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Revista de Enfermagem Referência

versão impressa ISSN 0874-0283

Rev. Enf. Ref. vol.serIV no.8 Coimbra mar. 2016

https://doi.org/10.12707/RIV15069 

ARTIGO TEÓRICO/ENSAIO

 

Por Uma Nova Epistemologia da Enfermagem: Um Cuidar Post-Humano?

A New Epistemology of Nursing: A Post-Human Care?

Por Una Nueva Epistemología de la Enfermería - Un Cuidado Poshumano?

 

Ana Paula Teixeira de Almeida Vieira Monteiro*; Manuel Curado**

* Ph.D., Pós Doutoranda Universidade do Minho; Professora- Adjunta , Escola Superior de Enfermagem de Coimbra, 3046-851, Coimbra, Portugal [anapaula@esenfc.pt]. Morada para correspondência: Escola Superior de Enfermagem de Coimbra, 3046-851, Coimbra, Portugal. Contribuição no artigo: Efetuou pesquisa bibliográfica; recolheu dados; contribuiu substancialmente na análise e reflexão conceptual; escreveu o artigo.

** Ph.D., Professor Universidade do Minho, Instituto de Letras e Ciências Humanas Universidade do Minho Campus de Gualtar, 4710-057 Braga [jmcurado@ilch.uminho.pt]. Contribuição no artigo: Contribuiu para a análise conceptual.

 

RESUMO

Enquadramento: As correntes clássicas do humanismo do século XX que tinham como base epistemológica o logos e a ideia do homem como medida de todas as coisas, adotados pelo corpo teórico da enfermagem como o cerne da sua identidade, já não se adequam aos parâmetros das sociedades hipertecnológicas/digitais.

Objetivos: Este artigo tem por objetivo partilhar uma reflexão sobre o impacto das biotecnologias intensivas e da cyborguização do corpo humano na construção de uma nova epistemologia de enfermagem, em que o conceito de Post-Humano é central.

Tópicos em análise: Através de um enquadramento conceptual e tendo em conta os referentes teóricos da enfermagem sobre o cuidar, pretende-se estruturar uma análise epistemológica sobre a tecnologia, as correntes de post-humanismo e a ontologia cyborg.

Conclusões: A inovação tecnológica e a cyborguização do humano devem traduzir-se em novos conceitos do cuidar. A investigação e a formação académica em enfermagem devem contribuir para o cuidado profissional reflexivo e eticamente responsável, em vez de se centrarem nas vertentes tecnopráticas e num conhecimento pragmático e utilitarista.

Palavras-chave: epistemologia; humanismo; cuidados de enfermagem; desenvolvimento tecnológico

 

ABSTRACT

Background: The classical currents of 20th century Humanism whose epistemological basis lies in the concept of logos and the notion that man is the measure of all things, which were adopted as the core of nursing care identity, no longer fit the parameters of hyper-technological/digital societies.

Objectives: To reflect on the impact of intensive biotechnology and cyborgization of the human body on building a new epistemology of nursing centered on the concept of Post-Human.

Main topics under analysis: Based on a conceptual framework and taking into account the theoretical references of nursing about caring, we intend to conduct an epistemological analysis of technology, Post-Humanism currents, and cyborg ontology.

Conclusion: The technological innovation and the cyborgization of the human body should translate into new concepts of care. Nursing research and education should contribute to develop a reflective and ethically responsible professional care, rather than focus on technopractical aspects and on a pragmatic and utilitarian knowledge.

Keywords: epistemology; humanism; nursing care; technological development

 

RESUMEN

Contexto: Las corrientes clásicas del humanismo del siglo XX, que tenían como base epistemológica el logos y la idea del hombre como medida de todas las cosas y que el cuerpo teórico de la enfermería adoptó como núcleo de su identidad, ya no se ajustan a los parámetros de las sociedades hipertecnológicas / digitales.

Objetivos: Este artículo tiene como objetivo compartir una reflexión sobre el impacto de la biotecnología intensiva y la ciborguización del cuerpo humano en la construcción de una nueva epistemología de la enfermería, donde el concepto de poshumano es central.

Principales temas en análisis: A través de un marco conceptual y teniendo en cuenta las referencias teóricas de la enfermería sobre el cuidado se pretende estructurar un análisis epistemológico sobre la tecnología, las corrientes del poshumanismo y la ontología cíborg.

