SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.serIV número11EditorialConstrucción del formulario de evaluación de la competencia del autocuidado en la persona con ostomía de eliminación intestinal índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Indicadores

Links relacionados

  • No hay articulos similaresSimilares en SciELO

Compartir


Revista de Enfermagem Referência

versión impresa ISSN 0874-0283

Rev. Enf. Ref. vol.serIV no.11 Coimbra dic. 2016

https://doi.org/10.12707/RIV16041 

ARTIGO DE INVESTIGAÇÃO (ORIGINAL)

 

A Alimentação da criança com paralisia cerebral: dificuldades dos pais

Feeding a child with cerebral palsy: parents' difficulties

La alimentación de los niños con parálisis cerebral: la percepción de los padres

 

Joana Mendes Marques*; Luís Octávio Sá**

* Ph.D., Enfermeira Graduada, Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão. Professora Adjunta, Atlântica University Higher Institution, 2730-036 Barcarena, Portugal [joana_mmarques@hotmail.com]. Morada para correspondência: Praceta Viana da Mota, nº 123, 2º Esquerdo, 2649-506, Alcabideche, Portugal. Contribuição no artigo: elaboração do projeto, pesquisa bibliográfica, colheita de dados, tratamento e avaliação estatística, discussão dos resultados, escrita do artigo, formatação final.

** Ph.D., Professor Auxiliar, Instituto de Ciências da Saúde, Centro de Investigação, Universidade Católica Portuguesa, 1649-023, Porto, Portugal [lsa@porto.ucp.pt]. Contribuição no artigo: contribuiu substancialmente para a análise dos dados, revisão do artigo.

 

RESUMO

Enquadramento: O estado nutricional das crianças com paralisia cerebral (PC) é uma problemática onde o enfermeiro tem uma enorme responsabilidade com as crianças e pais.

Objetivos: Conhecer o peso, altura e índice de massa corporal das crianças com PC; Conhecer a perceção dos pais relativamente ao estado nutricional do seu filho com PC; Identificar as dificuldades dos pais na alimentação da criança; Conhecer a relação entre a funcionalidade da família e o peso da criança.

Metodologia: Estudo misto. Amostra de 104 crianças e seu pai ou mãe (104). Aplicação do Questionário de Avaliação Antropométrica e Questionário aos pais.

Resultados:Cerca de 45% das crianças encontrava-se no percentil <5. A maioria dos pais tinha a perceção do défice estaturo-ponderal do seu filho. As dificuldades centram-se na perda de alimento pela boca, engasgamento e vómitos frequentes.

Conclusão: Há uma elevada percentagem de crianças com PC com défice estaturo-ponderal. Os pais têm a perceção desta problemática, enumerando dificuldades na alimentação dos seus filhos. As famílias de crianças com défice estaturo-ponderal são as famílias mais disfuncionais.

Palavras-chave: criança; paralisia cerebral; pais; alimentação

 

ABSTRACT

Background: The nutritional status of children with cerebral palsy (CP) is an issue where nurses have a major responsibility towards children and their parents.

Objectives: To assess the weight, height and body mass index of children with CP; To identify the caregivers' perception of the nutritional status of their child with CP; To identify the caregivers' difficulties in feeding their child; To identify the association between family functionality and the child's weight.

Methodology: Mixed study with a sample of 104 children and their father/mother (104). The Anthropometric Assessment Questionnaire was applied to parents.

Results: About 45% of children were below the 5th percentile. Most caregivers were aware of their child's weight-for-height deficit. These caregivers' difficulties were related to food spilling out of the mouth, choking, and frequent vomiting.

Conclusion: A high percentage of children with CP have weight-for-height deficit. Caregivers are aware of this issue, indicating difficulties in feeding their children. The families of children with weight-for-height deficit are the most dysfunctional families.

Keywords: child; cerebral palsy; parents; feeding

 

RESUMEN

Marco contextual: El estado nutricional de los niños con parálisis cerebral (PC) es un problema en el que el enfermero tiene una gran responsabilidad, tanto con los propios niños como con los padres.

Objetivos: Conocer el índice de peso, longitud y masa corporal de los niños con PC; Conocer la percepción de los padres con respecto al estado nutricional de su hijo con PC; Identificar las dificultades de los padres en la alimentación del niño; Conocer la relación entre la funcionalidad de la familia y el peso del niño.

Metodología: Estudio mixto con una muestra de 104 niños y su padre o madre (104). Se aplicó el Cuestionario de Aplicación Antropométrica y el Cuestionario de Evaluación a los padres.

Resultados: Alrededor del 45 % de los niños estaba en el percentil <5. La mayoría de los padres era consciente del déficit estatura-peso de su hijo. Las dificultades de estos padres se centran en la pérdida de alimentos a través de la boca, la asfixia y los vómitos frecuentes.

