SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.serIII número5Salud mental en la atención primaria: cómo se configura la producción del conocimiento en BrasilEfecto de la estimulación cognitiva en los ancianos índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Indicadores

Links relacionados

  • No hay articulos similaresSimilares en SciELO

Compartir


Revista de Enfermagem Referência

versión impresa ISSN 0874-0283

Rev. Enf. Ref. vol.serIII no.5 Coimbra dic. 2011

https://doi.org/10.12707/RIII1145 

Funções e condições de trabalho de um enfermeiro no Hospital de S. José (meados do século XIX)

 

Carlos Lousada Subtil*; Margarida Vieira**

* Mestre em Ciências da Educação. Doutorando em Enfermagem (Especialidade de Filosofia e História da Enfermagem). Instituto de Ciências da Saúde | Porto - Universidade Católica. Professor Coordenador. Escola Superior de Saúde | Instituto Politécnico de Viana do Castelo [carloslousadasubtil@gmail.com].

** Doutora em Filosofia. Professora Associada. Instituto de Ciências da Saúde | Porto - Universidade Católica

 

Resumo

Os enfermeiros portugueses possuem hoje diversos instrumentos e meios que regulam o exercício profissional. Todavia, a consolidação do processo identitário obriga a um esforço de clarificação das práticas e dos contextos da profissão em períodos históricos anteriores, nomeadamente no período da monarquia constitucional.

Pretende-se contribuir para o esclarecimento do estatuto profissional e social do enfermeiro contido no Regulamento do Hospital de S. José, de 21 de janeiro de 1851.

Procedeu-se à consulta e análise daquele regulamento e da Coleção de Orçamentos de Estado (1836-1862), segundo a metodologia da análise histórica.

Apresentam-se aspetos do ambiente físico e económico do hospital, a posição do grupo dos enfermeiros em relação aos outros empregados, a organização do dia-a-dia nas enfermarias e as funções dos diferentes empregados.

Os empregados formavam dois grupos: os empregados maiores e os empregados menores onde se incluíam os enfermeiros.

O enfermeiro - figura central nas rotinas e gestão da enfermaria, tinha funções de supervisão dos ajudantes e moços. Os ajudantes eram quem realizava os cuidados aos doentes.

Seria útil prosseguir este estudo em períodos subsequentes ou fazer um estudo comparativo com o Hospital Termal das Caldas ou um hospital sob a tutela das Misericórdias.

Palavras-chave: história; século XIX; história da enfermagem; prática da enfermagem.

 

Functions and working conditions of a nurse at the Hospital de S. José (mid-19th century)

Abstract

Portuguese nurses currently have several tools and ressouces that regulate their professional practice. Nevertheless, the consolidation of the identity process requires efforts to clarify the practices and contexts of the profession in earlier historical periods, namely during the constitutional monarchy.

We intend to contribute to clarifying the professional and social status of the nurse stated in the Regulation of Hospital de S. José, of 21st January 1851.

We consulted and analysed the Regulation and Colection of State Budgets (1836-1862), using the historical analysis method.

We present aspects of the physical and economic environment of the hospital, the position of the nursing staff compared with the other employees, the daily organization in wards and the role of each employee.

They were two groups of employees: employees with major functions and employees with minor functions, which included nurses.

The nurse – central figure in the management and routines of the ward– had supervisory responsibilities over nursing assistants and ”moços”. Patient care was perfomed by nursing assistants.

It would be useful to conduct further research on subsequent periods or carry out a comparative study with either the Hospital Termal das Caldas or another hospital run by the Misericórdias.

Keywords: history; 19th Century; history of nursing; nursing practice.

 

Funciones y condiciones de trabajo de un enfermero en el Hospital de S. José (a mediados del siglo XIX)

Resumen

Los enfermeros portugueses disfrutan hoy diversos instrumentos y medios que regulan el ejercicio profesional. Sin embargo, la consolidación del proceso identitario obliga que se realice un esfuerzo de aclaración de las prácticas y de los contextos de la profesión en periodos históricos anteriores, en especial durante el periodo de la monarquía constitucional.

