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Revista de Enfermagem Referência

versão impressa ISSN 0874-0283

Rev. Enf. Ref. vol.serIII no.11 Coimbra dez. 2013

https://doi.org/10.12707/RIII1226 

ARTIGO DE REVISÃO

 

Fatores de risco de lesões não intencionais em ambiente doméstico/familiar em crianças

Risk factors for unintentional injuries in the home/family context in children

Factores de riesgo de lesiones no intencionales en el hogar/la familia en los niños

 

Ana Lúcia Caeiro Ramos*; Lucília Rosa Mateus Nunes**; Paulo Jorge Nogueira***

* Doutorada em Enfermagem. Mestre em Saúde Pública. Enfermeira Especialista em Saúde Infantil e Pediátrica. Professora-Adjunta Equiparada na Escola Superior de Saúde do Instituto Politécnico de Setúbal, 2910-761, Setúbal, Portugal [ana.ramos@ess.ips.pt; anaramosalcr@gmail.com].Morada: Avenida Coração de Maria, n.º5, 6.º esq., 2910-031, Setúbal, Portugal.

** Doutorada em Filosofia, Mestre em Ciências de Enfermagem e em História Cultural e Política. Enfermeira Especialista em Saúde Mental e Psiquiátrica. Investigadora na ui&de, Lisboa. Professora Coordenadora da Escola Superior de Saúde do Instituto Politécnico de Setúbal, 2910-761, Setúbal, Portugal [lucilia.nunes@ess.ips.pt].

*** Doutorado em Saúde Internacional, especialidade em Políticas de Saúde e Desenvolvimento. Instituto de Medicina Preventiva - Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, 1649-028, Lisboa, Portugal. Direcção Geral de Saúde, 1049-005, Lisboa, Portugal [pnogueira16@gmail.com].

 

Resumo

As lesões não intencionais em ambiente doméstico/familiar em crianças constituem uma das principais causas de morte em vários países de todo o mundo, incluindo Portugal, evidenciando a necessidade de intervenção. O presente artigo visa conhecer os fatores de risco de lesão não intencional em ambiente doméstico/familiar em crianças até aos 4 anos, que se encontram descritos na literatura.

A pesquisa foi realizada em março de 2011 e os estudos selecionados utilizando a metodologia PI[C]OS, de acordo com os critérios definidos. Foram identificados 32 artigos, a maioria de abordagem quantitativa. Da análise ressaltaram fatores de risco, de diferentes dimensões e níveis de ação, o que é coerente com a origem multifacetada associada à problemática em estudo. De acordo com os resultados dos estudos, existem fatores de risco relacionados com as características da própria criança, bem como com as características da família que a criança integra. O ambiente doméstico/familiar e os comportamentos de risco adotados pela família também se constituíram como resultados do estudo. O conhecimento dos fatores de risco de lesões não intencionais na infância constitui uma base profícua para estudos futuros, possibilitando a intervenção objetiva e adaptada à criança/família tendo em conta os fatores de risco associados.

Palavras-chave: acidentes; prevenção de acidentes; acidentes domésticos; lesões não intencionais.

 

Abstract

Unintentional injuries in children in the context of home and family are the most common cause of death in many countries around the world, including Portugal, showing the need for study and intervention regarding this problem. The aim of this article is to identify the risk factors of unintentional injury in the home/family context in children aged up to 4 years, as described in the literature. The research was conducted in march 2011 and the studies were selected using the PI[C]OS methodology, according to the pre-defined criteria. 32 articles were identified, most with a quantitative approach. Analysis of the articles highlighted several risk factors, in different dimensions and action levels, which matched the multi-faceted nature of the problem. According to the results of the studies, risk factors are related to the child´s characteristics, as well as to the characteristics of the family to which the child belongs. The domestic/family environment and risk behaviors adopted by the family also formed part of the study results. Knowledge of unintentional injury risk factors in childhood is a fruitful basis for future studies, enabling objective interventions adapted to the child/family and taking the risk factors into account.

Keywords: accidents; accidents prevention; domestic accidents; unintentional injuries.

