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Revista de Enfermagem Referência

versión impresa ISSN 0874-0283

Rev. Enf. Ref. vol.serIV no.13 Coimbra jun. 2017

https://doi.org/10.12707/RIV17020 

ARTIGO TEÓRICO/ENSAIO

THEORETICAL ARTICLE/ESSAYS

 

Biotecnologia: revolução digital e conhecimento estético em enfermagem

Biotechnology: digital revolution and aesthetic knowledge in nursing

Biotecnología: revolución digital y conocimiento estético en enfermeira

 

Ana Paula Teixeira de Almeida Vieira Monteiro*; Manuel Curado**; Paulo Queirós***

* Ph.D., Professor Adjunto, Escola Superior de Enfermagem de Coimbra, 3046-851, Coimbra, Portugal [anapaula@esenfc.pt]. Contribuição no artigo: pesquisa bibliográfica; recolha de dados; análise e reflexão conceptual; escrita do artigo. Morada para correspondência: Rua Dr. Paulo Quintela, nº. 169 - 1Esq., 3030-393, Coimbra, Portugal.

** Ph.D., Professor Universidade do Minho, Instituto de Letras e Ciências Humanas Universidade do Minho Campus de Gualtar, 4710-057 Braga [jmcurado@ilch.uminho.pt]. Contribuição no artigo: análise conceptual.

*** Ph.D., Professor Coordenador, Escola Superior de Enfermagem de Coimbra, 3046-851, Coimbra, Portugal [pauloqueiros@esenfc.pt]. Contribuição no artigo: análise conceptual.

 

RESUMO

Enquadramento: O conhecimento estético em enfermagem é uma dimensão que tem sido colocada em causa com a afirmação das biotecnologias de ponta nos processos de cuidar.

Objetivos: Este artigo tem como objetivo analisar reflexivamente as novas possibilidades de pensamento e conhecimento em enfermagem trazidas pelas biotecnologias e revolução digital, a partir da perspetiva de Bárbara Carper sobre o conhecimento estético em enfermagem.

Principais tópicos em análise: Biotecnologias, conhecimento estético em enfermagem; relação empática.

Conclusão: A componente estética do cuidar, enquanto âncora organizadora, dá sentido e sustenta a praxis clínica de enfermagem, em contextos de hibridismo tecnológico. A ideia de uma tecnologia encarnada aponta para uma outra forma de sistematizar o conhecimento que permita a superação dicotómica entre a tecnologia agressiva e o cuidado humanizado em enfermagem.

Palavras-chave: epistemologia; cuidados de enfermagem; desenvolvimento tecnológico; conhecimento; estético

 

ABSTRACT

Background: Aesthetic knowledge in nursing has been challenged by the increasing importance of cutting-edge biotechnologies in care processes.

Objective: This article aims to reflect on the new possibilities of thinking and knowledge in nursing brought about by biotechnologies and the digital revolution, starting from Barbara Carper's perspective on aesthetic knowledge in nursing.

Main topics under analysis: Biotechnologies, aesthetic knowledge in nursing, empathic relationship.

Conclusion: The aesthetic component of care, as an organizing anchor, provides meaning and supports clinical nursing practice in contexts of technological hybridism. The idea of an embodied technology points towards a different way of systematizing knowledge that allows overcoming the dichotomy between aggressive technology and humanistic nursing care.

Keywords: epistemology; nursing care; technological development; knowledge; esthetics

 

RESUMEN

Marco contextual: El conocimiento estético en enfermería es una dimensión que se ha cuestionado con la afirmación de la biotecnología más avanzada en los procesos de cuidado.

Objetivos: Este artículo tiene como objetivo analizar y reflexionar sobre las nuevas posibilidades de pensamiento y conocimiento en enfermería derivadas de la biotecnología y la revolución digital, a partir de la perspectiva de Bárbara Carper sobre el conocimiento estético en enfermería.

Principales temas en análisis: Biotecnologías, conocimiento estético en enfermería; relación empática.