Se pretende contribuir a la elucidación del estatuto profesional y social del enfermero contenido en el Reglamento del Hospital de S. José, del 21 de enero de 1851.

Se procedió a la consulta y análisis del Reglamento y de la Colección de Presupuestos del Estado (1836-1862), según la metodología de análisis histórica.

Se presentan aspectos del ambiente físico y económico del hospital, la posición del grupo de enfermeros respecto a los demás trabajadores, la organización del día a día en las enfermerías y las funciones de los diversos empleados.

Existian dos grupos de empleados: los mayores y los menores donde estaban incluidos los enfermeros.

El enfermero - figura central en las rutinas y gestión de la enfermería - tenía funciones de supervisión de los auxiliares de enfermería y ”moços”. Los auxiliares eran quienes realizaban los cuidados a los enfermos.

Sería útil proseguir este estudio en periodos subsecuentes o realizar un estudio comparativo con el Hospital Termal de Caldas o un hospital bajo la tutela de las Misericordias.

Palabras clave: historia del siglo XIX; historia de la enfermería; enfermería en salud pública; inmunidad.

 

Introdução

Sendo o Hospital de S. José um hospital real, o mais importante do reino onde acorriam “enfermos de todos os pontos do Reino a procurarem alivio a seus males”, é nele que encontrámos os primeiros modelos de regulamentos hospitalares do período da monarquia constitucional, entre os quais o “Regulamento das Enfermarias do Hospital Nacional e Real de S. José e seus anexos” a que se refere Salgueiro num artigo a propósito da história do vestuário do pessoal de Enfermagem (Salgueiro, 2000, pp. 79-87). É este Regulamento que analisaremos em detalhe.

À sua publicação, em 21 de janeiro de 1851, seguiram-se outros. No seu conjunto, estabeleciam as regras de governação do hospital relativamente a: funções dos vários empregados das enfermarias, admissão de doentes, regime de visitas, serviço e fiscalização da dispensa e da cozinha, funcionamento e serviço da Botica e, finalmente, funcionamento do Hospital de Alienados de Rilhafoles, que se tinha constituído em 1842 como uma unidade específica para o tratamento dos alienados que, até então, eram admitidos no Hospital de S. José, em “casas” que, devido à sua estreiteza e insalubridade, as tornavam “absolutamente impróprias para o curativo da alienação mental, servindo antes de tormento, que de alívio às infelizes vitimas daquela terrível enfermidade” (Silva,1842).

 

Metodologia

A primeira metade do século XIX é um período da maior importância para compreender o processo de desenvolvimento dos serviços de saúde pública e hospitalares em Portugal.

Com o presente trabalho, pretende-se contribuir para o esclarecimento do estatuto profissional e social do enfermeiro e da sua posição relativamente a outros grupos de empregados que lhes eram hierarquicamente superiores e inferiores.

Para tanto, consultámos o “Regulamento das Enfermarias do Hospital Nacional e Real de S. José, e annexos”, de 21 de janeiro de 1851, e os orçamentos de Estado apresentados às Cortes no período entre 1838 e 1851, disponíveis na Biblioteca Digital do Ministério das Finanças e Administração Pública, e submetêmo-los a um processo de análise histórica inspirada na arqueologia e genealogia de M. Foucault.

 

Resultados

Antes de apresentar as atividades dos enfermeiros e enfermeiras definidas no Regulamento, faremos a descrição de alguns aspetos que ajudam a compreender o ambiente físico e económico do hospital e a posição do grupo dos enfermeiros em relação aos outros empregados.

A estrutura física

Compilando a informação disponível neste Regulamento e no Orçamento atribuído ao hospital no ano de 1851, é possível fazer uma aproximação à estrutura física do hospital (figura 1). As enfermarias eram em número de dezoito e designadas com nomes de santos, a avaliar pela descrição que consta dum modelo de impresso para registo das sanguessugas distribuídas pelas várias enfermarias. Na 1ª. Secção, as enfermarias de S. José, S. Sebastião, S. Roque, S. Miguel, S. Catarina, Nossa Senhora do Carmo e Santa Ana, para além de quartos particulares para homens e mulheres; na 2ª. Secção, as enfermarias de S. António, S. Pedro, S. Onofre, S. Amaro, S. Francisco, S. Carlos, S. João Batista, S. Quitéria, S. Margarida, S. Bárbara, S. Maria Madalena, para além do Banco.

