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Revista de Enfermagem Referência

versão impressa ISSN 0874-0283

Rev. Enf. Ref. vol.serIII no.8 Coimbra dez. 2012

https://doi.org/10.12707/RIII12HM3 

A liga republicana das mulheres portuguesas e a enfermagem no século xx - leituras na imprensa feminista

 

Ana Maria Barros Pires*

* Mestre em Ciências de Enfermagem. Doutorando em Enfermagem na Universidade Católica Portuguesa na área de História de Enfermagem. Professor-adjunto na Escola Superior de Saúde do Instituto Politécnico de Beja [ana.pires@ipbeja.pt].

 

Resumo

As representações que a sociedade associa à profissão de enfermagem e à enfermeira, muitas vezes contraditórias, persistem no imaginário individual e coletivo e pouco têm a ver com a evolução verificada no âmbito do exercício profissional, do ensino e da academia. As imagens associadas à enfermeira e à enfermagem inscrevem-se na memória dum passado mais ou menos longínquo e poderão ter uma justificação histórica, social e cultural.

Desvendar do modo como as representações sociais associadas à enfermeira e à enfermagem se constituíram no passado poderá permitir-nos recriar, no presente, o percurso da nossa identidade profissional e compreender como, enquanto grupo social, produzimos, consumimos, divulgamos e assumimos imagens que definem essa própria identidade.

Propomo-nos neste artigo dar a conhecer como a Liga Republicana das Mulheres Portuguesas (LRMP), no início do século XX, criou uma imagem positiva da enfermagem, desenvolvendo um discurso elogioso da profissão captando o interesse das mulheres para uma “profissão digna” que lhes possibilitaria a independência económica em caso de abandono ou viuvez.

Utilizaremos um conjunto de artigos publicados na imprensa oficial da Liga: A Mulher e A Criança e A Madrugada dado que a imprensa foi uma importante forma de divulgação e doutrinação das ideias feministas.

Palavras-chave: feminismo; história de enfermagem.

 

The “Liga Republicana das Mulheres Portuguesas” and nursing profession in the XXth century – readings in the feminist press

Abstract

Representations that society associates with nurses and nursing, some of them contradictory, persist in individual and collective imaginations. This is not consistent with the development of nursing in terms of professional practice, education and scholarship. Images we associate with nurses and nursing are engraved in the memory from the more or less remote past and may have historical, social and cultural justifications.

Revealing how social representations associated with nurses and nursing have been formed in the past can help us today to re-create the construction of our professional identity and elucidate how we as a social group produce, use, share and take on images that define our own identity.

Our aim is to reveal how Portuguese feminist movements at the beginning of XXth century, namely the Liga Republicana das Mulheres Portuguesas (LRMP), has created a positive image of nursing, revealing a praiseworthy discourse attracting the interest of women in a “dignified profession” that could allow them economic independence in cases of abandonment or widowhood. We will use a set of newspaper articles published by the official press of LRMP - “A Mulher e a Criança”, and “A Madrugada” - since the printing press was an important way to reveal and spread feminist ideals.

Keywords: feminism; history of nursing.

 

La “Liga Republicana das Mulheres Portuguesas” y la enfermería in el siglo XX – lecturas en los periódicos feministas

Resumen

Las representaciones que la sociedad asocia con la profesión de enfermería y a la enfermera, a menudo contradictorias, persisten en el imaginario individual y colectivo y tienen poco que ver con la evolución en el campo profesional, la educación y la academia. Las imágenes asociadas con la enfermera y la enfermería están registradas en la memoria de un pasado más o menos lejano y pueden tener una justificación histórica, cultural y social.

Descubrir cómo las representaciones asociadas con la enfermería y la enfermera se constituyeron nos permitirá recrear el curso de nuestra identidad profesional y entender cómo el grupo social, produce, consume, comparte y recoge imágenes que definen nuestra identidad.

