SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.15 número3O papel da China nos PALOP: o caso de Moçambique (Primeira Parte)Proposição do conceito Fit Strategy: estratégia de adequação para produtos populares índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Economia Global e Gestão

versão impressa ISSN 0873-7444

Economia Global e Gestão v.15 n.3 Lisboa dez. 2010

 

Saúde pública no Brasil: rede social, pacto de gestão e o Programa Mais Saúde Direito de Todos 2008-2011

 

Leonardo Trevisan1 e Luciano Prates Junqueira2

1 lntrevisan@pucsp.br Doutor em Ciências Políticas (Universidade de São Paulo, Brasil). Professor titular da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuárias da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (FEA PUC-SP). Professor no Programa de Estudos Pós-graduados em Administração (PUC-SP). PhD in Political Sciences (University of São Paulo, Brazil). Professor, Faculty of Economics, Business Administration, Accounting and Actuarial of the Pontifical Catholic University of São Paulo (FEA PUC-SP) and Programme of Post Graduate Studies in Business Administration from PUC-SP.

2 junq@pucsp.br Doutor em Saúde Pública (Universidade de São Paulo, Brasil). Professor titular da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuárias da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (FEA PUC-SP). Professor no Programa de Estudos Pós-graduados em Administração (PUCSP). PhD in Public Health (University of São Paulo, Brazil). Professor, Faculty of Economics, Business Administration, Accounting and Actuarial of the Pontifical Catholic University of São Paulo (FEA PUC-SP) and Programme of Post Graduate Studies in Business Administration from PUC-SP.

 

RESUMO

No Brasil, como determina a Constituição de 1988, a saúde é um «direito de todos e um dever do Estado«» Desde o início dos anos 1990, sucessivos programas procuram viabilizar essa exigência constitucional, reformando as normas do chamado Sistema Único de Saúde (SUS), cuja principal meta é universalizar o atendimento de saúde no País. O mais recente desses programas é o Mais Saúde Direito de Todos 2008-2011, anunciado em Dezembro de 2007, que propôs evolução formal nos processos de gestão do SUS, apresentando medidas estruturadas em sete eixos com objetivo de articular a dimensão econômica e social da saúde. O SUS funciona, desde 1996, na perspectiva operacional e interativa de um pacto de gestão. O princípio de rede foi utilizado pelo Programa Mais Saúde Direito de Todos 2008-2011 como ponto de convergência de um Complexo Industrial de Saúde, que reunia, desde a produção de medicamentos, até núcleos de pesquisa de evolução tecnológica para a saúde. O objetivo principal deste artigo foi investigar se as mudanças propostas por esse programa do governo brasileiro criam entraves no conceito de rede do SUS, principalmente enquanto sistema de gestão de conhecimento. O objetivo secundário do trabalho foi verificar se a rede ganhou mais operacionalidade e universalidade com a adesão ao Complexo Industrial de Saúde. A pesquisa confirmou a existência de entraves à evolução do conceito de rede no SUS a partir da proposta do Complexo Industrial de Saúde, sem indicação de ganhos no processo de operacionalidade do sistema. A análise desse processo permitiu entender que a relação público/privado no atendimento de saúde brasileiro compõe um mercado imperfeito. Como conclusão, o artigo sugere que o aprimoramento do SUS, enquanto inovação tecnológica, depende de outro tipo de reforma de gestão, que não é a proposta pelo programa Mais Saúde Direito de Todos 2008-2011.

Palavras-chave : Gestão em Rede, Pacto de Gestão, Sistema Único de Saúde, Programa Mais Saúde

 

Brazilian public health: social net, management agreement and the More Health – Every Man’s Right 2008-2011 Program

ABSTRACT

The 1988 Brazilian Constitution has established that health is a citizen’s right and a state duty. Since the early 1990’s several official programs in Brazil have been trying to respond to that constitutional demand, by adjusting the rules of the Unified Health System (UHS), which main goal is to provide health attendance for all. The most recent program, called More Health – Every Man’s Right 2008-2011, was announced in December of 2007. Its proposal is to develop the UHS’s formal management processes aiming to articulate the economical and social dimensions of Medical Care around seven different axes. Since 1996, the Brazilian National Health System (UHS) has been working based on an operational and interactive management agreement perspective. The network concept was used by the More Health – Every Man’s Right 2008-2011 Program as a point of convergence around the Medical Care Industrial Complex, which congregated medicine production and also research groups about technological development on Health Care. The main objective of this paper is to investigate whether this official Brazilian program brings obstacles for the UHS network concept, especially as a knowledge management system. The secondary objective is to verify whether the health network has gained operational effectiveness and universality by joining the Medical Care Industrial Complex. The outcomes of this research have confirmed that there are obstacles to the development of the UHS network concept when joining the Medical Care Industrial Complex, without benefits for the system operation effectiveness. The analysis of this process leads us to understand that the public/private partnership for the Brazilian health system may be considered an imperfect market. As a conclusion, the article suggests that the technological innovation improvement of the UHS improvement depends on other management model, which does not fit the More Health – Every Man’s Right 2008-2011 Program proposals.

Key words: Management Network, Management Agreement, Unified Health System, More Health Program

 

INTRODUÇÃO

Os debates da questão orçamentária para o sistema de saúde no Brasil, ao longo do mês de dezembro de 2007, encobriram a atenção devida à divulgação do Programa Mais Saúde Direito de Todos 2008-2011, anunciado pelo Ministério da Saúde ainda na primeira semana do mesmo mês. O programa apresentou uma proposta de evolução formal nos processos de gestão do Sistema Único de Saúde (SUS), a base do atendimento de saúde no Brasil. O volume de investimentos anunciados, 88,6 bilhões de reais (aproximadamente 30 bilhões de euros, no câmbio de dezembro de 2007), é muito significativo para os quatro anos de vigência do programa, que inclui parte dos recursos destinados ao setor saúde em um novo programa do governo federal denominado Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) (Weber, 2007).

