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Revista de Enfermagem Referência

versão impressa ISSN 0874-0283

Rev. Enf. Ref. vol.serIV no.3 Coimbra dez. 2014

https://doi.org/10.12707/RIII13178 

ARTIGO DE INVESTIGAÇÃO

 

Burnout em médicos e enfermeiros: estudo quantitativo e multicêntrico em unidades de cuidados paliativos em Portugal

Burnout in physicians and nurses: a multicentre quantitative study in palliative care units in Portugal

Desgaste profesional en médicos y enfermeros: un estudio cuantitativo y multicéntrico en unidades de cuidados paliativos en Portugal

 

Sandra Martins Pereira*; Carla Margarida Teixeira**; Orquídea Ribeiro***; Pablo Hernández-Marrero****; António M. Fonseca*****; Ana Sofia Carvalho******

* Enfermeira, Licenciada em Ciências de Educação, Mestre e Doutora em Bioética,

FP7 EURO IMPACT Project – Marie Curie Experienced Researcher. Investigadora Integrada do Gabinete de Investigação em Bioética, Instituto de Bioética, Universidade Católica Portuguesa, 4169-005, Porto, Portugal [martinspereira.sandra@gmail.com]. Morada para correspondência: Rua da Vinha, 39, 4795-124, Vila das Aves, Portugal.

** Médica, Especialista em Anestesia e Medicina Intensiva, Doutora em Bioética, Centro Hospitalar do Porto, Hospital de Santo António, Departamento de Anestesia, Cuidados Intensivos e Emergência. Professora Auxiliar Convidada, Instituto de Ciências Biomédicas Dr. Abel Salazar, Universidade do Porto e Investigadora do Gabinete de Investigação em Bioética, Instituto de Bioética, Universidade Católica Portuguesa, 4169-005, Porto, Portugal [carlatx@gmail.com].

*** Licenciada em Matemática aplicada. Assistente de Investigação, Universidade do Porto, Faculdade de Medicina, Departamento de Bioestatística e Informática Médica, 4200-450, Porto, Portugal [orib@med.up.pt].

**** Enfermeiro, Doutor em Organization and Health Services Management. Profesor Ayudante Doctor, Departamento de Enfermería, Facultad de Ciencias de la Salud, Universidad de Las Palmas de Gran Canaria, Las Palmas de Gran Canaria, 35016, España [phermarr@gmail.com].

***** Psicólogo, Doutor em Ciências Biomédicas. Professor Associado, Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Educação e Psicologia, 4169-005, Porto, Portugal [afonseca@porto.ucp.pt].

****** icenciada e Doutora em Biotecnologia. Professora Associada, Universidade Católica Portuguesa, Instituto de Bioética, 4169-005, Porto, Portugal [acarvalho@porto.ucp.pt].

 

RESUMO

Enquadramento: O contacto sistemático com a morte é considerado fator de risco de burnout na saúde, particularmente para os médicos e enfermeiros que desenvolvem a sua atividade profissional em cuidados paliativos.

Objetivos: Estudar a síndrome de burnout nestes profissionais, em Portugal.

Metodologia: Estudo multicêntrico, de cariz quantitativo com aplicação de um questionário.

Resultados: De um total de 142 profissionais, 88 devolveram o questionário devidamente preenchido; destes, somente 3% se encontravam em burnout e 13% em alto risco de desenvolver esta síndrome. Professar alguma religião (p=0,005) e possuir formação pós-graduada em cuidados paliativos (p=0,011) estavam significativa e inversamente associados ao burnout. A existência de conflitos com outros profissionais (p=0,012) estava significativamente associada com o desenvolvimento desta síndrome.

Conclusão: Embora a percentagem de profissionais com altos níveis de burnout em cuidados paliativos seja baixa, há fatores de risco que podem ser otimizados de modo a promover um maior bem-estar dos próprios profissionais.

Palavras-chave: burnout; cuidados paliativos; médicos; enfermeiros; estudo multicêntrico.