Proponemos en este artículo conocer cómo “A Liga Republicana das Mulheres Portuguesas”, en el siglo XX, creó una imagen positiva de la enfermería desarrollando un discurso positivo de profesión captando el interés de las mujeres acerca de una “profesión digna” que les permitiría su independencia económica en caso de abandono o viudez.

Vamos a utilizar un conjunto de artículos publicados en la prensa oficial de la Liga: “A Mulher e a Criança” y “A Madrugada” ya que la prensa fue una importante forma de difusión y adoctrinamiento de ideas feministas.

Palabras clave: feminismo; historia de la enfermería.

 

Introdução

As representações que, ao longo do tempo, a sociedade tem associado à profissão de enfermagem e à enfermeira, muitas vezes contraditórias, persistem no imaginário individual e coletivo e, atualmente, pouco têm a ver com evolução verificada tanto no âmbito do exercício profissional (onde se assiste a uma crescente complexidade dos cuidados) como no âmbito do ensino e da academia (onde, progressivamente, se foram atribuindo os graus de licenciado, mestre e doutor). Da enfermagem tem-se a ideia duma profissão necessária, de ajuda aos que sofrem, mas também subserviente e com pouco reconhecimento social. Das enfermeiras se diz serem compassivas, dedicadas, mas também insensíveis. Estas imagens inscrevem-se na memória dum passado mais ou menos longínquo e poderão ter uma justificação histórica, social e cultural. Passado menos longínquo, se tomarmos como referência o século XIX, altura em que podemos começar a falar em profissão de enfermagem de uma forma organizada; mais longínquo se pensarmos que as atividades de prestação de cuidados ao Outro são tão antigas como o Homem. Imagens que, inscritas no passado, continuam a influenciar o presente.

Como se constituem essas representações sociais? Como chegam até nós na forma de um imaginário individual e coletivo que influencia e distorce a nossa relação com a realidade? O desvendar do modo como as representações sociais associadas à enfermeira e à enfermagem se constituíram no passado poderá permitir-nos recriar, no presente, o percurso da nossa identidade profissional e compreender como, enquanto grupo social, produzimos, consumimos, divulgamos e assumimos imagens que definem essa própria identidade.

Propomo-nos, neste artigo, dar a conhecer como os movimentos feministas em Portugal criaram uma imagem positiva da enfermagem.

O estudo que realizámos, no âmbito da investigação histórica, teve por base um conjunto de artigos publicados na imprensa oficial da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas: “A Mulher e a Criança”, revista mensal publicada entre 1909 e 1911, e “A Madrugada”, jornal publicado de 1911 a 1915.

A pesquisa foi realizada através da consulta dos microfilmes dos referidos periódicos existentes na Biblioteca Nacional. Fizemos a transcrição dos excertos dos artigos usando a ortografia e sintaxe originais respeitando o sentido do discurso.

A imprensa foi uma importante forma de divulgação e doutrinação das ideias feministas. As várias associações existentes, além de terem os seus órgãos oficiais, mantiveram uma presença assídua na restante imprensa. Em muitos dos periódicos existentes publicaram-se as biografias de mulheres proeminentes na sociedade enaltecendo as suas qualidades e sublinhando que a sua posição social foi alcançada pelo seu mérito e trabalho. Na segunda metade do século XIX a imprensa e a literatura surgem e são utilizadas como elementos organizadores da sociedade. A imprensa é uma referência quotidiana, o espaço público em que a sociedade e o Estado existem, onde as ideias circulam, os autores se manifestam, onde a opinião pública se estabelece. A imprensa foi o instrumento do debate público das ideias. Mesmo com uma elevada taxa de analfabetismo, os periódicos tinham uma grande circulação no nosso país,” sendo frequente a sua leitura em voz alta em pequenas vilas e aldeias perante assistências heterogéneas do povo analfabeto, que ouvia e comentava”. (Marques, 1991, p. 600).

