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Revista de Enfermagem Referência

versão impressa ISSN 0874-0283versão On-line ISSN 2182-2883

Rev. Enf. Ref. vol.serV no.3 Coimbra jul. 2020

https://doi.org/10.12707/RV20014 

ARTIGO DE INVESTIGAÇÃO (ORIGINAL)

RESEARCH PAPER (ORIGINAL)

 

Prevalência e fatores de risco associados ao acidente vascular cerebral em pessoas com hipertensão arterial: uma análise hierarquizada

Prevalence and risk factors associated with stroke in hypertensive patients: a hierarchical analysis

Prevalencia y factores de riesgo asociados con el accidente cerebrovascular en personas con hipertensión arterial un análisis jerarquizado

 

Erisonval Saraiva da Silva* 1
https://orcid.org/0000-0003-0286-9124

José Wicto Pereira Borges 1
https://orcid.org/0000-0002-3292-1942

Thereza Maria Magalhães Moreira 2
https://orcid.org/0000-0003-1424-0649

Malvina Thais Pacheco Rodrigues 1
https://orcid.org/0000-0001-5501-0669

Ana Célia Caetano de Souza 3
https://orcid.org/0000-0001-9480-7195

 

1 Universidade Federal do Piauí, Floriano, Piauí, Brasil

2 Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, Ceará, Brasil

3 Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, Ceará, Brasil

 

RESUMO

Enquadramento: O acidente vascular cerebral (AVC) causa sequelas permanentes, sendo o descontrolo da hipertensão arterial responsável por 80% desses casos.

Objetivo: Analisar prevalência e determinar hierarquicamente fatores de risco associados ao AVC em pessoas com hipertensão arterial.

Metodologia: Estudo seccional com 378 pessoas com hipertensão arterial residentes no Sul do Piauí, Brasil, em 2018. Analisaram-se variáveis sociodemográficas, condições de saúde e estilo de vida por regressão múltipla hierárquica organizadas em níveis distal, intermédio e proximal.

Resultados: A prevalência foi de 11,6%. Os fatores associados: sexo (ORajustada = 0,47; IC95%: 0,23-0,95) e idade (ORajustada = 1,03; IC95%: 1,01-1,06) distalmente; familiar com AVC (ORajustada = 2,01; IC95%: 1,00-4,04) e ir à urgência com a pressão arterial alterada (OR = 2,01; IC95%: 1,00-4,05) em nível intermédio; ingerir alimentos com alto teor de gordura (OR = 2,33; IC95%: 1,15-4,72), ingerir doces (OR = 2,37; IC95%: 1,15-4,90) e tempo de fumador (OR = 1,02; IC95%:1,00-1,04) proximalmente.

Conclusão: A prevalência foi explicada por uma hierarquia entre os fatores de risco, evidenciando proximalmente aqueles classificados como modificáveis.

Palavras-chave: hipertensão; acidente vascular cerebral; atenção primária à saúde; prevalência; fatores de risco

 

ABSTRACT

Background: Stroke causes permanent sequelae and is the second leading cause of death worldwide. Poor blood pressure control corresponds to 80% of cases.

Objective: To analyze the prevalence and identify the risk factors for stroke in hypertensive patients using a hierarchical analysis.

Methodology: Cross-sectional study involving 378 hypertensive patients living in a municipality of Southern Piauí, Brazil, in 2018. Sociodemographic variables, health conditions, and lifestyles were analyzed using hierarchical multiple regression organized at distal, intermediate, and proximal levels, respectively.

Results: Stroke prevalence was 11.6%. Associated factors were: gender (AOR = 0.47; 95% CI: 0.23-0.95) and age (AOR = 1.03; 95% CI: 1.01-1.06) at the distal level; having a relative who has had a stroke (AOR = 2.01; 95% CI: 1.00-4.04) and going to the emergency room with altered blood pressure (OR = 2.01; 95% CI: 1.00-4.05) at the intermediate level; intake of high-fat foods (OR = 2.33; 95% CI: 1.15-4.72), intake of sweets (OR = 2.37; 95% CI: 1.15-4.90), and time as a smoker (OR = 1.02; 95% CI: 1.00-1.04) at the proximal level.