As ações previstas no Programa Mais Saúde são multidirecionadas e desenvolvidas a partir da constatação oficial de que há um descompasso entre a orientação para a conformação de um sistema universal e o processo concreto de consolidação do SUS (Mais Saúde, 2007). Com isso, o programa anunciado revê o entendimento das ações voltadas para a promoção, prevenção e assistência à saúde vistas como um ônus orçamentário e passa a enquadrar essas ações como parte constitutiva da estratégia de desenvolvimento do Brasil. Com isso, passa-se a adotar novas diretrizes e metas para o sistema de saúde brasileiro, tais como:

· avançar na implementação dos princípios constitucionais do sistema de saúde único mediante um conjunto de ações concretas organizadas em eixos que permitam associar desenvolvimento econômico e social;

· consolidar ações de Promoção à Saúde e Intersetorialidade no centro da estratégia;

· priorizar, nos eixos de intervenção do programa, os objetivos e as metas do Pacto pela Saúde, na dimensão do Pacto pela Vida;

· aprofundar a estratégia de regionalização, de participação social e de relação federativa, buscando aumento decisivo na eficiência sistêmica e organizacional em saúde e retomando o papel central do Governo Federal na organização de redes integradas e regionalizadas de saúde no território brasileiro;

· fortalecer o Complexo Produtivo e de Inovação em Saúde permitindo associar os objetivos do SUS com a transformação necessária do sistema produtivo do País, tornando-a compatível com um novo padrão de consumo de saúde;

· dar um expressivo salto de qualidade e eficiência das unidades produtoras de bens e serviços e na gestão de saúde.

Para viabilizar essas diretrizes o Programa Mais Saúde apresentou medidas estruturadas em sete eixos, visando articular a dimensão econômica e social da saúde:

1. O primeiro eixo cuida da articulação do governo federal com estados e municípios para a promoção da saúde, mediante a integração das políticas econômicas e sociais;

2. O segundo eixo, de atenção à saúde, envolve a assistência básica e as ações de alta e média complexidade, de prevenção e vigilância à saúde, bem como de regulação e qualificação da saúde suplementar;

3. No terceiro eixo busca-se dotar o País de uma base produtiva de conhecimento, para garantir a capacidade de oferta interna, permitindo o atendimento integral às necessidades de saúde da população. Essas ações constituem o Complexo Industrial de Saúde;

4. O quarto eixo privilegia o investimento na qualificação e na adequação dos contratos da força de trabalho em saúde;

5. Já o compromisso com a eficiência e otimização dos recursos aplicados no sistema denominado de Qualificação e Inovação da Gestão constitui o quinto eixo;

6. Os efetivos resultados das ações de todos os gestores do sistema enquadram-se no sexto eixo, denominado de Participação e Controle Social;

7. O sétimo eixo de Cooperação Internacional prevê a dimensão e ações entre países, inserindo a saúde na política exterior brasileira (Mais Saúde, 2007).

Anteriormente, na implantação do SUS, preconizada pela Constituição promulgada em 1988, no seu Artigo 198, determinou que as três instâncias do poder público, federal, estadual e municipal, obedecem ao princípio segundo o qual as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada. Este sistema obedece às três diretrizes fixadas pelo texto constitucional nos incisos do mesmo artigo; o primeiro deles é a descentralização com direção única em cada esfera de governo, depois o atendimento integral com prioridade para atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais e, por último, o texto legal determina a participação da comunidade. Assim, a determinação constitucional ocasionou uma teia de interesses de complexidade crescente que está na origem do descompasso que o Ministério da Saúde do Brasil reconheceu em 2007 no preâmbulo do Programa Mais Saúde Direito de Todos 2008-2011.

A seqüência de Normas Operacionais Básicas (NOB), que foram definidas a partir de 1991, estabeleceu a arquitetura da gestão do SUS que sustentou a idéia de descentralização tutelada (Viana, 1992). Esse processo evoluiu, a partir de 2003, culminando com o pacto de gestão, que visa integralizar as ações do sistema.

Desse modo, o principal objetivo deste artigo é avaliar se as propostas e expectativas geradas pelo Programa Mais Saúde Direito de Todos atendem aos requisitos inerentes à evolução do conceito de rede no SUS e se o programa, de fato, sinaliza um avanço na direção do pacto de gestão, identificando situações essenciais para o funcionamento do sistema, tanto para o gestor, como para o trabalhador da saúde e, principalmente, para o usuário do SUS.

Em conseqüência desse processo é elaborado um pacto de gestão, inovador no Brasil, entre as diferentes instâncias de governo na Ordem Federativa do município, passando pelo Estado, até a União, formalizando um processo de redes sociais, integrado ao mesmo pacto de gestão.

Para tanto, este artigo obedeceu aos seguintes procedimentos metodológicos: levantamento dos documentos legais e da bibliografia pertinente ao assunto, seguida do rastreamento de noticiários e artigos analíticos publicados nos jornais de circulação nacional.

Quanto aos documentos legais iniciou-se pela Constituição Federal de 1988, denominada Constituição Cidadã, que edita o SUS; a Lei Orgânica da Saúde, formulada a partir da Constituição Federal de 1988 e promulgada em 1994; Normas Operacionais Básicas para implantação do SUS – NOB, em número de quatro, definidas e publicadas a partir de 1996, sendo a última em 2002, essas normas explicitam critérios e comportamentos institucionais para implantação do Sistema de Saúde no Brasil.

Finalizando essa etapa do processo de implantação do SUS, em 2008 é elaborado um programa que envolve os três níveis de governo, denominado Mais Saúde, Direito de Todos 2008-2011 , a vigorar a partir de 2008.

Além dos documentos legais, este procedimento metodológico incluiu o levantamento bibliográfico que não se restringiu apenas à área de estudo, mas também a investigação do cotidiano do processo de implantação, com os noticiários de jornais brasileiros relativos à área e artigos analíticos referente a este cotidiano da implantação do SUS.

A partir dessas informações é que foi elaborado o relatório de pesquisa, base do presente artigo.

 

PRESSUPOSTOS DA ANÁLISE

Para alcançar o objetivo da pesquisa identifica-se o perfil dos eixos integradores da ação do Sistema de Saúde como faces operacionais e interativas do pacto de gestão. Um segundo pressuposto de análise, entende que o princípio de rede ganhou um ponto de convergência, tanto de expectativas, como operacional, em torno do eixo Complexo Industrial da Saúde.

Na formulação desse pressuposto pesou sobremaneira o alerta de Misoczky (2003) de que, desde a introdução do projeto SUS, ocorreu à pressão por centralização decisória na esfera federal, determinou a clara separação operacional entre o subsistema de atenção básica e o de média e alta complexidade. Essa concepção de subsistemas era defendida pelas agências internacionais de apoio técnico e financeiro. Tais pressões marcaram significativamente a evolução do sistema enquanto rede. Sem esquecer outro foco tensional da concepção de rede no SUS, que implica importante configuração do mix público e privado. A eqüidade na implantação e desenvolvimento do SUS que, como notou Misoczky (2003), foram enfrentadas pelo caráter normativo das Normas Operacionais Básicas – NOB, editadas a partir de 1991.

