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Revista de Enfermagem Referência

versão impressa ISSN 0874-0283

Rev. Enf. Ref. vol.serIV no.9 Coimbra maio 2016

https://doi.org/10.12707/RIV15056 

INVESTIGAÇÃO HISTÓRICA

 

Enfermagem psiquiátrica: análise do Manual Cuidados aos Psycopathas

Psychiatric nursing: analysis of the Manual Cuidados aos Psychopathas

Enfermería psiquiátrica: análisis del Manual de Cuidados aos Psychopathas

 

Cláudia Polubriaginof*; Paulo Fernando Souza Campos**

* RN., Universidade de Santo Amaro, 04743030, Sao Paulo, Brasil [claudiaenfhist@gmail.com]. Contribuição no artigo: pesquisa bibliográfica; levantamento e análise das fontes; escrita do artigo. Morada para correspondencia: RUA CLARK, 70, Apto. 252, São Paulo, 04743030, Brasil.

** Ph.D., Professor, Universidade de Santo Amaro, 04743030, Sao Paulo, Brasil [pfsouzacampos@hotmail.com]. Contribuição no artigo: orientador; indicação de referencial bibliográfico; análise das fontes e revisão da escrita do artigo.

 

RESUMO

Contexto: O estudo evoca a institucionalização da Psiquiatria em São Paulo, Brasil, no início do século XX.

Objetivos: Analisar os cuidados de enfermagem psiquiátrica no Hospital do Juquery, a partir do manual Cuidados aos Psycopathas e quais as práticas que foram utilizadas no espaço manicomial tido por excelência no Brasil e na América Latina, o Hospital do Juquery.

Metodologia: Trata-se de uma análise histórica realizada a partir da pesquisa documental do manual intitulado Cuidados aos Psychopathas publicado em 1930 por Antônio Carlos Pacheco e Silva, então diretor do hospital.

Resultados: Composto por 138 páginas o livro é a primeira publicação brasileira em língua portuguesa destinada à enfermagem psiquiátrica.

Conclusão: A enfermagem foi fundamental na consolidação do modelo asilar e as práticas exercidas principalmente dos que não receberam preparação formal para o exercício da enfermagem caracterizaram uma prática marcada pela força e a execução do saber médico à revelia da identidade e da individualidade dos doentes.

Palavras-chave: história da enfermagem; hospital psiquiátrico; enfermagem psiquiátrica

 

ABSTRACT

Context: The study evokes the institutionalization of Psychiatry in Sao Paulo, Brazil , in the early twentieth century.

Objectives: To analyze the psychiatric nursing care practices, based on the manual Cuidados aos Psychopathas, in the Juquery Hospital, a renowened mental health institution in Brazil and Latin America.

Methodology: This is an historical analysis based on the document review of the manual Cuidados aos Psychopathas, published in 1930 by Antônio Carlos Pacheco e Silva, who was, at the time, the hospital director.

Results: The manual, with its 138 pages, is the first Brazilian publication written in Portuguese focused on Psychiatric Nursing.

Conclusion: Nursing was instrumental in consolidating the asylum assistance model and practices, especially those performed by professionals without formal Nursing training, which were characterized by force and implementation of medical knowledge regardless of the patients' identity and individuality.

Keywords: history of nursing; psychiatric hospital; psychiatric nursing

 

RESUMEN

Contexto: El estudio evoca la institucionalización de Psiquiatría en Sao Paulo, Brasil, a principios del siglo XX.

Objetivos: Analizar los cuidados de enfermería psiquiátrica en el Hospital Juquery a partir del Manual de Cuidados aos Psychopathas, así como qué prácticas se utilizaron en el hospital psiquiátrico de excelencia en Brasil y América Latina, el Hospital Juquery.

Metodología: Se trata de un análisis histórico realizado a partir de la investigación documental del manual titulado Atención a Psicópatas, publicado en 1930 por Antonio Carlos Pacheco e Silva, entonces director del hospital.