 

Resumen

Las lesiones no intencionales en el hogar/la familia en los niños constituyen una de las principales causas de muerte en varios países de todo el mundo, entre ellos Portugal. Por ello, destaca la necesidad de intervención. Este artículo tiene como objetivo conocer los factores de riesgo de lesiones no intencionales en el hogar/la familia en niños de hasta 4 años, los cuales han sido descritos en la literatura. La encuesta se realizó en marzo de 2011 y los estudios seleccionados utilizaron la metodología de PI[C]OS, de acuerdo con los criterios establecidos. Se identificaron 32 artículos, la mayoría de enfoque más cuantitativo. En el análisis de los artículos, destacaron factores de riesgo de diferentes dimensiones y niveles de acción, lo que concuerda con el origen multifacético del problema objeto de estudio. De acuerdo con los resultados de los estudios existen factores de riesgo relacionados con las características del niño, así como con las características de la familia a la que pertenece el niño. El hogar/la familia y el comportamiento de riesgo adoptado por la familia también fueron resultados del estudio. El conocimiento de los factores de riesgo de lesiones no intencionales en la infancia constituye una base fructífera para futuros estudios, lo que permite realizar una intervención objetiva y adaptada al niño/familia, teniendo en cuenta los factores de riesgo asociados.

Palabras clave: accidentes; prevención de accidentes; accidentes domésticos; lesiones no intencionales.

 

Introdução

A infância é caracterizada pela idade da descoberta, altura em que a curiosidade natural das crianças constitui o impulso para o conhecimento do meio que as rodeia. Toda esta curiosidade é benéfica e saudável no entanto, quando acompanhada por fatores inerentes ao facto de ser criança e outros relacionados com o ambiente que a envolve, parece ter impacto no aumento das lesões não intencionais.

Como lesão não intencional entende-se “um incidente imprevisto no qual não houve intenção por uma pessoa de causar lesão, lesão ou morte, mas que resultou em lesão” (CICEL – Grupo de Coordenação e Manutenção, 2004, p. 249). Optou-se pela designação de lesões não intencionais, em detrimento de acidentes, valorizando as características previsíveis e preveníveis e não “acidentais” das lesões. No âmbito deste artigo foram incluídos os seguintes mecanismos de lesão: quedas, afogamentos, intoxicações, queimaduras, cortes, eletrocussão e sufocação/asfixia.

Em Portugal, de acordo com os dados referentes ao ano de 2006, morreram 216 crianças e jovens até aos 19 anos de idade devido a lesões, 144 das quais foram devidas a lesões não intencionais, tendo representado a quinta causa de morte, com 4,5% do total de óbitos ocorridos (Portugal. Ministério da Saúde. Direção-Geral da Saúde, 2009). Nas crianças até aos 4 anos de idade, o local de ocorrência mais frequente de lesão não intencional é a casa (52%), destacando-se, para além das quedas, os afogamentos, as queimaduras, as intoxicações e a asfixia. No primeiro ano de vida, a maior parte das lesões não intencionais (80%) são ”quedas de sofás, da cama dos pais, do carrinho que ficou com o cinto aberto, de escadas”, entre outros (Portugal. Ministério da Saúde. Direção-Geral da Saúde, 2009, p. 63). O Plano de Ação para a Segurança Infantil (Associação para a Promoção de Segurança Infantil, 2007) define como uma das suas áreas prioritárias os acidentes com crianças dos 0 aos 4 anos em ambiente doméstico/familiar, que tem como meta a redução do número e da gravidade dos acidentes em casa nesta faixa etária, a segurança dos ambientes construídos e sua envolvente.

A problemática das lesões não intencionais é complexa, multissetorial e consiste num problema de saúde pública, capaz de espelhar a atitude e investimento das pessoas e do próprio país em matéria de segurança. Desta forma, têm sido largamente publicados artigos, estudos e documentos de referência relativos a este assunto, ainda que não tenha sido encontrado qualquer artigo de revisão sistemática relativamente aos fatores de risco dos diferentes mecanismos de lesão não intencional. Apenas foi encontrado um estudo de revisão sistemática da literatura acerca do mecanismo de lesão não intencional «queda» que, embora não responda à nossa questão de partida, pode ser relevante para a discussão. Se por um lado, a abundância de documentos demonstra a relevância e interesse acerca deste assunto, por outro lado, dificulta a organização e sistematização em torno de uma temática mais específica nesta área de interesse abrangente. Deste modo, com este artigo pretende-se conhecer e reunir os fatores de risco descritos na literatura, até à atualidade, relativamente às lesões não intencionais em ambiente doméstico/familiar em crianças até aos 4 anos.