Conclusión: El componente estético del cuidado, como ancla organizadora, da sentido y sostén a la práctica clínica de enfermería, en contextos de hibridismo tecnológico. La idea de una tecnología encarnada apunta a otra forma de sistematizar el conocimiento que permita la superación dicotómica entre la tecnología agresiva y el cuidado humanizado en enfermería.

Palabras clave: epistemologia; atención de enfermería; desarrollo tecnológico; conocimiento; estético

 

Introdução

Saberes e arte em enfermagem

Carper (2006), ao identificar padrões fundamentais de conhecimento em Enfermagem, refere que o conhecimento cientificamente validado remete para uma conceção empírica, factual, objetivamente descritiva e generalizável. Existe uma profunda relutância em aceitar, como forma de conhecimento validado em enfermagem, aspetos que não resultam diretamente da investigação empírica segundo o modelo positivista-experimental.

Do ponto de vista conceptual, assim como ao nível do substrato teórico e ideológico, o conceito de competências profissionais em enfermagem está frequentemente imbuído de pressupostos técnico-racionais. Esta racionalidade técnica, que impregna o mundo da educação e prática profissional em enfermagem, pretende dar resposta a problemas instrumentais bem delineados que requerem técnicas específicas, estratégias de intervenção e algoritmos de análise para a sua resolução.

No entanto, este modelo, quando aplicado a algumas dimensões dos cuidados de enfermagem (como na área de saúde mental), revela-se descontextualizado, simplista e redutor. Por causa disso, os currículos académicos baseados na racionalidade técnica são insuficientes para construir um conhecimento científico estruturado em enfermagem que permita aos estudantes e profissionais envolverem-se de forma adequada com subjetividades complexas e desorganizadas, construir relações terapêuticas integradas ou implementar cuidados ao longo do ciclo vital em ambientes de hipercomplexidade em saúde (Grant & Radclife, 2015).

Os saberes de enfermagem são portanto muito mais abrangentes e emergem numa encruzilhada de conhecimentos, em que uma ecologia de saberes vem sendo construída, de uma forma mais ou menos emancipatória, em função dos contextos e dos atores que em cada momento organizam e vivenciam a relação do cuidar (Santos, 2007; Queirós, 2016).

A história da modernidade é marcada pela monocultura do conhecimento científico, que deslegitima qualquer forma de conhecimento e de saber que não sejam produzidos sob os parâmetros da ciência. A inquietação diante do desperdício histórico e material dos saberes não hegemónicos pela ciência moderna culmina na reflexão utópica acerca da reinvenção dos saberes. A modernidade hegemónica condensada na racionalidade científica e na tecnociência caracteriza-se por ruturas e dicotomias, linhas demarcadoras da realidade e uma forma de pensamento, o pensamento abissal. Estas dicotomias exprimem fraturas conceptuais ancoradas em relações de poder, hierarquias e constelações de possibilidades, cartografias epistemológicas (Santos, 2007).

A afirmação da enfermagem enquanto arte de cuidar, como uma forma legítima de conhecimento, numa abordagem fluida e aberta, torna possível a integração de uma multiplicidade de condições, situações e experiências de cuidado (Carper, 2006).

Ao reivindicar o conhecimento estético em enfermagem como uma forma de conhecimento legítimo e autónomo, na nossa perspetiva, Barbara Carper afirma a possibilidade de um pensamento pós-abissal em enfermagem.

De certa forma, um cuidado integral e personalizado, pela sua delicadeza e complexidade criativa pode integrar o conceito de grande Arte. Por exemplo, alguns quadros de Rembrandt caracterizam-se por apresentarem, dentro da composição, elementos e fragmentos que não se integram no seu estilo técnico habitual como em O Banho de Betsabé (1654) ou O Cavaleiro Polonês (1655). Isto torna estes quadros únicos pelas suas distorções e, ao mesmo tempo, esta falta de unificação com o estilo típico da sua obra integral torna-os unificados como uma pintura crítica relativamente aos cânones de pintura usuais para o seu tempo. No entanto, esta excecionalidade permite integrá-los na unicidade da obra do pintor – pois “desunificar”, face ao contexto cultural de onde emerge a sua obra, é a marca unificadora de Rembrandt (Bal, 1991, p. 75).