Resultados: El libro está compuesto por 138 páginas y se trata de la primera publicación brasileña en portugués destinada a la enfermería psiquiátrica.

Conclusión: La enfermería fue fundamental en la consolidación del modelo de asilo y las prácticas ejercidas, sobre todo de aquellos que no recibieron preparación formal para el ejercicio de la enfermería, caracterizaron una práctica marcada por la fuerza y la ejecución del saber médico sin tener en cuenta la identidad y la individualidad de los pacientes.

Palabras clave: historia de la enfermería; hospital psiquiátrico; enfermería psiquiátrica

 

Introdução

A análise histórica da constituição e do funcionamento da enfermagem psiquiátrica no Hospital do Juquery, da cidade de São Paulo, compreender como o campo se organizou e quais as práticas utilizadas no espaço manicomial considerado por excelência tanto no Brasil, quanto na América Latina. Mais especificamente, o estudo perscrutou as propostas de Antônio Carlos Pacheco e Silva em relação aos cuidados de enfermagem psiquiátrica através do exame do manual Cuidados aos Psychopathas, publicado em 1930, da sua autoria (Pacheco e Silva, 1930). O manual, que orientava as práticas de enfermagem no Juquery, não foi analisado pela historiografia, inclusive, por pesquisadores enfermeiros que estudam a sua história.

A prática em enfermagem psiquiátrica foi eleita como objeto de estudo devido à sua clara importância dentro do processo de construção e consolidação do modelo de exclusão higienista, no interior do espaço assistencial, que na época também poderia ser caracterizado como asilar. Neste cenário, pautado pelo asilamento, pela exclusão e pelo tratamento moral, a enfermagem assumiu papel garantido, pois segundo Pereira (2002, p. 37), afirmava-se “os ingredientes básicos do tratamento moral são um bom enfermeiro, um bom cozinheiro e uma bela vista”.

Desde o período colonial da história brasileira a organização do cuidado junto do doente mental foi de responsabilidade da enfermagem, ou dos personagens que assumiam suas funções – seja na aplicação de procedimentos disciplinares a fim de submetê-los às prédicas médicas, ou na manutenção da ordem manicomial. A organização psiquiátrica proposta pelos alienistas franceses, desde o final do século XVIII foi incorporada na psiquiatria brasileira, e a partir da segunda metade do século XIX criou condições para que os hospícios se tornassem um local de produção do saber sobre a loucura e um instrumento com o propósito de curá-la (Kirschbaun, 1997).

Nesse sentido, questiona-se como é que o pessoal de enfermagem e as suas práticas foram dimensionadas por Pacheco e Silva ao escrever e publicar um manual para essa finalidade, e de que maneira as propostas do ilustre psiquiatra orientavam o cuidado de enfermagem e as relações entre médicos, enfermeiros e pacientes.

 

Metodologia

Análise histórica fundada na pesquisa documental, em específico, do manual intitulado Cuidados aos Psychopathas, publicado por Antônio Carlos Pacheco e Silva pela Officinas Graphicas do Hospital do Juquery em 1930 e preservado no Acervo do Museu Histórico Prof. Carlos da Silva Lacaz, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. O procedimento pode ser caracterizado como técnica importante da pesquisa qualitativa, a partir da extração de dados de caráter descritivo e do contacto direto e interpretativo do pesquisador com a fonte (Neves, 1996).