 

FIGURA 1 – Hospital Real de S. José, em Lisboa. Gravura de C. Legrand, 1840.

 

Havia ainda uma botica, a cozinha, despensa, depósito de roupas e utensílios, arrecadações, uma abegoaria e um terreno contíguo ao hospital.

Os serviços administrativos eram compostos por uma tesouraria, uma casa dos assentos dos enfermos, uma contadoria, um cartório e um foro com um síndico e um solicitador.

A igreja tinha um cura, um tesoureiro e 6 capelães, para além de 4 moços da capela e um porteiro.

O orçamento do hospital e o vencimento dos seus empregados.

No período 1838-1851, a tendência geral das contas foi para o equilíbrio entre as receitas e despesas, registando-se um défice nos anos 46-47 e um valor máximo de despesa em 1848, mais 57% da que tinha sido feita em 1837. Todavia, a partir desse ano, a despesa começou a diminuir atingindo em 1851 um valor praticamente igual à de seis anos atrás (Gráfico 1).

 

GRÁFICO 1 - Evolução das receitas e despesas do H. S. José (1838-1851)

 

As três principais estratégias de contenção de despesas consistiram na elaboração e cumprimento rigoroso dos orçamentos (os orçamentos eram bastante descriminados e incluíam mapas comparativos com a série dos cinco anos antecedentes), numa política de aquisição de bens por arrematação em praça e numa forte fiscalização sobre a botica e todas as outras repartições.

Em 1841-1842, o número de doentes tinha sido de 1.343 e, para esse ano, tinham-se previsto 1400 admissões. Na apresentação do Orçamento para 46- 47, a direção do Hospital receava que faltassem os meios necessários para custear as despesas com o tratamento dos doentes se a sua afluência continuasse na progressão que se tinha observado naqueles últimos tempos.

Nos orçamentos da despesa prevista para este período, verifica-se uma certa estabilidade e manutenção no quadro do pessoal e nos vencimentos anuais, apenas com pequenos ajustes.

Os vencimentos, à exceção dos médicos, eram compostos pelo ordenado, comedorias, gratificações e propinas. Por exemplo, no ano 1844-45, o valor do vencimento anual dum enfermeiro (101$980), compunha-se do ordenado propriamente dito (57$600), de comedorias (43$800) e propinas ($580), correspondendo, respetivamente, a 56,5%, 43% e 0,5% daquele vencimento anual.

Os vencimentos mais elevados eram os dos empregados dos serviços administrativos do hospital. O contador tinha um ordenado de 1.000$000 e o chefe de repartição 500$000 bem como o tesoureiro; o síndico (bacharel em Direito) vencia 400$000.

Sem prejuízo duma análise mais detalhada, o vencimento dos empregados das enfermarias (Quadro 1) sugere a seguinte hierarquia em termos de estatuto socioprofissional: médicos, cirurgiões, mestres de sangria, irmão maior, enfermeiros(as) e parteiras, ajudantes, porteiros, moços de enfermaria, cristaleiros, barbeiros e costureiras. O médico ocupava o topo da pirâmide com um ordenado de 320$000. Seguiam-se os irmãos maiores que não constituíam propriamente um grupo “técnico”. Eram extensões de controlo da direção nas enfermarias e outros serviços, como, por exemplo, na cozinha. O seu ordenado era inferior ao dos cirurgiões mas como tinham suplementos constituídos por comedorias, gratificações e propinas, acabavam por ter um vencimento que lhes permitia ocupar o segundo lugar na hierarquia de vencimentos, a seguir aos médicos. O vencimento do cirurgião era pouco mais de 60% do médico.