Conclusion: Prevalence was explained by a hierarchy of risk factors, thereby evidencing those classified as modifiable proximally.

Keywords: hypertension; stroke; primary health care; prevalence; risk factors

 

RESUMEN

Marco contextual: El accidente cerebrovascular (ACV) causa secuelas permanentes y constituye la segunda causa de muerte en el mundo, respecto a la cual la falta de control de la hipertensión corresponde al 80% de los casos.

Objetivo: Analizar la prevalencia y determinar jerárquicamente los factores de riesgo asociados con el accidente cerebrovascular en personas con hipertensión arterial.

Metodología: Estudio seccional con 378 personas con hipertensión arterial residentes de un municipio del sur de Piauí (Brasil) en 2018. Se analizaron las variables sociodemográficas, las condiciones de salud y el estilo de vida a través de una regresión múltiple jerárquica organizadas en nivel distal, intermedio y proximal, respectivamente.

Resultados: La prevalencia del evento fue del 11,6%. Los factores asociados fueron: sexo (ORajustada = 0,47; IC95%: 0,23-0,95) y edad (ORajustada = 1,03; IC95%: 1,01-1,06) en el nivel distal; miembro de la familia con AVC (ORajustada = 2,01; IC95%: 1,00-4,04) y acudir a urgencias con la presión sanguínea alterada (OR = 2,01; IC95%): 1,00-4,05) en el nivel intermedio; ingerir alimentos con alto contenido de grasa (OR = 2,33; IC95%: 1,15-4,72), ingerir dulces (OR = 2,37; IC95%: 1,15-4,90) y tiempo de fumador (OR = 1,02; IC95%: 1,00-1,04) en el nivel proximal.

Conclusión: La prevalencia se explicó por una jerarquía entre los factores de riesgo, y se mostraron proximalmente aquellos clasificados como modificables.

Palabras clave: hipertensión; accidente cerebrovascular; atención primaria de salud; factores de riesgo

 

Introdução

O acidente vascular cerebral (AVC) ocupa a segunda posição como causa de morte no mundo, tendo sido responsável por 6,24 milhões de óbitos em 2015 e tende a manter-se nessa posição até ao ano de 2030 (Organização Mundial da Saúde [OMS], 2015b). A sua prevalência pode variar de acordo com a população e região estudada. Em regiões da Ásia, uma revisão sistemática mostrou prevalências de 9,4% no sul, 6,1% no leste e 9% no sudeste (Venketasubramanian, Yoonb, Pandianc, & Navarrod, 2017). Na América Latina, uma metanálise envolvendo idosos mostrou uma prevalência de 7,6% em Cuba, 8,4% na República Dominicana, 6,8% no Perú e 6,7% no México (Ferri et al., 2011). No Brasil, um inquérito epidemiológico de base domiciliária evidenciou a prevalência de 1,5% na população geral (Bensenor et al., 2015). Em relação à carga de AVC por 100.000 habitantes brasileiros em 2016, houve uma incidência de 138,91, prevalência de 1008.02, mortalidade de 63,15 e 1437,74 anos de vida perdidos ajustados por incapacidade (disability adjusted life years [DALY]; Santana et al., 2018).

O AVC está associado a diversos fatores de risco como a idade, tabagismo, consumo de bebidas alcoólicas, dislipidemias, sedentarismo, e hipertensão arterial sistémica (HAS; Murakami et al., 2017). A HAS é um dos principais fatores que aumenta o risco do AVC e está associada a piores desfechos (Forouzanfar et al., 2017). Uma revisão que envolveu 154 países mostrou que a pressão arterial (PA) sistólica acima de 140mmHg foi responsável por 2 milhões de óbitos por AVC hemorrágico e 1,5 milhões por AVC isquémico (Forouzanfar et al., 2017). Quase metade das mortes relacionadas com o AVC são atribuíveis a um mau controlo de fatores de risco modificáveis e, portanto, potencialmente evitáveis (Murakami et al., 2017).

A ocorrência do AVC é resultante de uma complexa interação entre fatores de diversos tipos. A literatura tem apresentado estratégias analíticas que visam uma compreensão melhor estruturada dos fatores implicados na determinação desse evento (Kummer et al., 2019). Assim, poucos estudos epidemiológicos têm caminhado para a utilização de modelos multiníveis que considerem a natureza hierárquica, intrínseca aos dados, analisando o posicionamento das variáveis e a sua aproximação com o evento, permitindo a elucidação de estruturas teórico-analíticas que possam direcionar uma prática clínica preventiva do AVC (Kummer et al., 2019).