Esses focos de tensão, ou seja, a instância federal pressionando por centralização, ao lado da necessária descentralização operacional característica do Sistema, mais a configuração do mix público/privado, ganharam um ponto de confluência no reconhecimento da importância de um complexo industrial e de conhecimento. Esse ponto de confluência se materializou nas tensões para a construção do processo de rede social no SUS.

 

OS LIMITES DO CONCEITO DE REDE NO SUS

A evolução do processo de gestão do SUS relevante para a consolidação da idéia de rede se constitui desde a NOB de 1993, quando o SUS convive com dois instrumentos de gestão: um que estabelece subsídio à demanda, praticando um sistema de pagamento pré-pago e per capita; e outro, que preserva o sistema de manutenção do subsídio à oferta, remunerando por produção. Na prática esses dois instrumentos de gestão criaram uma divisão operacional: uma da atenção básica e a de baixa e média complexidade. E a outra, de referência ambulatorial e hospitalar. A atenção básica ficou com a função de subsistema de entrada e controle de fluxo, enquanto o atendimento de maior complexidade permaneceu com a remuneração pelo serviço prestado. Desde então, esses dois sistemas de gestão construíram um relacionamento com a burocracia estatal e com as normas de repasse orçamentárias para Estado e municípios.

A maior diferença entre os dois sistemas de gestão é o sistema pré-pago, que absorveu a maior parte das experiências de municipalização da saúde no Brasil ao longo dos anos 1990. Enquanto o outro sistema de gestão, o de pagamento por produção, resiste a atitudes gerenciais mais renovadoras e nem mesmo a lógica de mercado consegue penetrar com eficiência nesse sistema, pela pressão dos monopólios na prestação de serviço. A NOB de novembro de 1996, no entanto, reformou o subsistema de pré-pagamento, criando a gestão plena de atenção básica, revogando todas as normas anteriores. Com isso, o município passou a gerenciar todos os serviços relacionados à atenção básica e a executar as ações básicas de vigilância sanitária, desde que comprovasse o funcionamento do Conselho Municipal de Saúde, operasse o Fundo Municipal de Saúde e apresentasse o Plano Municipal de Saúde. Satisfeitas tais condições, os recursos do sistema seriam transferidos direto ao município e todas as unidades de saúde da cidade, públicas ou privadas, estariam subordinadas ao poder municipal. A expansão do sistema é muito rápida e, quatro anos depois, 98% dos municípios brasileiros estavam habilitados à gestão plena de atenção básica (Silva, 2001).

Esse quadro de acelerada municipalização sofreu forte alteração com a Norma Operacional de Assistência à Saúde de outubro de 2001, determinando que cabia às secretarias estaduais de saúde a elaboração do Plano Diretor de Regionalização criando Módulos Assistenciais que representavam um conjunto de municípios que atuariam referenciados a um município-sede apto a oferecer um conjunto de serviços de média complexidade.

A operacionalização da regionalização seria da Secretaria de Estado da Saúde, a quem caberia coordenar todas as mudanças. Enquanto a autonomia municipal da gestão da saúde sofreu forte redução com a regionalização que, somada à centralização de fato do orçamento autorizativo da União, transformou em mera retórica a autonomia municipal, até mesmo nos serviços de atenção básica.

Depois dessa típica solução de continuidade na municipalização do SUS, a demanda por um pacto de gestão no sistema de saúde ganhou grande aceleração. O ponto de partida foi a vigência de ações intersetoriais e maior participação da população no processo decisório do sistema. Incentivar responsabilidade desenha uma relação de poder compartilhada entre instâncias de poder e só funciona quando os limites da delegação de poder forem estritamente respeitados. É esse pacto de gestão que dá visão integral aos tomadores de decisão no sistema. E é sobre essa visão integral do sistema que se constrói, efetivamente, a idéia de rede.

A rigor, a efetiva vinculação da multiplicidade de atores interferindo em uma decisão de saúde pública, inclusive as interferências de exclusivo âmbito político, só foi alcançada, no início dos anos 1990, quando o ato de planejar em saúde pública reconheceu efetivamente a importância de métodos e técnicas, aceitando-se os limites de algumas decisões a partir da presença de fatores múltiplos, produto de contextos sociais e políticos bem específicos. Apenas nesse processo foi possível passar a pensar em termos de sistema de saúde.

 

EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE REDE NO SUS

A presença de fatores múltiplos gerou impactos significativos nas primeiras concepções de gestão em rede no SUS. Parte considerável desses fatores se deveu a obrigatória inserção de inovações tecnológicas que provocavam efeitos modificadores nos sistemas de produção e de prestação de serviços do sistema único. Tais mudanças geravam alguns avanços nas redes iniciais de cooperação intersetorais. Esse processo, que não é exclusivo da saúde pública, implicava em crescimento de demandas sociais em torno de serviços públicos, uma vez que toda automatização gera, em um primeiro momento, uma maior visibilidade das carências do sistema. Em qualquer setor, a implantação de meios informatizados expõe os problemas de gestão de forma muito mais clara do que os métodos mais tradicionais. Não é diferente com as demandas por saúde pública: toda racionalização na oferta gera maior procura pelo serviço, porque o método antigo de gestão continha demanda reprimida e desconhecida (Jacobi, 2000). Nesse quadro, aumentam as resistências internas por trabalho integrado e o modelo organizacional volta-se, cada vez mais, para lidar com o conhecido, com os processos e formas já conhecidos e bem dominados.

A dificuldade para gestão em rede no SUS nasce nesse processo. É preciso reconhecer que a concepção weberiana, de predomínio do poder burocrático vertical, com relações autocráticas definindo instâncias decisórias entre grupos de pressão e funções decisórias, sem qualquer previsibilidade ou aceitação de variáveis do ambiente social ou político, inibe, em si mesmo, a implantação de novas formas de gestão (Abreu, 2000). Na visão de Jacobi (2000), as redes sociais buscam horizontalizar decisões, até mesmo articulando diferentes perspectivas a partir do apoio de estruturas informatizadas.

A estrutura de rede condiciona o comportamento de seus integrantes (Silva e Vergara, 2002). Porém, é preciso reconhecer que as mudanças no SUS tinham origem em normas e portarias, tanto para incentivar como para deter a evolução na concepção de rede como forma de gestão. Nesse quadro, as resistências internas às mudanças para a construção da gestão por rede é ainda maior. Quando os objetivos são claros e bem definidos na construção da rede, a resistência às mudanças organizacionais tende a recuar e a facilitar a implantação da gestão em rede. Caldas e Hernandes (2001), desenvolveram modelo de resistência individual à mudança, definindo estágios que são regulados por fatores pessoais e ambientais. Para esses autores, o processo de percepção e aceitação da mudança organizacional é prioritariamente individual.