 

ABSTRACT

Theoretical Framework: Systematic contact with death is considered a risk factor for burnout in health, particularly for doctors and nurses who develop their professional activity in palliative care.

Objectives: To study the syndrome of burnout in these professionals in Portugal.

Methodology: A multicenter quantitative survey study.

Results: Out of 142 professionals, 88 returned the completed questionnaire; of these, only 3% were in burnout and 13% at high risk of developing this syndrome. Professing a religion (p=.005) and having post-graduate education/training in palliative care (p=.011) were significantly and inversely associated with burnout. Conflicts with other professionals (p=.012) were significantly associated with developing this syndrome.

Conclusion: Although the percentage of professionals with high levels of burnout in palliative care is low, there are risk factors that can be optimized to promote a higher well-being state among professionals.

Keywords: burnout; palliative care; physicians; nurses; multicenter study.

 

RESUMEN

Marco Contextual: El contacto sistemático con la muerte se considera un factor de riesgo de desgaste profesional (burnout) en la salud, especialmente, para los médicos y enfermeros que desarrollan su actividad profesional en los cuidados paliativos.

Objetivos: Estudiar el síndrome de desgaste profesional en estos profesionales en Portugal.

Metodología: Estudio multicéntrico, de naturaleza cuantitativa mediante un cuestionario.

Resultados: De un total de 142 profesionales, 88 devolvieron el cuestionario debidamente cumplimentado; de estos, solo el 3 % presentaba desgaste profesional y el 13 % tenía un riesgo elevado de desarrollar este síndrome. Como factores personales asociados positivamente con el desgaste profesional, se identificaron el hecho de que los profesionales no profesan ninguna religión (p = 0,005), así como el hecho de que no tienen formación de posgrado en cuidados paliativos (p = 0,011). Las experiencias en el lugar de trabajo con una correlación positiva con el desgaste profesional fueron algunos conflictos con otros profesionales (p = 0,012).

Conclusión: A pesar de que el porcentaje de profesionales con niveles elevados de desgaste profesional en los cuidados paliativos es bajo, existen factores de riesgo que pueden ser optimizados con el fin de promover que los profesionales tengan mejor bienestar.

Palabras clave: burnout; cuidados paliativos; médicos; enfermeros; estudio multicéntrico.

 

Introdução

Os cuidados paliativos consistem em cuidados ativos e globais, prestados a pessoas em intenso sofrimento decorrente de doença grave, incurável, progressiva, sobretudo em fases mais avançadas, designadamente, na fase terminal da vida. Embora suscetíveis de serem instituídos em fases mais precoces de evolução da doença, é inquestionável que os cuidados paliativos dedicam um enfoque especial ao fim da vida. O intuito é o de ajudar a pessoa a viver com a melhor qualidade de vida possível, com o mínimo sofrimento e de modo intenso e pleno, a vida que lhe resta viver. Um dos objetivos destes cuidados é, pois, que a pessoa possa morrer com dignidade e que as pessoas que lhe sejam próximas sejam, também elas, apoiadas durante todo o processo de doença e, após a morte, no luto.

Este tipo de cuidados exige a concretização de um trabalho de cariz interdisciplinar, já que é vasto o leque de intervenções; saberes; conhecimentos técnico-científicos; e competências relacionais, humanas e éticas requerido. Os desafios colocados aos profissionais são múltiplos e exigentes, sendo necessário promover a interação, partilha de informação e saberes, clareza de papéis e liderança efetiva.