 

Resultados e Discussão

Ao longo da sua gestão no Hospital Psiquiátrico do Juquery, que perdurou por 13 anos, Pacheco e Silva publicou artigos, livros, manuais, organizou compêndios de psiquiatria publicados no Brasil e em outros países. Em 1930 Pacheco e Silva publicou o que chamou de livrinho, composto por 138 páginas e intitulado Cuidados aos Psychopathas. O livro, segundo o autor, considerado um dos primeiros manuais voltados para a assistência psiquiátrica do século XX, tratava-se da primeira publicação brasileira em língua portuguesa destinada à enfermagem psiquiátrica. O primeiro argumento do autor para a escrita do manual caracterizava o atraso da enfermagem brasileira, assumido como justificação à pertinência do seu livro, vale dizer, motivo para que se dedicasse ao tema, pois conforme estabelecia Pacheco e Silva havia um descompasso entre os estágios alcançados pela enfermagem no Brasil em relação a outros países em que estudou e visitou:

No Brasil, a profissão de enfermeiro ainda não atingiu o nível que ella [sic] ocupa nos paizes [sic] da Europa e nos Estados Unidos; sobretudo em relação aos enfermeiros dos hospitais para psychopathas [sic], o nosso paiz [sic] se resente [sic] da deficiência de profissionais com conhecimentos básicos indispensáveis ao bom desempenho da sua missão. (Pacheco e Silva, 1930, p. Preambulo)

A análise do documento permite considerar que o autor destacava a importância da obra, bem como o seu destinatário - o enfermeiro - afirmando que “em nenhum a sua acção [sic] se faz mais necessária e imprescindível, qual nos hospitais destinados aos psychopathas [sic].” (Pacheco e Silva, 1930, p. Preambulo). Os argumentos usados pelo médico sugerem uma crítica ao status conferido à enfermagem psiquiátrica no Brasil, excluída da formação profissional considerada por excelência, oriunda do Rio de Janeiro. Além de caracterizar a enfermagem no masculino, o que destoava das representações dominantes na época, no documento, o autor permite considerar a importância da enfermagem em relação à nova perspetiva de tratamento proposto pelo Hospital Psiquiátrico do Juquery como afirmava:

Com essa nova orientação, o papel do enfermeiro – homem ou mulher – cresceu de importância. Em contacto permanente com os doentes, cabe-lhe também pôr [sic] em pratica os preciosos recursos da therapeutica [sic] moral, confortando-os, inspirando-lhes confiança no restabelecimento e cercando-os do maior carinho. (Pacheco e Silva, 1930, p. 3)

A therapeutica moral consistia na base do tratamento aplicado nos hospitais psiquiátricos e que teve forte influência da psiquiatria europeia, sobretudo, a francesa. Relevante para o período, o autor descaracteriza a condição de género imposta pelo padrão vigente na época, de formação profissional da enfermagem brasileira, fundado na feminização do cuidado (Campos & Oguisso, 2013). Ao identificar a identidade de género atribuída pela nova orientação por ele proposta, isto é, homem ou mulher, o autor sinaliza que o padrão proposto como ideal para a enfermagem brasileira não era hegemónico na medida em que se tratava de um espaço de excelência no tratamento psiquiátrico.

Todavia, ao discorrer sobre o papel dos enfermeiros no tratamento das doenças mentais o autor deixa patente a condição de subserviência que o mesmo deveria manter em relação ao saber médico. A condição dos enfermeiros, as suas competências e práticas quotidianas no ambiente hospitalar são representadas por Pacheco e Silva como atreladas às práticas médicas e mantidas integralmente sob sua tutela. Mesmo considerando a precariedade da formação profissional e o pouco conhecimento dos homens e mulheres que atuavam como enfermeiros no Hospital do Juquery, o discurso dominante destituía a possibilidade de intervenção não autorizada.

Compete ainda ao enfermeiro fazer com que os doentes sigam as prescripções medicas [sic], velando também para que não pratiquem desatinos . . . Convem [sic] lembrar, todavia, que, comquanto [sic] conhecedor dos seus mistéres [sic], não deve nunca o enfermeiro exhorbitar [sic] das suas funcções [sic]. Todos os seus actos [sic] devem ser pautados pela orientação medica [sic] e, sob pretexto algum, deverá elle [sic] afastar-se das recommendações [sic] recebidas (Pacheco e Silva, 1930, p. 3-4)