Questão de investigação: Mediante os objetivos propostos, delineou-se como ponto de partida a questão de investigação: Quais os fatores de risco de lesão não intencional em ambiente doméstico/familiar em crianças até aos 4 anos?

 

Metodologia

Optou-se pela realização de revisão sistemática da literatura. A escolha por esta metodologia explícita e reprodutível, seguindo um protocolo previamente definido, que permite identificar estudos empíricos, analisando e sintetizando os resultados dos trabalhos anteriores acerca do tema (Ramalho, 2005; Centre for Reviews and Dissemination, 2008; Higgins e Green, 2008), foi devida à sua importância na integração das “informações de um conjunto de estudos, realizados separadamente, de determinado fenómeno de investigação, que podem apresentar resultados conflituosos e/ou coincidentes” (Vilelas, 2009, p. 203).

Como critérios de inclusão foram definidos estudos primários que satisfaçam os pressupostos da validade científica, com explicitação clara dos objetivos do estudo e com desenho de investigação adequado e coerente com os mesmos, de natureza qualitativa e/ou quantitativa, acerca da temática pretendida, cujos participantes foram pais e/ou crianças. Integraram, igualmente, como critérios de inclusão, a disponibilidade do artigo em texto integral, o foco do artigo serem crianças até aos 4 anos de idade, nos idiomas de português, inglês ou espanhol, conforme consta no Quadro 1.

 

Foram excluídos os estudos acerca de maus-tratos em crianças, acidentes rodoviários e violência. Para a presente revisão sistemática da literatura, no que respeita à elaboração da questão de investigação e definição dos critérios de seleção, seguiu-se a estratégia de revisão utilizando o acrónimo PI[C]OS, de acordo com o Centre for Reviews and Dissemination (2009).

De acordo com Vilelas (2009, p. 208), na revisão sistemática da literatura devem ser consultadas pelo menos duas bases de dados “amplas e específicas para o tema em questão”, requisito que foi seguido. Optou-se por realizar a pesquisa nas bases de dados integradas na b-on®, EBSCOhost® e PubMed®. De forma a complementar a pesquisa de estudos, foram utilizados os motores de busca Google® e Google Scholar®. Os termos de pesquisa constituíram, na sua maioria, descritores MeSH - Medical Subject Headings, para além de outras palavras-chave, sinónimos e conceitos relacionados, que não se encontravam catalogados, [(Accidents) OR (Home Unintentional injury) OR (Drowning) OR (Poisoning) OR (Burns) OR (Fall) OR (Residential injuries) AND (Risk factors) AND (Risk assessment) AND (Child) AND (Prevention) tendo em vista a melhor cobertura de todas as dimensões da questão de investigação de partida.

Os critérios de avaliação da qualidade metodológica dos estudos foram assegurados mediante uma lista de verificação criada para o efeito, de acordo com a temática abordada e em conformidade com a questão de investigação de partida, bem como com a estratégia de pesquisa escolhida – PI[C]OS (Centre for Reviews and Dissemination, 2009).

 