Conclusión Existe un alto porcentaje de niños con PC con déficit de estatura-peso. Los padres son conscientes de este problema y enumeran las dificultades en la alimentación de sus hijos. Las familias de los niños con déficit de estatura-peso son las más disfuncionales.

Palabras clave: niño; parálisis cerebral; padres; comida

 

Introdução

A paralisia cerebral (PC) é a deficiência motora mais frequente na infância. A criança com PC apresenta frequentemente uma situação clínica complexa e heterogénea, de difícil caracterização e que exige monitorização constante (Andrada et al., 2012). A PC é uma condição crónica, protótipo de incapacidade na infância, que leva a limitações funcionais a longo prazo (Patel, Piazza, Layer, Coleman, & Swartzwelder, 2005).

Apesar da melhoria dos cuidados perinatais nos países desenvolvidos, a incidência de PC tem-se mantido constante, sendo referidos valores de 2,08‰ nados vivos na Europa (Andrada et al., 2012; Chagas et al., 2008; Magnus et al., 2012). Em Portugal surgem cerca de 200 novos casos por ano e 90% chegarão à idade adulta (Campos, 2013).

A criança com deficiência é, acima de tudo, uma criança (Pruitt & Tsai, 2009). A abordagem da criança com necessidades especiais tem registado inúmeros avanços nas últimas décadas (Folha, 2010).

Os défices na alimentação e crescimento são comuns na criança com PC (Sullivan, 2009). Este facto pode ter um severo impacto na sua saúde, incluindo a parte psicológica, funcional, de socialização e de sobrevivência.

O enfermeiro, no contexto da equipa de saúde, deve sobretudo ajudar a família a encontrar os recursos necessários e a forma mais adequada de os canalizar. Deve igualmente ajudar os pais a fomentarem as relações sociais, das quais muitas vezes se privam devido à situação do filho. O trabalho organiza-se no sentido de integrar a criança com deficiência num contexto o mais normal possível, a fim de fornecer aprendizagens e, consequentemente, no desenvolvimento das competências sociais desta, derrubando assim as barreiras do isolamento social. Intervir precocemente com programas que visem o suporte familiar permitirá fortalecer o funcionamento, promover o crescimento e desenvolvimento dos membros e da família como um todo (Ordem dos Enfermeiros, Comissão de Especialidade de Enfermagem de Saúde Infantil e Pediátrica, 2012).

São crianças com deficiência, mas não deixam de ser crianças e merecem todo o cuidado e atenção. Os estudos realizados na área da pediatria são muitos, mas infelizmente a mesma visibilidade não é dada às crianças com PC nem às complicações associadas que tanto interferem com o seu crescimento e desenvolvimento.

A investigadora considerou relevante conhecer o peso, altura e índice de massa corporal (IMC) das crianças com PC residentes na Grande Lisboa, Portugal, conhecer a perceção dos pais relativamente ao estado nutricional do seu filho com PC, identificar as dificuldades dos pais na alimentação da criança com PC e conhecer a relação entre a funcionalidade da família e o peso da criança.

 

Enquadramento

Uma alimentação equilibrada e variada constitui uma necessidade irredutível da criança, sendo consignado na Declaração Universal dos Direitos da Criança. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que mais de metade das mortes nos países em vias de desenvolvimento estejam relacionadas com a subnutrição, mas a maioria das crianças que sofre de deficiências nutricionais e que sobrevive, apresenta comprometimento do seu desenvolvimento psicomotor e perturbações emocionais significativas (Ordem dos Enfermeiros, Comissão de Especialidade de Enfermagem de Saúde Infantil e Pediátrica, 2012).

Nos últimos anos, tem havido uma maior consciência de que as crianças com PC têm um enorme risco de desnutrição. Identificar os fatores de risco associados à desnutrição torna-se importante, de forma a conseguir-se uma deteção precoce e uma evolução o mais atempadamente possível, conseguindo prevenir complicações no comportamento, saúde e crescimento destas crianças (Sullivan, 2009). Vários autores referem que há uma relação entre o estado nutricional e uma inadequada alimentação e mal absorção de alimentos, salientando a importância de se investigar a área da alimentação destas crianças para conhecermos o estado nutricional (Magnus et al., 2012).

Segundo Sullivan (2009) a disfagia contribui para uma alimentação pobre na criança com PC. O seu estudo realizado na América do Norte identificou um défice nutricional e baixo crescimento em 90% das crianças, sendo que 27% das crianças apresentavam alterações moderadas a severas na alimentação.