A Medicina apresenta uma forte representação social, reconhecida pela sociedade como intrinsecamente associada ao domínio da ciência, bem como do conhecimento científico por ela produzida, sobretudo acerca do diagnóstico das doenças, das suas referentes terapêuticas e consequentemente das possibilidades de cura. A enfermagem, por sua vez, é a profissão que tem o cuidado como eixo norteador do seu conhecimento e da sua prática. Não obstante, ainda que no contexto, os debates em torno da carência de formação profissional em enfermagem - sobretudo em psiquiatria - permeasse a pauta política desde 1920, mesmo que escolas e modelos fossem defendidos a partir de um padrão proposto como ideal, a representação das práticas de enfermagem estavam, na perspetiva anunciada, subservientes ao saber/poder médicos, porém, não destituído de um campo de conhecimentos que lhe fosse específico.

O manual segue apresentando as principais desordens psíquicas com breves resumos de sinais, sintomas e respetivos tratamentos. As descrições, colocadas por vezes de forma pejorativa e sob notório julgamento de valor, deslocam-se da doença em si vinculando-as ao seu portador como se o sujeito acometesse a doença e não o seu contrário, ou seja, como se a doença fosse naturalmente sujeita a determinados tipos humanos, cujas formas adversas de vida e trabalho os conduzissem ao desvio, à desordem e ao adoecimento. Nesse sentido era exemplo a chamada embriaguez pathologica, observável em indivíduos predispostos, tarados e epilépticos, nos quais o álcool despertava impulsos violentos, durante os quais o individuo se torna destruidor e sanguinário, cometendo assassinatos e atos criminosos, só se acalmando depois de passada a intoxicação, “o indivíduo vomita e permanece cahido [sic] horas inteiras, nas sarjetas ou nas estradas, onde não raro encontra a morte, atropelado por algum vehiculo [sic] ou afogado nas enxurradas.” (Pacheco e Silva, 1930, p. 15).

Nesse processo, o documento em análise considera que a relação da sociedade com o doente mental era categorizada pelo conceito de normalidade e anormalidade, desta forma, foram construídas representações acerca do louco e da loucura que determinaram a associação das patologias a comportamentos considerados desviantes e promíscuos, além da necessidade de separação do doente mental do meio social, excluindo-o, inclusive, antes que viesse a delinquir, pois naturalmente delinquente ou a caminho da loucura em alusão ao noção francesa do demi-fou.

No capítulo III do Manual, o autor evidencia de maneira mais sistemática as práticas de enfermagem, pois narra os primeiros cuidados aos psychopathas, cujas orientações são postuladas dentro de duas vertentes: levantamento da história pregressa do paciente e importância da vigilância constante. Sobre os antecedentes, ainda que voltado para a perspetiva determinista e hereditária da doença/doente, o autor permite entrever uma possibilidade do que hoje se considera como triagem do paciente como primeiro cuidado. Há nesse fragmento do Manual uma possibilidade de atuação mais efetiva do enfermeiro na recuperação da vida pregressa da pessoa a ser cuidada:

O primeiro cuidado de uma pessoa a quem se confiar um psychopatha [sic] deverá ser o de indagar dos principaes actos commettidos [sic] anteriormente pelo paciente, suas idéas [sic] predominantes, etc. Convém também indagar, minuciosamente, dos antecedentes hereditarios [sic], interrogando as pessoas da família, amigos, companheiros de trabalho, médicos que o tenham tratado antes do aparecimento da moléstia mental. (Pacheco e Silva, 1930, p. 30)

A vigilância é avaliada como uma propriedade essencial do hospício. A função desempenhada pela enfermagem compõe uma rede de olhares que se estende por todos os espaços do hospital. O documento, objeto do estudo em pauta, remonta a diferença do modo como se realiza a vigilância no hospício, como uma vigilância central, caracterizada espacialmente e voltada para a inspeção enquanto princípio:

Buscar-se-á proceder à rigorosa revista no paciente, para se adquirir a certeza de que ele não traz escondido qualquer objeto com que possa causar damno [sic] a si próprio ou a outrem. Um dos meios mais práticos de se proceder à revista consiste em se convidar o paciente para um banho. Enquanto isso, outra pessoa passará em revista, longe das vistas do doente, toda sua roupa, retirando tudo quanto tiver nos bolsos, fazendo disso um relatório completo. Os escriptos [sic] do paciente, caderneta de notas, papeis etc., por mais absurdo que pareça o conteúdo das idéas nelles [sic] contidas, deverão ser conservados e entregues ao medico, que, muitas vezes, encontra ahi [sic] elementos preciosos para a sua observação. (Pacheco e Silva, 1930, p. 30)

No hospital psiquiátrico moderno quem ocupa a função de vigiar e controlar é o enfermeiro, que deve acompanhar os pacientes em todos os lugares, relacionando o cuidado, objeto próprio da enfermagem, com a vigilância constante; função destacada desde a admissão no hospital. No estabelecimento da psiquiatria moderna, o espaço produzido pela loucura e para a loucura implicava considerar diferentes diagnósticos. Ainda que a loucura moral balizasse os internamentos, a vida asilar e as terapêuticas aplicadas na vida intramuros ampliavam os desvios, caso existissem.

A vigilância deverá ser feita, porém, com discrição, para que o paciente não se irrite. Qualquer anormalidade notada deverá ser logo levada ao conhecimento do medico [sic]. O enfermeiro observador e consciencioso póde [sic] auxiliar o medico, prestando-lhe informes sobre o modo de proceder do enfermo nos primeiros dias de internação. (Pacheco e Silva, 1930, p. 33-4)

Ainda que o enfermeiro estivesse subordinado a uma instância superior, o fragmento permite avaliar que o médico se ancorava no exercício da enfermagem, pois dele necessitava para o seu próprio trabalho na medida em que o cuidado vigilante do enfermeiro o informava dos acontecimentos, conferindo ao saber médico subsídios preciosos para o tratamento dispensado. Entretanto, as práticas de enfermagem preconizadas alinhavam-se às dos guardas existentes nos pavilhões, que compunham tanto o hospital geral, o manicómio judiciário, a escola para anormais e outros setores do complexo do Juquery:

Aos encarregados compete fiscalizar os enfermeiros e guardas do respectivo [sic] pavilhão. Notarão a maneira de agir de cada um. Tomarão conta das chaves de todos os enfermeiros e guardas que não estiverem de serviço e ausentes do hospital. (Pacheco e Silva, 1930, p. 113)

Nos capítulos que descrevem as terapêuticas mais comuns e recomendadas para tratamento psiquiátrico na época, o autor apresenta orientações cercadas de minúcias como o número de pessoas empregadas e suas funções, descrição do material e doses de medicamentos. No Capítulo IV, intitulado “Dietetica [sic]. Alimentação artificial. Chlysteres [sic] alimentícios”, Pacheco e Silva desvela as práticas de enfermagem junto ao corpo do paciente, pois ao abordar a questão da alimentação artificial o autor salienta “Toda vez que um doente se recusar a aceitar alimentação, deverá ser acamado.” (Pacheco e Silva, 1930, p. 38). Em seguida, observa que tal procedimento deverá ser realizado apenas como última opção, mas ao descrever o procedimento permite considerar a atuação do enfermeiro ao afirmar que: “O enfermeiro deverá se fazer acompanhar de outras pessoas, para conter os doentes recalcitrantes.” (Pacheco e Silva, 1930, p. 39). O procedimento consistia numa sondagem artificial, por meio da passagem de uma sonda de 50 centímetros de extensão através das narinas ou boca, pela qual seria administrado o alimento líquido.