Resultados

A pesquisa foi realizada durante o mês de março de 2011, nas bases de dados referidas anteriormente. Da pesquisa na base de dados, tendo em conta os critérios de inclusão previamente estabelecidos, obtiveram-se 193 estudos no primeiro momento. Após a organização dos artigos, constatou-se que 13 artigos eram repetidos, pelo que a duplicação foi eliminada, restando 180 artigos para a análise mais detalhada. A próxima etapa de pesquisa consistiu na leitura do resumo de modo a confirmar se o título do artigo correspondia ao trabalho descrito no mesmo. Após a leitura e análise crítica dos títulos e dos resumos, foram excluídos 54 artigos pois, na sua grande maioria, os títulos dos artigos, ainda que sugestivos, não espelhavam o trabalho realizado nos mesmos. Restaram, então, 126 estudos para a análise e avaliação crítica, através da sua leitura integral. Com a leitura integral dos 126 estudos, constatou-se que (1) 36 versavam sobre as lesões na infância, porém não distinguiam na análise as lesões não intencionais das lesões intencionais ou incluíam situações de maus-tratos, violência e acidentes rodoviários, que faziam parte dos critérios de exclusão; (2) 9 abrangiam diferentes faixas etárias e não era possível individualizar os resultados relativos às crianças até aos 4 anos; (3) 49, apesar de serem acerca desta problemática, não tinham como objetivo conhecer os fatores de risco de lesão não intencional em ambiente doméstico/familiar em crianças até aos 4 anos, pelo que foram eliminados desta revisão sistemática da literatura. Em suma, seguindo a metodologia referida, obtiveram-se 193 estudos no primeiro momento de pesquisa. No entanto, após a aplicação dos critérios estabelecidos, no final ficou selecionado um corpus de 32 estudos para análise.

Dos 32 estudos obtidos através da pesquisa, cuja análise se apresenta no Quadro 2, a abordagem quantitativa foi a mais utilizada, tendo apenas dois estudos comportado uma abordagem mista, qualitativa/quantitativa. Os estudos encontrados datam de 1989 a 2010 e utilizaram diversas metodologias, destacando-se os estudos transversais, através da análise de registos e os estudos de caso-controlo.

 

Discussão

Os 32 estudos que integraram a revisão respeitam os critérios de inclusão e validade previamente estabelecidos, descriminam os objetivos e apresentam o desenho de estudo coerente com o mesmo, explicitam o plano de amostragem e utilizam instrumentos de recolha de dados adaptados, possibilitando a análise e discussão dos resultados obtidos. Os resultados da revisão realizada corroboram que as lesões não intencionais, apesar de constituírem um fenómeno complexo e multicausal, são capazes de serem explicadas pela presença ou ausência de determinados fatores de risco, não se constituindo por essa razão acontecimentos «acidentais».

Após a análise descritiva dos estudos, constatou-se que existe uma multiplicidade de fatores provenientes de diferentes dimensões e que interagem não sendo por isso possível associar apenas uma dimensão à ocorrência de lesão não intencional, tendo por base o paradigma socioecológico.

Dos fatores de risco resultantes da revisão destacaram-se os relativos: à criança, como a idade (E6, E8, E9, E10, E15, E22, E25, E27), o sexo (E4, E6, E8, E10, E16, E20, E21, E22, E24, E25, E26, E27, 31, E32), a presença de doenças ou perturbações (E6, E7, E29), os antecedentes de lesão (E26, E27), e as horas de sono (E13, E23); aos cuidadores principais/família, como o nível socioeconómico (E14, E15, E20, E21, E24), o envolvimento parental e tipo de supervisão (E2, E3, E4, E6, E8, E10, E17, E32), conhecimento das competências da criança por parte do cuidador (E5), literacia materna (E15, E19, E20, E24), tipologia familiar (E5, E19, E20, E27), idade materna (E21, E22), uso de substâncias pelo cuidador (E27, E28), perceção do risco (E5, E14); aos comportamentos de risco adotados pelo cuidador/família, como a acessibilidade e exposição ao perigo (E1, E10, E11, E12, E14, E16, E24, E31) e relativos ao ambiente doméstico (E10, E12). Esta análise está em consonância com o descrito na literatura acerca da problemática, que contextualiza lesão “como produto da interação entre o indivíduo, o agente ou o objeto que causa a lesão e o ambiente físico e social que o rodeia” (Deal et al., 2000, p. 8), espelhando o envolvimento de vários atores de diferentes níveis de responsabilidade de todo o sistema, desde o individual até aos decisores políticos (Grossman, 2000; Alegrante, Marks e Hansen, 2006). Mediante o exposto, e perante a análise descritiva dos resultados do estudo, optou-se por agrupar os fatores de risco resultantes da avaliação crítica dos estudos em quatro dimensões: criança, cuidador principal/família, comportamentos de risco e ambiente, conforme presente na Figura 1.

 

 

Com a análise da Figura 1 é possível verificar os fatores que contribuem para a ocorrência das lesões na infância e que são influenciados por características da própria criança e cuidador principal/família, tendo em conta os comportamentos de risco adotados e o próprio ambiente onde se inserem.