 

Revisão da literatura

A situação da mulher em Portugal na transição do século XIX para o século XX

Na viragem do século a vivência feminina organiza-se em torno do modelo familiar. A família é o local de formação dos indivíduos e, em especial, das raparigas. Estas aprendem os conhecimentos necessários à vivência adulta perpetuando, de geração em geração, o que deve ser a missão da mulher: a maternidade, a gestão doméstica e a fiel conjugalidade (Guinote, 1997). A família é conservadora, encabeçada por um chefe-de-família masculino, que deve ter a seu cargo o sustento económico da família.

O universo feminino é analfabeto! O acesso ao ensino era limitado e, quando as raparigas frequentavam a escola, procurava-se sobretudo que a instrução permitisse uma melhor preparação para o que a sociedade espera das mulheres: serem esposas e mães. Mesmo quando alguns setores da sociedade portuguesa, nomeadamente os republicanos e feministas, reivindicam o acesso das mulheres à educação, essa reivindicação sublinha o papel da mulher na formação dos futuros cidadãos base para a criação duma nova sociedade. O acesso ao ensino secundário e superior era escasso. Neste último caso, o total de raparigas nas instituições de ensino superior de Lisboa, Porto e Coimbra, no princípio do século, não excedia a dezena (Marques, 1991).

Apesar da visão tradicional do papel da mulher ser a da gestão do espaço doméstico, visão essa transversal a todas as classes sociais, as dificuldades económicas em que vivia a maior parte da população portuguesa não permitiam dispensar nenhuma fonte de rendimento. É assim que, à entrada do século, as mulheres constituem já uma parte importante da população ativa: no mundo rural trabalhando lado a lado com os homens e nos centros urbanos como operária ou integrando o conjunto de profissões que se tornaram um símbolo da mulher citadina de origem popular. De entre estas, as mais comuns eram: costureiras, modistas, empregadas de comércio, criadas de servir e amas (Guinote, 1997).

Mas a presença da mulher no mercado de trabalho não se traduzia na sua autonomia ou emancipação na sociedade. Sem quaisquer direitos políticos (não podiam votar nem ser eleitas) estavam sujeitas à tutela dos pais e dos maridos (não podiam dispor dos seus bens sem autorização do marido) e eram remetidas para um plano de inferioridade perante a lei.

É nesta conjuntura que, na transição do século XIX para o XX, tomam forma os ideais feministas debatidos nos salões literários onde uma elite intelectual, composta por escritoras, médicas e professoras se reunia procurando assumir um papel de intervenção na mudança da sociedade (Esteves, 2001). Alice Pestana (sob o pseudónimo de Caiel), Maria Amália Vaz de Carvalho, Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Anna de Castro Osório, Adelaide Cabete são algumas das vozes impulsionadoras e mais prestigiadas dum movimento que pretende chamar a atenção para a situação de inferioridade das mulheres e para a necessidade de, através da educação e valorização, a alterar definitivamente. À medida que a propaganda republicana crescia já nos primeiros anos do século XX, crescia também a organização de um movimento que congregava essas mulheres de prestígio. A adesão feminina aos ideais republicanos tornou visível a luta pela alteração das condições degradantes em que viviam as mulheres, que recusavam um papel meramente passivo numa sociedade que as menorizava. As mulheres invadiram o palco político, até aí fechado para elas, conduzindo reuniões, discursando em sessões nos Centros Republicanos, secretariando comícios (Esteves, 2001). Esta ação foi particularmente visível nas zonas urbanas onde crescia uma classe média consciente do seu poder reivindicativo. A maioria das mulheres, analfabetas, trabalhando nos campos ou na indústria estava longe das aspirações das feministas. Nesta luta foi particularmente ativa a Liga Republicana das Mulheres Portuguesas (Esteves, 2001).