Diante do exposto, este estudo procurou contribuir para a compreensão da prevalência do AVC numa população específica e com risco de grande magnitude, a partir de uma análise hierárquica dos fatores de risco distantes, intermédios ou proximais ao AVC. Assim, o presente estudo tem como objetivo analisar a prevalência e determinar hierarquicamente fatores de risco associados ao AVC em pessoas com hipertensão arterial.

 

Enquadramento

O cenário epidemiológico que associa a HAS e o AVC desafia os sistemas de saúde, principalmente dos países em desenvolvimento, na elaboração de modelos de cuidado que possam enfrentar os fatores de risco para o AVC, diminuindo as probabilidades da ocorrência do evento e, ao mesmo tempo, fornecendo uma estrutura para o acompanhamento dos sobreviventes, que necessitem de tratamentos a longo prazo. Dados da Pesquisa Nacional em Saúde (PNS) mostraram uma alta prevalência desse evento associado a fatores de risco como idade avançada, baixa escolaridade e morar em grandes cidades (Bensenor et al., 2015).

O Modelo de Atenção às Condições Crónicas (MACC), proposto pela OMS, procura intervir na saúde da população a partir da compreensão dos riscos individuais e coletivos e incentivando as pessoas a participarem nos próprios cuidados. Este modelo está construído em três colunas: na primeira, está a população total estratificada em subpopulações por estratos de risco; na segunda, encontram-se os diferentes níveis de determinação social da saúde, distribuídos hierarquicamente em determinantes individuais, intermédios e proximais; e na terceira estão os cinco níveis das intervenções de saúde sobre os determinantes e as suas populações: intervenções promocionais (nível 1), preventivas (nível 2) e de gestão da clínica sobre as condições crónicas estabelecidas (níveis 3, 4 e 5; Mendes, 2018).

No Brasil, o MACC é estruturado a partir das Redes de Atenção às Pessoas com Doenças Crónicas (RASPDC). Essas redes caracterizam-se pela organização da atenção para subpopulações e procuram estratégias para o enfrentamento das Doenças Crónicas Não Transmissíveis (DCNT), abordando principalmente os fatores de risco e comportamentos de promoção da saúde (Chueiri, Harzheim, Gauche, & Vasconcelos, 2014). O primeiro componente da RASPDC é a atenção básica (AB), sendo esta o espaço para o acompanhamento e cuidado de pessoas com HAS, de modo a que se possam identificar grupos vulneráveis para o desencadeamento de complicações secundárias ao descontrolo da PA, como o AVC.

 

Questão de investigação

Qual a prevalência do AVC e como é que os fatores de risco se organizam hierarquicamente para o seu desenvolvimento em pessoas com HAS atendidos na AB?

 

Metodologia

Trata-se de um estudo seccional analítico realizado em 17 unidades básicas de saúde (UBS) da zona urbana do município de Floriano, Estado do Piauí, Brasil. Para cálculo da amostra aleatória simples, considerou-se uma população de 4.645 pessoas com hipertensão arterial registados no Sistema de Gestão Clínica de Hipertensão Arterial da AB (SIS-HIPERDIA), utilizou-se a prevalência do AVC de 37,9%, intervalo de confiança de 95% e erro amostral de 5%. Assim, após acréscimo de uma margem de segurança de 15% foram abordados 378 participantes.

Os critérios de inclusão foram: idade igual ou superior a 18 anos; possuir registo de diagnóstico médico de HAS na sua ficha de acompanhamento da UBS; e registo no SIS-HIPERDIA. Foram critérios de exclusão da amostra: as pessoas com transtorno mental descompensado no momento da colheita de dados; grávidas; pessoas hospitalizadas para tratamento ou em endereço diferente do registado na UBS.

Os participantes da amostra foram selecionados a partir dos registos de cada UBS. Os registos foram numerados por ordem crescente e sorteados de maneira proporcional ao número de registos de cada unidade até se atingir o quantitativo amostral. Caso o sorteado não fosse encontrado para colheita de dados, considerou-se um próximo indivíduo, selecionado por um novo sorteio a partir do registo, diminuindo as perdas amostrais.