No que respeita à dimensão «criança», da análise efetuada verificou-se que algumas características da própria criança concorrem para o aumento do risco de lesões não intencionais. O sexo da criança parece estar diretamente relacionado com o risco de lesões não intencionais, verificando-se que as crianças de sexo masculino apresentam maior risco de ocorrência de lesões não intencionais (Snodgrass, 2006; Quan et al., 1989; Byard et al., 2001; Brenner, 2003; Ross et al., 2003; Jackson e Moo, 2008; Hjern, Ringback-Weitoft e Andersson, 2001; Kendrick e Marsh, 2001; Koulouglioti, Cole e Kitzman, 2008; Chaudari, 2009; Kendrick e Marsh, 1997; Petridou et al., 1996; Belechri, Petridou e Trichopoulos, 2002; Jensen et al., 1992). Alguns estudos têm procurado perceber a razão da influência do sexo no risco de lesões não intencionais, o que tem sido explicado pelo facto das crianças do sexo masculino apresentarem maior índice de atividade, incorrerem em mais riscos e terem comportamento mais impulsivo, conjugado, muitas vezes, com uma permissão e educação menos contida, relativamente às crianças do sexo feminino (Peden et al., 2008).

Relativamente à idade da criança, tem sido comummente relacionada com o desenvolvimento infantil, uma vez que durante os primeiros anos de vida ocorrem muitas mudanças na criança, adquirem novas competências, a diferentes níveis (cognitivo, da motricidade global, do comportamento social, entre outros), exigindo por parte dos cuidadores/família o conhecimento real das competências da criança em causa, para que tenham maior perceção do risco que a criança apresenta. De facto, se no primeiro ano de vida da criança muitas das lesões ocorrem associadas a comportamentos de risco dos seus cuidadores, devido à grande dependência dos mesmos, tal não ocorre a partir do ano de idade, altura em que a criança procura conhecer o ambiente que a rodeia, com toda a energia e curiosidade que caracterizam este período da infância, colocando-se por vezes em risco de lesão não intencional. O facto de a criança ter doenças ou perturbações associadas tem sido associado a maior risco de lesão, como é o caso de maior risco de submersão por parte das crianças com epilepsia (Diekema, Quan e Holt, 1993; Quan et al., 1989; Brenner, 2003) e de maior risco de lesão nas crianças com défice de atenção ou hiperatividade (Lee, Huang e Todd, 2008).

Quanto à dimensão «cuidador principal/família», os cuidadores assumem-se usualmente como modelos para a criança. Desta forma, e dada a estreita relação na infância entre a criança e a sua família têm sido descritos alguns fatores que influenciam a ocorrência de lesões não intencionais nas crianças. Um dos fatores sobejamente referenciado é o nível socioeconómico. De acordo com diversos autores, as crianças de famílias com menos rendimentos e pertencentes a um nível socioeconómico desfavorável apresentam maior risco de lesão não intencional (Chaudari et al., 2009; Khambalia et al., 2006; Mirkazemi e Kar, 2009; Atak et al., 2010; Hjern Ringback-Weitoft e Anderssin, 2001; Kendrich e Marsh, 2001), o que tem sido explicado pelo facto de, possivelmente em ambientes mais desfavoráveis, as crianças estarem sujeitas a mais perigos e expostas a espaços com menos segurança, aliados à inadequada supervisão por parte dos pais (Peden et al., 2008).

O tipo de supervisão também tem sido referenciado na literatura como uma variável associada ao risco de lesão não intencional nas crianças, assumindo-se que a inadequada supervisão por parte dos pais, ou quando esta é delegada a irmãos mais velhos, contribui para o aumento do risco (Morrongiello, Schmidt e Schell, 2010). A literacia e o nível de ensino do cuidador principal têm sido referenciados como elementos a ter em conta no que respeita a lesões, uma vez que tem sido associado maiores habilitações literárias/literacia do cuidador a presença de menores riscos em casa, adoção de práticas de segurança e eficiente identificação de riscos (Atak et al., 2010; Reich, Penner e Duncan, 2010; Bishai et al., 2008; Hjern, Ringback-Writoft e Andersson, 2001; Chaudari et al., 2009).

