SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.serIV número1Classificação de risco: retrato de população atendida num serviço de urgência brasileiroCuidados de enfermagem ao utente sob ventilação mecânica internado em unidade de terapia intensiva índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista de Enfermagem Referência

versão impressa ISSN 0874-0283

Rev. Enf. Ref. vol.serIV no.1 Coimbra mar. 2014

https://doi.org/10.12707/RIII11299 

ARTIGO DE INVESTIGAÇÃO

 

Criança em ambiente doméstico/ familiar: consenso quanto aos fatores de risco de lesão não intencional

The child in a domestic/family environment: consensus on risk factors for unintentional injuries

Niño en el hogar/la familia: consenso en torno a los factores de riesgo de lesión no intencional.

 

Ana Lúcia Caeiro Ramos*; Lucília Rosa Mateus Nunes**

* Doutorada em Enfermagem; Especialista em Saúde Infantil e Pediátrica; Mestre em Saúde Pública. Professora-Adjunta Equiparada na Escola Superior de Saúde do Instituto Politécnico de Setúbal, Portugal. Morada: Campus do IPS, Estefanilha, 2914-503, Setúbal, Portugal [ana.ramos@ess.ips.pt]; [anaramosalcr@gmail.com].

** Doutorada em Filosofia. Mestre em Ciências de Enfermagem e em História Cultural e Política. Enfermeira Especialista em Saúde Mental e Psiquiátrica. Professora Coordenadora da Escola Superior de Saúde do Instituto Politécnico de Setúbal, 2914 - 503 Setúbal, Portugal. Orientadora da tese de Doutoramento de Ana Lúcia Caeiro Ramos [lucilia.nunes@ess.ips.pt].

 

Resumo

As lesões não intencionais na infância têm sido consideradas como uma área de estudo a desenvolver, por constituírem uma das principais causas de morte em todo o Mundo, para além de todas as outras consequências que influenciam a pessoa, família e comunidade da criança afetada. O presente artigo tem como objetivo identificar os fatores considerados relevantes na influência do risco de lesão não intencional em ambiente doméstico/ familiar em crianças até aos 4 anos. Para o efeito, realizou-se um painel de peritos, com recurso à técnica Delphi, no qual participaram 15 a 23 peritos multidisciplinares, tendo sido conseguida a obtenção de consenso em três rondas. Decorrente da revisão da literatura e da utilização da metodologia referida, conclui-se acerca da problemática das lesões ser multifatorial, cujos fatores interagem entre si, organizados em quatro dimensões: criança, cuidador principal/ família, comportamentos de risco e ambiente.

Palavras-chave: prevenção de acidentes; acidentes domésticos; criança; lesão não intencional.

 

Abstract

Childhood unintentional injuries have been considered as a study area which needs to be further developed, as it is one of the leading causes of death worldwide and, even when nonfatal, may have countless consequences for the children, their families and the community. This paper aims to identify the factors which influence the risk of unintentional injury in children up to four years living in a domestic/family environment. To this end, the Delphi technique was used to gather a panel of 15 to 23 multidisciplinary experts, and consensus was achieved after three rounds. Based on literature review and on the use of the abovementioned methodology, we concluded that injuries are multifactorial and that these factors are interactive and can be organized in four dimensions: child, primary caregiver/family, risk behaviours, and environment.

Keywords: accident prevention; home accidents; child; unintentional injury.

 

Resumen

Las lesiones no intencionales en la infancia han sido consideradas como un área de estudio por desarrollar, ya que constituyen una causa importante de muerte en el mundo, además de todas las otras consecuencias que afectan a cada niño, su familia y comunidad. Este artículo pretende identificar los factores considerados importantes en la influencia del riesgo de lesiones no intencionales en el hogar/la familia en los niños de hasta 4 años de edad. Con este fin, se creó un panel en el que participaron de 15 a 23 expertos multidisciplinarios, se recurrió a la técnica Delphi y se logró llegar a un consenso en tres rondas. A partir de la revisión de la literatura y el uso de la metodología anterior, llegamos a la conclusión de que el problema de las lesiones es multifactorial y sus factores interactúan entre sí, organizados en cuatro dimensiones: infantil, cuidador primario / familia, con­ductas de riesgo y ambiente

Palabras clave: prevención de accidentes; accidentes domésticos; niño; lesiones no intencionales.