O cuidado de enfermagem, de uma complexidade criativa, caracteriza-se na sua dimensão estética pela sensibilidade, intuição e técnica. Concretiza-se na relação interpessoal estabelecida em tempo oportuno, num timing determinado, integrando protocolos de funcionalidade técnica, mas reconfigurando-os face aos contextos dos sujeitos, únicos e irrepetíveis.

De acordo com a literatura disponível, o design do cuidado em enfermagem tem de ser impregnado de um sentido de estrutura que lhe confere uma dimensão estética, uma delicada perceção de equilíbrio, ritmo e unidade daquilo que é feito, em relação à dinâmica da integração e articulação com o todo. O uso intuitivo de recursos criativos permite uma abertura à hipercomplexidade do cuidar, abrindo a possibilidade de utilizar o substrato tecnológico e as evidências científicas do conhecimento biomédico num cuidado integral da pessoa. O conhecimento estético em enfermagem, assim entendido, engloba as características de um ato ou um processo cultural complexo, que causa ou produz uma experiência estética. As experiências da beleza e do sublime, associadas à componente estética dos cuidados de enfermagem estão presentes nas práticas e nas vivências concretas do cuidar (Siles-Gonzáles & Solano Ruiz, 2016).

O presente artigo, resultante da pesquisa realizada no âmbito do projeto Cuidar em Enfermagem: Cyborgs, Biotecnologias e cuidados digitais, tem como objetivo analisar reflexivamente as novas possibilidades de pensamento e conhecimento em enfermagem trazidas pelo impacto das biotecnologias, artefactos digitais e sistemas informáticos nos processos de cuidar, a partir da perspetiva de Barbara Carper sobre o conhecimento estético em enfermagem.

 

Desenvolvimento

Conhecimento estético e relação empática

A capacidade de relação empática constitui um modo específico de conhecimento estético em enfermagem (Carper, 2006) e é especialmente desafiadora em ambientes de cuidado hipertecnológico.

A habilidade para compreender e dotar de significado existencial os “encontros” enfermeiro/doente implica que o enfermeiro seja capaz de transformar a experiência de “o que é” na experiência de “o que é possível” (Chinn & Kramer, 2011, p. 133). Isto inclui um elemento intuitivo baseado na expertise profissional e numa sensibilidade trabalhada, coerente. Ou seja, o enfermeiro, num momento concreto de cuidado, pode não ter a imediata e completa compreensão do que é que aquele momento significa para a pessoa ou a família alvo da sua intervenção. No entanto, a sua sensibilidade pode intuitivamente vislumbrar elementos do processo em curso que apelam a uma resposta imediata e agir espontaneamente em função das necessidades da pessoa /família (Billay, Myrick, Luhanga, & Yonge, 2007). Uma conceção do cuidar enquanto genuína intersubjetividade, em quem a relação interpessoal é mais ancorada na presença do que no objeto envolve um enorme grau de risco e imprevisibilidade. Neste processo, o dado originário não é o “logos” mas o “pathos”, ou seja, o sentimento, a capacidade de empatia, de dedicação e cuidado com “o diferente” (Boff, 2008, p. 33).

Santos (2013), num estudo qualitativo sobre as modalidades terapêuticas usadas pelos enfermeiros no processo de cuidados, refere a presença terapêutica que se caracteriza por um centramento do enfermeiro prestador de cuidados, que usa, conscientemente, todos os recursos do seu ser no ato de cuidar (emoções, conhecimentos, corpo, mente) num modo-de-estar consciente e atento ao doente enquanto ser total. Neste estudo, que envolveu processos de observação etnográfica da interação de cuidados entre enfermeiros e doentes em unidades de oncologia, em alguns dos momentos observados, a presença terapêutica dos enfermeiros “era tão forte que podia ouvir-se”, sendo descrita como “uma capacidade de conexão com a experiência do doente tão intensa, que, frequentemente conduzia ao alheamento” relativamente a outros factores externos, do meio ambiente hospitalar (Santos, 2013, p. 162).