Os sorteados foram abordados na própria UBS aquando da consulta de rotina. A colheita ocorreu nos domicílios após agendamento prévio e acompanhamento pelo agente comunitário de saúde. No caso dos indivíduos com dificuldade de comunicação causada pelo AVC, a entrevista foi conduzida com um familiar cuidador que pudesse prestar informações com um maior nível de precisão.

A colheita de dados ocorreu por meio de um questionário estruturado em três blocos de variáveis: 1) perfil sóciodemográfico (idade, sexo, raça/cor autodeclarada, escolaridade, renda individual em salários mínimos - R$ 954,00 Reais, vigente no período); 2) condições de saúde (histórico de familiar de 1º grau com AVC, possuir prescrição medicamentosa para tratamento da HAS, ter tido atendimento negado no posto de saúde, número de vezes que foi ao posto de saúde no último ano, e se passou pelo serviço de emergência no último ano devido a alteração da PA); 3) estilo de vida (se fuma, se foi fumador, tempo que fumou, consumo de bebidas alcoólicas, consumo de alimentos com alto teor de gordura, carne vermelha, carne branca, peixe e alimentos ricos em açúcar pelo menos uma vez por semana). O desfecho AVC foi autorreferido e confirmado nos exames solicitados no momento da visita domiciliária. O questionário teve por base as Diretrizes Brasileiras de HAS (Malachias et al., 2016).

As análises foram realizadas através do software estatístico IBM SPSS Statistics, versão 22.0, englobando estatística descritiva e testes de associação (qui-quadrado de Pearson e t de Student). Por fim, foi realizada regressão logística múltipla com técnica hierarquizada. Foram submetidas à regressão as variáveis que apresentaram na análise bivariada um p-valor =0,20. Para estimar a força de associação foi calculada a Odds Ratio (OR), com intervalo de confiança de 95%. Considerou-se um nível de significância estatística de 5%.

Na aplicação da regressão, a variável dependente foi a ocorrência do AVC. Para construir a hierarquização do modelo, utilizou-se o referencial do MACC que na segunda coluna propõe uma estrutura compreensiva e hierárquica (Mendes, 2018). Assim, para a hierarquização das variáveis, o modelo criado obedeceu à seguinte sequência de entrada dos dados: 1) variáveis situadas no nível hierárquico distal, de menor poder de determinação do AVC (perfil sóciodemográfico); 2) variáveis situadas no nível hierárquico intermédio (condições de saúde de pessoas com hipertensão arterial); 3) variáveis situadas no nível hierárquico proximal (estilo de vida de pessoas com hipertensão arterial). O critério estabelecido nesta etapa de análise para as variáveis permanecerem no modelo teórico final foi a significância estatística com p-valor <0,05.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal do Piauí, respeitando a legislação sobre pesquisa com seres humanos com aprovação Nº.2.350.946. Os participantes foram informados sobre os riscos e benefícios da investigação e todos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido antes da realização da colheita de dados.

 

Resultados

Este estudo mostrou uma prevalência de AVC de 11,6% entre as pessoas com hipertensão arterial que participaram no estudo, estando relacionada hierarquicamente com as variáveis sociodemográficas, de condições de saúde e estilo de vida.

As características sociodemográficas mostraram que 68,5% eram mulheres, 71,4% idosos, 22,5% declararam cor da pele preta, 24,9% disseram não saber ler ou escrever, 53,7% ganham até um salário mínimo. Além disto, o sexo masculino apresentou o dobro da prevalência de AVC em relação à ocorrência no feminino (Tabela 1).

Relativamente às condições de saúde das pessoas com hipertensão arterial, um terço (34,7%) relatou ter um familiar que sofreu um AVC, quase a totalidade (97,1%) possuía prescrição medicamentosa para a HAS, 18% procuraram a UBS e não tiveram atendimento e 29,1% procuraram a urgência com a PA alterada. A ocorrência do AVC esteve associada a ir à urgência com a PA alterada (Tabela 2).