No âmbito da dimensão «comportamentos de risco», o fator fulcral que influencia o número de lesões não intencionais é a acessibilidade a materiais e equipamentos que deveriam estar fora do alcance da criança, como sendo o caso dos medicamentos (McFee e Caraccio, 2006), produtos tóxicos (Mirkazemi e Kar, 2009), alimentos e bebidas muito quentes, fácil acesso ao micro-ondas (lowell, 2008), acesso livre à piscina (Ross et al., 2003), presença de perigos ao alcance da criança (LeBanc et al., 2006).

Por fim, relativamente à dimensão «ambiente», sabe-se que as condições de habitação têm influência na saúde individual e coletiva. Este facto é confirmado pela revisão sistemática que refere como fatores de risco o acesso livre, sem protecção, a locais perigosos como superfícies com água (Ross et al., 2003), inexistência ou não funcionamento de equipamentos de segurança como é o caso dos detetores de fumo (LeBlanc et al., 2006), a presença de fracas infraestruturas (Mirkazemi e Kar, 2009), residência em área desfavorável (Kendrick e Marsh, 2001) e a própria organização da casa (Drachler et al., 2007), no que respeita a diminuição do número de riscos que apresenta.

 

Conclusão

A problemática das lesões não intencionais é atual e constitui um vasto campo de intervenção. Apesar de existir muita literatura acerca desta temática, não foi encontrada qualquer revisão sistemática que respondesse à questão de investigação que norteou o presente estudo: Quais os fatores de risco de lesão não intencional em ambiente doméstico/familiar em crianças até aos 4 anos?

Tendo em conta a revisão sistemática da literatura efetuada, da qual resultou um corpus de 32 estudos, foi possível reunir os fatores que contribuem para a problemática em estudo, fenómeno multidimensional para o qual concorrem diferentes dimensões, sendo elas: criança, cuidador principal/família, comportamentos de risco e ambiente, que deverão constituir focos de atenção de estudos posteriores.

Contudo, a revisão sistemática apresentada é alvo de limitações, algumas das quais consequentes das limitações dos próprios estudos que integra pois, apesar do cuidado em avaliar a validade interna e externa dos estudos, serem incluídos estudos com amostras de dimensão e representatividade adequadas e com desenhos de estudo coerentes com os objetivos de estudo, constituiu-se dificultador o facto de a temática ser muito abrangente, o que leva ao cruzamento de múltiplas variáveis. O facto de ter sido escolhida a pesquisa de publicações nas bases de dados eletrónicas, excluindo a literatura cinzenta, a pesquisa bibliográfica e contacto com peritos e instituições, pode ter conduzido a menor abrangência dos estudos selecionados. Acrescenta-se ainda, como possível limitação, o facto de não ter sido imposto horizonte temporal, que espelhasse o estado atual de conhecimentos em torno da temática. Outro aspeto que pode ser considerado dificultador para a generalização dos resultados consiste no facto de alguns estudos terem sido realizados em contextos muito específicos ou pela heterogeneidade dos países onde foram realizados.

Apesar das limitações apresentadas, considera-se que a revisão efetuada é fundamental pois, conhecendo-se os fatores de risco que contribuem para o risco de lesões não intencionais em ambiente doméstico/familiar, cria-se a possibilidade de poder medir objetivamente esse risco e tomar decisões em saúde. Através da medição do risco de lesão não intencional na criança, surge a possibilidade de negociar um plano de intervenção de enfermagem adaptado a cada criança e família, capacitando-a de acordo com os fatores de risco encontrados e com o score atribuído, promovendo a segurança de todos os intervenientes. Intervindo na criança, na família, nos comportamentos de risco adotados e no ambiente doméstico/familiar, poder-se-á contribuir para a capacitação dos cidadãos e dos enfermeiros, respondendo a uma das áreas de intervenção propostas no Plano Nacional de Prevenção de Acidentes.

 

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Fonte de financiamento do estudo:

Fundação para a Ciência e Tecnologia – Programa de Apoio à Formação Avançada de Docentes do Ensino Superior Politécnico 2009.

 

Recebido para publicação em: 06.02.12

Aceite para publicação em: 04.06.13

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