Esse é um ponto essencial na análise da assimilação do conceito de rede no SUS. A individualização em aceitar estímulos para adoção do conceito implica em distinguir dois comportamentos nesse processo: o primeiro, que aparece na construção de redes informais de relacionamento dentro do Sistema Único, que adquiriam identidade e operacionalidade própria e o segundo, o formal, que obedece a outro ritmo no processo de aceitação do conceito. A rigor, esse duplo procedimento, o informal e o formal, enquadram-se na evolução da teoria de redes.

Apesar da variedade de definições, trabalhamos com a noção adotada por Bastos e Santos (2007), de que rede é constituída por interações que visam a comunicação e facilitam a troca e ajuda mútua de interesses compartilhados e de situações vivenciadas, em especial as geradas em um ambiente de trabalho. Desse modo, é possível identificar nos estudos pioneiros de Moreno, Lewin e Heider que trabalharam com sociogramas e matrizes sociais, uma visão de rede social como alternativa às imposições do clássico determinismo cultural da época. Essa perspectiva explicava os papeis de indivíduos e grupos quando obrigados a interagir entre si, e das possibilidades de prever comportamentos futuros dessas pessoas quando agiam integradas (Scott, 2000).

As concepções de redes sociais ganharam um recurso teórico e metodológico básico quando as propostas de Moreno foram retomadas na década de 1950 por Cartwright e Harary que, apropriando-se da idéia de sociograma, deram sinais e direção às vontades individualizadas no grupo. A partir dessa constatação, era possível desenvolver comportamentos cognitivos, para apropriar conhecimentos que permitam dar às organizações um sistema de significados construídos nas relações e conexões existentes entre os membros da organização (Bastos e Santos, 2007).

Esse avanço tem a ver com a rede como sistema de significados permitindo, já em meados dos anos 1990, fazer uma distinção conceitual importante entre o que são redes inter-organizacionais diferenciadas das redes intra-organizacionais. A primeira vê a organização como unidade preservando sempre a idéia de que as organizações precisam uma das outras para sobreviver e a base da relação são os serviços, produtos ou recursos. Já as intra-organizacionais privilegiam os sistemas de relação entre pessoas ou atores sociais no interior das organizações. Daí o alerta de que, nas intra-organizacionais, diferentes teias de vínculos e interesses se formam com poder suficiente para ultrapassar os limites das organizações. (Carvalho, 2000; Cândido e Abreu, 2000)

Exatamente por esse poder, as redes intra-organizacionais podem se dividir em redes formais ou informais. A primeira, a rede formal, estabelece uma série de vínculos e laços construídos a partir das posições sociais formais ou padronizados. Já as informais dispensam essa explicitação de papéis, pois as interações dependem de talentos pessoais, sustentados por relações voluntárias (Kuipers, 1999).

Vale notar que na evolução do conceito de rede abordada por Marques (1999), revela-se que a configuração da estrutura geral e da posição dos autores são os pilares básicos para a definição estratégica externa à rede, enquanto no mundo interno é que ocorrem as definições das relações de poder. O salto nessa concepção aparece com Junqueira (2004), expondo que a característica essencial de uma rede, que permite identificá-la em sua unicidade, não são só os atores que nela atuam, mas os objetivos que os mobilizam para a prática da cooperação e coordenação, visando a intervenção na realidade social.

Cumpre também observar, nessa evolução do conceito de rede, a análise de Fleury e Ouverney (2007), para quem a estratégia de coordenação inter-organizacional, em especial, implica no saber o que, como e quem irá coordenar as relações inter-organizacionais, pois são essas estruturas de coordenação que serão implantadas e monitoradas pelo poder e controle que emergem desse processo. Nessa perspectiva, é que será apresentado, a seguir, o caso do Banco de Leite Humano, uma rede com operacionalidade.

 

APRESENTAÇÃO DA REDE NACIONAL DO BANCO DE LEITE HUMANO

O processo em rede conheceu uma aplicação analítica, no Banco de Leite Humano, que pode constituir uma referência para pensar e avaliar o processo de atuação sistêmica. O texto de Maia, Novak e Almeida (2004), «Bases Conceituais da Gestão do Conhecimento na Rede Nacional de Bancos de Leite Humano», explora exatamente essa possibilidade de análise. Essa rede de leite humano, a RNBLH, desenvolvida e coordenada pelo Instituto Fernandes Figueira /Fiocruz e pela Secretaria de Políticas de Saúde do Ministério da Saúde, é apresentada por Maia, Novak e Almeida como «a maior e a mais complexa do mundo e dela fazem parte mais de 150 unidades em operação no País». A Organização Mundial de Saúde destinou o Prêmio Sasakawa, ano de 2001, para essa rede como melhor projeto de saúde pública. A expansão quantitativa da rede é compatível com os avanços e conquistas na saúde infantil brasileira: na referência 2004, contavam com 151 mil doadoras, com base ano de 217 mil litros de leite captados, beneficiando diretamente 288 mil bebês prematuros, de baixo peso ou internados em Unidades de Tratamento Intensivo Neonatal.

O maior desafio era avançar nas competências relacionadas ao objetivo fim da rede de leite humano, reconhecendo que o trabalho em rede é importante como ferramenta de compartilhamento de conhecimento, sem deixar de também reconhecer que as profundas diferenças culturais econômicas e sociais delimitam a capacidade de apropriação do conhecimento disponibilizado. O artigo mencionado sobre a RNBLH propôs três níveis de investimento para equacionar esse desafio: construir formas de acesso desses profissionais a novos saberes; definir caminhos que possibilitem o desenvolvimento científico e técnico e a substituição do discurso ideológico da amamentação por posições solidamente ancoradas nos diferentes campos do saber.

Esse quadro, como se pode perceber, representa um excelente microcosmo de análise para pensar os problemas de redes maiores de saúde, bastando imaginar a troca da atividade fim da amamentação como direito pela proposta de atendimento integral e universal em saúde. As dificuldades de operação em rede integrada em um banco de leite humano são uma representação em espaço menor, quase em dimensões laboratoriais, das dificuldades operacionais de um sistema de saúde que pretende ser único e universal.