 

Introdução

No mundo, apesar de todo o avanço das sociedades, as lesões não intencionais surgem nas principais causas de morte, constituindo uma realidade com efeitos preocupantes a diferentes níveis, quer estatisticamente, como também a nível da pessoa afetada, família e comunidade.

As crianças, pela curiosidade e interesse pelo ambiente que as rodeia, características importantes para a aquisição e desenvolvimento de competências promotoras de um crescimento saudável, tornam-se particularmente vulneráveis à ocorrência de lesões (Silva & Santos, 2011).

O termo lesão não intencional, ao contrário do que ocorre com o termo acidente, subentende a valorização das características previsíveis e capazes de serem prevenidas e não acidentais das lesões. Como lesão não intencional entende-se “um incidente imprevisto no qual não houve intenção por uma pessoa de causar lesão, lesão ou morte, mas que resultou em lesão” (CICEL, 2004, p. 249). Integram-se nos mecanismos de lesão não intencional as quedas, os afogamentos, as intoxicações, as queimaduras, a asfixia, os cortes e a eletrocussão.

Habitualmente encontra-se na literatura a designação de acidentes domésticos relativos às lesões que ocorrem em ambiente ou espaço doméstico. Todavia, a prevenção das lesões em ambiente doméstico ultrapassa a aplicação de determinadas intervenções, centra-se na gestão e promoção da segurança, que inclui conhecer e trabalhar com conflitos, comportamentos e crenças, inerentes às interações entre as pessoas num ambiente dinâmico, como a casa (Simpson, McGee, & Fougere, 2010).

A segurança constitui um recurso essencial ao desenvolvimento da pessoa, pois consiste num estado em que os riscos e as condições potenciadores de risco são controlados, tendo como objetivo preservar a saúde e aumentar o bem-estar dos indivíduos e das comunidades (Mohan & Tiwari, 2000).

As lesões não intencionais constituem um fenómeno complexo, multicausal, no qual interage uma multiplicidade de fatores, provenientes de diferentes dimensões, de acordo com o paradigma socio ecológico.

Atendendo ao fenómeno das lesões como multifatorial, exigindo a interligação entre diferentes disciplinas e a combinação de esforços, considerou-se facilitador a organização dos diferentes fatores em quatro dimensões: criança, cuidador principal/ família, comportamentos de risco e ambiente, como mostra a Figura 1.

 

 

 

Os fatores presentes na Figura 1 têm sido, de facto, utilizados na literatura como importantes para a melhor compreensão da problemática das lesões. Ainda assim, fazendo uma pesquisa nas bases de dados integradas na b-on®, EBSCOhost® e PubMed®, bem como nos motores de busca Google® e Google Scholar®, verificou-se que, embora existam estudos que refiram os fatores de risco de lesão não intencional em crianças e refiram exemplos de boas práticas, não foi encontrado nenhum instrumento de medição de risco de lesão não intencional em ambiente doméstico/familiar nas crianças até aos quatro anos.

Parece, deste modo, existir uma lacuna nesta área, originando uma oportunidade de desenvolvimento, capaz de objetivar os fatores de risco a que as crianças estão expostas, que sirva de base ao planeamento de cuidados à criança e família, assim como à criação de outras medidas promotoras da segurança da população.

De facto, conhecer os fatores de risco e analisar a sua influência no contexto das lesões não intencionais parece ser o caminho necessário a percorrer para uma maior limitação do problema e para a criação de estratégias eficazes promotoras da segurança das crianças e suas famílias. Este estudo de investigação tem como finalidade identificar os fatores de risco de lesão não intencional em ambiente doméstico/familiar nas crianças até aos quatro anos, para construir um instrumento que possa medir esse risco.