 

QUADRO 1 – Vencimento anual dos empregados das enfermarias nos anos 1844-45 e 1951-52

 

Os enfermeiros, juntamente com os porteiros das enfermarias, eram os grupos imediatamente abaixo nesta escala. Em 1851, os enfermeiros tinham um ordenado que correspondia a cerca de 1/3 do ordenado do médico e o ordenado das enfermeiras era inferior em 10% ao dos enfermeiros.

O grupo dos porteiros foi sofrendo uma estratificação salarial acabando com três níveis remuneratórios embora a designação fosse sempre a mesma. No grupo dos ajudantes, a diferenciação nos vencimentos refletia-se ou refletia a evolução para uma diferenciação categorial: os de 1ª, 2ª, e 3ª classe. Considerando o conjunto das três classes, em média, o seu salário era 60% do enfermeiro.

O(a) cristaleiro(a) e o barbeiro auferiam o mesmo salário que o ajudante de 1ª classe.

Em 1851-52, as parteiras tinham o mesmo salário dos enfermeiros.

As lavadeiras e costureiras estavam ao nível do salário dos porteiros, barbeiros, cristaleiros e ajudantes de 1ª classe.

O salário do mestre de sangria (79$800) estava ao nível do ajudante de 3ª classe e dos porteiros de enfermaria.

O grupo dos moços sempre existiu ao longo deste período e, na escala de vencimentos, estavam acima dos ajudantes embora desempenhassem trabalhos menores.

Em termos salariais, desenha-se assim uma relação de dependência hierárquica dos ajudantes e moços face aos enfermeiros e, destes aos cirurgiões e médicos, como iremos constatar pelas funções de cada um.

A organização do dia-a-dia e rotinas nas enfermarias

O dia decorria segundo a rotina descrita no Mapa 1, mediante um horário que mudava com as estações do ano: o horário de verão começava em 1 de abril e o de inverno a 1 de outubro. Tomando por referência o horário de verão, a azáfama começava às 4 horas, com a presença dos moços nas enfermarias, a fazer a limpeza de boiões. Os enfermeiros e ajudantes entravam às 6 horas. Havia 3 momentos de distribuição/administração de remédios e, em igual número eram as refeições: o almoço às 7.30 horas, o jantar ao meio-dia e a ceia às 19 horas.

 

MAPA 1 – Rotina diária nas enfermarias do Hospital de S. José segundo o Regulamento das Enfermarias de 1851

 

As funções dos empregados das enfermarias

O hospital era gerido por uma comissão administrativa e tinha um quadro de pessoal administrativo e de outros serviços de apoio a que já fizemos referência. O Regulamento estabelecia o serviço dos vários grupos de empregados cuja composição numérica e percentual está representada no Quadro 2, elaborado a partir do orçamento do hospital para o ano de 1851- 52. O grupo mais extenso é o dos ajudantes (47,6%), depois o dos moços (25,4%) e o dos enfermeiros (11,1%).

 

QUADRO 2 – Quadro do pessoal das enfermarias do Hospital de S. José (1851)

 

Os facultativos e cirurgiões. Os facultativos eram responsáveis pela direção clínica e higiénica das enfermarias e pela inspeção e fiscalização do serviço dos enfermeiros, ajudantes e moços. Para além destas funções, deviam fazer a visita diária aos doentes, supervisar o cumprimento da prescrição de dietas e medicamentos, requisitar o material necessário aos curativos e demais material necessário ao bom funcionamento do hospital, exercer ação disciplinar sobre os demais empregados das enfermarias, distribuir, transferir, dar alta aos doentes e ordenar a remoção de cadáveres, permitir visitas, inspecionar víveres e géneros, propor os melhoramentos necessários ao serviço médico e participar em júris de concursos para os lugares de cirurgiões, entre outras. Para além dos facultativos, havia os cirurgiões. De entre os facultativos e cirurgiões, constituía-se uma junta consultiva paritária com 4 membros. Esta reunia-se às quintas e domingos para examinar os doentes, receitar e indicar os meios adequados ao seu curativo.