No que toca às variáveis referentes ao estilo de vida das pessoas com hipertensão arterial, a maioria não fumava e nem consumia bebidas alcoólicas. Porém, 57,1% foram fumadores no passado. O consumo de alimentos com alto teor de gordura foi relatado por 35,2% dos participantes e 46,6% consumiam doces. Dessas, ter sido fumador, tempo de fumador, consumir alimentos com alto teor de gordura e ingerir doces pelo menos uma vez por semana mostraram associação com o AVC (Tabela 3).

Na análise de regressão hierarquizada, permaneceram no modelo final as variáveis sexo e idade referentes às características sociodemográficas; ter um familiar que sofreu um AVC e ter ido à urgência com a PA alterada, relativos às condições de saúde de pessoas com hipertensão arterial, além do consumo de alimentos com alto teor de gordura, ingerir doces e tempo de fumador no que toca ao estilo de vida da população estudada. O modelo foi ajustado pela variável possuir prescrição medicamentosa (Tabela 4).

O modelo revelou variáveis que aumentaram a probabilidade de ocorrência de AVC: consumir alimentos com alto teor de gordura aumenta em 2,33 vezes; ingerir doces eleva em 2,37 vezes; para cada ano a fumar a probabilidade aumenta em uma vez; ter um familiar que sofreu um AVC aumenta em duas vezes; ter ido à urgência com a PA alterada aumenta em duas vezes a probabilidade do evento; para cada ano de vida a probabilidade aumenta uma vez e ser do sexo masculino apresentou 53,0% mais chances de sofrer um AVC em relação ao feminino (Tabela 4).

 

Discussão

Pensar os cuidados às pessoas com hipertensão arterial e a ocorrência de comorbidades como o AVC deve ir além da responsabilização individual pela autogestão do tratamento. Procurar o entendimento do AVC através da ampliação do foco de investigação, considerando outros determinantes que podem influenciar a sua ocorrência que englobem elementos de foro individual e relativos ao sistema de saúde é um exercício necessário para a compreensão da complexidade da ocorrência de doenças crónicas na população.

A investigação do AVC como complicação em pessoas com HAS no âmbito da AB permitiu traçar uma linha explicativa para este evento de morbidade, considerando uma capacidade sócio-individual constituída hierarquicamente por fatores sociodemográficos, condições de saúde e estilo de vida, aliados ao modelo MACC.

Observou-se uma prevalência considerável de 11,6% do AVC nos participantes, menor do que a encontrada no estudo realizado em pessoas com HAS numa capital do nordeste brasileiro (Lima, Moreira, Borges, & Rodrigues, 2016). Tal diferença pode ser explicada pelo facto de este estudo ter investigado a ocorrência do AVC em pacientes que já tinham algum tipo de complicação decorrente da HAS (Lima et al., 2016). Considera-se ainda que o AVC é uma complicação potencialmente grave com desfechos muitas vezes fatais que se podem ter refletido na prevalência encontrada.

No modelo hierárquico, distalmente a ocorrência do AVC mostrou proporção maior para o sexo masculino e com maior idade. Este resultado corrobora um estudo que indicou maior prevalência do AVC em homens no Brasil (Bensenor et al., 2015). Estes resultados podem ser influenciados pela técnica de colheita de dados. As mulheres relatam mais sintomas do que os homens e isso pode explicar a maior prevalência utilizando o questionário em relação ao diagnóstico feito por uma única pergunta, que não detectou diferenças estatísticas entre homens e mulheres (Bensenor et al., 2015). Na presente investigação, além do questionamento, foram consultados exames para a confirmação do evento.

No Japão, um estudo que avaliou as diferenças nos fatores de risco tradicionais para AVC em idosos em comparação com jovens, concluiu que a ocorrência desta complicação era significativamente maior entre idosos, indicando estratégias de prevenção, conforme essa categoria de idade (Murakami et al., 2017). Assim, os profissionais da AB precisam de direcionar os esforços de monitorização e cuidado para as pessoas idosas com HAS. Assim, ações de vigilância em saúde podem ser delineadas para o acompanhamento das variáveis distais, culminando com o planeamento de intervenções que diminuam o risco da ocorrência do AVC nesta população.