Conclusión: La innovación tecnológica y la ciborguización del humano deben traducirse en nuevos conceptos del cuidado. La investigación y la formación académica en enfermería deben contribuir al cuidado profesional, reflexivo y éticamente responsable en lugar de centrarse en las vertientes tecnoprácticas y en un conocimiento pragmático y utilitarista.

Palabras clave: epistemologia; humanismo; atención de enfermería; desarrollo tecnológico

 

Introdução

Enfermagem e Tecnologia

A intensificação dos processos de globalização, as inovações das biotecnologias da saúde e a digitalização do quotidiano, implicam uma necessária reconstrução de referentes epistemológicos em enfermagem, de forma a responder a questões que nem sequer ainda estão estruturalmente formuladas, porque é necessário todo um percurso prévio de construção de pensamento. A tecnologia está intimamente relacionada com a afirmação da enfermagem enquanto profissão científica, na viragem do século XIX e início do século XX. O desenvolvimento e a utilização diferenciada das tecnologias cientificamente legitimadas foi uma das dimensões que permitiu a diferenciação da enfermagem das práticas leigas e religiosas que até então caracterizavam a noção de cuidar nos processos saúde/doença. Assim, a tecnologia contribuiu para conferir a esta prática social – considerada como um trabalho de mulheres orientado para o cuidado sistematizado – o estatuto de profissão socialmente reconhecida e regulada, com exigências específicas de formação (Meyer, 2002).

Mas foi sobretudo a partir da década de setenta do século XX, precisamente quando a sofisticação das tecnologias da saúde se intensificou, que começaram a surgir questionamentos teóricos sobre o impacto das novas tecnologias nos cuidados de enfermagem. Ao mesmo tempo, e suportada por esta inquietação, emergia uma intensa afirmação da ideia de Cuidados centrados na Pessoa e a recuperação da perspetiva holística do cuidar como a essência da enfermagem. Afirma-se a ideia central de que enfermagem tem a ver com o cuidar de pessoas e não com o tratar e curar doenças (mais típico do modelo biomédico), a partir da reflexão sobre o uso acrítico das tecnologias, enquanto as teorias feministas exploram a tessitura da construção simbólica e das relações de poder inerentes à afirmação das tecnologias da saúde. As narrativas sobre o cuidar em enfermagem exprimem a ideia de conciliação entre a objetividade masculina (expressa no conhecimento científico e nos artefactos tecnológicos) com a intuição e emoção femininas que caracterizariam os cuidados de enfermagem, sendo esta mediação feminina a mediação humanizada entre médico e doente, entre a tecnologia e cuidado envolvente (caring). Desta forma, a identificação de enfermagem com tecnologias hospitalares traduz, numa perspetiva simbólica, a hierarquia masculina de poder das profissões médicas e a diferenciação de género, alimentando a tradicional invisibilidade dos cuidados de enfermagem (Fairman & D'Antonio, 1999).

Subjacente está um conceito de polaridade, que relaciona o feminino/enfermagem com a ideia de natureza/cuidar/nutrir e o masculino/medicina com a ideia de poder/controle sobre a natureza/tecnologia, posicionando a enfermagem como uma cultura feminina em desacordo com a tecnologia, essencialmente uma cultura masculina. Esta perspetiva reforça a ideia de tecnologia enquanto tendência para a desumanização de doentes e mas também dos próprios enfermeiros, em que a tecnologia surge como ameaçadora e potencialmente disruptiva.

Emerge assim uma tendência das ciências de enfermagem, que aderem a uma visão humanista da tecnologia, adotando uma perspetiva classificatória da tecnologia como não-humana ou não-natural, integrada numa visão conceptual em que existe uma clivagem entre o humano/não humano e entre natureza/tecnologia. Ou seja, com as ilimitadas possibilidades de tecnologização de todas as dimensões do processo saúde-doença e com as críticas teóricas ao paradigma das ciências médicas que ainda sustenta, em grande parte, essa tecnologização, o cuidado de enfermagem começa a ser teorizado crescentemente, como a interface de humanização na relação tecnologia-cliente (Meyer, 2002).