Os movimentos feministas em Portugal seguiram um ideário que se desenvolveu ao longo do século XIX, com grande vigor na Europa e nos Estados Unidos. Com um caráter mais moderado, procuraram satisfazer as suas reivindicações mais pelo uso da palavra do que pela força das manifestações. É neste período que o feminismo nasceu, designando tanto mudanças estruturais, como por exemplo o trabalho assalariado e o direito à instrução, como o aparecimento coletivo das mulheres na política (Fraisse e Perrot, 1991). A Europa e os Estados Unidos veem surgir uma realidade nova: as mulheres fundam associações, criam e dirigem jornais e revistas, debatem, reivindicam, realizam conferências onde exprimem as suas ideias. O espírito revolucionário e as novas ideias democráticas que atravessam todo o período de transição do século XIX para o século XX favorecem a visibilidade das mulheres e a possibilidade de lutar por igualdade de direitos: na instrução (como o acesso ao ensino superior); no trabalho (conquistando a independência económica) e no sufrágio (sendo este aliás um dos principais eixos da luta feminista). A troca de experiências conseguida através da imprensa, de visitas e da realização de congressos internacionais fará com que, mesmo se em tempos diferentes, as ideias feministas se espalhem por todo o mundo ocidental (Käppeli, 1991).

A Liga Republicana das Mulheres Portuguesas

A Liga Republicana das Mulheres Portuguesas (LRMP) foi fundada em 1908. O voto, o direito à instrução, ao trabalho e à administração dos bens, o combate à prostituição e à mendicidade infantil constituíram-se como temas que nortearam a sua ação.

Se a LRMP não foi o primeiro nem o único movimento que procurou divulgar os ideais feministas criando as bases para uma nova conceção do papel da mulher na sociedade foi, no entanto, o que conseguiu as estruturas mais sólidas que lhe permitiu ser um expressivo grupo de pressão junto do poder político, designadamente através: do número de associadas que alcançou; da quantidade de núcleos locais que se constituíram; dos órgãos de imprensa própria que manteve; do acesso a outros periódicos onde publicavam artigos e noticias e da influência junto dos órgãos decisores republicanos (Esteves, 1991). O próprio Partido Republicano Português apoiou a criação da Liga reconhecendo a importância de congregar num único movimento todas as mulheres que, reconhecidas pelo seu prestígio e valor intelectual, lutaram pelos ideais republicanos. Sofrendo a influência das ideias iluministas e positivistas, o republicanismo apresenta-se como uma visão do mundo assente numa explicação geral da natureza e da sociedade onde os interesses específicos dos grupos sociais se diluíam no interesse geral. A crença na perfectibilidade do homem, conseguida através da educação e inoculação dos princípios de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, justificaria a crença ilimitada no progresso que conduziria a humanidade a uma forma de governo universal e à pacífica convivência entre os povos. O cidadão republicano deveria ser um exemplo de patriotismo, noção de dever, solidariedade e responsabilidade. Este aperfeiçoamento moral seria indissociável do aperfeiçoamento do corpo. O homem republicano deveria conservar e melhorar a sua saúde, sendo um cidadão vigoroso e enérgico, dedicado ao trabalho e ao estudo, com um forte sentimento patriótico. Os ideais republicanos assentavam na crença da perfectibilidade da ciência que tudo explica e que conduzirá o Homem no caminho da harmonia e do progresso.

As mulheres viram nos ideais republicanos a possibilidade de modificarem o seu papel na sociedade e, por sua vez, os republicanos evidenciaram a importância das mulheres como educadoras dos futuros cidadãos, ao veicular nos seus filhos a nova ideologia da República, como aliás é expresso nos Estatutos da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, quando estabelecem a finalidade de “Orientar, educar e instruir, nos princípios democráticos a mulher portuguesa, como mãe de família, esposa, filha educadora, tornando-a um individuo autónomo e consciente pois que só um novo regímen libertado de preconceitos poderá trazer á sociedade portuguesa a consciência e responsabilidade do povo livre e altivo” (Estatutos da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, 1909, p. 11).