A confrontação sistemática com o sofrimento, a vulnerabilidade e a finitude da vida humana, a par das decisões éticas, tornam os contextos de trabalho na área da saúde particularmente exigentes e desgastantes. Considerando que os profissionais que trabalham em equipas de cuidados paliativos são confrontados, constantemente, com estes aspetos, emergem, pois, as seguintes questões: Estarão os médicos e enfermeiros das equipas portuguesas de cuidados paliativos em (risco) de burnout? E quais os fatores associados a esta síndrome? É com base nestes pressupostos e questões que pensamos ser oportuno estudar a problemática do burnout em médicos e enfermeiros de cuidados paliativos em Portugal, sobretudo considerando os desafios crescentes que se colocam ao desenvolvimento deste tipo de equipas e ao trabalho por elas concretizado. O objetivo deste estudo é identificar os níveis de burnout destes profissionais, e caracterizar os fatores associados a esta síndrome.

 

Enquadramento

O burnout foi descrito pela primeira vez por Freudenberger, em 1974, como um fenómeno caracterizado por um “(…) estado de fadiga ou de frustração motivado pela consagração a uma causa, a um modo de vida ou a uma relação que não correspondeu às expectativas” (Delbrouck, 2006, p. 15). Esta situação acarreta um forte sentimento de perda de identidade, em que a pessoa se põe em questão, sentindo-se vazia. O termo burnout deriva da combinação de dois vocábulos ingleses – burn e out –, o que remete para um estado em que a pessoa está queimada até à exaustão, indicando o colapso que sobrevém após a utilização ou queima de toda a energia disponível. Em termos metafóricos, pode ser ilustrado como um fósforo que ardeu até se extinguir ou como uma bateria que se gastou até não possuir mais energia.

O burnout é ainda definido na sua multidimensionalidade: (i) Exaustão Emocional (EE) – sentimento de esgotamento físico e psicológico, incapacidade de a pessoa dar mais de si, falta de energia, fadiga; (ii) Despersonalização (DP) – estabelecimento de uma relação fria, distante, pautada por cinismo com clientes e colegas, atitudes negativas e inapropriadas, perda de idealismo e irritabilidade; (iii) (diminuição da) Realização Pessoal e Profissional (RPP) – manifestada pelo sentimento de incompetência, falta de confiança e produtividade, inabilidade para dar resposta às solicitações e para gerir situações relacionadas com o trabalho e/ou vida pessoal, ou, por outro lado, pelo sentimento de omnipotência, que pode ser acompanhado por uma progressiva perda da confiança por parte dos colegas de trabalho e superiores (Maslach & Leiter, 1997).

Os fatores de risco de burnout em cuidados paliativos, mais concretamente para os enfermeiros que exercem funções nesta área, podem organizar-se em três níveis: intrapessoal, profissional/organizacional e social (Claix-Simons, 2006). A nível intrapessoal, encontram-se sobretudo os ideais e exigências face ao ego elevadas, que fazem com que o profissional tenha ideias, de si e do trabalho, desfasadas da realidade. A nível profissional/organizacional, incluem-se a sobrecarga de trabalho, as dificuldades de comunicação, o ritmo de trabalho, a complexidade organizacional, o isolamento, a desvalorização dos profissionais, os conflitos de papéis, e a sobrecarga psíquica e afetiva associada à prestação de cuidados, sobretudo nas situações extremas como o confronto com a morte. Por último, a nível social, há que considerar fatores como os ideais de excelência e uma conjuntura socioeconómica frágil.

O exercício profissional em cuidados paliativos pode suscitar sentimentos e emoções diversas, potencialmente desgastantes, na medida em que os profissionais de saúde são inevitavelmente afetados pelo sofrimento das pessoas a quem prestam cuidados. O contacto repetido com a morte é, segundo diversos autores (Barbosa, 2010; Claix-Simons, 2006; Delbrouck, 2006; Osswald, 2008; Teixeira, Silva, & Medeiros, 2010; Teixeira, Fonseca, Carvalho, & Martins, 2010; Müller, Pfister, Markett, & Jaspers, 2010), um dos fatores de risco para o desenvolvimento de burnout, sobretudo quando os mecanismos de coping adotados são ineficazes.