 

Metodologia

Nas lesões não intencionais, interagem múltiplos fatores, pelo que a sua abordagem deve contemplar esta característica, facto já sobejamente referido.

Visando a construção de um instrumento de medição de risco de lesão não intencional em ambiente doméstico/ familiar em crianças até aos quatro anos e a validação de conteúdo do mesmo, optou-se por recorrer ao painel de Delphi, cujo objetivo é chegar a consenso, através de um processo grupal e interativo, acerca de um assunto complexo (Sousa, Frade, & Mendonça, 2005).

O desenho da metodologia do painel Delphi encontra-se representado na Figura 2.

 

 

 

O painel de Delphi consiste numa técnica qualitativa de investigação com premissas a cumprir ao longo do processo: o anonimato dos respondentes, o feedback, pois os resultados de cada ronda do painel são devolvidos ao grupo, como resposta coletiva, de modo a validarem as respostas e prepararem-se para a ronda seguinte; a representação estatística da distribuição dos resultados dados pelo grupo, uma vez que as respostas são estatisticamente sumarizadas e devolvidas a ele; a interação, já que esta técnica envolve a comunicação entre investigador e grupo de peritos, realizada através das respostas aos questionários enviados; e a especialidade de cada um dos peritos, constituindo a sua seleção um aspeto fundamental para o sucesso desta técnica.

No estudo, incluiu-se no painel de peritos pessoas cujo “saber e educação num dado campo é reconhecida, tanto na perspetiva científica, no sentido mais lato do termo, e convencionalmente adquirida no ensino superior; como na prática, acumulada ao longo da sua experiência profissional” (Nunes, 2010, p. 3). Definiram-se, deste modo, os seguintes critérios de inclusão no grupo de peritos: Profissionais de saúde, nomeadamente enfermeiros e médicos, que desempenham funções no departamento de pediatria dos hospitais ou no contexto dos cuidados de saúde primários, no âmbito do programa da criança e jovem, reconhecidos como especialistas na área pelos pares; Investigadores com trabalhos realizados na área; Profissionais e representantes de organizações que tenham realizado trabalhos relevantes acerca da temática das lesões nas crianças; Pais de crianças até aos 4 anos.

O facto de os peritos serem oriundos de diferentes áreas geográficas do país, conduziu ao desenvolvimento desta técnica recorrendo aos questionários enviados por correio eletrónico que “não exigem limitações geo­gráficas para a seleção dos peritos, permitindo a participação de grupos maiores de pessoas que os grupos focais” (Silva, Rodrigues, Silva & Witt, 2009, p. 349).

Em relação aos peritos a integrar o painel, de acordo com a pesquisa efetuada, constatou-se que não havia uniformidade em relação ao número de peritos. Constituiu-se, assim, uma amostra não probabilística intencional, visando que o grupo ficasse “representado pelo pensamento mais recente na área” (Streiner & Norman, 2008, p. 23). No total, foram enviados convites de colaboração a 34 pessoas, entre profissionais de saúde, professores do ensino superior, investigadores, representantes de organizações de referência no domínio das lesões e pais de crianças até aos 4 anos, tendo sido aceites 24 participações. Foram cumpridos os requisitos éticos relativos ao correto desenvolvimento do método.

 

Resultados

A primeira ronda do painel Delphi inicia-se, habitualmente, por um conjunto de questões de resposta aberta. Contudo, optou-se por apresentar aos peritos os resultados da revisão de literatura previamente realizada, dando sempre oportunidade, obviamente, para serem integrados novos fatores de risco previamente não contemplados. Esta opção encontra-se relacionada com o facto de existirem diversos estudos e documentos publicados acerca da problemática em estudo. Assim, a primeira ronda procurou conhecer o nível de concordância que os peritos atribuíam, relativamente aos diversos fatores de risco de lesão não intencional em ambiente doméstico/ familiar em crianças até aos 4 anos, assim como averiguar a necessidade de ser acrescentado algum outro fator de risco. Na primeira ronda do painel de peritos solicitou-se ao grupo que avaliasse a concordância dos diferentes itens incluídos no questionário, numa escala de Likert de quatro pontos que variava entre o muito em desacordo e o muito em acordo. Os dados resultantes da aplicação da escala foram trabalhados tendo em conta os critérios de concordância previamente definidos (Tabela 1).