Para Issã (2014), a avaliação nutricional visa caracterizar e identificar os indivíduos nesta dimensão, promover suporte para uma intervenção adequada e monitorizar a sua evolução. Os profissionais de saúde que trabalham com crianças com PC devem estar alerta para possíveis obstáculos ao crescimento, nomeadamente a alimentação, medicação, doenças associadas, doenças congénitas, fatores ambientais e hereditários (Direção-Geral de Saúde, 2015).

A presença de doenças crónicas não altera somente a vida dos indivíduos acometidos, mas também pode influenciar múltiplos aspetos de vida dos pais. Ter uma criança com PC torna-se um grande desafio para os pais, uma vez que estes devem tentar controlar os problemas de saúde da criança, além de tentar manter as suas atividades de vida diária. A gestão da família de crianças com PC é mais exigente em diversos níveis, já que esta família necessita de participar mais ativamente no cuidado da criança. Desta forma, a existência de uma criança com PC altera a estrutura familiar, por aumentar a necessidade de tempo para cuidados em casa e os recursos financeiros devido aos gastos com o tratamento (Camargos, Lacerda, Viana, Pinto, & Fonseca, 2009; Macedo, Festas, & Vieira, 2012).

A doença crónica nas crianças condiciona a maioria das famílias em tarefas, responsabilidades e preocupações adicionais. Simultaneamente, a saúde física e emocional da criança, bem como o funcionamento cognitivo e social, são fortemente influenciados pela qualidade do funcionamento familiar. Com efeito, a família é geralmente confrontada com novas exigências, alterações nas suas rotinas, mudanças constantes e readaptações diversas, fazendo com que a doença interfira em vários níveis: financeiro, ocupacional, pessoal e na interação, quer dentro da família, quer fora dela (Augusto, 2012).

Por vezes os pais apenas se focalizam nos défices associados à doença, não reconhecendo as potencialidades do filho. Se as famílias forem ajudadas a adquirir uma postura proactiva perante a situação de deficiência, estão a ser ajudadas a derrubar as próprias barreiras internas que muitas vezes se erguem perante as limitações. Neste sentido, o reforço positivo das competências e qualidades da criança com deficiência deverá ser uma constante (Ordem dos Enfermeiros, Comissão de Especialidade de Enfermagem de Saúde Infantil e Pediátrica, 2012) e uma enorme responsabilidade dos enfermeiros.

 

Questão de Investigação

Face à problemática em estudo, foram colocadas as seguintes questões de investigação: Qual o peso, altura e IMC das crianças com PC residentes na Grande Lisboa? Qual a perceção dos pais relativamente ao estado nutricional do seu filho PC? Quais as dificuldades dos pais na alimentação da criança com PC? Qual a relação entre a funcionalidade da família e o peso da criança?

 

Metodologia

Tipo de estudo

Estudo misto com carácter descritivo e exploratório.

População e amostra

O universo deste estudo é constituído pelas crianças com PC e seus pais (mãe ou pai de cada criança) que residam na Grande Lisboa, fazendo parte da amostra as crianças com PC, nascidas em Portugal entre 2001-2006, inclusive, e pais, seguidas no Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão (CMRA) e no Centro de Reabilitação de Paralisia Cerebral Calouste Gulbenkian (CRPCCG). A amostra é do tipo não probabilística ocasional.

Os critérios de inclusão foram os seguintes: crianças residentes no distrito de Lisboa; nascidas entre 2001-2006; crianças que sejam seguidas no CRPCCG e no CMRA; o familiar/cuidador aceite e assine o consentimento informado para a participação no estudo. A amostra inicial foi de 150 crianças. Desse grupo inicial, 21 faleceram. Das 150 crianças, 25 não tinham o contacto telefónico correto ou o cuidador não atendeu o telefone (após cinco tentativas em dias diferentes). Assim, o número total de crianças que participaram no estudo foi de 104, sendo 64 do sexo masculino e 40 do sexo feminino.

Os percentis foram estabelecidos de acordo com as orientações técnicas da Direcção-Geral da Saúde.

Procedimento para recolha de dados

Inicialmente a investigadora dirigiu-se às duas instituições com o objetivo de fazer o levantamento da amostra. As instituições têm os dados das crianças informatizados, tendo nestes dois momentos realizado a seleção das crianças/pais que se encontravam dentro dos critérios de inclusão.

Foram contactadas as 104 famílias, com o objetivo de apresentar o estudo e agendar uma entrevista. Após o contacto telefónico, onde era explicado o estudo e marcado o dia para a recolha de dados, a investigadora reuniu-se com o responsável pela criança, validou a compreensão por parte do responsável dos objetivos do estudo e, antes de iniciar, procedeu-se ao preenchimento do consentimento informado.