A proposta de análise do artigo mencionado identificou quatro conceitos base para avaliar a operacionalidade em rede do RNBLH: informação, inovação, rapidez e confiabilidade, considerados essenciais para a coletivização do conhecimento, pilar central para uma proposta de ação. A principal função desses conceitos base é vencer o que os autores chamaram de «nós de relacionamento» que compõem os obstáculos principais para a visualização de rede em que os diversos autores envolvidos procuram entender a inter-relação entre eles e o papel de cada um em sua diversidade. Observe-se a informação dos autores de que a estrutura de referência dos bancos de leite é formalizada por meio de convênios de cooperação firmados entre a Fiocruz e as Secretarias Estaduais de Saúde. É por meio desses convênios que se estabelecem as articulações oficiais e criam-se os mecanismos de interlocução com os bancos de leite humano participantes da rede. Cumpre notar a diferença no procedimento da RNBLH e o do SUS, que promoveu essa integração por intermédio de portaria desmobilizadora que retirava autonomia de cada unidade de saúde municipal para construir uma referência mais regional. A RNBLH percorreu caminho inverso, consolidando essa autonomia e sobre ela ergueu a arquitetura da rede.

Maia, Novak e Almeida, no artigo citado, destacam um ponto chave que facilitou a construção dessa arquitetura de rede nos bancos de leite humano: a criação de um banco de dados eletrônico, de acesso universal, permitindo acompanhamento online das atividades, contribuindo principalmente para atividades de pesquisa e treinamento. O procedimento mais relevante é a instalação de equipamentos informatizados nas unidades de situação financeira mais precária na rede forçando o acesso à informação. Os autores do artigo apontam que foi a partir da compreensão do processo de construção de rede e da identificação do papel dos atores e suas tramas que se estabeleceu um sistema de gestão do conhecimento, que deu conta da transferência da informação, da tecnologia, da inovação e do compartilhamento de conhecimento. Neste cenário, alertam os autores, é fundamental a utilização de adequadas ferramentas de gestão para o correto funcionamento da rede.

Essas ferramentas de gestão, retomadas dos quatro componentes recomendados por Moore (2001), redefinem os papéis dos atores no sistema operacional da rede. A instalação de um sistema de gestão de conhecimento é o propósito de Moore, que demanda: coleta de informação, infra-estrutura de comunicação, plataforma de colaboração e uma outra cultura organizacional, como quatro componentes requeridos.

O primeiro componente, coleta de informações, pressupõe a base de dados, documentos e imagens, relato de experiências práticas e conhecimentos explícitos acumulados. O segundo, infra-estrutura de comunicação, inclui o hardware básico; o terceiro, plataforma de colaboração, implica na construção de espaços virtuais para intercâmbio e cooperação entre as unidades da rede. O último componente, a cultura que, na visão de Moore, é o fator decisivo para o sucesso ou malogro desses processos de gestão do conhecimento. É nesse componente que a história efetivamente se constrói, incluindo regras escritas e não escritas, características de qualquer relacionamento humano.

A partir desses componentes é possível construir, ainda na visão de Moore, avaliações de procedimento em rede, levando em conta os principais subsistemas e as funções específicas de um sistema de gestão de conhecimento, bem como a identificação de atores essenciais ao funcionamento da rede.

A aplicação dessa proposta na análise das expectativas, objetivos e princípios anunciados no Programa Mais Saúde pode revelar a evolução do conceito de rede no SUS, principalmente, como um sistema de gestão do conhecimento, base de uma ação efetivamente integrada.

 

A REDE NO PROGRAMA MAIS SAÚDE DIREITO DE TODOS 2008-2011

O ponto de partida dessa análise do programa mencionado é seu objetivo definido nas Diretrizes Estratégicas: a Saúde passa a possuir duas dimensões, uma da política de proteção social, também fonte de riqueza para o País. Na expectativa básica do Mais Saúde, o direito à saúde articula-se com um conjunto dinâmico de atividades econômicas que buscam crescimento econômico e eqüidade como objetivos complementares. Nessa perspectiva, a ação voltada para a promoção, prevenção e assistência à saúde não deve ser vista apenas como um ônus ou um fardo que onera o orçamento, mas como uma frente de expansão para a geração de investimentos, inovações, renda emprego e receita para o Estado. Estas diretrizes estratégicas estimam que a saúde movimente de 7% a 8% do PIB e, portanto, representa fonte importante de receitas tributárias, empregando diretamente, com trabalho qualificado formal cerca de 10% dos postos de trabalho, o que representa em torno de nove milhões de trabalhadores em toda a cadeia produtiva do setor. Porém, no final das diretrizes em que se propõe esta nova orientação para a Saúde, o texto oficial reconhece o «descompasso entre a conformação de um sistema universal e o processo concreto de consolidação do SUS» (p. 7). E, por isto, reconhece que a primeira lacuna para a saúde se transformar num dos pilares da estratégia nacional de desenvolvimento é a reduzida articulação da saúde com as demais políticas públicas, caracterizando um insulamento das ações governamentais frente às necessidades de qualidade de vida da população (Programa Mais Saúde Direito de Todos 2008-2011, 2007).

Este é o ponto essencial no processo de aceitação do conceito de rede no sistema de saúde. Como apontaram enfaticamente Silva e Vergara (2002), a estrutura de rede condiciona o comportamento de seus integrantes. Mudança de tal ordem na orientação do sistema como a desenhada pelo Mais Saúde, em que o conceito saúde se transforma em parte do negócio do setor público, exigiria um aplacar da resistência das mudanças organizacionais como proposto por Caldas e Hernandes (2001, p. 18) «definindo estágios que são regulados por fatores pessoais e ambientais». A rigor, manteve-se o predomínio de decisões burocráticas verticalizadas, na nova definição e orientação do sistema, exatamente o contrário do previsto por Jacobi (2000), de que redes sociais buscam horizontalização de suas decisões articulando as diferentes demandas.

As diretrizes estratégicas do programa colocam a necessidade de se pensar a saúde como parte constitutiva de uma frente de expansão da cadeia produtiva do setor, englobando as atividades industriais e dos serviços e não só a promoção, a prevenção e a assistência. Com isso, a abrangência do Sistema se expandiu sem que o conceito de rede tivesse se consolidado minimamente. Convém lembrar que a rede é constituída de interações que facilitam a troca e ajuda mútua de interesses compartilhados e de situações vivenciadas como proposto por Bastos e Santos (2007). É exatamente o que ainda não se construiu no SUS como o próprio texto oficial do Programa Mais Saúde reconhece ao mencionar o descompasso entre a «conformação de um sistema universal e o processo concreto de consolidação do SUS»(p. 6).

Há outro entrave significativo para a execução dessa diretriz estratégica de pensar a saúde como frente de expansão das atividades econômicas correlatas ao sistema de saúde que, como a consecução de objetivos da RNBLH demonstrou, só se consolida a partir de uma política conjunta de apropriação de conhecimento, que funciona como um cimento colando as diferentes unidades com seus interesses tão diversos em uma rede integrada. Nesse aspecto, vale lembrar que o SUS é um típico sistema inter-organizacional, em que a organização da rede preserva sempre a idéia de que as unidades da organização precisam sempre uma das outras para viver, e a base dessa dependência é a constante necessidade de troca de serviços, produtos ou recursos. Por sua vez, o Programa Mais Saúde não fornece qualquer evidência ou sinal de mudança nesse conteúdo de rede. Ao contrário, privilegia e incentiva esse aspecto inter-organizacional mesmo quando propõe a expansão do sistema para um eixo novo em torno do Complexo Industrial de Saúde.