A LRMP utilizou a palavra escrita como o veículo privilegiado de propaganda do seu ideário, seguindo o fenómeno de expansão da imprensa periódica, sobretudo desde os finais do século XIX. Deste modo, as principais ativistas da Liga não só escreviam em jornais generalistas, mas principalmente na sua própria imprensa periódica oficial, de distribuição nacional: “A Mulher e a Criança”, revista mensal publicada entre 1909 e 1911, e “A Madrugada”, jornal publicado entre 1911 e 1918.

A criação de condições que permitissem a independência económica da mulher em relação ao marido ou à família foi um dos campos privilegiados de atuação da Liga. E essa só seria conseguida através do exercício duma atividade profissional. A Liga será particularmente ativa em fomentar “a instrução da mulher através do ensino de certas profissões e do estímulo pela aprendizagem de temáticas verdadeiramente úteis, que não meros conhecimentos teóricos veiculados nas escolas, ou em casa, e que para pouco serviam, sobretudo em momentos de maior aflição” (Esteves, 1991, p. 83).

A educação e instrução da mulher e a independência económica são assim dois dos campos de intervenção mais expressivos desta associação. Só com educação e instrução adequadas as mulheres poderiam evitar a miséria económica e moral: “…é por haver tão grande descuido na educação da mulher que existem tantos males na sociedade. A maior parte daquelles que nos educam, não pensam que, da educação que nos dão, depende quasi sempre o futuro do paiz” (d’ Azevedo, 1909, p. 6 -7). Anna de Castro Osório, uma das principais e prestigiadas dirigentes da Liga, afirmava: “uma das nossas maiores vergonhas nacionaes é, por certo, o analfabetismo, mas o que agrava essa vergonha é que, no continente, é a grande maioria das mulheres que eleva pavorosamente a cifra dos analfabetos” (1905, p. 21). Assim, nas escolas oficiais e nos centros republicanos, a instrução foi um dos campos de ação mais significativos da Liga, uma vez que, só instruída, a mulher se poderia tornar uma cidadã reconhecida, com um novo posicionamento na sociedade. A instrução não teria apenas como objetivo tornar a mulher uma pessoa culta. Pretendia, também, dotá-la de conhecimentos que lhe possibilitassem o exercício de diferentes profissões, criando-se assim as condições que lhe permitissem a independência económica perante o marido e a família: “Educar a mulher dando-lhe meios de poder auferir com o seu trabalho o suficiente para a sua sustentação – quando é só - de auxiliar o homem, esgotado pelo trabalho de sobre-posse que lhe exige a concorrência e a carestia da vida moderna, - quando casada, - parece-nos a maneira mais pratica de a tornar um ser livre, apta a escolher por motu-proprio o caminho a seguir direitamente na vida.” (Osório, 1905, p. 46).

A questão do exercício duma profissão era uma questão premente para as feministas uma vez que, por viuvez ou abandono, muitas mulheres se viam sem qualquer meio de subsistência, caindo na miséria ou na prostituição. A dignificação do trabalho feminino e, por consequência, da mulher é uma constante em artigos da imprensa da Liga. Sublinhando o valor do trabalho, “o trabalho fortifica a vontade, salubrisa o espirito” (Zuzarte, 1913, p. 3) utilizam-se por vezes os exemplos internacionais (estatísticas sobre o numero de mulheres em diferentes profissões nos Estados Unidos, por exemplo) para mostrar o avanço civilizacional que representa o trabalho da mulher: “Recebida a princípio com risos e troças, a mulher que vive do seu trabalho é hoje absolutamente respeitada e querida nos povos que marcham na vanguarda da civilização” (Zuzarte, 1913, p. 3). Contesta-se também o casamento como um meio para alcançar a independência: “o seu futuro, a sua independência, se não é rica, é ter um modo de vida, uma profissão” (Pereira, 1914, p. 3). Mas na Liga estas posições coexistiam com outras que só defendiam o trabalho feminino se este não colidisse com as obrigações domésticas da mulher. Assim, a revista “A Mulher e a Criança” dedica muitos números ao ensino da sericultura que, sendo uma indústria caseira, poderia ser um complemento ao orçamento familiar sem retirar muito tempo aos afazeres domésticos.