Foram, então, aplicados os critérios anteriormente referidos a cada um dos 75 itens que integravam o primeiro questionário do painel Delphi e analisados os resultados de modo a ser possível sintetiza-los, devolvê-los aos peritos e manter a continuidade do processo através de rondas consecutivas até obter-se a concordância relativa a todos os itens.

A primeira ronda do painel de peritos decorreu no mês de junho de 2011 e contou com a participação de 15 peritos, o que corresponde a uma taxa de resposta de 62,5%, relativamente ao total de peritos que aceitaram previamente integrar o grupo de especialistas. Dos 15 peritos respondentes ao primeiro questionário, treze eram profissionais na área de estudo e dois eram cuidadores de crianças até aos quatro anos. Em relação aos 13 peritos da área que participaram na primeira ronda, 12 eram do género feminino (92%). A média das idades foi de 43 anos (mínimo de 27 anos e máximo de 58 anos) e a experiência profissional média foi de 22 anos, dos quais, em média, 14 anos são na área da saúde infantil e pediátrica. Quanto à categoria profissional, um perito era professor catedrático, cinco eram docentes de enfermagem, outros cinco eram enfermeiros e dois eram médicos. Tendo em conta as habilitações académicas e profissionais, o grupo era bastante qualificado, com mais de 92% dos profissionais com habilitações de nível superior ou igual aos estudos pós-graduados, 15% dos quais doutorados. Cerca de 62% dos peritos na área de estudo afirmaram ter trabalhos realizados na área em que se insere o nosso estudo. No que respeita aos cuidadores de crianças, um era do género feminino e o outro de género masculino; ambos eram licenciados e tinham filhos com idades até aos quatro anos de idade.

De acordo com os resultados obtidos, cerca de 65% dos itens obtiveram concordância logo na primeira ronda, a maioria dos quais obteve concordância elevada, ficando 35% dos itens por atingir concordância nas fases subsequentes. Todos os itens que envolveram a relação entre a idade da criança e o risco de lesão não intencional, assim como o tipo de supervisão, a importância da relação entre a criança e o cuidador e grande parte dos comportamentos de risco, obtiveram percentagens de concordância que lhes permitiram a inclusão direta no instrumento de medição de risco. Os itens que não obtiveram concordância na primeira ronda são os descritos na Tabela 2.

A segunda ronda do painel de peritos visou encontrar a concordância dos itens que não o obtiveram na primeira ronda e, simultaneamente, iniciar a organização dos itens consensualizados na ronda anterior. Assim, foram utilizados os critérios de consenso referidos na Tabela 2 e analisados os dados separadamente, distinguindo os itens cuja concordância ainda não tinha sido alcançado e, numa outra parte, os itens que tinham recebido o concordância dos peritos. Para este último grupo, codificou-se a pontuação atribuída pelos peritos e as respostas foram priorizadas, para que a atribuição numérica refletisse a contribuição relativa a cada alternativa de resposta e item para o risco de lesão não intencional em ambiente doméstico/ familiar, em crianças até aos 4 anos.

Nesta ronda, que decorreu na segunda quinzena do mês de julho de 2011, participaram 23 peritos (cerca de 96% de adesão), dos quais 17 eram profissionais peritos na área problemática e os restantes 6 cuidadores de crianças até aos quatro anos.

Em continuidade com o anteriormente referido, optou-se por apresentar os resultados por dimensão, uma vez que mais de 90% dos peritos concordaram com esta forma de organização dos itens. A Tabela 3 integra os itens que obtiveram concordância por parte dos especialistas.