Esta presença ativa do enfermeiro é uma forma de estar que é um estar com ou um estar ali e requer uma atenção focada na pessoa alvo dos cuidados, um estar, plenamente consciente do outro no aqui e no agora (Paterson & Zderad, 2008).

Em ambientes hipertecnológicos, cuidar em enfermagem implica o gesto terapêutico ancorado na competência técnica e no manejo de equipamento sofisticado, a capacidade de formular decisões atempadas tendo em conta informação digitalizada e algoritmos de possíveis soluções. Traduz-se também numa compreensão profunda do outro, do seu sofrimento vivido, fabricado e partilhado, através da transfiguração de um corpo coisificado, fragmentado, conectado a todo o tipo de utensílios e materiais de sustentação de vida.

Esta proximidade entre enfermeiro e a pessoa alvo dos seus cuidados não se circunscreve à proximidade física e espacial, nem mesmo à necessária atividade técnica invasiva do território do corpo.

Um processo de intimidade existencial entre quem cuida e quem é cuidado é especialmente desafiador num ambiente de tecnologia agressiva. A redefinição do conhecimento estético em enfermagem torna possível colocar no centro do cuidado o outro. Este “outro” irredutível, este “outro” que é o invisível, o incontível, o não tematizável (Levinas, 2012, p. 162) é o corpo-alvo dos cuidados tecnológicos mais agressivos, no limiar da vida e da morte, permanentemente conectado a artefactos biomecânicos e sistemas informáticos, reduzido a metadados digitalizados e, quase sempre, com estados alterados de consciência (sedado ou em coma) e portanto, completamente incapaz de comunicar autonomamente sem uma mediação.

Do “outro ao um” há sempre uma relação, mesmo que seja uma relação sem vínculo (Levinas, 2012, p. 163). Na perspetiva de Levinas, este encontro com o outro é a grande experiência, o grande acontecimento. O rosto do outro, na sua nudez, na sua vulnerabilidade de um ser único exposto à morte, é o primeiro passo para a experiência de uma alteridade radical, que escapa a qualquer aproximação que tenda a uma categorização definitiva.

Numa perspetiva fenomenológica, uma enfermagem humanizada é experienciada e caracterizada pelo relacionamento existencial, intersubjetivo, transacional, entre os enfermeiros enquanto pessoas e as pessoas que eles cuidam. Cuidar tem também uma função de nurturing, ou seja, um cuidado que encoraja o crescimento e desenvolvimento do outro.

A competência empática, enquanto forma de conhecimento estético, possibilita ao enfermeiro estabelecer um vínculo, uma conexão profunda e significativa com a pessoa em situação de vulnerabilidade, risco ou dependência. Requer “um sincronismo orquestrado de narrativa e movimento”, um timing preciso e uma fluidez articulada entre todos os elementos da situação de cuidado (Chinn & Kramer, 2011, p. 134).

Uma enfermeira pode estar a realizar as suas atividades rotineiras diárias, . . . quando de repente é interrompida por qualquer coisa no doente que a interpela, talvez um olhar de medo, um puxão na manga da bata, um gemido, um gesto atingindo-lhe a mão, uma pergunta, um vazio. Numa pausa suspensa no tempo, duas pessoas oscilam entre dois mundos, nas margens da intersubjetividade. Dois seres humanos estão à beira do entre, um momento precioso preenchido de promessas e medo. Com a minha mão na maçaneta da porta de dentro de mim, hesito – devo deixar-me sair, devo deixar “o outro” entrar? O tempo suspende-se e depois move-se novamente, enquanto eu me movo na direção do outro, determinado a reconhecer e dar testemunho de uma outra presença. (Paterson & Zderad, 1988, p. 30)

Cuidar engloba também a compreensão desta pré-articulação de sentido, o campo virtual da expressividade que precede a expressão enquanto tal e que existe na falta da linguagem, no movimento antes do dizer, no espaço entre as palavras. Pode ser gesto, um ritmo, movimento. Pode ser o riso, pode ser um tartamudear, pode ser um silêncio (Manning, 2013, p. 158).