Embora a referência a esta problemática esteja presente, de modo transversal, nos artigos científicos, manuais e obras, enfatizando a relevância da sua prevenção, os estudos específicos sobre o tema escasseiam, sobretudo em Portugal e no contexto específico dos cuidados paliativos. Quando existentes, tratam-se sobretudo de estudos comparativos que indicam que os níveis de burnout dos profissionais da área dos cuidados paliativos são idênticos (García, Centeno, Sanz-Rubiales, & Del Valle, 2009), ou mesmo menores do que noutras áreas de cuidados (Asai et al., 2007). Estes resultados são consistentes com os que foram por nós encontrados numa revisão sistemática de literatura acerca deste tema (Pereira, Fonseca, & Carvalho, 2011).

 

Questões de investigação

Este estudo tem como objetivos: (i) caracterizar a síndrome de burnout em médicos e enfermeiros de cuidados paliativos, em Portugal; (ii) saber quais os fatores associados com esta síndrome nestes profissionais. Face ao exposto, as questões de investigação enunciadas foram as seguintes: Estarão os médicos e enfermeiros das equipas de cuidados paliativos portuguesas em (risco) de burnout? Quais os fatores associados a esta síndrome?

 

Metodologia

No sentido de responder às questões de investigação enunciadas e alcançar os objetivos propostos, realizámos um estudo de cariz quantitativo, descritivo e correlacional. Com efeito, não só pretendemos caracterizar e descrever os níveis de burnout como também temos como intuito correlacionar estes níveis com os fatores que lhes estão associados.

Todas as equipas de cuidados paliativos referenciadas na página web da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos, em outubro de 2008, foram convidados a participar no estudo. Esta seleção de equipas foi feita considerando a menção explícita de que as mesmas reuniam os critérios para organização de equipas de cuidados paliativos e cumpriam os critérios de qualidade para este tipo de equipas, conforme definidos pela referida associação baseada em diretrizes internacionais. Assim, de um total de 15 equipas, foi obtida resposta favorável à realização do estudo por parte de nove.

Procedemos à aplicação dos seguintes instrumentos de recolha de dados junto de todos os médicos e enfermeiros destas nove equipas de cuidados paliativos:

- Questionário de caracterização sociodemográfica, com variáveis como género, idade, estado civil, existência de filhos menores e número, religião, profissão, categoria profissional, habilitações académicas, formação pós-graduada em cuidados paliativos, trabalho por turnos, número de horas de trabalho por semana, anos de exercício profissional e anos de exercício profissional naquele serviço;

- Questionário de caracterização de experiências vivenciadas em contexto de trabalho – baseado em Embriaco et al. (2007), este questionário incluía como variáveis o número de turnos noturnos realizado na semana anterior ao preenchimento do questionário, número de turnos extraordinários, número de folgas, número de doentes que faleceram, existência de conflitos com os diversos intervenientes no processo de cuidados, e necessidade de tomar decisões éticas como abstenção e suspensão de tratamentos e comunicação do diagnóstico e prognóstico ao doente e/ou família;

- Maslach Burnout Inventory (MBI) – questionário de autopreenchimento composto por um conjunto de itens que permitem determinar os níveis de exaustão emocional, despersonalização e exaustão emocional, através de uma escala de Likert.

Os questionários de caracterização sociodemográfica e de experiências vivenciadas em contexto de trabalho, conjuntamente com o MBI, foram distribuídos a um total de 142 profissionais, dos quais recebemos 88 devidamente preenchidos (taxa de adesão dos respondentes de 62%). Em termos de identificação dos níveis de burnout foram utilizados os valores de corte de Benevides-Pereira (2008) (Tabela 1):

Considera-se em burnout a pessoa que apresente simultaneamente um nível alto para a dimensão de Exaustão Emocional (EE), alto para a Despersonalização (DP) e baixo para a dimensão de Realização Pessoal e Profissional (RPP). Em termos intermédios, reportar-nos-emos aos critérios de classificação do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Estresse e Burnout (GEPEB citado por Ebisui, 2008): a pessoa que apresente um nível alto numa das dimensões – exaustão emocional ou despersonalização – ou baixo na dimensão de realização pessoal e profissional encontra-se em risco de burnout; a pessoa que apresente duas das três dimensões fora do ponto de corte está em alto risco de burnout; a pessoa com uma das três dimensões fora do ponto de corte encontra-se em risco médio de burnout; a pessoa que apresente níveis médio ou baixo nas dimensões de exaustão emocional e despersonalização e níveis médio ou alto na dimensão de realização pessoal e profissional tem um nível baixo de risco para burnout.