Como já referido, numa fase seguinte foi solicitado aos peritos que posicionassem cada uma das dimensões, relativamente ao nível de prioridade. De acordo com os peritos, a dimensão com menor relevância foi a relativa ao ambiente e a dos comportamentos de risco foi a que obteve maior atenção por parte dos especialistas. As dimensões referentes à criança e aos cuidadores principais/ família obtiveram resultados similares, e discretamente abaixo, em termos de prioridade, à dimensão dos comportamentos de risco.

A terceira ronda do painel Delphi decorreu na segunda quinzena do mês de setembro de 2011 e objetivou a avaliação do nível de concordância dos peritos em relação à compreensão e clareza das questões, bem como ao critério e cotação atribuída a cada um dos itens, tendo em conta as respostas dos peritos nas duas rondas. Nesta ronda a adesão foi de cerca de 80% dos participantes, tendo respondido ao questionário 19 peritos, entre cuidadores de crianças até aos quatro anos e profissionais peritos na área problemática.

No que respeita à dimensão criança, todos os itens obtiveram entre 89 a 100% de concordância relativamente à clareza e compreensão. De facto, a grande maioria dos itens obteve níveis de concordância iguais ou superiores a 95%, indicativos de que cada item estava escrito corretamente, não sendo gerador de dificuldades de compreensão. Relativamente aos critérios e cotações integradas em cada item, os valores de concordância em pleno (score 1 = adequado) variaram entre os 79 e os 100%. O item que obteve o valor mais baixo de concordância (79%) estava relacionado com o risco de lesão não intencional em função da idade da criança, tendo em conta os intervalos etários escolhidos.

Relativamente à dimensão cuidador principal/ família, no que respeita à clareza e compreensão das questões, as respostas variaram entre os 74% e os 100% realçando a clareza dos itens, sendo que o item com cerca de 74% foi o que avaliava o contexto socioeconómico e cultural.

Relativamente à dimensão comportamentos de risco, todos os itens receberam classificações superiores a 95% na cotação, o que descreve os itens como claros e compreensíveis. A exceção a esta classificação foi o item relativo à queda. De acordo com os comentários dos peritos, a dificuldade sentida foi relativa à compreensão da designação sistemas de retenção, o que foi posteriormente tido em consideração.

Por fim, na dimensão ambiente, a clareza e compreensão dos itens foi inequívoca, sempre com classificações superiores a 89%, no score 1, tendo sido apenas sugerido clarificar a designação sistemas de proteção, por ser um conceito muito abrangente.

 

Discussão

A opinião dos especialistas conduziu à consolidação e desenvolvimento da representação inicial do conceito de lesões não intencionais na infância (Figura 1), da multiplicidade de fatores envolvidos e das diferentes dimensões que encontram-se interligadas, como mostra a Figura 3.

Realizando uma análise comparativa entre as figuras que retratam os fatores que influenciam o risco de lesão não intencional na criança encontrados na revisão de literatura (Figura 1) e os fatores resultantes do Painel Delphi (Figura 3), releva-se que mantiveram-se as quatro dimensões seguintes: criança, cuidador principal/ família, comportamentos de risco e ambiente. Desta forma, o Painel Delphi contribuiu para especificar melhor cada um dos itens que integram cada dimensão, bem como para clarificar conceitos complexos.

Ainda que a problemática das lesões deva ser vista, analisada e compreendida como um fenómeno multidimensional, optou-se por analisar e discutir os dados resultantes do painel de peritos por dimensão, de modo a facilitar a compreensão dos mesmos.

Assim, no que diz respeito à dimensão criança, ficou clara a opinião dos especialistas relativamente à influência da idade e desenvolvimento da criança e a ocorrência de lesão. Estas duas variáveis, idade e desenvolvimento, caminham juntas na procura pela explicação da sua influência nas lesões não intencionais. Releve-se que até aos quatro anos são muitas as alterações na criança, a múltiplos níveis, o que as coloca, por vezes, em situação de risco, pois as crianças primariamente aprendem a manusear os objetos ou interagem com o ambiente tendo em conta as respostas que os mesmos lhes vão oferecendo, pelo que se constitui como importante o acompanhamento e supervisão dos cuidadores (Cordovil, 2010; Morrongiello, Schmidt, & Schell, 2010).