A rigor, é preciso identificar com objetividade que o modelo de rede intra-organizacional não está na perspectiva do Programa Mais Saúde. Esse modelo propõe diferentes teias de interesses que avançam com poder suficiente para ultrapassar muros e limites das organizações. Se essa é a pretensão do Mais Saúde nesse ponto, o novo programa não exibe flexibilidade suficiente para ultrapassar muros. A rede intra-organizacional suporta sempre a divisão entre redes formais e informais, que apresentam características diferentes: a formal obedecendo a perfis padronizados e a informal dependente de opções voluntárias.

Esse é o ponto essencial na questão da evolução do conceito de rede do Mais Saúde: não há qualquer definição para que a interação entre as unidades do Sistema ocorra no tráfego livre entre a rede formal e informal, permitindo criar uma rede de significados que facilita a troca e ajuda mútua de interesses compartilhados e de situações vivenciadas (Bastos e Santos, 2007) . Se a construção da rede SUS, mantida no âmbito da esfera pública, gerou o descompasso entre o que o documento oficial do Mais Saúde reconheceu, como esperar que a aproximação com a esfera privada, no Complexo Industrial de Saúde, conseguirá operar em rede e com alto grau de eficácia? Em outras palavras, se o conceito de rede não evoluiu para significados comuns, quando o sistema operava apenas na esfera pública, como acreditar que a expansão do sistema abrangendo também a esfera privada promoverá a integração de significados?

É preciso ter presente que as redes, especialmente as redes sociais, não constroem unicidade operacional a partir de seus atores e, sim, a partir de seus objetivos (Junqueira, 2004). Nas diretrizes estratégicas do Programa Mais Saúde, estão registradas as lacunas para que a saúde se constitua num dos pilares da estratégia nacional de desenvolvimento. A primeira, a reduzida articulação da saúde com as demais políticas públicas, seguida pelo reconhecimento oficial da iniqüidade de acesso. Porém, os destaques dessas lacunas ficam com a percepção do Estado de que há um descompasso entre a evolução da assistência e a base produtiva e de inovação em saúde, precedendo a visão oficial de que no SUS ainda ocorre um predomínio de um modelo burocratizado de gestão, no qual o controle ineficiente dos meios ocorre em detrimento dos resultados e da qualidade do serviço prestado. O Ministério da Saúde aponta que esse modelo burocratizado perpassa toda a organização do sistema, marcando tanto a relação entre a União, os estados e municípios e até o modelo de gestão das unidades de saúde. Ora, se é esta a realidade reconhecida na rede SUS, é preciso recuar nas pretensões e observar os modelos de gestão de sucesso em rede e cumprir as etapas que percorreram com as propostas na gestão do RNBLH.

A essência da proposta de gestão do Programa Mais Saúde está na construção de eixos de intervenção com a função de programar medidas e metas prioritárias. A análise de ferramentas de gestão de sistemas, que conquistaram bons padrões de operação em rede, contrapostas às propostas desses eixos de intervenção podem permitir a identificação de graves lacunas operacionais no Programa Mais Saúde. A primeira delas envolve a percepção de que os eixos de intervenção, como estão propostos, não contribuem para a construção de um pacto de gestão no SUS, mas expandem na direção da iniciativa privada em saúde. Basta observar que o primeiro passo de um pacto de gestão é perceber que a cooperação financeira precisa obedecer às necessidades da população com eqüidade e, por essa razão, o melhor aproveitamento da promoção de saúde demanda planejamento ascendente (Silva, 2001), ou seja, do município para as estaduais e federais e não o contrário.

O mecanismo pensado nos eixos do Mais Saúde mantém a lógica do planejamento a partir das decisões federais. A trajetória de gestão deveria ser definida a partir do planejamento ascendente, pois a análise de custos e a capacidade de gastos de cada participante ficarão definidas com mais eficiência. É esta cooperação para investir que corrige desigualdades e faz o pacto ganhar sentido e eficiência. A prioridade do pacto é investir na área com menor intensidade tecnológica, a partir de critérios de necessidades. Estes critérios geram as plataformas de colaboração, definidas por Moore (2001), para a construção de espaços de colaboração entre os integrantes da rede.

No entanto, não é esta a proposta do eixo «Qualificação da Gestão» do Programa Mais Saúde. O programa explicitamente propõe a ação regionalizada nos termos de que é necessário avançar tanto na gestão sistêmica, no contexto de uma estratégia de regionalização pactuada em torno de compromissos, quanto na mudança do modelo de gestão das unidades de saúde, para dotá-las de maior flexibilidade, tendo como contrapartida o compromisso com resultados. A questão da gestão por resultados não pode ter como foco a unidade e sim a rede. Essa inversão cria obstáculos na construção da rede no sistema de saúde. Merece atenção que a proposta de gerir sistemas a partir de resultados é uma prática que representa gerência de orçamento baseado em desempenho, proposta desde os anos 1940, como notou Wang (1999). Essencialmente, este autor propunha adotar o princípio de abandonar lentamente o orçamento baseado em entradas e, em seu lugar, estabelecer uma atitude orçamentária baseada em saídas, ou seja, um programa governamental que apresente melhores resultados operacionais e passe a receber uma maior fatia orçamentária.

Esse processo de gestão que, por décadas, impulsionou mudanças nos sistemas públicos, passou a receber críticas mais insistentes no final dos anos 1980, principalmente com os alertas de Henkel (1991) sobre distribuição de fatias orçamentárias a partir de índices exclusivamente físicos. Este autor pondera que há uma inevitável dose de subjetivismo nessas avaliações, porque, por mais intensa que seja essa mensuração de resultados, mantém-se impossível medir outras escalas de benefícios da ação pública. O argumento essencial é que o valor econômico do que é gerado pela gestão pública requer análises específicas. Por exemplo, não é o número de presos de uma área maior em relação a outra que garante maior sensação de segurança nessa área. Como alertou Catelli e Santos (2004), a limitação da abordagem dos resultados das políticas e serviços públicos apenas por índices físicos, levantam a questão da mensuração econômica dos benefícios que a atuação governamental proporciona à sociedade.