A investigação empírica em enfermagem acompanha estas transformações. Estudos sobre as fronteiras do cuidar versus tecnologia incidem normalmente em unidades de cuidados intensivos ou de urgências, tendo como alvo a relação entre enfermeiros e doentes críticos. Estes serviços de ponta distinguem-se relativamente a outros serviços de saúde pela centralidade dos cuidados hiperespecializados e pelo uso de tecnologia sofisticada na realização de diagnósticos e administração de terapêutica. Em boa verdade, cuidados intensivos, urgências, unidades de recobro e alguns espaços de cirurgias de ponta estão no topo da hipercomplexidade tecnológica da interface corpo humano-máquinas. Estes estudos revelam que a ligação entre tecnologias de ponta e cuidados de enfermagem não se traduz na mera transferência de aplicações e sistemas tecnológicos de alta intensidade e na sua utilização na prática clínica (por exemplo utilização de equipamentos sofisticados de suporte avançado de vida). Implica uma transformação da própria tecnologia disponível. Os enfermeiros, na sua práxis clínica, têm de reconfigurar e transformar as tecnologias invasivas, utilizando-as na exata medida em que a sua instrumentalidade tem um impacto positivo para as pessoas alvo dos cuidados, tentando assim preservar a essência da enfermagem (o cuidado centrado na pessoa). Crocker e Timmons (2009), ao analisarem a relação entre cuidados de enfermagem e tecnologias num estudo etnográfico com a duração de 6 meses numa unidade de cuidados intensivos, observaram que os enfermeiros menos experientes tendem a ter uma abordagem das tecnologias biomédicas focada nas tarefas e no utilitarismo imediato dos artefactos tecnológicos. No entanto, os enfermeiros peritos, mais especializados em cuidados intensivos, tendem a utilizar as tecnologias duras de uma forma subtilmente diferente, apropriando-se delas e transformando-as numa tecnologia da enfermagem, ou seja, numa tecnologia do cuidado humano.

Isto significa que o impacto das tecnologias no cuidar em enfermagem ultrapassa substancialmente a utilização eficaz de artefactos tecnológicos e a manipulação de equipamentos sofisticados na prestação de cuidados em ambientes de hipercomplexidade. Implica conhecimentos específicos, competências técnicas sistematizadas e um sistema muito próprio de pensamento construído sobre quais os objetivos das intervenções, sobre as escolhas concretas feitas em contextos clínicos e decisões sobre as prioridades na prestação de cuidados de saúde, tendo em conta a pessoa alvo dos cuidados.

O uso da tecnologia nos cuidados de enfermagem em doentes críticos em terapia intensiva implica também um cuidado com as máquinas. Em contextos clínicos de enfermagem, as máquinas, sobretudo aquelas utilizadas em suporte avançado de vida “acabam por se transformar num segundo cliente alvo dos cuidados de enfermagem, pois, tal como os doentes, elas também precisam ser tocadas, cuidadas e assistidas” (Silva et al., 2009, p. 211).

Cuidar das máquinas é pois assumido como um cuidado de enfermagem, já que os enfermeiros têm uma aguda consciência de que existe uma simbiose completa entre corpo humano e máquina e que a sobrevivência da pessoa depende em absoluto da funcionalidade do aparato tecnológico.

Mais do que a antropomorfização dos artefactos tecnológicos, a noção de que cuidar em enfermagem envolve a simbiose corpo-máquinas, situa-se precisamente no cerne da fronteira e do hibridismo entre humano e tecnologia. Trata-se agora de cuidar de um corpo híbrido, de um corpo de fronteira, abrindo todas as premissas possíveis de limite entre o humano, o não humano e o desumano.

Assim, a radical tecnologização do cuidar, implica que, ao mesmo tempo que as noções de humanismo ou humanitude passam a ser afirmadas com renovado vigor na área da enfermagem por causa da tecnologia, se esboroam os limites da noção do que é ser humano. Com efeito, os humanismos do século XX, que tinham como base epistemológica o logos e a ideia do homem como medida de todas as coisas adotados pelo corpo teórico da enfermagem como o cerne da sua identidade desde Florence Nightingale, já não se adequam aos parâmetros das sociedades hipertecnológicas e digitais. Esse humanismo tradicional, inspirado numa cultura livresca e nos cânones da filosofia clássica ocidental aparece agora como obsoleto face às inovações das neurociências ou genética, que trouxeram novas dimensões aos velhos conceitos de razão, consciência e emoção (Chavario-Alfaro, 2015).