A Enfermagem na imprensa da Liga

Em Portugal, na transição do século XIX para o século XX assiste-se a um debate aceso entre os defensores da enfermagem religiosa e os da enfermagem laica à semelhança do que ocorria noutros países da Europa, como, por exemplo, em França.

Embora as ordens religiosas tivessem sido extintas legalmente em 1834, o que conduziu a uma degradação da enfermagem em Portugal (Pedrosa, 2004), elas voltaram a instalar-se no país a partir de 1901, depois duma lei que autorizava o seu regresso desde que dedicadas a atividades educacionais ou caritativas (Marques, 1991). Na altura da proclamação da república existiam no país 31 congregações ou associações religiosas que dirigiam centenas de hospitais, sanatórios, asilos e escolas (Marques, 1991). Contudo, nos hospitais mais importantes do país (Hospitais da Universidade de Coimbra, Hospital Real de S. José, Hospital Geral de Santo António da Santa Casa da Misericórdia do Porto), locais de aprendizagem médica, a enfermagem era laica, exercida por homens e mulheres, e foi neles que se criaram as primeiras escolas de enfermagem (Soares, 1997). A necessidade da formação de enfermeiros era de há muito sentida pelos médicos, decorrente da crescente complexidade dos cuidados de saúde, mas na transição do século os enfermeiros que trabalhavam nos principais hospitais aprendiam as bases do seu trabalho na prática, informalmente ensinados pelos médicos.

O final do século XIX é um momento de grande desenvolvimento da ciência e de importantes descobertas que, no campo da medicina, introduzem novos processos diagnósticos e terapêuticos. Os trabalhos de Pasteur e a descoberta dos agentes bacterianos específicos na etiologia das doenças infecciosas obrigam a rever as teorias até aí existentes sobre o contágio e, em consequência, conduzem a novas formas de organização do trabalho nos hospitais.

É neste contexto que decorre a discussão sobre a enfermagem laica versus enfermagem religiosa. Os que defendem a enfermagem laica, e sobretudo a necessidade de uma preparação mais científica das enfermeiras, argumentam com o desinteresse das religiosas pelo trabalho técnico e pela desobediência a regras e ordens necessárias ao bom funcionamento das enfermarias.

Em 1900, respondendo aos defensores do trabalho das religiosas, Miguel Bombarda, médico psiquiatra e empenhado republicano (foi chefe civil do comité revolucionário que implantou a República em 5 de Outubro de 1910) resume em 15 os requisitos necessários para que “a assistência congreganista fosse acceitavel para um medico”(Bombarda,1910, p. 35) como, por exemplo: inscrição em cursos de enfermagem, noções de asseio, vestuário adequado ao trabalho com os doentes, completa subordinação técnica aos médicos, obediência às prescrições clínicas, obrigação de imparcialidade no socorro aos doentes, subordinação dos deveres religiosos ao serviço dos doentes. Reconhece o valor das enfermeiras laicas afirmando: “os hospitaes de Lisboa estão servidos por larga população de enfermeiras, ás quaes nada mais se póde exigir além do que já dão em zelo, dedicação e nítida comprehensão dos seus deveres” (Bombarda, 1910, p. 5). E acrescenta que a instrução técnica que as enfermeiras têm só poderia melhorar “se entre nós se estabelecessem as escolas de enfermagem, como as que em Paris funcionam com grande proveito dos doentes e até da fazenda hospitalar” (Bombarda, 1910, p. 6). Nos seus artigos, Miguel Bombarda utiliza sempre a palavra enfermeira, seguindo já a tendência que se desenvolvia em países como a França e a Grã-Bretanha, onde se considerava a enfermagem como uma profissão à qual se adequavam as características femininas. E é particularmente elogioso referindo que “a dedicação das enfermeiras dos nossos hospitaes tem chegado a traduzir-se por verdadeiros actos de heroísmo, que se arriscam em nome do dever e fóra de preoccupações mysticas, que estão longe de reflectir-se por modo innocente na pratica de enfermagem” (Bombarda, 1910, p. 6).