Nesse aspecto, vale lembrar a contribuição de Porter (2007), apresentando o que o autor chamou de «os três elementos capacitadores» que ajudam os prestadores de serviço em saúde a trabalhar com imperativos estratégicos e organizacionais. O primeiro deles é a abordagem sistemática para identificação e análise dos processos. O segundo capacitador é a tecnologia da informação e o terceiro é o uso de processos sistemáticos para o desenvolvimento de conhecimento. Como insiste Porter, finalmente, a mudança de estratégias baseadas em valor, exigirá a transposição de uma série de barreiras, desde a forma de organização dos médicos, até os modelos de pagamento e a regulamentação obsoleta.

Ainda no eixo «Qualificação da Gestão» do Programa Mais Saúde está proposto como medida para implementar as diretrizes do referido eixo, que as medidas para desenvolver sistema integrado de planejamento com foco no repasse dos recursos federais devem viabilizar o estabelecimento de mecanismos de premiação a partir de metas contratualizadas e resultados obtidos. Ora, o prêmio na gestão despreza a análise localizada dos custos e parte da lógica de que todos os competidores estão no mesmo patamar e, por isso, concorrem em iguais condições na direção do prêmio. Nada mais falso, em especial na gestão pública e, mais especial ainda, na gestão de um sistema de saúde que se propõe único e integralizado. Os perfis de custos são muito diferentes e é o processo em rede que os aproxima. Nessa concepção de rede, a lógica do prêmio os separa, os desintegraliza, por privilegiar o resultado da unidade e não a colaboração dessa unidade para o sistema.

Isso não significa que sistemas em rede não podem ser avaliados, pois avaliação existe desde que respeitada à concepção de rede. O primeiro aspecto a ser observado é a distinção entre produtos e resultados na gestão pública. Como bem ponderou Corrêa (2007), órgãos e entidades públicas utilizam insumos financeiros, humanos e materiais para a produção de bens e serviços (produtos) destinados à consecução dos objetivos de políticas públicas (resultados). Enquanto produtos, fornecem visão limitada do valor público que as políticas públicas agregam, porque medição de produtos é um processo contínuo que agrega valor às organizações, sendo que os resultados apresentam conseqüências também para o ambiente externo.

Por outro lado, o Complexo Industrial da Saúde, proposto no terceiro eixo de intervenção do Mais Saúde, parte da concepção de que há uma grande fragilidade da estrutura industrial brasileira em saúde e que as industriais que fazem parte desse setor no Brasil perderam competitividade internacional. A principal medida dessa fragilidade é o déficit comercial que atingiu 5 bilhões de dólares em materiais importados de maior densidade tecnológica, desde fármacos até equipamentos médicos de base eletrônica. Por essa razão, a diretriz estratégica para esse eixo do Mais Saúde prevê: reduzir a vulnerabilidade da política social brasileira mediante o fortalecimento do Complexo Industrial da Saúde, associando o aprofundamento dos objetivos do SUS com a transformação necessária da estrutura produtiva e de inovação do País, tornando-a compatível com um novo padrão de consumo em saúde, com novos padrões tecnológicos.

Por mais relevante que seja a transformação tecnológica, não é o ponto central no estabelecer de um novo perfil de consumo de saúde, porque não há condições orçamentárias para distribuir inovação tecnológica em toda a capilaridade do sistema, em especial se este sistema é pensado em termos de uma operação em rede. É na cooperação técnica, especialmente na difusão das formas de domínio das inovações, com ações articuladas entre a União e os estados que, na ponta do sistema, no município, ocorre o novo padrão de consumo em saúde propiciado pelos avanços tecnológicos. Sem o respeito a essa capilaridade da rede, inclusive, atendendo as demandas dos usuários do sistema que chegam até os produtores de novas tecnologias. Sem esse contato com a ponta do sistema, sem essa ação articulada do município com o Estado até a União, e não ao contrário, será ainda mais difícil aumentar a competitividade em inovações das empresas e dos produtores públicos e privados das indústrias de saúde para que, como pedem as diretrizes do Mais Saúde, esses produtores se tornem capazes de enfrentar a concorrência global, promovendo um vigoroso processo de substituição de importações de produtos e insumos em saúde.

 

CONCLUSÕES

A Constituição Federal, promulgada em 1988, determinou como princípio norteador para as ações e serviços públicos de saúde, a integração em uma rede regionalizada e hierárquica, constituindo sistema único, obediente aos princípios de descentralização hierarquização e participação da comunidade. Essa determinação constitucional construiu teias de interesses tão complexas, que deu origem ao descompasso entre o que pede a proposta do SUS e sua realidade operacional como, aliás, também reconheceu o Programa Mais Saúde. Atendendo ao objetivo deste artigo, foi possível constatar que certas fragilidades operacionais se mantêm no programa proposto no que diz respeito, especialmente, à implantação do conceito de rede no sistema.

A suposição de que os «eixos integradores» do Programa Mais Saúde se constituem em faces operacionais e interativas de um pacto de gestão, não se confirmou. O processo de construção de um pacto de gestão inicia-se na micro-região e não ao contrário, apesar de todo o respeito devido à autonomia e responsabilidade sanitária de cada ente federativo participante, seja o município, o Estado ou a União. A construção de um pacto, que não dispensa nem atenua responsabilidade de nenhum dos três entes federados, dará outra operacionalidade ao SUS. Parece desnecessário, mas é cada vez mais obrigatório repetir que a responsabilidade primeira da saúde da população está no município, pois é neste ente da federação que o cidadão vive. Porém, as necessidades de saúde não se resumem a uma isolada esfera de governo, seja ela qual for. Aliás, a Constituição de 1988 não previu nem delimitou fronteiras administrativas ou jurídicas em relação à essa responsabilidade. Os eixos integradores do Programa Mais Saúde, no entanto, sugerem que há um foco centralizador das decisões e ações de saúde em torno de um ente federado, a União. Esse desvio em pouco contribui para a construção do pacto de gestão no SUS.

A outra vertente de análise não confirmou que a rede SUS atenderia às expectativas de operacionalidade a partir da existência de um eixo integrador composto por um Complexo Industrial de Saúde. Nesse aspecto vale o alerta de Misoczky quanto ao mix público e privado, porque é preciso lembrar que atendimento em saúde compõe um mercado imperfeito. As agências internacionais de fomento insistem, desde os anos 1990, que apenas a solução de mercado era impossível no SUS. A lógica de mercado trabalha com demanda elástica. Em um quadro de mercado perfeito, todo produto pode aumentar de preço e permanecer no mercado. Duas opções se constroem no mercado perfeito: o consumidor pode não comprar, por discordar do novo preço e o produtor pode, por ações de marketing, por exemplo, levar o comprador ao consumo apesar do preço maior. O mercado é perfeito exatamente porque é livre. Essa situação, no entanto, é incompatível com o produto «saúde»: esse mercado é imperfeito porque o consumidor está impedido de não comprar o remédio ou consumir o serviço que salvará sua vida. Portanto, o Estado intervém na oferta de saúde, mesmo quando o mercado é livre, porque nesse produto o mercado é imperfeito, uma vez que o consumidor perdeu o direito de escolha (pelo exercício do instinto de sobrevivência) e o produtor também não consegue convencer, em teoria, o comprador a consumir o produto se não está doente.