No sentido de concretizar o estudo, foi solicitada e obtida a devida autorização institucional (via Conselhos de Administração e/ou Comissões de Ética das instituições e Diretores de Serviços). Além disso, junto com os questionários foi colocada uma apresentação do estudo, os seus objetivos, acompanhada de um termo de consentimento livre e informado.

Os questionários foram analisados com recurso ao programa Statistical Package for Social Sciences – SPSS® versão 17.0. Na análise descritiva da amostra analisada foram aplicadas estatísticas de sumário apropriadas. As varáveis categóricas foram descritas através de frequências absolutas (n) e relativas (%). As variáveis contínuas foram descritas utilizando a mediana, percentil 25 e percentil 75, uma vez que a distribuição destas é assimétrica. Foi usado o teste de independência do Qui-Quadrado para analisar a associação entre variáveis categóricas. Quando a frequência esperada de alguma célula da tabela de contingência relativa à análise de associação de duas categóricas foi inferior a 5, utilizou-se o teste exato de Fisher. Foi usado o teste de Kruskal-Wallis para testar hipóteses relativas a variáveis contínuas, uma vez que a distribuição destas é assimétrica. Em todos os testes de hipótese foi utilizado um nível de significância de 0,05. As percentagens foram arredondadas à unidade. Na determinação dos fatores de risco associados com a existência de burnout, foram calculados os Odds Ratios (OR) com Intervalos de Confiança (IC) de 95% por regressão logística univariada. Dado o presente estudo estar integrado no âmbito de um projeto mais vasto – Projeto Quem cuida de quem cuida do Gabinete de Investigação em Bioética da Universidade Católica Portuguesa, financiado pela Fundação Grünenthal® e pela Fundação Merck, Sharpe and Dohme® –, foram incluídas, na análise, as variáveis consideradas preditivas de burnout no estudo de Teixeira (2013), nomeadamente: variáveis sociodemográficas, como o género e idade, existência de filhos menores, grupo profissional, formação pós-graduada na área; e variáveis relacionadas com as experiências em contexto de trabalho, como o número de óbitos, conflitos, necessidade de tomar decisões éticas.

 

Resultados

De entre os 88 profissionais cujos questionários foram incluídos na análise, 88% eram do sexo feminino, com uma mediana de idade de 32 anos, 42% estavam casados, e 80% manifestava professar alguma religião. Em termos de grupo profissional, 80% eram enfermeiros e os demais 20% médicos. Trinta e três por cento dos respondentes tinham formação pós-graduada em cuidados paliativos. Quanto à experiência profissional, a mediana de anos era de 10. A mediana de anos de exercício profissional naquele serviço (de cuidados paliativos) era de 3.

Caracterização da síndrome de burnout entre os participantes

A maioria (55%) dos participantes neste estudo apresentava um risco reduzido de burnout, 30% um risco moderado, 13% um risco elevado e, finalmente, somente 3% encontravam-se em burnout. No que se refere à dimensão de exaustão emocional, a mediana era de 18 (11-25) (nível médio), a despersonalização apresentava uma mediana de 3 (1-7) (nível baixo), e a realização pessoal e profissional era de 38 (32-43) (nível médio). Constatou-se ainda que enquanto os profissionais que se encontravam em burnout (incluindo os que estavam em alto risco de desenvolver esta síndrome) apresentavam altos níveis de exaustão emocional – 28 (26-32), os profissionais que não se encontravam em burnout exibiam somente níveis médios – 16 (10-21) – para esta dimensão da síndrome. Já no que se refere à dimensão da despersonalização, os profissionais que estavam em burnout manifestavam níveis altos nesta dimensão quando comparados com os profissionais que não se encontravam em burnout cujos níveis de despersonalização eram baixos – 2 (1-5). Por último, constatou-se que os profissionais que estavam em burnout tinham baixos níveis de realização pessoal e profissional – 30 (28-31) enquanto os profissionais que não apresentavam burnout exibiam altos níveis nesta dimensão – 40 (35-43). Do ponto de vista estatístico estas diferenças foram significativas (p<0,001) (Tabela 2).