As crianças que tinham consulta marcada, ficaram agendadas para o mesmo dia da consulta, onde foi aplicado o Questionário de Avaliação Antropométrica (avaliação do peso, altura e IMC) e o Questionário aos Pais, onde se recolheram dados sobre a perceção dos pais relativamente ao estado nutricional do seu filho, dificuldades dos pais na alimentação do seu filho e aplicação do Apgar Familiar (funcionalidade familiar), tendo sido inicialmente explicado o estudo e procedido ao consentimento informado. O Questionário aos Pais foi construído pela investigadora através da pesquisa do estado da arte nesta área e consulta de peritos.

As crianças que não tinham consulta marcada, foram agendadas para um dia de acordo com a disponibilidade dos pais nos respetivos centros.

O Questionário aos Pais foi respondido pela mãe ou pai, conforme disponibilidade dos mesmos, tendo havido sempre um pai a responder ao questionário (104).

Recolhidos os dados, foram avaliados os percentis das crianças com PC e relacionados com os dados obtidos no Apgar Familiar, de forma a conhecer a funcionalidade da família das crianças com défice estaturo-ponderal. De forma a explorar a problemática, foi analisada a perceção dos pais face ao estado nutricional do seu filho e dificuldades na alimentação. Esta última foi aprofundada através de uma questão aberta, para que a problemática em questão seja exposta sem restrições e se consigam conhecer as reais dificuldades dos pais. Ao longo das entrevistas tivemos a oportunidade de escutar os pais, registar as suas dificuldades, expressões de sentimento e desabafos. Não foi objetivo inicial do estudo promover competências parentais, mas face às dificuldades mencionadas e ao conhecimento da investigadora na área, houve a oportunidade de intervenção de educação para a saúde. Inicialmente era colocada a questão aberta, os pais respondiam e posteriormente a investigadora transmitia estratégias/medidas/soluções para ajudar a resolver o problema. Foi realizado pré-teste, com sucesso.

Análise dos dados

A análise estatística envolveu a utilização de medidas e procedimentos de estatística descritiva e estatística inferencial, tendo sido efetuada com o Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 20.0.

Para a questão aberta foi utilizada a análise de conteúdo segundo Bardin (2009), tendo as categorias sido definidas à posteriori.

Considerações éticas

Foram respeitadas as considerações éticas inerentes a um trabalho de investigação. O projeto do trabalho foi submetido e aprovado pela Comissão de Ética da Universidade Católica Portuguesa, Comissão de Ética do CMRA e Direção Clínica do CRPCCG. Os familiares (pais e responsáveis pelas crianças) deram o consentimento informado para participarem no estudo. Os dados foram recolhidos e analisados mantendo a confidencialidade dos sujeitos que constituem a amostra.

 

Resultados

Após a análise dos percentis do peso, altura e IMC, verificamos que uma percentagem elevada de crianças se encontrava no percentil <5. No peso, das 104 crianças, 44,2% (n = 46) encontravam-se no percentil <5, 53,8% (n = 56) entre o percentil 5-90 e 1,9% (n = 2) no percentil >90. Resultados semelhantes foram também encontrados no percentil da altura e IMC.

Verificou-se que o cuidador principal tem uma correta perceção do estado nutricional da criança, havendo uma relação estatisticamente significativa entre a perceção do estado nutricional da criança por parte do familiar e o percentil de peso, χ2 (4) = 34,760, p = 0,000. Há uma proporção significativamente mais elevada de crianças com percentil <5 que o familiar considera desnutrido ou pouco nutrido (23,9% e 50,0%) e de crianças do percentil 5-90 que o familiar considera nutrido (82,1%).

A relação entre o percentil de peso e o Índice de APGAR Familiar é também estatisticamente significativa, χ2 (4) = 41,661, p = 0,000, ou seja, há mais crianças com percentil <5 com resultado do Índice de APGAR Familiar disfunção familiar (56,5%) e de crianças com percentil 5-90 com Índice de Apgar Familiar família altamente funcional(64,3%).

Estudo Qualitativo

No questionário, foi colocada uma questão aberta aos pais “Quais as suas maiores dificuldades na alimentação do seu filho?”, pela qual se obtiveram os seguintes resultados através da análise de conteúdo das respostas obtidas.

Tabela 1

Entre as dificuldades referidas, a mais mencionada é perda de alimento, engasgamento e vómito. Sabe-se que algumas destas crianças têm problemas de mastigação e deglutição e que isso interfere com a alimentação/hidratação. Estes problemas provocam muita ansiedade aos pais, não só pelo facto dos seus filhos não ingerirem uma alimentação adequada, como pelo risco de engasgamento e aspiração de vómito.