 

Desenvolvimento

Um Cuidado de Enfermagem Post-Humano

A noção de post-humano representa, no âmago da articulação entre evolução biológica e evolução técnica, uma tendência que deixa antever não apenas uma transmutação ontológica da condição humana, mas também o desenvolvimento de novas formas de vida para além das fronteiras tradicionais entre o natural e o artificial (Fukuyama, 2003).

Em termos conceptuais e ontológicos, o Post-humanismo é uma corrente que inclui um conjunto significativo de movimentos e escolas de pensamento, que atravessa algumas zonas de indefinição. Em finais da década de 90 do século XX o Post-humanismo começa a ser explorado do ponto de vista da investigação filosófica, numa tentativa abrangente de integrar a consciência recém-adquirida sobre os limites dos pressupostos antropocêntricos e humanistas que guiaram a construção filosófica clássica (Ferrando, 2013).

Em síntese, e apesar da polissemia do termo, as várias correntes filosóficas do pós-humanismo podem ser caracterizadas como tendo em comum a contestação da conceção clássica e moderna do humanismo baseada no ego-cogito cartesiano e a rejeição das categorias dicotómicas subjacentes, como mente-corpo, sujeito-objeto e cultura-natureza, uma vez que todas têm como pressuposto o antropocentrismo e a ideia da racionalidade instrumental da tecnologia.

A condição Post-humana significa pois o fim da conceção de um universo centrado no humano, iniciada no Renascimento. Ou seja, significa “o fim do humanismo, essa crença, largamente elaborada, na infalibilidade do poder humano sobre a natureza e na arrogante certeza numa suposta superioridade e singularidade dos seres humanos” (Pepperell, 2003, p.171). De uma forma simplificada, pode ser definida como a condição em que humanos e a tecnologia inteligente se interpenetram irreversivelmente, numa fusão entre humanidade e máquinas e na emergência de um hibridismo indiferenciador, uma nova categorização do Humano.

Mas, se a compreensão da dimensão histórica e ontológica da tecnologia é crucial para a articulação das várias correntes do post-humanismo, as questões emergentes sobre a redefinição conceptual do humano e do post-humano não podem ser reduzidas aos referentes teóricos da discussão sobre a tecnologia. Muito para lá do tecno-essencialismo ou da conceção de que a tecnologia é uma ferramenta instrumental para obter vantagens ou controlar a natureza, afirma-se a tecnologia como parte integrante do ser humano e da própria essência da condição humana. A noção de que a humanidade, desde o seu início, é um produto da sua técnica e de que os artefactos e próteses tecnológicas, ou seja, o fabrico e utilização intencional de instrumentos definem a hominização, tem subjacente este pressuposto: A habilidade técnica permitiu expandir as potencialidades biológicas básicas da espécie humana, controlando a natureza e possibilitando a sobrevivência num meio hostil. Esta conceção torna difícil qualquer distinção entre humano e post-humano (Braidotti, 2013). Os dois termos são mutuamente constitutivos e nenhum deles se pode autonomizar do outro.

Borgmann (1984), na sua abordagem fenomenológica, considera que a tecnologia é o modo tipicamente moderno de o homem lidar com o mundo e constitui um paradigma ou um padrão característico, intrínseco à vida quotidiana, que pode ser descrito com alguma precisão e que tem consequências específicas para as nossas relações com os outros e com o meio envolvente. Esta perspetiva crítica coloca o foco do impacto da tecnologia nas relações humanas, em todas as suas dimensões: políticas, sociais e estéticas. A atitude tecnológica da modernidade traduziu-se na desintegração, na descontextualização e na produção de dispositivos e artefactos tecnológicos para consumo e fruição. Estes dispositivos tecnológicos, sejam eles naturais (como as plantas ou animais para usufruto e consumo humano) ou artificiais (como artefactos), mas também todos os objetos sociais e culturais, são reduzidos a meios instrumentais para fins circunstanciais, num reducionismo coisificante, focal e de dimensão prática (Borgmann, 1984).