Um conhecimento estético em enfermagem inclui portanto o conhecimento da realidade vivida pela pessoa cuidada. Isso implica a capacidade de escuta do que é falado, mas também de escuta das múltiplas formas do “não-dito”, quer sob a forma do “ainda não falado” ou do que “tem de permanecer não-dito”, no sentido de “algo a que é negada a fala” (Heidegger, 1996, p. 407), mas que ainda assim é fulcral ser escutado.

O dito não conta tanto como o próprio dizer e, por isso mesmo, o conhecimento estético em enfermagem permite criar esta possibilidade de a pessoa alvo dos cuidados dizer dos seus vários modos de existir - no adoecimento, na cura, no recovery ou nos processos de morrer.

O ato de cuidar centrado na pessoa é uma relação assimétrica, não no sentido de uma hierarquia de subalternidade enfermeiro-doente, mas no sentido de não existir uma verdadeira reciprocidade na relação intersubjetiva. Cuidar é assumir uma responsabilidade integral por outrem. Numa relação de cuidado, quem cuida é integralmente responsável pelo outro e esta responsabilidade é, na perspetiva de Levinas, uma responsabilidade total, que responde por todos os outros e por tudo o que é o outro, mesmo pela sua própria responsabilidade (Levinas, 2012).

Conhecimento estético e hipertecnologia

Em algumas áreas da saúde, especialmente aquelas que não exigem uma interação direta imediata com os doentes, os avanços da inteligência artificial revelam-se aptos para promover aumentos importantes da produtividade clínica, e eventualmente, a total automatização dos cuidados num futuro muito próximo (Ford, 2016, p. 197).

O uso das novas tecnologias e os avanços exponenciais da investigação biomédica aumentaram de forma drástica a eficácia dos cuidados de saúde. Diagnósticos clínicos mais precisos, resultantes de algoritmos e análise de elementos de Big data, são já utilizados em cenários de hipercomplexidade clínica quer nos diagnósticos quer nas propostas de intervenção terapêutica. Estas áreas estão rapidamente a ser integradas nos cuidados de enfermagem – por exemplo a utilização de sistemas robóticos automatizados nos processos de armazenamento, preparação e administração precisa de fármacos, na preparação de medicamentos injetáveis ou na preparação de drogas de quimioterapia altamente tóxicas e ainda no apoio instrumental em blocos operatórios (Ford, 2016, pp. 199-200).

Fora do contexto hospitalar, torna-se acessível e económico a monitorização de dados clínicos essenciais em doentes de risco ou com patologias de evolução prolongada, através de sensores microimplantados, lentes de contacto que permitem avaliar o nível de glicémia de pessoas com diabetes, com ligação de dados a aplicações de telemóvel facilmente disponíveis. Estes dados permitem fazer a gestão terapêutica de situações clínicas complexas em tempo real tornando possível a funcionalidade no quotidiano das pessoas afectadas, reduzindo fatores de risco, internamentos agudos e mortalidade em situações críticas (Ghassemi, Celi, & Stone, 2015).

No entanto, a distância digital é sempre maior que a distância analógica e a hipertecnologização dos cuidados assente em plataformas informáticas pode tornar central “a urgência actual de resgatar o modo-de-ser do cuidado essencial” (Boff, 2008, p. 33).