O irmão-maior. Era um elemento chave na estrutura do hospital. Em cada semana havia um irmão-maior de serviço que era obrigado a permanecer no hospital durante esse período. Eram pessoas de reconhecida probidade e zelo pelo bom serviço, com conhecimentos especiais do hospital, devendo saber ler, escrever e contar corretamente. Em caso de igualdade de circunstâncias, no provimento do lugar, preferia-se o que fosse casado ao solteiro.

Exerciam funções de superintendência sobre os vários aspetos de gestão do hospital e dos seus empregados; tinham a prerrogativa de castigar os seus subordinados e tomar decisões sobre assuntos inesperados e não previstos no regulamento. Como uma espécie de administradores ou governantes, serviam de instância mediadora entre a comissão administrativa, os facultativos e os outros empregados. Nas enfermarias de mulheres, as funções do irmão-maior eram desempenhadas pela regente.

Os enfermeiros. Para enfermeiro, eram admitidos aqueles que demonstrassem ter prática do serviço no hospital, soubessem ler, escrever e contar e dessem provas de probidade e bons costumes.

As funções dos enfermeiros(as) distribuíam-se, fundamentalmente, em duas áreas:

Coordenação e gestão da prestação de cuidados e assistência religiosa:

Distribuição dos remédios (a serem administrados pelos ajudantes) de forma a evitar equívocos, trocas e desperdícios, assegurando-se que o doente tomava a quantidade certa do medicamento prescrito. Para tanto, nenhum outro serviço podia ser executado sem que este estivesse concluído. O enfermeiro não podia retirar-se da enfermaria sem se certificar que todos os remédios tivessem sido administrados; supervisão do serviço de camas feito pelos ajudantes; supervisão dos cuidados de higiene (prestados pelos ajudantes) aos doentes que “pelos seus padecimentos graves, se tornarem immundes, serão lavados com agua morna, como for mais conveniente, ficando enxutos e bem accommodados, isto com o esmero que cumpre haver com elles, tanto por obrigação, como pelo desempenho dos deveres de caridade christã”, e aos admitidos a quem se dava banho total ou parcial e corte de cabelo e barba, sendo necessário; supervisão da execução dos curativos pelos ajudantes; distribuição do pão aos doentes antes da chegada do tabuleiro à enfermaria, prova dos alimentos (temperatura e qualidade), e supervisão da distribuição das refeições (pelos ajudantes) para que a comida não arrefecesse e o doente tomasse a dieta prescrita (tipo e quantidade); acompanhamento da visita do facultativo com todos os seus ajudantes para que estes prestassem os serviços que fossem necessários aos doentes; anotação na sua pauta das prescrições de remédios e dietas de forma clara para evitar equívocos e prejuízos ao doente; elaboração do mapa diário com a relação dos medicamentos a administrar (tipo e hora) para entregar ao ajudante de piquete que faria o serviço sob a sua supervisão (pontualidade e acerto); na ausência do facultativo, e em caso de reconhecida urgência e necessidade ou a pedido do doente, providenciar a administração dos sacramentos; segundo uma escala, acompanhar o Sagrado Viático e, não podendo por imperativo do serviço, far-se-ia substituir pelo ajudante mais velho.

Envolvimento na gestão e administração das enfermarias e do hospital:

Mandar fazer a desinfeção do dia e as demais que fossem precisas; depositar na arrecadação da enfermaria a roupa dos doentes admitidos e, havendo haveres de valor, fazer a sua entrega na Tesouraria; mandar os moços recolher a roupa e enxergões sujos, varrer e lavar as partes sujas da enfermaria e limpar escarradeiras e urinóis; comunicar verbalmente ao facultativo ou ao irmão-maior qualquer defeito que encontrasse e, havendo reincidências, fazer a participação por escrito para seguir para a comissão administrativa; elaborar a relação de doentes transferidos; enviar as papeletas dos doentes com alta e falecidos para a Casa dos Assentos; fiscalizar o ajudante mais velho na limpeza e prontidão no envio dos utensílios de transporte de medicamentos para a botica; depois da ceia, deixar ficar ao ajudante de serviço a roupa para duas camas sobresselentes e o que demais fosse preciso para situações inesperadas (receituário, sangrias, ventosas, etc.); assegurar-se que os doentes não se deitassem calçados, não enxovalhassem as camas, não se deslocassem a outras enfermarias nem que na sua enfermaria houvesse doentes das outras; assegurar o silêncio, a moralidade e boa ordem; supervisar a visita de meia hora aos doentes, autorizada pela Comissão ou facultativo; elaborar as escalas de piquete dos ajudantes e moços de forma equitativa; responsabilizar-se pela arrecadação da sua enfermaria, sendo punido em caso de faltas graves; responsabilizar-se por todos os objetos de inventário; requisitar o material necessário para o bom funcionamento do serviço; elaborar semestralmente um relatório para o irmão-maior sobre o serviço prestado pelos ajudantes e moços da sua enfermaria; ao enfermeiro de ronda competia fazer a vigilância para que os ajudantes e moços que estivessem de piquete permanecessem acordados, resolver ocorrências, providenciar silêncio e não consentir que a limpeza da madrugada fosse feita por baldeação.

Para ajudante - o grupo mais representativo - eram admitidos indivíduos com idade entre 17 e 30 anos que soubessem ler, escrever e contar e que tivessem abonação de bons costumes e vida regular.

Os ajudantes trabalhavam em dois piquetes: o primeiro, das 6 ½ - 20 horas e o segundo, das 20 às 6 ½ horas. O Facultativo podia conceder trocas de piquete mas não era permitido fazerem dois piquetes seguidos.

Os ajudantes tinham como funções: administrar os remédios; perguntar aos doentes quais os que queriam receber o Santíssimo Sacramento; fazer as camas; lavar os doentes acamados; distribuir o almoço, jantar e ceia; assistir à visita do facultativo para prestar o serviço que fosse necessário aos doentes; fazer os curativos com a maior caridade e esmero possível, tendo muito cuidado com o bem-estar dos doentes e a economia de panos e fios; ir com o moço buscar o pão à despensa e a comida à cozinha assegurando que se cumprissem as quantidades prescritas; acompanhar os moços que levavam e traziam as vasilhas dos remédios à botica.

Não se podiam ausentar da enfermaria sem serem substituídos por outro, deviam manter a enfermaria em sossego e, às Ave-Marias, mandar deitar os doentes que andassem em pé. Nas enfermarias de mulheres também havia ajudantes, do sexo feminino.

Quando qualquer enfermeiro ou ajudante se julgasse lesado pelo serviço ou qualquer outra razão podiam queixar-se diretamente à Administração, com o devido respeito e “não tumultuariamente”, caso contrário seriam despedidos.

Para moço, eram admitidos indivíduos com reconhecida robustez, atestado de boa vida e costumes e “recomendados” por dois abonadores estabelecidos em Lisboa que respondessem por qualquer desvio que o afiançado fizesse da fazenda do Hospital.

Os moços deviam permanecer nas enfermarias e: limpar os boiões; transportar enxergas, roupas e águas, resultante do asseio das camas e higiene dos doentes; varrer as enfermarias e lavá-las; amortalhar os cadáveres com decência e conduzi-los à Casa dos Mortos; trazer a água necessária para as enfermarias; transportar os tabuleiros da comida; lavar, limpar, levar e trazer a louça da cozinha, e o mesmo com as vasilhas da botica; dar de beber aos doentes a não ser que houvesse contraindicação do facultativo; fazer a limpeza geral (trimestral) e especial (semanal) dos utensílios de estanho das enfermarias, e a limpeza geral das enfermarias.

Era-lhes proibido trazer comida ou bebidas de fora do hospital, sendo o suficiente para serem despedidos. Os moços das enfermarias das mulheres, designavam-se criadas. Todo o moço podia queixar-se diretamente à Administração desde que o fizesse com o devido respeito; caso contrário, seria imediatamente despedido.