O conceito de tecnologia como um modo de revelação da existência (Heidegger, 1977) permite uma aproximação ao seu significado ontológico mais profundo num contexto contemporâneo, onde a tecnologia tem sido reduzida a este conceito de mero aparato técnico-instrumental de produção utilitária de artefactos e de ambientes tecnológicos. A tecnologia não se reduz à conceção essencialista da tecnociência, mas constitui um princípio de construção do mundo em determinadas condições específicas e expressa um modo de ser do mundo, um processo de posicionamento face ao real e uma forma de pensamento.

Os recentes desenvolvimentos científicos das biotecnologias, robótica, informática, genética e nanotecnologias, colocam no centro do debate a questão do que é afinal a natureza humana e o que é que constitui as características do humano. A definição do que é humano foca-se neste momento mais no conteúdo funcional do que na forma: a condição humana (o sentido de humanidade, a humanitude) passa a ser definida pelo modo como uma espécie funciona em termos operativos, por outras palavras, pela forma como processa a informação mais do que pelo seu aspeto morfológico ou o seu substrato biológico. O corpo humano é a prótese original a partir da qual se constrói a identidade e os processos de consciência, e, como tal, pode ser substituída por outros processos protésicos. Nesta conceção post-humana não há diferenças essenciais ou demarcações absolutas entre a existência num corpo e a simulação num computador, entre mecanismos cibernéticos, inteligência artificial e organismos biológicos, entre teleologia robótica e objetivos humanos (Hayles, 1999). Se o foco passa a ser a informação como a essência de todos os sistemas inteligentes, e se materiais e corpos são meros substratos que suportam a informação vital, então não existe propriamente grande diferença entre humanos, sistemas de inteligência artificial ou indivíduos com outras formas de inteligência, como os animais (Hayles, 1999). Por outras palavras, o excecionalismo da condição humana está morto (Braidotti, 2013).

Cuidar de um Corpo Cyborg

A ontologia cyborg tem especial significado quando se discute a emergência de novas formas de conhecimento científico em enfermagem e da construção de um cuidar post-humano. O termo cyborg (abreviatura de cybernetic organism) surgiu pela primeira vez na literatura científica nos anos sessenta do século XX, em plena corrida à exploração espacial, para designar os equipamentos tecnológicos e adaptações mecânicas acoplados ao corpo dos astronautas que permitiam aumentar o funcionamento inconsciente e autorregulatório dos sistemas orgânicos, possibilitando sobreviver num ambiente físico letal (Clynes & Kline, 1960).

Para Haraway (1991), o conceito de cyborg emerge como uma rutura epistemológica e ontológica de categorizações essencialistas, rompendo fronteiras definidas e permitindo combinações, ambivalência e hibridismos, tanto em relação às categorias humano/não-humano, organismo biológico/máquina, natural/artificial, mas também para as distinções de raça, classe, género ou idade.

A ideia de cyborg tem sido assumida como zona de fronteira transgressora a nível de arte, tecnociência, inovação, política, ficção científica ou investigação filosófica. Mas é nas margens estreitas da prática dos cuidados de saúde que os processos de cyborguização do corpo e do humano enfrentam a sua mais radical materialização. A enfermagem atual constrói-se no confronto com estes processos de hipertecnologia que acompanham o indivíduo desde a vida intrauterina aos processos de morte e post-mortem. Também a atual informatização de todos os processos de cuidar aplicada à enfermagem contribui para a cyborguização do cuidar. O conceito de cyborgs metafóricos remete para conexões entre corpos humanos, máquinas e sistemas informáticos, que não são permanentes nem irreversíveis, podendo ser facilmente desativadas (Hayles, 1999). A digitalização do corpo em contexto de cuidados de saúde implica outros desafios para a enfermagem, como a questão de reconhecer os cuidados digitais enquanto intervenções de enfermagem (cyber nursing) ou a de considerar que o cuidado holístico à pessoa integra a noção de tecno-Self e de identidades virtuais (Salzmann-Erikson & Eriksson, 2015). As plataformas digitais de cuidados de enfermagem são um sistema sociotécnico que traduz uma determinada forma de compreensão da doença e do cuidado, reduzida à dimensão de informações conectadas em rede e de sistemas de resposta (que se pretende rápida e eficaz) a sintomas estandardizados. Não se trata de meras aplicações informáticas com neutralidade axiológica.