A pluralidade de saberes, existentes e possíveis, em enfermagem, passa pela reafirmação dos saberes produzidos nos lugares, os chamados saberes locais, os saberes produzidos em contexto. Alguns estudos revelam que os enfermeiros a trabalhar em ambientes de hipertecnologia colocam mais enfâse nos aspetos ecológicos, valorizando mais os ambientes high touch do que os ambientes high tech, reconhecendo que, mesmo em circunstâncias extremas de tecnologia agressiva, os doentes requerem interação humana, cuidado envolvente, reconhecimento do seu próprio valor e capacidade de participação em decisões terapêuticas (Meierhoffer, 1995). Os enfermeiros parecem ter uma noção de que o millieu terapêutico em que atuam (um somatório de relações materiais num espaço-tempo particular) envolve uma incorporação das tecnologias duras na arte de cuidar.

A ideia de cuidado-centrado-na-pessoa tem de ser reconfigurada, nos espaços relacionais da tecnologia encarnada da prática clínica em enfermagem. Não se trata apenas de transformar o uso das tecnologias da saúde numa prática centrada na pessoa. Esta abordagem significaria a manutenção de um dualismo estéril. A tecnologia, enquanto modo de ser, pode facilitar a satisfação das necessidades essenciais e o reconhecimento das experiências incorporadas e contextualizadas dos doentes pelos enfermeiros. Mas a tríade dinâmica da relação entre enfermeiro-doente-hipertecnologia, num espaço interpessoal, necessita de ser considerada como um horizonte, necessita de ser considerada como um todo. Quando a equipa de saúde se concentra em artefactos do ambiente tecnológico, em “coisas”, devido à falta de experiência dos técnicos ou à tendência para realizar a reparação funcional de falhas “mecânicas” no processo de doença, então a tríade é fragmentada e existe o risco de o doente se transformar apenas em mais uma “coisa” (Whelton, 2015, p. 31).

As coisas podem ser ajustadas, manipuladas, controladas, movidas e organizadas no espaço. Mas as pessoas, os corpos humanos, não são coisas. Um corpo humano não pode ser reduzido à dimensão objetal, mesmo enquanto conexão de interfaces tecnológicas ou equipamentos hospitalares. Um corpo é sentido, é sujeito de sentidos. A hipertecnologia transforma os corpos em projetos inacabados, em devir, numa metamorfose com significado existencial mesmo nos processos de desmaterialização do orgânico (o corpo dos dados laboratoriais, dos relatórios imagiológicos, o corpo traduzido em resultados de biópsias). A fabricação libertária do corpo no projeto da modernidade, a indústria química e cosmética da performance corporal esboçam novos mecanismos de reapropriação do corpo e de construção de identidades compósitas que legitimam a criação de corpos híbridos, corpos de fronteira.

Com o avanço das biotecnologias, os corpos humanos são cada vez mais biónicos, com partes recarregáveis e substituíveis. Órgãos e materiais biológicos humanos e não humanos (xenotranslantes) estão a ser transformados estruturalmente, quimicamente e funcionalmente de forma a poderem ser partes mecânicas substitutas.

Muito para além das imagens fantasiosas e futuristas da década de noventa do século XX quando a noção de hibridismo humano/tecnologia ganhou um novo impulso, a cyborguização do humano nas últimas décadas, permitida pela revolução biomédica e pela digitalização do sofrimento invadiu os espaços do quotidiano, simplificando e tornando quase rotineiras aplicações tecnológicas de alta intensidade na área da saúde. A crescente digitalização dos cuidados de enfermagem permitirá soluções low-cost, high-tech, de fácil acessibilidade e utilização alargada. Num universo de cuidados de enfermagem digitais, o sujeito alvo dos cuidados pode perder a identidade e transformar-se (ou ser transformado) num conjunto de dados estandardizados. A revolução digital, essencial para a eficácia das intervenções terapêuticas, promoção da saúde e gestão de questões de saúde à escala global, permite inovações nas práticas de cuidar.