No que se refere aos fatores de risco de cariz sociodemográfico, e considerando a análise de regressão logística realizada, constatou-se que os profissionais que referiram professar alguma religião estavam menos suscetíveis ao burnout quando comparados com os que referiram não professar qualquer religião (p=0,005; OR=0,155, 0,044-0,548 IC 95%). Por sua vez, os profissionais que possuíam formação pós-graduada em cuidados paliativos estavam igualmente menos propensos a desenvolver esta síndrome (p=0,011; OR=0,101, 0,013-0,812 IC 95%). Um outro resultado que importa mencionar é que embora a síndrome de burnout tenha sido identificada somente em enfermeiros, tal não se traduziu em significância do ponto de vista estatístico (p=0,064). O trabalho por turnos também não parece estar associado com a síndrome de burnout entre os profissionais estudados. Com efeito, pese embora a proporção de profissionais que trabalham por turnos e que apresentam burnout seja consideravelmente superior (79%), quando comparada com a dos profissionais que trabalham por turnos e não apresentam esta síndrome (62%), do ponto de vista estatístico não foi encontrada significância (p=0,362). Estes e outros resultados relativos às associações entre a síndrome de burnout e variáveis sociodemográficas são apresentados na Tabela 3.

Já no que se refere às experiências vivenciadas em contexto de trabalho na semana anterior ao preenchimento do questionário, somente a existência de conflitos com outros profissionais parece aumentar o risco de desenvolvimento de burnout (p=0,012; OR=19,909, 18,98-20,882 IC 95%). As demais experiências estudadas, nomeadamente a necessidade de tomar decisões éticas, não exibiram aumentaram a probabilidade (odds) de desenvolvimento desta síndrome (Tabela 4).

 

Discussão

Face aos resultados obtidos é possível afirmar que os médicos e enfermeiros que exerciam funções nas unidades de cuidados paliativos que participaram neste estudo, à data da realização do mesmo, apresentavam maioritariamente um baixo risco de burnout (55%). Estes resultados convergem com os que foram encontrados na literatura, sobretudo em estudos onde os níveis de burnout em cuidados paliativos foram comparados com os níveis encontrados em profissionais que exerciam funções em outros serviços (Asai et al., 2007; García et al., 2009; Pereira et al., 2011). A este propósito emerge pois uma nova questão que se prende com os fatores protetores que poderão existir nas unidades de cuidados paliativos e que, eventualmente, contrabalançam os fatores de risco existentes, evitando que esta síndrome se desenvolva. Na realidade, parece haver um paradoxo relativamente ao exercício profissional em cuidados paliativos, em que os profissionais podem oscilar entre sentimentos de tristeza, angústia, sofrimento pela morte dos doentes e sentimentos de gratificação e enriquecimento pelo trabalho realizado, o que ajuda a evitar o desgaste físico e emocional. Segundo Pereira (2011), os sentimentos mais associados ao exercício profissional em cuidados paliativos são precisamente os de felicidade e bem-estar, gratificação, reconforto, utilidade, satisfação e realização pessoal e profissional.