A utilização quase rotineira de pacemakers, implantes cocleares, próteses biónicas cada vez mais sofisticadas, lentes intraoculares, tecnologias de neuro modulação, uso de biossensores in vivo como prática clínica corrente e todo um conjunto de artefactos digitais dirigidos à saúde, transformaram os clientes e os cuidados de enfermagem. De certa forma, nas suas rotinas diárias, os enfermeiros cuidam permanentemente de cyborgs.

Haddow, King, Kunkler, e McLaren (2015), num estudo sobre o impacto de viver com biossensores implantados em homens com cancro da próstata, utilizam o termo everyday cyborgs para definir a condição de pessoas que vivem quotidianamente numa situação de hibridismo tecnológico. De resto, quanto mais perfeita e tecnologicamente avançada for a componente biónica integrada no corpo, menor será a perceção do sujeito de que se trata de um artefacto não corpóreo ou um fragmento não-humano incorporado. Na medida em que as próteses biónicas, sensores e implantes contribuem para o funcionamento organizado do sistema biológico, aumentando e potenciando capacidades ou colmatando falhas da homeostase vital, melhorando a qualidade de vida da pessoa ou mesmo permitindo-lhe sobreviver, elas tendem a ser plenamente incorporadas pelo sujeito. Quanto mais íntimas e automáticas forem as adaptações tecnológicas inseridas no organismo, mais a condição cyborg emerge. Partes mecânicas e próteses tecnológicas transformam-se em partes do corpo e da pessoa da mesma forma que um órgão humano funcional (Haddow, King, Kunkler, & McLaren, 2015).

De facto, os processos de cyborgização do humano são hoje o cerne dos cuidados de saúde (Meyer, 2002). Quer sejam restauradores (permitindo restaurar funções biológicas como na tecnologia farmacológica), normalizadores (com as cirurgias reparadoras, membros biónicos), reconfiguradores, quando criam criaturas post-humanas iguais a todos os seres humanos e, ao mesmo tempo completamente diferentes (por exemplo a sistemática reconfiguração do sistema imunitário através de vacinação) ou melhoradores, quando criam criaturas com maiores potencialidades, substancialmente mais capazes que o ser humano natural ou original (como na utilização de próteses de alta tecnologia, exosqueletos ou chips de interface neuronal).

Estes processos, iniciados com a emergência da medicina moderna nos alvores da racionalidade técnica são agora completamente banais. Também as questões do início e terminus da vida humana, as fronteiras do prolongamento da vida através de biotecnologias agressivas, a reconfiguração de padrões biologicamente predeterminados ou os limites da plasticidade do corpo, colocam novas interrogações sobre o significado do cuidado centrado na pessoa.

O aumento das capacidades humanas através das tecnologias digitais, genética, robótica, nanotecnologias de ponta ou smart drugs, significa, para alguns autores, não apenas um melhoramento do corpo humano mas uma substancial transformação do humano enquanto espécie, reinventando o próprio substrato biológico existencial do que é considerado humano, implicando a transcendência do corpo e um salto evolutivo da espécie humana.

O pensamento post-humano implica repensar a identidade do humano sem clivagens definitivas como outros não-humanos (animais, máquinas, objetos, artefactos digitais, sistemas, ambiente) mas construir uma identidade compósita, em que o cerne está na capacidade de relação. Esta dimensão abarca as dimensões da bioética, ciência política, neurociências, estudos de género, mas também as próprias bases epistemológicas das ciências de enfermagem.

Neste caminho existe a possibilidade de que todas as dimensões do cuidado de enfermagem sejam reduzidas a atividades com uma lógica puramente técnica e instrumental. Numa frenética distopia sanitária, a própria noção de cuidado de enfermagem humanizado deixaria de ter qualquer sentido, visto estar completamente integrada na noção de cuidado tecnológico altamente diferenciado. Na atualidade, o corpo humano surge como um artefacto comercializável, buscando-se a saúde perfeita num corpo aperfeiçoado, numa bio economia do corpo à escala global (LaFontaine, 2014). Os cuidados de enfermagem integram-se numa ótica utilitarista e fazem parte de um sistema mais amplo que possibilita um conjunto de serviços disponíveis tendentes à melhoria do corpo, níveis elevados de saúde, bem-estar e longevidade aumentada a qualquer preço.

Mas existe também a possibilidade criativa de reorganização do pensamento em enfermagem integrando as novas fronteiras do post-humano sem perder as referências do cuidar. O paradigma da ontologia cyborg, plenamente assumido como constructo de enfermagem, pode ser o início do encontro para além da clivagem entre o cuidado centrado na pessoa e as biotecnologias agressivas, permitindo atualizar e contextualizar o sentido do cuidado de enfermagem.