As parteiras tinham por função prestar às parturientes os serviços e socorros da sua arte, levar os recém-nascidos à pia batismal e levar à Santa Casa da Misericórdia os recém-nascidos “que não poderem alcançar melhor destino”. O primeiro serviço alternava com os dois últimos e eram desempenhados pelas duas parteiras, semanalmente. A que assistia aos partos permanecia dia e noite no hospital.

As parteiras deviam ter habilitação legal e serem abonadas de vida e costumes regulares.

 

Discussão

Apesar das dificuldades que assolavam o reino, o Hospital de S. José tinha uma estrutura bem diferenciada (espaços, serviços e recursos humanos) e um orçamento consolidado para satisfazer as exigências e necessidade de tratamento dos doentes, segundo os cânones e o conhecimento disponível na altura.

Para além das enfermarias e do banco, havia um setor administrativo que assegurava a gestão do hospital e os serviços de apoio indispensáveis à atividade nas enfermarias: botica, cozinha, igreja, despensa e abegoaria. Contudo, seriam condições que estavam aquém das preconizadas por Costa Simões em 1866 para os hospitais da Universidade de Coimbra e que são referidas no apêndice aos Relatórios das visitas que efetuou em vários hospitais e universidades da Europa (Simões, 1866).

Em termos orçamentais, constata-se um esforço de contenção que, à exceção dum curto período de tempo em que o orçamento foi deficitário devido às convulsões geradas pela Revolta da Maria da Fonte e a Guerra da Patuleia (Bonifácio, 2009), se gastou em função dos recursos financeiros disponíveis. Face ao teor dos relatórios orçamentais e ao estilo rigoroso em que é elaborado o próprio regulamento, é razoável supor que este resultado terá sido conseguido mais à custa duma gestão cuidadosa do que da degradação dos cuidados aos doentes.

O número de empregados foi-se mantendo estável ao longo dos anos. O mesmo não se poderá dizer do número de doentes que devia ter aumentado progressivamente, com reflexos na capacidade de resposta do hospital ou na carga de trabalho dos seus empregados. Não possuindo dados acerca doutras variáveis (v.g., o tempo médio de internamento), não podemos ir mais longe nesta análise.

A estrutura dos empregados é fortemente diferenciada e hierarquizada e isso está expresso no Regulamento mas, sobretudo, nas propostas de orçamento que refletem uma realidade a cumprir e uma diferenciação com base no critério objetivo do vencimento, para além de outros sinais de caráter mais simbólico como seriam as insígnias e as braçadeiras que viriam a ser usadas num período posterior (Salgueiro, 2000, p. 85). Os atores são vários e os seus vencimentos mantiveram-se estáveis durante este período em estudo.

O processo de laicização do designado irmão maior, dos enfermeiros e dos ajudantes está patente em várias passagens do regulamento onde não são feitas referências a religiosos cujas Ordens já tinham sido extintas em maio de 1834, por Decreto do Ministro Joaquim Augusto de Aguiar (Salgueiro, 2000, p. 80).

Os enfermeiros - um por enfermaria - tinham, sobretudo, funções de supervisão dos ajudantes e dos moços, e eram uma figura central nas rotinas e na gestão da enfermaria, sob a supervisão do irmão-maior, para além de desempenharem um papel próprio na assistência religiosa dos enfermos (administração dos sacramentos e procissão do Sagrado Viático). Tinham funções importantes para a qualidade dos cuidados tais como a de verificar a qualidade das refeições dos doentes.

Com os elementos disponíveis, não é possível definir o regime e o horário de trabalho dos enfermeiros e dos ajudantes nem tão-pouco o seu número ao longo do dia. Sabe-se apenas que o enfermeiro estava encarregue de elaborar as escalas de piquete dos ajudantes, que trabalhavam em dois turnos, o de dia com a duração de 13,5 horas e o da noite, com 10,5 horas. Havia a figura do enfermeiro de vela que só viria a ser extinta nos anos oitenta do século passado. Os ajudantes eram o grupo mais diferenciado, dividindo-se em três categorias com vencimentos diferentes, não porque tivessem funções diferentes mas, talvez, por antiguidade de serviço, critério que terá dado, mais tarde, origem ao regime de diuturnidades que subsistiu até há pouco tempo. Eram os ajudantes que, por excelência, realizavam os cuidados aos doentes: dar de comer, lavar, administrar os remédios e assistir na morte, para além doutros trabalhos menores relacionados com a higiene da enfermaria.