O modelo explicativo mostrou que as variáveis ter um familiar que sofreu um AVC e ter ido à urgência com PA alterada foram significativos no nível intermédio para o desfecho. Na Índia, um estudo demonstrou associação entre a díade pai-filho com 1,58 vezes mais probabilidade para o desenvolvimento dessa doença, sugerindo forte associação das condições crónicas em adultos com a hereditariedade (Patel et al., 2017). Tal, mostra que a RASPDC precisa de estruturar o acompanhamento longitudinal não só das pessoas que têm HAS, mas também daquelas que possuem familiares com fatores de risco para o evento.

A procura do serviço de urgência com a PA alterada aumenta em duas vezes a probabilidade do AVC. Um estudo de base populacional realizado em Roterdão, na Holanda, mostrou que elevações rápidas de PA estão associados ao alto risco de AVC e morte, enquanto que a PA moderadamente alta está associada apenas ao aumento do risco de AVC (Portegies et al., 2016). Para manter os níveis de PA numa faixa segura e evitar picos hipertensivos que possam desencadear o AVC, é necessária a implementação de uma cultura de educação em saúde que trabalhe a compreensão das pessoas no que toca à adesão ao tratamento da HAS, de forma a evitar níveis perigosos de PA.

A AB deve fomentar os serviços de acompanhamento de pessoas com HAS de modo a manter uma monitorização da família desses indivíduos. O trabalho dos agentes comunitários de saúde pode ser de grande valia, tendo em conta que estão inseridos na comunidade e conhecem os indivíduos e a sua composição familiar. Programas de educação para a promoção de estilo de vida saudável e controlo da PA devem direcionar esforços para famílias que possuem pessoas com HAS em risco para o AVC.

No nível proximal ao desfecho estiveram variáveis relacionadas com o comportamento dos indivíduos, mostrando que a adoção de um estilo de vida não saudável pela pessoa com HAS aumenta a probabilidade da ocorrência do AVC. O consumo de gorduras e doces, e ter sido fumador durante algum tempo na vida mostraram forte associação com o AVC. Os cuidados na AB devem direcionar esforços de promoção da saúde que contemplem ações de promoção de alimentação saudável e o não uso do tabaco. Como se trata da modulação de comportamentos, e estes quando firmados nos indivíduos são muito difíceis de serem remodelados ou redirecionados, é imprescindível que as ações sejam iniciadas precocemente na vida das pessoas. Assim, considera-se que a existência de um programa de saúde escolar é importante para direcionar ações de saúde na população jovem, podendo evitar o surgimento da HAS e mesmo do AVC na vida adulta.

Em relação ao uso do tabaco, os anos de exposição ao cigarro permaneceram como fator de risco para o desenvolvimento de AVC, tendo em vista que os seus efeitos parecem cumulativos e diretamente relacionados com os anos de exposição ao vício, conforme o Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes de Silva (INCA, 2014). Uma metanálise de estudos de coorte realizados na Europa e na América do Norte, observou aumento do risco de 1,5 vezes para o desenvolvimento do AVC entre os fumadores, sendo que a razão de risco tende a aumentar com o consumo linear de 10 cigarros diários e diminui com o tempo desde a cessação do tabagismo como um efeito dose-resposta (Mons et al., 2015).

Importa destacar que nas últimas décadas houve uma redução do uso do tabaco relacionado com as políticas de controlo do cigarro, com o aumento dos impostos, proibição de veiculação de propagandas que estimulem o uso e ampla divulgação sobre os seus malefícios, incluindo o uso de imagens desencorajadoras do seu consumo nas embalagens (INCA, 2014). Para a OMS, políticas intersetoriais necessitam de um alinhamento no sentido de melhorar os efeitos positivos na saúde, tal como a política anti-fumo que atua em várias frentes, incluindo a indústria (OMS, 2015a).

Em relação ao padrão alimentar, o consumo de alimentos com alto teor de gordura e a ingestão de doces aumentou a razão de chances para o desenvolvimento do AVC. Tais resultados corroboram o estudo sobre a carga global de doenças e anos de vida perdidos ajustados por incapacidade no Brasil, onde a dieta inadequada lidera a classificação dos fatores de risco, principalmente entre as mulheres (Malta et al., 2017). Um estudo realizado na Dinamarca sobre os efeitos de uma dieta protetora (dieta nórdica) com baixo teor de açúcares e gordura e rica em vegetais constatou uma redução na incidência do AVC isquémico, comparado com o grupo controlo, que não fazia uso desse tipo de alimentação (Hansen et al., 2017).