Ficou também evidente a importância que os peritos atribuem a condições relativas à própria criança. De acordo com eles, crianças com algum tipo de incapacidade, epilepsia ou transtorno de défice de atenção/ hiperatividade, são mais propensas a lesões comparativamente a crianças que não apresentam estas condições. No que diz respeito à presença de epilepsia na criança, a literatura refere que de facto esta condição aumenta a probabilidade de lesões não intencionais, nomeadamente através do mecanismo de lesão afogamento (Brenner, Saluja, & Smith, 2003).

A relação entre a presença de transtorno de défice de atenção/ hiperatividade e a ocorrência de lesões, ainda que pouco estudada na literatura, tem vindo a demonstrar que crianças com este tipo de transtorno têm mais comportamentos de risco relativamente às restantes crianças (Garzon, Huang, & Todd, 2008).

Em relação à dimensão cuidador principal/ família, a análise das respostas verificou a presença de consenso perfeito relativamente ao tipo de supervisão. De facto, tratando-se de crianças com idades até aos quatro anos, com elevado grau de dependência dos seus cuidadores, a responsabilidade atribuída aos cuidadores é grande. Deste modo, quando os cuidadores não supervisionam ou fazem-no de uma forma inadequada, o risco de ocorrência de lesão não intencional aumenta, o que de resto é bastante evidenciado pela literatura contemporânea já referida anteriormente. Os cuidadores deverão, igualmente, atuar em sintonia com o comportamento da criança, o que o permitirá modelar e adequar, em parte, o tipo de supervisão necessário e ajustado à criança de quem cuidam (Morrongiello, Klemencic, & Corbett, 2008).

A idade materna aquando o nascimento da criança constituiu outro fator relevante; segundo os especialistas, há concordância em que as crianças filhas de mães adolescentes terem maior risco de lesão não intencional. O consumo frequente de álcool e outras substâncias pelo cuidador foram igualmente associados a um maior risco de lesão na infância.

Da análise resultou a clarificação da influência de algumas características socioeconómicas na problemática das lesões como referimos anteriormente no enquadramento teórico (Chaudhari, Srivastava, Moitra, & Desai, 2009; Mirkazemi & Kar, 2009; Atak, Karaoglu, Korkmaz, & Usubütün, 2010). As habilitações literárias dos cuidadores, o nível socioeconómico e a residência numa área desfavorável, tendo em conta a opinião dos peritos, afetam o risco de lesão não intencional, colocando em maior risco as crianças que provém de famílias com menores habilitações literárias, de níveis socioeconómicos mais baixos e que residem em áreas mais desfavoráveis.

No que respeita à dimensão comportamentos de risco, constatou-se que os comportamentos de risco não levantaram grandes questões aos peritos, provavelmente por serem mais conhecidos e fazerem parte de algumas ações e campanhas mediáticas relativas à temática da prevenção de lesões. A relação entre a incapacidade de perceção e identificação de riscos presentes no ambiente, por parte dos cuidadores, e a maior propensão ao risco de lesão não intencional nas crianças até aos quatro anos, foi clara de acordo com os especialistas. Esta análise vai ao encontro de outros autores que referem que durante o “processo de descobrir o mundo, a criança envolve-se, por vezes, em situações de risco” (Cordovil, 2010, p. 20). Porém, nomeadamente nas idades em que a maioria dos ambientes são selecionados e geridos pelos adultos, é fundamental conhecer a perceção de risco que os cuidadores têm relativamente a determinado ambiente, o que nos transporta, posteriormente, para a necessidade dos profissionais de saúde trabalharem com os pais em que medida poderão acautelar o ambiente, otimizando a sua segurança, mas não lhe retirando os estímulos, nem inibindo a curiosidade e atividade, características importantes da criança.