É indiscutível que a estratégia operacional do SUS respeita a lógica do mercado imperfeito. É impossível gerar demanda elástica em saúde, tanto quanto não é possível limitar a oferta do produto «saúde». As distorções nessas duas propostas forçam desvios muito graves nos objetivos do mix público/privado nos termos pensados para o SUS. A universalidade enquanto princípio constitucional do SUS não é compatível com a dinâmica de mercado. A lógica inerente ao Complexo Industrial de Saúde parte da dinâmica de mercado perfeito em saúde, buscando a integração das expectativas de lucro da iniciativa privada com a obrigação de respeito constitucional da universalidade do SUS. Essa proposta, obviamente, contém sérios elementos limitadores. Portanto, o aprimoramento do ambiente SUS, enquanto inovação e assimilação tecnológica, pede outro tipo de reforma gerencial, algo distante da proposta do eixo integrador Complexo Industrial, contida no Programa Mais Saúde. O perfil dessa reforma gerencial do SUS demanda novos estudos, elaborados, principalmente, a partir da superação da proposta de eixos integradores, pois estes não permitem mais operacionalidade no sistema, construindo um pacto de gestão entre entes federados, e também não preservam o conceito de mercado imperfeito, primeira garantia de universalidade em um sistema público de saúde.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BASTOS, A. V. B. e SANTOS, M. V. (2007), «Redes sociais informais e compartilhamento de significados sobre mudança organizacional». Revista de Administração de Empresas, vol. 41, n.º 3, Jul/Set.         [ Links ]

BASTOS, A. V. B. e SANTOS, M. V. (2000), «O esquema de trabalhador comprometido: elemento definidor da identidade no trabalho». In Reunião Anual de Psicologia, Sociedade Brasileira de Psicologia, 30, 2000, Brasília, Anais, Brasília.

CALDAS, M.; P. e HERNANDEZ, J. M. C. (2001), «Resistência à mudança: uma revisão crítica». Revista de Administração de Empresas, vol. 41, n.º 2, Abr/Jun.

CANDIDO, G. A. e ABREU, A. F. (2000), «Os conceitos de rede e as relações inter-organizacionais: um estudo exploratório». In Encontro Nacional da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Administração, 24, 2000, Florianópolis, Anais, Florianópolis, ANPAD.

CARVALHO, M. R. (2000), «Redes sociais e o papel da reputação na formação de alianças estratégicas: o caso Multiplex Iguatemi». In Encontro Nacional da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Administração, 24, 2000, Florianópolis, Anais, Florianópolis, ANPAD.

CATELLI, A. e SANTOS, E. S. (2004), «Mensurando a criação de valor na gestão pública». Revista de Administração Pública, vol. 38, n.º 3, Mai/Jun.

CHORNY, A.H. (1990), «El enfoque estratégico para el desarrolo de recursos humanos». Educ Med Salud, 24(1).

CORRÊA, I. M. (2007), «Planejamento estratégico e gestão pública por resultados no processo de reforma administrativa do Estado de Minas Gerais». Revista de Administração Pública, vol. 37, n.º 3, Mai/Jun, pp. 487-504.

FLEURY, S. e OUVERNEY, A.M. (2007), Gestão de Redes: A Estratégia de Regionalização da Política de Saúde. Editora FGV, Rio de Janeiro.

HENKEL, M. (1991), Government, Evaluation and Change. Jéssica Kingsley, Londres.

JACOBI, P. (2000), «Meio ambiente e redes sociais: dimensões inter-setoriais e complexidade na articulação de práticas coletivas». Revista de Administração Pública, vol. 34, n.º 6, Nov/Dez.

JUNQUEIRA, L. A. P. (200), «Intersetorialidade, transetorialidade e redes sociais na saúde». Revista de Administração Pública, 34(6).

KUIPERS, K. J. (1999), Formal and Informal Networks in Workplace, Stanford University, Stanford, CA.

MAIA, P. R. S.; NOVAK, F.R. e ALMEIDA, J. A. G. (2004), «Bases conceituais da gestão do conhecimento na Rede Nacional de Bancos de Leite Humano». Revista de Administração Pública, vol. 38, n.º 2 , Mar/Abr.

MISOCZKY, M. C. (2003), «Redes e hierarquias: uma reflexão sobre arranjos de gestão na busca da eqüidade em saúde».Revista de Administração Pública, 37(2), pp. 335-354.

MOORE, C. E. S. e BOLINCHES, S. B. (2001), «El desarollo de um sistema de géstion del conocimiento para los institutos tecnológicos». In Seminário Latino-Iberoamericano de Gestión Tecnológica, Innovación em la Economia del Conocimiento, San Jose, Memoria, San Jose, Instituto Tecnológica de Costa Rica.

PORTER, M. E. e TEISBERG, E. O. (2007), Repensando a Saúde: Estratégias para Melhorar a Qualidade e Reduzir os Custos. Editora Bookman, Porto Alegre.

Programa Mais Saúde Direito de Todos 2008-2011 Governo do Brasil Ministério da Saúde, disponível em http://bvsms.saude.gov.br/bvs/pacsaude/pdf/mais_saude_direito_todos_2008_2011_p1.pdf.

SILVA, F. S. (2001), Municipalização da Saúde e Poder Local: Sujeitos, Atores e Políticas, Hucitec, São Paulo.

SILVA, J. R. G. e VERGARA, S. C. (2002), «A mudança organizacional pela ótica dos indivíduos: resistência ou uma questão de sentimentos, significado e construção do sujeito?». In Encontro Nacional da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Administração, 24, Recife, Anais, ANPAD.

SCOTT, J. (2000), Social Network Analysis. Sage Publications, Londres.

VIANA, S. M. (1992), «A descentralização tutelada». Saúde em Debate, 35.

WANG, X. (1999), «Conditions to implement outcome-oriented performance budgeting: some empirical evidence». Journal of Public Budgeting, Accouting & Financial Management, Fort Lauderdale, vol. 1, n.º 4.

WEBER, D. (2007), «Programa apres enta metas ambiciosas», O Globo, edição de 06 de Dezembro, p. 8.