Outra passagem que permite avaliar as práticas de enfermagem psiquiátrica é evidenciada quando o manual apresenta a “Therapeutica medicamentosa”. Além das informações da praxe médica como a indicação do medicamento, vias de administração, dosagens e efeitos adversos, as orientações específicas, sobretudo, no que diz respeito ao cumprimento das prescrições médicas, o médico permite considerar a atuação do enfermeiro ao prescrever que:

O enfermeiro deverá dissolver o medicamento em um pouco de água e pedir auxilio de um companheiro, para tapar as narinas do doente, que se verá forçado a abrir a boca para respirar, engolindo assim o liquido com o medicamento. (Pacheco e Silva, 1930, p. 44)

Ao orientar sobre a utilização dos medicamentos, cuja administração implica no manuseio de agulhas e seringas, o manual desencoraja a atuação do enfermeiro por julgar sua formação insuficiente e seu conhecimento desprovido de prática técnica e científica para lidar com qualquer intercorrência acerca de procedimentos com alguma complexidade. Ao mesmo tempo, no capítulo VIII, ao abordar os cuidados especiais voltados para os pacientes agitados, desasseados, epiléticos ou em tratamento com malarioterapia, bem como os tuberculosos, dentre as recomendações o médico destaca a necessidade de afastamento físico entre o paciente e a equipe de enfermagem ao preconizar que:

O enfermeiro não deverá, a não ser quando fôr [sic] de absoluta necessidade, entrar nos quartos dos mesmos. Os epilépticos [sic], fora dos accessos [sic], são via de regra impulsivos, violentos e agressivos, por isso é aconselhável ter para com eles a máxima paciência, procurando não irrita-los (Pacheco e Silva, 1930, p. 73)

Todavia, se o discurso médico se pautava no zelo ou por vezes alguma doçura, esses eram processados com repressão, pois:

A psiquiatria tenta desvincular sua atuação sobre o louco da violência que marca o corpo, que machuca e mutila. Os meios de repressão são ativados para conseguir a docilidade. Não visam marcar o corpo, mas transformar o corpo violento em corpo pacífico. (Machado, Loureiro, Luz, & Muricy, 1978, p. 445)

No último capítulo intitulado “Hospitaes [sic] para psychopathas [sic]. Nova orientação no modo de assistir e tratar os doentes mentaes [sic]. Deveres do enfermeiro” o autor amplia as possibilidades de análise e reconhecimento das práticas de enfermagem executadas no interior do hospital. De início, o médico realiza uma descrição do novo hospital:

Os hospitais psychopathicos [sic] modernos são dotados de todo conforto dispõem de laboratórios e serviços médicos especializados, onde os doentes mentaes [sic] são cuidadosamente examinados. Si [sic] porventura um doente se agita e se torna agressivo ou destruidor, é isolado, submetido á balneotherapia [sic], deles cuidando os enfermeiros com brandura, sem lançar mão dos meios mecânicos de contensão (camisa de força, etc.). (Pacheco e Silva, 1930, p. 109-10)

Ao longo do texto Pacheco e Silva ressalta a importância desta nova forma de assistir o doente, atividade na qual o enfermeiro é peça fundamental. Entretanto, a figura do enfermeiro, naquele momento e contexto, era quase um sinónimo de guarda: “Todos os guardas que se tiverem revelado competentes e com prática hospitalar serão titulados ‘enfermeiros' e todos aquelles [sic] que estiverem praticando serão intitulados ‘ajudantes de enfermeiros'” (Pacheco e Silva, 1930, p. 115). A Enfermagem, mesmo que a formação profissional formal se encontrasse em fase inicial no país, era responsável pela organização do espaço asilar de acordo com a conceção médica. O trabalho do guarda/enfermeiro era pautado dentro da lógica médica de exclusão/reclusão:

O enfermeiro representa nesses estabelecimentos um dos principaes [sic] elementos, cabendo-lhe estabelecer pontos de contacto entre o corpo medico-administrativo e os doentes. Vae dahi [sic] a grande importância que o fiel desempenho dos seus deveres tem no regular funcionamento dos grandes hospitais psychopathicos [sic]. Para isso, mister se fazem três cousas essenciaes [sic] – competência, ordem e disciplina. O serviço tornase-a [sic] extremamente simplificado si [sic] cada enfermeiro tomar a deliberação de cumprir zelosamente com os seus deveres. (Pacheco e Silva, 1930, p. 111)

Pacheco e Silva explicita aos candidatos a qualquer colocação dentro do Hospital sobre a necessidade do exame médico e da assinatura de um Termo de Compromisso, no qual se comprometem a respeitar e obedecer a todas as decisões do Diretor da instituição, decisões que não se limitam apenas ao quotidiano hospitalar, mas se estendiam além dos muros do Juquery. No que diz respeito às folgas ou ausências de funcionários o médico é enfático ao mencionar:

Nenhum empregado deixará o hospital em qualquer ocasião sem a devida permissão. Os empregados não deverão recolher-se ao estabelecimento depois das 22 horas. Aos encarregados compete fiscalizar os enfermeiros e guardas do respectivo pavilhão. Notarão a maneira de agir de cada um. Tomarão conta das chaves de todos os enfermeiros e guardas que não estiverem de serviço e ausentes do hospital. A nenhum empregado será feito pagamento dos salários ao deixar o hospital, sem que primeiramente faça a entrega do uniforme e objetos do estabelecimento de que se ache de posse. (Pacheco e Silva, 1930, p. 112-3)

É importante destacar que o Hospital do Juquery havia sido criado como uma instituição de vanguarda e Antônio Carlos Pacheco e Silva tinha como grande objetivo levar a instituição novamente ao centro das atenções, sobretudo, como um centro produtor de ciência. Para a concretização deste projeto o renomado médico contava com a enfermagem avaliada como peça importante para os fins desejados. A própria publicação do manual ora analisado explicita as intencionalidades.

Em 1923, o Hospital do Juquery passou a ser administrado por Antônio Carlos Pacheco e Silva, cuja gestão é pouco mencionada na historiografia recorrente, assim, a documentação compulsada permite acesso a novas informações acerca da história da saúde mental e da psiquiatria no período abordado. De maneira mais abrangente, a análise da administração de Pacheco e Silva recupera parte importante do processo de modernização pelo qual o Hospital do Juquery passou na época.

Fundado em 1898, próximo da estação de comboio da antiga São Paulo Railway, numa fazenda pública, o Hospital do Juquery era destinado ao tratamento manicomial. Pioneiro no Brasil, o hospital foi concebido dentro dos princípios higienistas, sob a ótica moral, social e cultural como importante marco da psiquiatria brasileira e com abrangência internacional (Cunha, 1986).

Com uma posição ideológica conservadora, característica presente nos seus discursos e publicações, reiterava a manutenção do status quo das camadas mais abastadas da sociedade através da imposição da ordem e da moral ideológicas da elite brasileira da época. Ligado às teorias organicistas de explicação dos distúrbios mentais, Pacheco e Silva, ao longo de sua carreira, mantinha posição contrária ao uso da psicanálise e outras terapêuticas de domínio não médico e introduziu no Brasil boa parte das chamadas terapias biológicas como a eletroconvulsoterapia (Tarelow, 2012).

Ao optar pela formação médica, iniciou o curso na primeira Faculdade de Medicina Paulista, pertencente à Universidade Livre de São Paulo, de caráter particular. Na eminência do fecho desta instituição, terminou por se graduar na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1920, mesmo ano em que foi para a Europa especializar-se em Neuropsiquiatria, assistindo a aulas de especialistas renomados como Pierre Marrie (1853-1940) neurologista francês e estágios nos Hospitais de Salpetrière e Sant'Anna, na França, além de participar de cursos na Suíça ministrados por Eugen Bleuler (1857-1939) alienista suíço conhecido por nomear a esquizofrenia, doença anteriormente conhecida como dementia praecox, e na Alemanha com Emil Kraepelin (1856-1926), alienista comumente citado como criador da moderna psiquiatria, psicofarmacologia e genética psiquiátrica, o qual defendia que as doenças psiquiátricas eram causadas por desordens genéticas e biológicas (Tarelow, 2012).