Por fim, no que respeita à dimensão ambiente, o espaço casa e a forma como o mesmo se encontra organizado, assim como a adequação dos sistemas de proteção em relação aos riscos presentes no mesmo, constituíram as principais causas de ocorrência de lesões não intencionais na opinião dos especialistas.

Ainda que, habitualmente, se considere a casa como um local seguro (Sikron, Giveon, Aharonson-Daniel, & Peleq, 2004), a mesma constitui o cenário mais frequente de lesões não intencionais nas crianças até aos quatro anos de idade. De facto, em todas as habitações existem riscos para as crianças, já que diversos fatores do ambiente físico, assim como variados equipamentos presentes no mesmo, têm sido relacionados com as lesões na infância (Munro, Van Niekerk, & Seedat, 2006). Outra característica relativa à ocorrência de lesões na infância deve-se ao facto de que para além do ambiente, também neste caso a criança está em constante mudança, tendo por base o seu desenvolvimento.

Compete também para a problemática em estudo, o facto de existirem situações decorrentes da lesão que são, de alguma forma, facilitadas pelas características comuns às crianças, de acordo com a sua etapa de desenvolvimento, para além dos comportamentos, por vezes inadequados, que se observam nos seus cuidadores (Souza, Rodrigues, & Barroso, 2000).

 

Conclusão

O painel Delphi teve como objetivo reunir o consenso de peritos acerca dos fatores que de acordo com a opinião e conhecimento dos especialistas influenciam o risco de lesão não intencional em ambiente doméstico/ familiar em crianças até aos quatro anos. A escolha inicial dos fatores foi elaborada a partir dos resultados da literatura acerca da problemática e, a partir daí procedeu-se à organização dos fatores de risco em quatro dimensões: criança, cuidador principal/ família, comportamentos de risco e ambiente, organização que contou com a concordância dos peritos. A partir desses fatores de risco iniciais e de outros acrescentados pelos peritos, foram sendo analisadas as percentagens de concordância de inclusão ou exclusão de cada um dos fatores de risco até se obter consenso, o que foi conseguido ao fim de três rondas.

Pese embora o contributo do estudo descrito, existem algumas limitações inerentes à metodologia utilizada, para as quais procuraram-se estratégias para minimizar os seus efeitos. Uma das limitações refere-se à composição dos elementos que constituíram o painel de especialistas, a qual pode não ser representativa, dado que os resultados refletem a sua opinião. Para além desta limitação, considera-se que a metodologia adotada, tendo como objetivo alcançar o consenso, pode conduzir à eliminação de posições extremas, mediante os critérios de consenso previamente estabelecidos.

Porém, o rigor na escolha dos elementos que compuseram o painel de peritos e a confrontação dos resultados que iam sendo gerados com os resultados da revisão de literatura previamente realizada, foram garantindo a correta prossecução do painel Delphi.

Com este estudo surgem, assim, potenciais campos de investigação, na medida em que os fatores resultantes do painel poderão ser contemplados na construção de um instrumento de medição de risco de lesão não intencional em ambiente doméstico/ familiar em crianças até aos quatro anos e contribuir para a melhor compreensão desta problemática, no sentido de serem implementadas estratégias eficazes na redução do impacto e incidência das lesões não intencionais durante a infância.

 

Referências bibliográficas

Atak, N., Karaoglu, L., Korkmaz, Y., & Usubütün, S. (2010). A household survey: Unintentional injury frequency and related factors among children under five years in Malatya. The Turkish Journal of Pediatrics, 52 (3), 285-293.         [ Links ]

Brenner, R., Saluja, G., & Smith, G. (2003). Swimming lessons, swimming ability, and the risk of drowning. Injury Control and Safety Promotion, 10 (4), 211-216.         [ Links ]

Chaudhari, V., Srivastava, R., Moitra, M., & Desai, V. (2009). Risk of domestic accidents among under five children. The Internet Journal of Family Practice, 7 (1).         [ Links ]