Apresentados os resultados do estudo, passamos seguidamente à comparação dos dados obtidos com outros estudos realizados no mesmo âmbito, de forma a suportar as conclusões encontradas no final da investigação.

 

Discussão

A dimensão da problemática da nutrição da criança com PC não passa despercebida aos pais que participaram no estudo. Verificou-se que a maioria dos pais de crianças com percentil de peso <5, tem a perceção do estado nutricional do seu filho, referindo que consideram o seu filho desnutrido ou pouco nutrido. No estudo de Sullivan (2009) realizado nos Estados Unidos com pais de crianças com PC, 39% dos pais consideraram o seu filho desnutrido e 43% referiram que alimentar o seu filho é stressante e desagradável. Por outro lado, Macedo et al. (2012), no estudo realizado no Porto (Portugal) com pais de criança em idade escolar (sem deficiência), verificaram que os pais não foram tão conscientes da situação, uma vez que 49,9% dos pais apresentavam uma distorção da perceção do estado nutricional do seu filho.

A funcionalidade da família encontrou-se também relacionada com o peso. Após a aplicação do Índice de APGAR Familiar, verificamos que crianças que pertencem a famílias disfuncionais têm um percentil de peso inferior, face às crianças com famílias altamente funcionais, que se encontram dentro do percentil de peso considerado normal.

Camargos et al. (2009), verificaram no seu estudo que quanto menor é o nível socioeconómico da família, maior é a sobrecarga dos pais e menor é a qualidade de vida, e que os pais com um nível socioeconómico mais elevado controlam melhor o seu bem-estar. Além disso, cuidar duma criança com incapacidade, aumenta a necessidade de recursos, incluindo tempo e dinheiro, o que pode aumentar a sobrecarga dos pais, quando estes são membros economicamente ativos da família.

Dificuldades dos pais na alimentação

Quando questionados os pais sobre as dificuldades que têm na alimentação do seu filho, as respostas foram variadas e centradas em vários níveis, nomeadamente: alimentação desequilibrada, monotonia dos alimentos, vergonha, difícil acesso a comida adaptada no exterior, inadequação das ajudas técnicas, perda de alimento, engasgamento e vómito, tempo, confeção dos alimentos à parte e custos. Em alguns diálogos era notória a angústia de não conseguir ajudar mais o seu filho, uma sensação de impotência e frustração. Verificamos que são pais com uma força enorme de lutar e dar uma melhor qualidade de vida ao seu filho.

Vários pais mencionaram as dificuldades que tinham em alimentar o seu filho.

Face a esta problemática, o facto de não terem uma alimentação equilibrada, acentua mais o facto destas crianças terem uma alimentação pobre e os pais terem esta perceção.

Pruitt e Tsai (2009) referem que o refluxo gastroesofágico é comum nas crianças com PC, estando presente em mais de 75%. Vómitos, esofagite e disfagia também podem estar presentes. Promover a elevação das costas da cadeira durante a refeição e oferecer os alimentos adequados face à situação da criança, minimizam estes problemas. Patel et al. (2005) acrescentam que um mau procedimento dos pais em administrar a alimentação pode interferir bastante com a nutrição e hidratação das crianças. A aspiração do alimento pode ser um dos riscos, podendo trazer sérios problemas como pneumonia, asfixia e mesmo a morte.

A elevação das costas da cadeira durante a refeição é fundamental para uma boa alimentação. A consistência dos alimentos deve ser adaptada às limitações e necessidades da criança, de forma a diminuir o risco de aspiração de alimento. Estas crianças devem ser acompanhadas por profissionais de saúde, de forma a minimizar estes frequentes problemas dos pais na alimentação das crianças (Magnus et al., 2012).

Uma posição adequada durante a alimentação é fundamental para o seu sucesso, assim como produtos de apoio. Deve ser utilizada uma colher adaptada à criança, em termos de tamanho e material, de forma a facilitar a mastigação e deglutição, estratégias que muitos pais desconhecem (Patel et al., 2005).

As várias dificuldades sentidas pelos pais na confeção e administração da alimentação levam muitas vezes à monotonia dos alimentos. Estes têm de ser confecionados à parte, havendo muitas vezes a necessidade de realizar refeições diferentes para a criança com PC. Os pais optam muitas vezes por alimentos mais rápidos de confecionar, sempre com a mesma consistência e que têm a certeza que a criança gosta, não havendo desta forma uma diversidade na alimentação/nutrientes.

Os pais referiram que por vezes sentem vergonha em estar com o seu filho no exterior (fora do seu domicílio). A presença de um familiar portador de uma doença com alterações cognitivas implica para a sua família, além da deceção inicial, uma série de situações críticas, geralmente acompanhadas de sentimentos e emoções dolorosas e conflituantes. Neste percurso, tanto a família como o filho especial, precisarão de enfrentar em cada dia os seus medos, suas frustrações e suas limitações – efeitos diretos do estigma social a que toda a família está exposta (Felicíssimo, 2009).

O fator tempo foi também mencionado por vários pais, uma vez que este processo exige coordenação e concentração da parte da criança e dos pais. Alguns pais têm mais filhos e pouco tempo no seu dia-a-dia, e este longo tempo despendido para dar as refeições ao seu filho com PC dificulta as rotinas e a qualidade de vida dos pais. Segundo Wilson e Hustad (2009), as crianças com PC demoram mais tempo na refeição, não sendo muitas vezes o tempo disponibilizado para a refeição em casa ou na escola, suficiente para estas crianças. Este facto por vezes leva a uma diminuição de ingestão de alimentos, uma vez que os pais tendem a relacionar o tempo já despendido na alimentação com a quantidade ingerida.

No estudo de Wilson e Hustad (2009), 41% das crianças com PC completava a refeição em 10-20 minutos, 44% em 20-30 minutos e 16% em 30-60 minutos. Clawson, Kuchinski, e Bach (2007) acrescentam que uma criança com PC requer 15 vezes de mais tempo na refeição, do que uma criança sem patologia, sendo que a mãe de uma criança com PC demora 3,5 horas por dia a alimentar o seu filho, enquanto a mãe duma criança sem patologia demora 0,8 horas.

Os pais referiram que, tendo a refeição do seu filho com PC algumas características específicas (pastosa, líquida, com determinado tipo de alimentos), muitas vezes tem de ser confecionada separada da restante família. É considerado uma dificuldade pelos pais, principalmente quando têm mais filhos, devido ao tempo e gastos associados a esta especificidade.

A questão monetária foi também abordada por alguns pais, sendo mencionada como uma limitação para uma melhor qualidade de vida da criança. A falta de apoios e por vezes a necessidade de faltar ao emprego para cuidar do seu filho abarca grandes limitações económicas.

Ação com os pais após resultados

Vários pais referiram que o seu filho se engasgava e perdia alimento durante as refeições. Ao aprofundar esta problemática, constatamos que muitas vezes a posição adotada para dar a alimentação era muito deitada, a comida muito líquida, a colher demasiado grande para a criança e não estava a ser introduzida na boca de forma correta. Foi explicado aos pais que as costas da cadeira deveriam estar posicionadas mais na vertical. A posição de deitada não favorece a deglutição, promovendo o engasgamento. Foi realçado também que após a refeição, as costas da cadeira devem manter-se elevadas, para favorecer a digestão e minimizar o risco de vómito (Rogers, 2004).

Muitos pais recusavam-se a oferecer água ao seu filho, referindo que este se engasgava muito com água e comida mais líquida. Nenhum dos pais que identificou este problema tinha ouvido falar em espessante. Foi explicada a sua indicação, forma de utilização e locais onde se pode adquirir. Esta solução permitirá aos pais dar água aos seus filhos e ao colocar espessante na sopa ou fruta passada, minimizar o risco de engasgamento ou aspiração de comida (muito frequente nestas crianças).

O engasgamento referido por alguns pais verificava-se em situações de alimentos sólidos, como carne e fruta. Abordamos a hipótese de triturar os alimentos, em que os nutrientes eram igualmente ingeridos, não exigia um esforço tão grande da criança para mastigar e minimizava substancialmente o engasgamento e o risco de aspiração de comida (Patel et al., 2005).

A colher utilizada mais frequentemente para oferecer a refeição era uma colher grande, o que muitas vezes não é adequada para crianças com problemas de deglutição/mastigação, pois ocupa grande parte da cavidade oral e leva uma grande quantidade de comida. Foi sugerido experimentar uma colher de tamanho abaixo e introduzir a colher fazendo uma ligeira pressão na língua para baixo, para facilitar a deglutição. No processo de introdução da colher na cavidade oral e ao ser retirada, várias crianças magoam-se e sangram das gengivas, devido muitas vezes ao não controlo do encerramento da boca e à fragilidade das gengivas (Patel et al., 2005). Nos pais que manifestaram esta situação, foi sugerido o uso de colheres de silicone.

A monotonia dos alimentos dados à criança foi também uma problemática abordada pelos pais, muitas vezes por conforto dos pais, outras vezes por renitência da criança, por recusar novos alimentos. Crianças como são, nem sempre é fácil aderir a novos sabores, principalmente se não for do seu agrado. Contudo, é fundamental ter uma alimentação equilibrada e variada de nutrientes. Foi referido que sempre que possível assemelhar a refeição da família à da criança, para que ela verifique que se todos comem, ela também deverá comer.