A doença é percebida como uma perturbação ao nível das paixões e da vontade, o que justificava a necessidade de intervenção médica e dos cuidados que a enfermagem colocava em prática. Nesse sentido, o saber médico, legitimava a interferência do diagnóstico especializado, que considerava o indivíduo doente no momento em que rompia a rede de relações idealizadas como normais, ao desequilibrar e subverter, através dos seus excessos, as normas que regulavam a sociedade. Associada ao crime e à violência, a doença mental postulava a ideologia da vigilância e controle como norteadores do cuidado e das práticas de cuidar, algo que influenciou a atuação dos enfermeiros, na sua maioria homens, identificados no Manual também como guardas numa alusão ao termo francês garde malade, muitos dos quais não contavam com formação específica ou experiência anterior formalizada para atuarem como enfermeiros no Hospital de Juquery.

Ao analisarmos o manual Cuidados aos Psychopathas podemos considerar que nas práticas rotineiras dentro da psiquiatria, as relações de poder, saber, subordinação e status profissional entre os profissionais de medicina e de enfermagem sempre foram e ainda se encontram assimétricas - seja porque o médico, historicamente detém o importante e reconhecido poder de curar, advindo do seu capital intelectual, amplamente reconhecido pela sociedade, seja porque o mesmo não é observado na enfermagem, que após seu reconhecimento enquanto ciência, a sua representação na sociedade não adquiriu o mesmo status e valorização. Daí a subordinação da equipa de enfermagem à equipa médica, uma vez que a enfermagem surgiu como uma profissão marcada por um traço sócio-histórico-cultural que contemplou a questão de género e sua consequente subordinação, além da não legitimação do seu saber e de seu fazer. Além disso, as organizações de saúde propiciaram a reprodução do domínio médico, à revelia do conhecimento dos enfermeiros.

Embora muitas dessas premissas tenham sido abandonadas, ainda hoje persiste a ideia recorrente de que os nossos comportamentos e juízos morais, o modo como nos vinculamos com os outros e com nós mesmos, estão indissoluvelmente relacionados com imagens construídas em torno do que é normal e o seu contrário. Estas podem ser localizadas no quotidiano, conferindo, assim, grande influência do saber médico-psiquiátrico em todas as questões humanas.

 

Conclusão

As transformações políticas, económicas e sociais ocorridas no Brasil na passagem do século XIX para o XX foram determinantes para a consolidação da psiquiatria e da enfermagem no Brasil. O período foi marcado pela importação de conhecimento e tecnologias para a construção, organização e funcionamento dos hospitais psiquiátricos, o tratamento de pacientes, bem como a abordagem dos problemas de saúde da população, com destaque para a eugenia e a higiene mental.

A trajetória da enfermagem brasileira encontrava-se marcada por contradições como a de uma profissão legalmente reconhecida como liberal, porém, dependente do mercado de trabalho, dominada por mulheres. Nesse sentido, a enfermagem psiquiátrica ocupou um lugar à parte na realização do cuidado junto dos pacientes psiquiátricos, sobretudo na aplicação de procedimentos médicos com caráter disciplinador a fim de submetê-los à normatização proposta e à manutenção da organização asilar. Nesse sentido, o pessoal de enfermagem foi fundamental na consolidação do modelo assistencial asilar. Entretanto, as práticas exercidas principalmente pelos que não receberam preparação formal para o exercício da enfermagem, caracterizaram uma prática marcada pelo uso da força e a execução do saber médico à revelia da identidade e da individualidade do paciente mental.

 

Referências bibliográficas

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Recebido para publicação em: 15.09.15

Aceite para publicação em: 18.03.16

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