É neste ambiente de argumentação que na imprensa da Liga surgem referências à enfermagem. Primeiro referida como trabalho doméstico, depois como profissão que a mulher portuguesa “há-de em breve procurar” (Enfermagem, 1910, p. 6). A pluralidade de opiniões existente no seio da Liga permite compreender esta diferença de opiniões. Logo no primeiro número da revista A Mulher e a Criança inicia-se uma secção intitulada Escola Doméstica, onde se considera: “É da maior conveniência para todas as mães de familia saberem prestar os primeiros socorros a qualquer doente, num caso de desastre ou de doença repentina, e por isso, abrindo a secção Escola domestica na nossa revista não poderíamos deixar no esquecimento o mister de enfermeira, em que a mulher sempre se tem distinguido pela perícia, bondade e abnegação com que acerca da cabeceira dos enfermos. E assim hoje começaremos por uma das coisas que mais necessárias são a uma boa enfermeira, a de saber fazer ligaduras com solidez e perfeição” (Escola doméstica, 1909, p. 9). Não só a enfermagem é associada às competências de uma boa mãe de família, como é referida como mister ou seja um ofício onde se evidenciam características próprias duma mulher: perícia, bondade, abnegação. A enfermagem é referida como mais uma das tarefas árduas do complexo trabalho doméstico que abrange tudo. Nesta secção ensina-se a fazer ligaduras, a tratar contusões, como atuar perante fraturas e entorses.

Em dezembro de 1909, na revista “A Mulher e a Criança” e em resposta às perguntas colocadas pelas leitoras, surge pela primeira vez a referência à enfermagem como profissão na publicitação do curso oficial de enfermeiras ministrado no Hospital de S. José (a escola Profissional de Enfermeiros do Hospital Real de S. José iniciou o curso de enfermagem em 1901, aberto também a alunos exteriores ao hospital), “para o qual é bom que se dirija a atenção das mulheres” (Curso de enfermeiras, 1909, p. 8). Aí se refere que o curso é frequentado por 18 alunas, empregadas do hospital, o que “É pouco, é muito pouco mesmo, mas o futuro nos trará muitas, quando a mulher bem compreender o seu dever e deliberadamente caminhar para uma existência mais enobrecida pelo trabalho que dá a independência e a nobre altivez.” (Curso de enfermeiras, 1909, Bombarda, 1910, p. 8). O texto refere as condições necessárias para admissão no curso: idade igual ou superior a 18 anos e inferior a 24, saber ler, escrever e contar, robustez física (“necessária para os perigosos encargos do mister a que se propõe e de ter sido vaccinado e de não sofrer de moléstia contagiosa”), e ter bom comportamento, atestado pelo pároco, pelo regedor e por registo criminal. O artigo termina com a referência à necessidade de qualificação não só técnica como moral para o exercício da enfermagem e a necessidade de qualificar a profissão eliminando o pessoal não qualificado para o seu exercício: “É urgente que se eleve o número das enfermeiras diplomadas para termos autoridade de impedir que exerçam o mister aquellas que de conhecimentos technicos, como de higiene material e moral tem a mais absurda e inferior das noções.” (Curso de enfermeiras, 1909, p. 8). Nos números seguintes, a secção “Escola Doméstica” passa a ter como subtítulo “Enfermagem” e aí continua o elogio da profissão considerando a grandeza da sua missão e um modo de vida que trará respeitabilidade e independência à mulher: “é, sem duvida, uma das profissões que a mulher portuguêsaha-de em breve procurar exercer conscientemente, não só porque é um modo de vida que a torna útil, independente e respeitada por todos que saibam encarar a grandeza da sua missão, como também porque ela representa para a mulher na familia uma das suas mais necessárias aptidões” (Enfermagem, 1910, p. 6).