 

Conclusão

O pressuposto desta reflexão teórica é a ideia de que os sistemas de saúde à escala global e os cuidados de enfermagem estão já a enfrentar uma realidade pós-humana e de radical intensidade biotecnológica, em que a digitalização ocupa um lugar central na prestação de cuidados. O conceito de saúde e bem-estar estão já imbrincados em processos de melhoramento ou de aumento de capacidades do corpo humano e do ser humano, através dos contributos das novas tecnologias e da possibilidade, agora bem real, de melhorar, alterar e redesenhar o humano.

As biotecnologias da saúde associadas às tecnologias de informação e comunicação tiveram, nas últimas décadas, uma disseminação exponencial na tessitura social, alterando profundamente a forma como os cuidados de saúde são compreendidos e implementados. As tecnologias de saúde de alta intensidade tornaram-se mais fluidas, de fácil utilização e acessíveis, saíram dos espaços hospitalares e integraram a vida quotidiana de milhões de doentes, no seu domicílio e espaços comunitários. Ao mesmo tempo, a evolução tecnológica foi tão intensa dentro dos espaços especializados (ambiente hospitalar) que o limiar da possibilidade de intervir em situações críticas, ou seja nas fronteiras entre vida e da morte, se expandiu radicalmente, colocando dilemas éticos na aplicabilidade prática de possibilidades tecnológicas inovadoras.

Os debates atuais da interface entre tecnologia e enfermagem baseiam-se numa nova compreensão dos dogmas centrais da tecnologia enquanto fenómeno e numa abordagem reflexiva do conceito de cuidar, tendo como centralidade os desafios que surgem da tensão permanente entre os resultados desejados e imprevisíveis da aplicação da tecnologia em saúde (Barnard, 2015). Paradoxalmente, a abordagem tecnicista reduz a eficácia e os outcomes dos cuidados prestados, mesmo os estritamente relacionados com a manipulação tecnológica. Por outro lado, a predominância da estrita racionalidade técnica exclui a componente estética e performativa, intrínseca à prática de cuidados de enfermagem, não podendo captar a singularidade, instabilidade, ambiguidade e conflito de valores que caracterizam a prática de cuidados (Moya, 2013).

Esta disjunção deixa de fora alguns pressupostos (por carecerem de sentido, segundo o quadro conceptual da racionalidade técnica), como as questões referentes às dimensões éticas e ideológicas que necessariamente estão implicadas em qualquer ato de cuidar. Ou seja, a atuação segundo a estrita lógica instrumental da racionalidade técnica, mesmo em ambientes de hipertecnologia, não corresponde ao exercício competente dos cuidados de enfermagem, pois este radica na reflexão em ação, mediante o qual se gera o conhecimento profissional (prático) que habilita para o exercício competente do cuidar (Taylor, 2010).

Entre as clássicas narrativas de enfermagem sobre o cuidado centrado na pessoa e o devir da globalização tecnológica, a investigação filosófica pode contribuir para o desenvolvimento da enfermagem em contextos de hipercomplexidade, permitindo uma superação definitiva da dicotomia entre técnica e humano, entre corpos e máquinas, entre teoria e práxis.

Os enfermeiros do futuro terão de ter uma forte componente técnica de manejo preciso das tecnologias biomédicas, ter conhecimentos de engenharia biomédica, informática e capacidade adaptativa à rápida evolução tecnológica. Porém, a ausência da possibilidade autorreflexiva, a urgência de formação tecnológica de alta intensidade para um mercado global, a necessidade de uma performance de indicadores de produtividade economicista (onde o próprio conhecimento e investigação em enfermagem aparecem associados a indicadores utilitaristas de rentabilidade tecnológica), podem conduzir à desertificação da conceção do cuidado de enfermagem. A investigação avançada e a formação académica em enfermagem devem contribuir para o exercício da autonomia e para o cuidado profissional reflexivo e eticamente responsável, em vez de se centrar nas vertentes essencialmente tecnopráticas e num conhecimento pragmático e utilitarista.

 

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Recebido para publicação em: 26.10.15

Aceite para publicação em: 04.02.16

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