No entanto, sabe-se que adquirir hábitos alimentares saudáveis passa por diversos fatores, por exemplo da cultura, renda, escolaridade, acesso aos alimentos, dentre outros, que podem dificultar a adesão. Um estudo realizado com idosos com hipertensão arterial no Rio Grande do Sul, detetou que os hábitos alimentares deixaram a desejar em relação aos padrões recomendados e estiveram associados à baixa escolaridade, ser aposentado, baixo rendimento familiar e pouca atividade física (Gandenz & Benvegnú, 2013), características semelhantes às encontradas neste estudo.

No geral, constatou-se que a prevalência do AVC pode ser explicada por fatores de risco organizados num modelo hierárquico, sendo que os fatores referentes ao estilo de vida estiveram comprovadamente mais próximos ao desenvolvimento do AVC. Neste sentido, investir no delineamento de ações que possam incentivar a modificação de hábitos, atingindo o controle da PA pode ter impacto na diminuição da ocorrência do AVC em pessoas com HAS. O tratamento a estas condições deve ser reorientado em torno do paciente e família, estendendo-se para além dos limites da clínica e penetrando os ambientes domésticos e do trabalho de forma a minimizar o surgimento dessas condições e os seus efeitos pela deteção precoce, aumento da prática de atividade física, redução do tabagismo e restrição do consumo excessivo de alimentos não saudáveis.

O estudo apresentou como limitação a possibilidade de viés de prevaricação quando o paciente era questionado sobre hábitos de vida, pelo que se procurou esclarecer a importância de responder ao questionário com informações verdadeiras, explicando que em nenhum momento eles seriam identificados na pesquisa.

 

Conclusão

Considerando a gravidade da ocorrência do AVC, encontrou-se uma prevalência elevada dessa complicação nas pessoas com HAS. O modelo proposto mostrou existir hierarquia entre os fatores de risco na ocorrência do evento, revelando de maneira proximal os fatores de estilo de vida consumo de alimentos com alto teor de gordura, ingestão de doces e o tempo de fumador, de maneira intermédia as condições de saúde como ter um familiar que sofreu um AVC e procurar a urgência com a PA alterada, e distal ao desfecho estiveram o sexo e a idade.

Destaca-se a importância do planeamento de intervenções na AB que levem em consideração a hierarquia desses fatores. Planeamento de atividades que vão desde ações de vigilância em saúde dos fatores de risco distais, acompanhamento das famílias por meio dos equipamentos da AB e produção e implementação de programas de educação para a promoção do estilo de vida saudável com múltiplas estratégias e de modo permanente. Planear e aplicar tais ações implicará futuramente um melhor controlo destes fatores de risco e, assim, pode reduzir-se a ocorrência do AVC em pessoas hipertensas. Os fatores modificáveis destacam-se como contribuintes na ocorrência dessa complicação e constituem pontos alvo para a elaboração de estratégias de intervenção a serem delineadas em estudos futuros.

 

Referências bibliográficas

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Contribuição de autores

Conceptualização: Silva, E. S., Borges, J. W. P., Moreira, T. M. M.

Tratamento de dados: Silva, E. S., Borges, J. W. P. Moreira, T. M. M.

Metodologia: Silva, E. S., Borges, J. W. P., Rodrigues, M. T. P., Souza, A. C. C.

Redação – Preparação do rascunho original: Silva, E. S., Borges, J. W. P., Souza, A. C. C.

Redação- Revisão e edição: Silva, E. S., Rodrigues, M. T. P.

 

* Autor de correspondência

Erisonval Saraiva da Silva

E-mail: erisonval@gmail.com

 

Como citar este artigo: Silva, E. S., Borges, J. W. P., Moreira, T. M. M., Rodrigues, M. T. P., & Souza, A. C. C. (2020). Prevalência e fatores de risco associados ao acidente vascular cerebral em pessoas com hipertensão arterial: uma análise hierarquizada. Revista de Enfermagem Referência, 5(3), e20014. doi:10.12707/RV20014

 

Recebido: 21.01.20

Aceite: 29.07.20

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