Ainda no que se refere à caracterização da síndrome de burnout nos médicos e enfermeiros que participaram no estudo, é de evidenciar a diferença significativa encontrada quanto à dimensão da despersonalização. Com efeito, os profissionais que não apresentavam burnout exibiam níveis baixos de despersonalização quando comparados com os profissionais que estavam em burnout, cujos níveis de despersonalização eram elevados. Estes resultados são particularmente preocupantes, sobretudo porque, ainda que a percentagem de profissionais em burnout seja baixa, níveis de despersonalização elevados podem comprometer a qualidade dos cuidados. Atitudes despersonalizadas correspondem a comportamentos de evitamento, cinismo e frieza (Maslach & Leiter, 1997), quer na relação estabelecida com doentes e famílias, quer com outros profissionais. Como refere Teixeira (2013), a despersonalização pode ser apon­­tada como potenciadora de atitudes e comportamentos não éticos por parte dos profissionais. Considerando que os cuidados paliativos têm como objetivo último aliviar o sofrimento, promover a qualidade de vida e, em última instância, ajudar a morrer com dignidade, é evidente que elevados níveis de despersonalização podem comprometer este aspeto, interferindo negativamente com o processo de cuidados.

No que concerne aos fatores de risco de cariz sociodemográfico, somente o facto de os profissionais professaram algum tipo de religião e possuírem formação pós-graduada em cuidados paliativos é que evidenciaram resultado estatisticamente significativo. A exposição a estes fatores surgiu associada a menores odds de resultado (burnout). Em nosso entender, ambas as variáveis merecem uma reflexão cuidada. Por um lado, a dimensão religiosa, que considerando os resultados encontrados parece funcionar como um fator protetor de burnout. Tal pode resultar pela atribuição de sentido face ao trabalho que pode ajudar a construir a vários níveis: vivência da profissão como uma vocação; convicção de que o trabalho realizado cumpre um propósito maior; crença na existência de uma vida para além da morte. Assim, consideramos que a dimensão religiosa e espiritual dos profissionais em cuidados paliativos deverá ser objeto de reflexões e estudos futuros, quer articulados com a problemática de burnout, quer enquanto fenómeno de estudo no âmbito dos cuidados paliativos por si só (Pereira, 2011). Por sua vez, relativamente à formação pós-graduada em cuidados paliativos o resultado não é, para nós, surpreendente, sendo indicado na literatura acerca do tema (Pereira et al., 2011). Pelo contrário, é expectável que os profissionais com maior formação em cuidados paliativos estejam mais conscientes dos objetivos e finalidade do trabalho que realizam, pelo que a morte não será vista como uma derrota, mas sim parte integrante do trabalho realizado. A inclusão de conteúdos específicos na área dos cuidados paliativos na formação pré-graduada de profissionais de saúde, nomeadamente médicos, parece, com efeito, estar associada a níveis mais baixos de burnout, nomeadamente em termos de exaustão emocional (Mougalian et al., 2013). A propósito da formação, importa ainda referir que os planos de estudo e conteúdos programáticos dos cursos de pós-graduação em cuidados paliativos costumam contemplar a temática do burnout e/ou gestão emocional dos profissionais, conforme recomendações nacionais e internacionais neste domínio.

Finalmente, relativamente às experiências vivenciadas em contexto de trabalho, denota-se que o único fator de risco de burnout identificado foi a existência de conflitos com outros profissionais. Este aspeto pode ter a ver com objetivos de cuidados diferentes, os quais podem ser geradores de tensão entre os profissionais das equipas de cuidados paliativos e os profissionais de outras equipas. Também na literatura sobre o tema, a existência de conflitos é considerada como fator de risco para o desenvolvimento desta síndrome, nomeadamente em cuidados paliativos. O mesmo acontece noutros contextos de cuidados, como o caso das unidades de cuidados intensivos (Teixeira, Ribeiro, Fonseca, & Carvalho 2013). Esta convergência de resultados no que concerne à existência de conflitos como fator de risco de burnout é particularmente relevante na medida em que pode ser colmatada mediante o estabelecimento de redes de comunicação e articulação eficazes, quer no seio das equipas, quer com outras equipas. Segundo Bernardo, Rosado, e Salazar (2010, p. 777), é comum as equipas de cuidados paliativos serem confrontadas com problemas diversos, nomeadamente: “(…) problemas de comunicação dentro da equipa; (…) falta de confiança nos outros elementos; objectivos não comuns; indefinição de funções (…)”, os quais podem ter um efeito cumulativo e desgastante, ao longo do tempo, podendo contribuir para o desenvolvimento de burnout. Na ótica de Van Schijndel e Burchardi (2007), a ocorrência de conflitos nos contextos profissionais na área da saúde é um fenómeno praticamente inevitável. A gestão de conflitos pode, pois, assumir um importante papel na prevenção do burnout associado a este tipo de experiência (Pereira, 2011).