No número de outubro de 1910, na secção “Expediente da Liga”, faz-se o relato duma assembleia-geral ocorrida no dia 19 desse mês onde Anna de Castro Osório, presidente da Liga, apresentou à assembleia várias propostas para discussão, entre as quais “A Liga deve interessar-se pela propaganda da escola de enfermeiras, levantando uma classe que tão necessária se torna ao nosso pais e agora mais que nunca, visto a expulsão das congreganistas que desempenhavam esses logares em quasi todos os hospitaes do pais” (Expediente da Liga, 1910, p. 11). Este apelo foi aprovado por unanimidade.

A revista “A Mulher e a Criança” terminou em maio de 1911 por razões económicas e foi substituída por um jornal, também mensal, “A Madrugada”, que pretendia ser mais acessível. A sua publicação inicia-se em agosto de 1911 e termina em 1915. Apesar de nos números existentes em arquivo não haver mais referências à enfermagem, julgamos poder inferir que o trabalho de propaganda da Liga continuou uma vez que, sempre que a República precisou, conseguiu reunir um grupo de enfermeiras, como se refere no jornal de 31 de julho de 1912 (A derrota de Couceiro, 1912) quando se elogia a prontidão com que se conseguiu reunir um grupo de enfermeiras dispostas a atuar na luta contra o general Paiva Couceiro.

 

Conclusão

“Saúde e Fraternidade” era uma das expressões de saudação entre os republicanos. Adotada por decreto (Diário do Governo nº 4 / 10) para aplicação na correspondência oficial passou também a ser usada como uma forma de saudação popular. Ela exprime uma das principais ideias do republicanismo, que considerava que a democracia só se alcançaria com cidadãos saudáveis, instruídos e educados.

Se estes ideais, no campo político, se traduziram no combate a um regime considerado decadente, no campo da saúde traduziram-se por uma luta contra as condições degradantes existentes nos hospitais do país. Alguns dos mais conhecidos médicos como Miguel Bombarda ou Curry Cabral, com prestígio internacional, bateram-se pela criação dum corpo de enfermeiras cientificamente preparado, que pudesse trabalhar ao lado do médico, com competência. Esta ideia da enfermeira laica, cientificamente preparada e competente sobrepunha-se à da enfermeira religiosa sem conhecimentos científicos e apenas cumpridora dos seus deveres religiosos, tal como no ideário republicano a ciência se opunha à religião, considerada uma o caminho do progresso da humanidade e a outra o caminho do obscurantismo. Deste modo, podemos compreender que as feministas da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, ao aderirem ao ideário republicano e ao defenderem o trabalho como uma forma de alcançar a autonomia feminina e a independência económica em caso de abandono ou viuvez, incluíssem a enfermagem na lista das suas reivindicações transmitindo uma imagem de profissão digna e honrosa, necessária no auxílio aos que sofrem. Sendo uma profissão desde sempre associada a características femininas, no nosso país a sua dignificação surge, nomeadamente através da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, não só com o sublinhar dessas mesmas características, como a abnegação, a dedicação, a noção do dever e da responsabilidade, características estas não reconhecidas nas religiosas, mas também com a ênfase na preparação científica, agora imprescindível para o seu exercício, tornando as enfermeiras competentes para trabalhar à luz dos novos conhecimentos científicos na área da medicina. E surge ligada à divulgação e consolidação dos ideais republicanos no nosso país.

 

Referências Bibliográficas

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Recebido para publicação em: 02.03.12

Aceite para publicação em: 25.09.12

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