Classificação Internacional de Causas Externas de Lesões (CICEL): Versão 1.2 (2004). Publicado para o Grupo de Coordenação e Manutenção da CICEL. Amsterdam, The Netherlands: Consumer Safety Institute. Adelaide, Australia: AIHW National Injury Surveillance Unit Flinders University.         [ Links ]

Cordovil, R. (2010). Environment perception and child safety (Tese de Doutoramento). Faculdade de Motricidade Humana, Universidade Técnica de Lisboa, Portugal.         [ Links ]

Fink, A., Kosecoff, J., Chassin, M., & Brook, R. H. (1984). Consensus methods: Characteristics and guidelines for use. American Journal of Public Health, 74 (9), 979-983.         [ Links ]

Garzon, D. L., Huang, H., & Todd, R. D. (2008). Do attention deficit hyperactivity disorder and oppositional defiant disorder influence preschool unintentional injury risk? Archives of Psychiatric Nursing, 22 (5), 288-296.         [ Links ]

MirkazemI, R., & Kar, A. (2009). Injury-related unsafe behavior among households from different socioeconomic strata in pune city. Indian Journal of Community Medicine, 34 (4), 301-305.         [ Links ]

Mohan, D., & Tiwari, G. (2000). Injury prevention and control. London, England: Taylor & Francis.         [ Links ]

Morrongiello, B., Klemencic, N., & Corbett, M. (2008). Interactions between child behavior patterns and parent supervision: Implications for children’s risk of unintentional injury. Child Development, 79 (3), 627-638.         [ Links ]

Morrongiello, B., Schmidt, S., & Schell, S. (2010). Sibling supervision and young children’s risk of injury: A comparison of mothers’ and older siblings’ reactions to risk taking by a younger child in the family. Social Science and Medicine, 71 (5), 958-965.         [ Links ]

Munro, S. A., Van Niekerk, A., & Seedat, M. (2006). Childhood unintentional injuries: The perceived impact of the environment, lack of supervision and child characteristics. Child: Care, Health & Development, 32 (3), 269-279.         [ Links ]

Nunes, L. (2010). Do perito e do conhecimento em enfermagem: Uma exploração da natureza e atributos dos peritos e dos processos de conhecimento em enfermagem. Percursos, 17, 3-13. Retirado de http://web.ess.ips.pt/Percursos/pdfs/Percursos_n17.pdf        [ Links ]

Sikron, F., Giveon, A., Aharonson-Daniel, L., & Peleq, K. (2004). My home is my castle! Or is it? Hospitalizations following Home Injury in Israel, 1997-2001. Israel Medical Association Journal, 6 (6), 332-335.         [ Links ]

Silva, A. M., Rodrigues, C. D. S., Silva, S. M. R., & Witt, R. R. (2009). Utilização da técnica Delphi on-line para investigação de competências: Relato de experiência. Revista Gaúcha de Enfermagem, 30 (2), 348-351.         [ Links ]

Silva, I., & Santos, A. (2011). Qualidade da vinculação e modelo interno de funcionamento do Self, em crianças vítimas de queimaduras. Revista de Enfermagem Referência, 3 (3), 85-93.         [ Links ]

Simpson, J., McGee, R., & Fougere, G. (2010). Methodology in an ecological framework: Hearing parents voices on child home safety. Injury Prevention, 16, (Supl. 1), 1-289.         [ Links ]

Souza, L., Rodrigues, A., & Barroso, M. (2000). A família vivenciando o acidente doméstico: Relato de uma experiência. Revista Latino-Americana de Enfermagem, 8 (1), 83-89.         [ Links ]

Sousa, P. A. F., Frade, M. H. L. B. C., & Mendonça, D. M. M. V. (2005). Um modelo de organização e partilha de informação de enfermagem entre hospital e centro de saúde: Estudo Delphi. Acta Paulista de Enfermagem, 18 (4), 368-381.         [ Links ]

Streiner, D., & Norman, G. (2008). Health measurement scales: A practical guide to their development and use (4ª ed.). New York, NY: Oxford University Press.         [ Links ]

 

Recebido para publicação em: 26.07.12

Aceite para publicação em: 01.10.13

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons