários, sendo na sua maioria heterossexuais e, independentemente das limitações relativas á generalização dos dados, é importante salientar a contribuição desta pesquisa para o estudo da percepção de invulnerabilidade à Sida. O fenómeno da percepção de invulnerabilidade tem sido estudado como problema unidimensional, situando-se cada um dos estudos apenas a um nível de análise do problema. A nossa pesquisa procedeu ao esforço de contrariar esta tendência, concebendo a percepção de invulnerabilidade enquanto fenómeno complexo que necessita, para a sua compreensão, de uma análise abrangente inerente a níveis de explicação de natureza distinta, intenção operacionalizada pela caracterização do fenómeno a nível individual, interpessoal e intergrupal.

Por outro lado, importa também referir o facto de se ter privilegiado a tentativa de compreender o papel desempenhado pelo relacionamento afectivo na percepção que o sujeito tem da sua invulnerabilidade e não apenas a intenção de verificar a sua influência na adopção ou não de comportamentos de segurança. Procedeu-se igualmente à operacionalização dos diferentes sentimentos amorosos, pela relação destes com os diferentes níveis de percepção de invulnerabilidade, aspecto não salientado nas pesquisas efectuadas sobre o fenómeno. Deste modo, a pesquisa efectuada pretendeu estudar o fenómeno de forma abrangente, pela tentativa de avaliar a existência de um padrão típico de percepção de invulnerabilidade à Sida, salientando os aspectos mais relevantes em cada nível de análise.

Do exposto destaca-se a necessidade de a percepção de invulnerabilidade à Sida passar a ser concebida como um fenómeno complexo e assim incluir na sua análise um conjunto de perspectivas diversificadas, e, nesta perspectiva, incluir a percepção do parceiro naquela que o sujeito tem da sua invulnerabilidade.

 

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Notas

1Este trabalho foi financiado por uma bolsa de mestrado (n.o 6795) concedida pela Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, no âmbito do programa Praxis XXI.

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