Uma nota final acerca da forma como eram descritos, no Regulamento, alguns pormenores dos cuidados a prestar pelos ajudantes, que se foram mantendo até aos nossos dias como aspetos essenciais da prática de cuidados de enfermagem.

 

Conclusão

Não estando no âmbito deste trabalho fazer a análise da evolução da carreira de Enfermagem, não podemos deixar, contudo, de fazer algumas referências para realçar os movimentos de diferenciação/ indiferenciação que se verificaram depois deste momento marcante e fundador na organização dessa mesma carreira.

É no grupo dos enfermeiros e dos ajudantes que se fundam os desenvolvimentos verificados já no século XX. Na década de setenta, foi abolido o grupo dos auxiliares, os herdeiros dos ajudantes que aqui estudámos. Criou-se um único grupo com uma crescente diferenciação que atingiu o seu máximo na carreira instituída em 1991, com quatro níveis e seis categorias, as de enfermeiro e enfermeiro graduado, enfermeiro especialista e chefe, supervisor e assessor técnico regional e, no topo, assessor técnico de enfermagem (Decreto-Lei nº. 437, 1991). O movimento em sentido contrário está atualmente presente num figurino em que se contempla apenas o enfermeiro e o enfermeiro principal com onze e cinco posições remuneratórias, respetivamente, subsistindo, embora, as categorias de enfermeiro-chefe e enfermeiro supervisor que tinham sido estabelecidas pela carreira anterior (Decreto-Lei nº. 122, 2010).

Na sequência deste trabalho, seria útil recorrer a outras fontes que permitissem reconstruir de forma mais detalhada as condições de trabalho dos enfermeiros neste período, proceder-se a outros estudos para o período subsequente e fazer um estudo comparativo com o Hospital Nacional da Vila das Caldas da Rainha, também régio, e com hospitais sob a tutela das Misericórdias.

 

Referências bibliográficas

BONIFÁCIO, M. F. (2009) - Uma história de violência política. Portugal de 1834 a 1851. Lisboa: Tribuna da História.

DECRETO-LEI nº. 122. D. R. I Série. 219 (10-11-11) 5099-5101.

DECRETO-LEI nº. 437. D. R. I Série-A. 257 (91-11-08) 5723-5741.

PORTUGAL. Biblioteca Nacional (2009) - Hospital Real de S. José, em Lisboa [Em linha]. Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal. [Consult. 22 Abr. 2011]. Disponível em WWW: http://purl.pt/12542.

PORTUGAL. Ministério das Finanças (2011) - Orçamento do Estado: orçamento apresentado às Cortes [Em linha]. Lisboa : Ministério das Finanças e da Administração Pública. [Consult. 22 Abr. 2011]. Disponível em WWW: http://213.58.155/bibliotecadigital/Orcamento1821_1863.htm.

SALGUEIRO, N. (2000) - O vestuário do pessoal de enfermagem (I): do negro ao branco imaculado. Referência. Série I, Nº 4, p. 79-87.

SILVA, Antonio Delgado (1842) - Collecção Official de Legislação Portugueza. Lisboa : Imprensa Nacional.

SIMÕES, A. A. (1866) – Relatório de uma viagem scientifica. Coimbra : Imprensa da Universidade.

VASCONCELOS, José Maximino de Castro e Neto Leite (1852) - Collecção Official da Legislação Portugueza. Lisboa : Imprensa Nacional.

 

Recebido para publicação em: 26.04.11

Aceite para publicação em: 19.08.11

Creative Commons License Todo el contenido de esta revista, excepto dónde está identificado, está bajo una Licencia Creative Commons