A tecnologia pode ser a ponte que permite superar as limitações fisiológicas relacionadas com os processos de doença e permitir novas formas de expressão, de articulação do eu. Nestas novas formas de expressão, a consideração da integralidade do ser humano, reconfigurada, aberta à possibilidade de um mundo post-humano, não abandona completamente a matriz identitária essencial. Antes, num processo de aggiornamento, este ser (ainda) humano, voltando-se sobre si mesmo, pode criar e (re)descobrir o seu sentido de ser-cuidado. A própria natureza do cuidado essencial, expressa no sentimento, na capacidade de emocionar-se, de envolver-se, de afetar e sentir-se afetado torna-se parte das tecnologias duras.

 

Conclusão

Cuidar, em enfermagem é, antes de mais, um trabalho de reconfiguração do outro, a afirmação de uma copresença igualitária (enquanto simultaneidade e contemporaneidade). Isto implica a consciência da incompletude do conhecimento, incluindo o conhecimento profissional dos enfermeiros que cuidam, face aos saberes sobre o corpo, o adoecimento e a possibilidade de cura das pessoas que enfrentam a doença ou a morte.

Esta conceção, numa rutura com lógicas e práticas de cuidado reducionistas, focadas no tecnicismo, pode conduzir a uma integração consciente e crítica da prática centrada na pessoa, em ambientes de cuidados tecnologizados, num espaço liminar de relação. A tecelagem de uma relação de cuidado interidentitária, a partir das intersubjetividades em trânsito que se cruzam nos processos existenciais de transição saúde/doença ou ao longo do ciclo vital, constitui uma possibilidade de superação das dicotomias entre a tecnociência e o ato performativo do cuidar. Aí se pressente o lugar da verdadeira escuta, um reportório de modos de construir contextos relacionais, mas também de estruturas narrativas, memórias e atos de eficácia terapêutica ancorados nas tecnologias duras. Em enfermagem, é precisamente a componente estética do cuidar, enquanto âncora organizadora, que dá sentido e sustenta a praxis clínica em hibridismo tecnológico, permitindo esta articulação. Uma nova conceção do conhecimento estético em enfermagem acarreta a assunção de hibridismo e mestiçagem da nova condição humana em simbiose funcional com a tecnologia, ao mesmo tempo que integra um reportório de modos de dizer, pensar e fazer da pessoa. Desta forma, os objectos do cuidado tecnológico em enfermagem (os daily cyborgs) ultrapassam a mera antropomorfização para se transfigurarem em pessoalização. A dimensão estética no cuidar em enfermagem pressupõe a plena assunção da ontologia cyborg no seu limiar de fronteira. A ideia de uma tecnologia encarnada aponta para uma outra forma de sistematizar o conhecimento que permita a superação dicotómica entre a tecnologia agressiva e o cuidado humanizado em enfermagem. Afirma-se que a clivagem dicotómica é, em si mesma, artificial, fragmentária e contraria à conceção do cuidar em enfermagem. Há que transformar o conceito de um saber artesanal em enfermagem para a ideia de um saber artesão e transfigurar a utilização de artefactos tecnológicos, a digitalização do cuidar, ultrapassando o conceito da sua artificialidade para assumir a sua plena integração no cuidar de uma pessoa, de um corpo híbrido. Significa colocar-se fora de qualquer padrão de expectativa de espartilhamento entre a lógica da tecnociência e o cuidado humanizado.

Isto não traduz qualquer adesão à pseudociência ou à rejeição acrítica do conhecimento científico positivista, com a sua raiz experimental de conhecimento baseado em evidências. Muito menos a desvalorização da componente tecnológica e digital nos processos de avaliação diagnóstica e intervenção clínica em enfermagem. Só a dimensão estética permite integrar na relação do cuidado de uma hermenêutica do encontro, incorporando, nos fenómenos alvo da intervenção de enfermagem, as contextos relacionais, onde os processos tecnológicos de saúde e doença são efetivamente fabricados e vividos.

 

Referências bilbiográficas

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Recebido para publicação em: 07.03.17

Aceite para publicação em: 15.05.17

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