Limitações

Apesar dos resultados aqui apresentados e da interpretação e discussão que suscitaram, há que referir que este estudo não é isento de limitações. Em primeiro lugar, o reduzido tamanho da amostra, o que dificultou a análise multivariada. Além disso, importa referir que este reduzido tamanho da amostra estava associado a uma grande heterogeneidade nas suas características. Em segundo lugar, o facto de só termos aplicado o MBI uma única vez poderá ter dificultado o estabelecimento de associações com variáveis como o número de doentes que faleceram ao cuidados dos participantes na semana anterior ao seu preenchimento. Em nosso entender, é oportuno estudar este aspeto em trabalhos futuros acerca do tema.

 

Conclusão

As principais conclusões deste estudo evidenciam que, embora os médicos e enfermeiros que trabalham em cuidados paliativos estejam expostos a fatores de risco, tal não parece repercutir-se em elevados níveis de burnout. Na realidade, verificámos que a maioria dos participantes evidenciava baixo risco de burnout, sendo que somente 3% exibia efetivamente esta síndrome. Todavia, a percentagem de profissionais em alto e médio risco de burnout constitui-se como preocupante, já que, se não forem implementadas medidas preventivas, estes profissionais poderão vir a desenvolver esta síndrome.

Este estudo permitiu ainda identificar que a existência de conflitos com outros profissionais constitui-se como um fator de risco preocupante. Neste sentido, uma das sugestões que deriva deste estudo é o de estimular a comunicação e articulação entre os profissionais das equipas de cuidados paliativos e os que exercem funções noutros serviços. Numa época em que, cada vez mais, o desenvolvimento dos cuidados paliativos se torna premente, há que desenvolver estratégias que possibilitem a sua integração efetiva nos sistemas e serviços de saúde, algo só possível mediante o estabelecimento duma articulação e comunicação eficazes.

Embora as implicações deste estudo e sugestões já aqui explicitadas, este deixa em aberto algumas questões que se assumem como pistas para investigações futuras: Haverá diferenças quanto aos níveis de burnout dos médicos e enfermeiros em função da tipologia de equipa – assistência domiciliária, suporte intra-hospitalar e internamento – onde desenvolvem a sua atividade profissional? Haverá fatores protetores de cariz organizacional e utilizarão as equipas de cuidados paliativos estratégias ativas para prevenção do burnout? E, se sim, que estratégias serão estas? Será que o número de falecimentos afeta o equilíbrio emocional dos profissionais das equipas de cuidados paliativos e, se sim, qual o número de falecimentos e características associadas? Por último, e considerando o enquadramento legal dos cuidados paliativos em Portugal e a implementação duma Rede Nacional de Cuidados Paliativos, como fomentar uma articulação efetiva entre os profissionais deste tipo de equipas e os profissionais dos serviços atualmente existentes?

 

Referências bibliográficas

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Estudo integrado no âmbito do Projeto Quem cuida de quem cuida do Gabinete de Investigação em Bioética da Universidade Católica Portuguesa, financiado pela Fundação Grünenthal® e pela Fundação Merck, Sharpe and Dohme® (2007/2011).

 

Recebido para publicação em: 15.10.13

Aceite para publicação em: 30.07.14

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