Estas foram algumas das estratégias transmitidas aos pais. O feedback foi muito positivo, recebendo os investigadores posteriormente, vários contactos dos pais via telefone a agradecer a grande ajuda. Muitos pais referiram que com as estratégias transmitidas, o seu filho já não se engasgava tão frequentemente ou deixou mesmo de se engasgar, que não expeliam alimento da boca, já conseguiam variar os alimentos e oferecer água. Posto isto, verificamos que as medidas adotadas foram ao encontro das necessidades dos pais, avaliando-se inicialmente as dificuldades na alimentação e atuando-se perante estas, sendo o resultado uma mais-valia para a criança/família.

Ao longo da investigação deparámo-nos com algumas limitações que facilmente ultrapassámos. A grande limitação centrou-se no escasso número de estudos realizados acerca desta problemática em Portugal, o que dificultou uma comparação com dados portugueses e com a nossa realidade. Esta limitação deu-nos ainda mais motivação para a realização deste estudo dando evidência ao emergente apoio que estas crianças e pais necessitam.

 

Conclusão

As crianças com PC podem apresentar limitações na motricidade oral, com problemas na mastigação e deglutição, levando algumas vezes a dificuldades na alimentação e consequente atraso no crescimento. Os parâmetros de crescimento revelaram que cerca de 1/3 das crianças apresentavam um défice estaturo-ponderal, com o peso, estatura e IMC <5. Este atraso no crescimento está associado a comorbilidades severas, nomeadamente úlceras de pressão, diminuição da força muscular, défice do sistema imunitário e diminuição da densidade óssea. A maioria dos pais tem uma correta perceção do estado nutricional do seu filho, estando estes despertos para a problemática em questão.

Quando abordados sobre as dificuldades na alimentação do seu filho, as respostas variam, centrando-se a maioria na perda frequente de alimento pela boca, engasgamento e vómito. O tipo e confeção de alimentos foi também mencionado por alguns pais, assim como o tempo despendido, a dificuldade no acesso a comida adaptada no exterior, a vergonha sentida e a inadequação das ajudas técnicas.

As inúmeras dificuldades sentidas pelos pais podem interferir diretamente com a funcionalidade da família. As famílias com crianças com défice estaturo- -ponderal foram as famílias onde se verificou maior disfuncionalidade, ao contrário das famílias de crianças entre o percentil 5-90, onde as famílias eram maioritariamente altamente funcionais.

A avaliação e monitorização dos dados antropométricos de uma forma rigorosa e assídua não deve ser descurada nas crianças com PC, devido ao elevado risco de défice estaturo-ponderal. O enfermeiro deve medir, registar, avaliar, intervir e caso seja necessário referenciar. Acompanha a criança com PC desde o seu nascimento ao longo da sua vida (saúde escolar, cuidados primários, equipa de intervenção precoce, centros de reabilitação), sendo o profissional de saúde de excelência para avaliação do crescimento e desenvolvimento da criança, e intervenção numa das atividades de vida diária, a alimentação.

O enfermeiro tem também um papel fundamental no apoio aos pais destas crianças. Como pais que são têm dúvidas, receios e ansiedade, mas para além disso, um filho com uma deficiência, necessitando muitas vezes de apoio emocional, teórico e prático. O enfermeiro tem um vasto conhecimento na área técnico-científica, emocional e relacional, encontrando-se numa posição privilegiada para apoiar e acompanhar os pais.

Torna-se importante avaliar as crianças tendo em conta todas as suas limitações, exigindo desta forma uma avaliação cuidadosa e específica. O acompanhamento dos pais das crianças com PC ao encontro das suas dificuldades irá promover a sua saúde mental, assim como a qualidade de vida. Só assim se conseguirá promover o desenvolvimento máximo das suas competências, a sua participação e inclusão sociofamiliar e escolar. É necessário promover o apoio e orientação aos pais desde as idades precoces e ainda o acesso a programas integrados de habilitação e apoio educativo por uma equipa multidisciplinar, onde o enfermeiro tem um relevante papel e responsabilidade.

Esperamos que a partir daqui se desenvolvam mais estudos na área. Deixamos como sugestões de estudos: comparação da evolução do crescimento das crianças com gastrostomia face às crianças sem gastrostomia, evolução estaturo-ponderal nas crianças que fazem suplementos proteicos e calóricos e investigação-ação nas consultas de enfermagem de acompanhamento das crianças/pais com PC.

 

Referências bibliográficas

Andrada, M., Batalha, I., Calado, E., Carvalhão, I., Duarte, J., Ferreira, C., & Folha, T. (2012). Paralisia Cerebral aos 5 Anos de idade em Portugal. Crianças com paralisia cerebral nascidas entre 2001-2013. Lisboa, Portugal: APPC.         [ Links ]

Augusto, C. (2012). A família da criança com paralisia cerebral: Perspetivar o papel do enfermeiro na construção da resiliência familiar. Revista Sinais Vitais, 101, 23-25.         [ Links ]

Bardin, L. (2009). Análise de Conteúdo. Lisboa, Portugal: Edições 70.         [ Links ]

Camargos, A., Lacerda, T., Viana, S., Pinto, L., & Fonseca, M. (2009). Avaliação da sobrecarga do cuidador de crianças com paralisia cerebral através da escala Burden Interview. Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil, 9(1), 31-37.         [ Links ]

Campos, A. (2013, Março 19). Há mais casos de paralisia cerebral nas pequenas e nas grandes maternidades. Jornal Público. Recuperado de https://www.publico.pt/sociedade/noticia/ha-mais-casos-de-paralisia-cerebral-nas-pequenas-e-nas-grandes-maternidades-1588372        [ Links ]

Chagas, P. S., Deffilipo, E. C., Lemos, R., Mancini M., Frônio, J., & Carvalho, R. (2008). Classificação da função motora e do desempenho funcional de crianças com paralisia cerebral. Revista Brasileira de Fisioterapia, 12(5), 409-416.         [ Links ]

Clawson, E., Kuchinski K. S., & Bach, R. (2007). Use of behavioral interventions and parent education to address feeding difficulties in young children with spastic diplegic cerebral palsy. NeuroRehabilitation, 22, 397-406.         [ Links ]

Direção-Geral de Saúde. (2015). Nutrição e deficiência(s). Programa nacional para a promoção da alimentação saudável. Lisboa, Portugal: Autor.         [ Links ]

Felicíssimo, A. (2009). Conhecer a convivência da família com o doente psicótico: Intervenções psicoeducativas na linha comportamental de Fallon. Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental, 1, 23-32.         [ Links ]

Folha, T. (2010). Paralisia Cerebral na Região de Lisboa e Vale do Tejo: Factores de risco, caracterização multidimensional, inclusão escolar (Dissertação de mestrado). Universidade Nova de Lisboa, Escola Nacional de Saúde Pública, Portugal.         [ Links ]

Issã, R. (2014). Avaliação do estado nutricional e ingestão energética em indivíduos com paralisia cerebral (Dissertação de mestrado). Universidade do Porto, Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação, Portugal.         [ Links ]

Macedo, L., Festas, C., & Vieira, M. (2012). Perceções parentais sobre estado nutricional, imagem corporal e saúde em crianças com idade escolar. Revista de Enfermagem Referência, 3(6), 191-200        [ Links ]

Magnus, M. O., Andersen, G .L., Andrada, M. G., Arnaud, C., Balu, R., Dela Cruz, J.,... Vik, T. (2012). Gastrostomy tube feeding of children with cerebral palsy: Variation across six European countries. Developmental Medicine & Child Neurology, 54(10), 938-944.         [ Links ]

Ordem dos Enfermeiros, Comissão de Especialidade de Enfermagem de Saúde Infantil e Pediátrica. (2012). Guias orientadores de boa prática em enfermagem de saúde infantil e pediátrica: Entrevista ao adolescente e promover o desenvolvimento infantil na criança. Lisboa, Portugal: Autor.         [ Links ]

Pruitt, D. & Tsai, T. (2009). Common medical comorbidities associated with cerebral palsy. Physical Medicine & Rehabilitation Clinics North America, 20(3), 453-467.         [ Links ]

Rogers, B. (2004). Feeding method and health outcomes of children with cerebral palsy. Pediatrics, 145(Supl. 2), S28-32.         [ Links ]

Patel, M. R., Piazza, C. C., Layer, S. A., Coleman, R., & Swartzwelder, D. M. (2005). A systematic evaluation of food textures to decrease packing and increase oral intake in children with pediatric feeding disorders. Journal of Applied Behavior Analysis,38(1), 89-100.         [ Links ]

Sullivan, P. (2009). Feeding and nutrition in children with neurodevelopmental disability. London, England: Mac Keith Press.         [ Links ]

Wilson, E. M., & Hustad, K. C. (2009). Early feeding abilities in children with cerebral palsy: A parental report study. Journal of Medical Speech-Language Pathology, 17(1), 31-44. Recuperado de https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2688002/pdf/nihms57357.pdf        [ Links ]

 

Recebido para publicação em: 17.05.16

Aceite para publicação em: 14.10.16

Creative Commons License Todo el contenido de esta revista, excepto dónde está identificado, está bajo una Licencia Creative Commons