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Economia Global e Gestão

versão impressa ISSN 0873-7444

Economia Global e Gestão v.14 n.2 Lisboa set. 2009

 

Para um paradigma de desenvolvimento humano solidário*

Mário Murteira**

 

RESUMO: Em plena «idade da transição», põe-se a questão de saber em profundidade o que deve entender-se por desenvolvimento humano.Numa perspectiva cristã, esse desenvolvimento só pode ser solidário. Trata-se, assim, de formular e praticar um novo paradigma de «desenvolvimento humano solidário».

Palavras-chave: Globalização, Paradigma, Desenvolvimento Humano Solidário

 

TITLE: For a human development paradigm based on solidarity

ABSTRACT: At the “age of transition”, we need to understand in depth what is human development. According to a Christian perspective, that development can only be based on solidarity. That is why we must elaborate and, above all, practice a new paradigm for human development. The author presents a preliminary essay on this subject.

Key words: Globalization, Paradigm, Solidary Human Development

 

 

Nesta introdução, vou em primeiro lugar apresentar algumas questões relativas ao conceito de «desenvolvimento humano» e recordar grandes problemas que a Humanidade defronta neste início do Séc. XXI, em particular em matéria demográfica, de sustentabilidade ambiental ou ecológica e também de sustentabilidade social.

Referirei depois, ainda de forma sumária, a conjuntura actual de crise sistémica mundial e as respectivas implicações na perspectiva do «desenvolvimento humano».

Na última parte desta exposição, abordarei características específicas da situação portuguesa e terminarei pela referência a um possível paradigma para o «desenvolvimento humano e solidário» dos portugueses.

Claro que se trata de temas imensos e complexos. Não posso ambicionar mais do que proporcionar-lhes algumas pistas iniciais para uma reflexão pessoal e colectiva muito mais aprofundada.

Desde os anos 1990 que a ONU publica um relatório anual sobre o «desenvolvimento humano» à escala mundial, incluindo diversas informações estatísticas relacionadas com o conceito, por países e grandes regiões da economia mundial. Aquilo que é correntemente entendido por «desenvolvimento económico», muitas vezes estimado pelo produto interno bruto por habitante, é apenas um dos componentes desse conceito de «desenvolvimento humano». São publicadas séries estatísticas muito pormenorizadas sobre o tema, incluindo um IDH, «índice de desenvolvimento humano», que varia entre 0 e 1, e que traduz o crescimento de três elementos fundamentais: a esperança de vida à nascença, o nível de instrução e o nível de rendimento, avaliados em médias por habitante. Neste sentido, o «desenvolvimento humano» de uma população significa, no fim de contas, viver mais tempo, saber mais e dispor de maior rendimento.

O crescimento do IDH nas últimas décadas, de uma maneira geral, tem sido impressionante, embora algumas regiões tenham apresentado recuos, sobretudo na África ao sul do Sara, e isso sobretudo por efeito da degradação das condições sanitárias da população e correspondente redução da duração média de vida. Todavia, se pensarmos que, segundo as estimativas disponíveis, a população mundial aumentou cerca de dez vezes nos últimos três séculos, as tendências do IDH são encorajadoras. Apesar das guerras, calamidades naturais, crises económicas, assimetrias e injustiças de toda a ordem, há hoje muitas mais pessoas «humanamente desenvolvidas», no sentido referido, do que em qualquer período do passado. Afinal, parece que o «Progresso» continua a fazer algum sentido, e não só para o Dr. Pangloss ironizado por Voltaire, e que continuava optimista na segunda metade do Séc. XVIII, mesmo ao tempo do terramoto de Lisboa…

Pois há, certamente, outros aspectos positivos a considerar neste assunto multi-dimensional. Assim, ao menos numa parte considerável do planeta, se não por quase todo o lado, pode reconhecer-se que aumentou o espaço da liberdade humana: o ser humano está geralmente mais liberto da superstição, da sujeição da comunidade local, da família tradicional, do partido e do Estado. E, sem dúvida, há a registar a impressionante promoção da mulher, talvez o facto mais marcante do «desenvolvimento humano» neste dealbar do Séc. XXI. E a ONU, além do mais, tem defendido a «liberdade cultural para o desenvolvimento humano».

Mas há também a registar um imenso lado sombrio em toda esta evolução. A globalização acentuou desigualdades a nível internacional e intra-nacional.

Multidões vivem em periferias das grandes cidades em condições de pobreza absoluta. Mahamad Yunus, na sua conferência por ocasião da cerimónia em que recebeu o prémio Nobel da Paz, em 2006, reconheceu o absurdo intolerável das condições de vida num planeta em que os 40% mais ricos obtêm 94% do rendimento global, enquanto os 60% mais pobres dispõem apenas de 6%. E onde cerca de um bilião de pessoas (sobre)vivem com menos de um dólar por dia. No momento em que muito se fala das economias emergentes, com rápidos ritmos de crescimento económico, não se pode esquecer que cerca de 35% da população da Índia e 17% da China vivem em condições de pobreza absoluta, isto é, dispondo de menos de 1 dólar de rendimento por dia.

De tudo isto resultou a fixação dos «Objectivos do Milénio» pela ONU, procurando mobilizar recursos e vontades para superar nalguma medida as desumanas condições de vida em que se encontra parte significativa da população mundial. Mas esses objectivos, ainda que modestos, não estão a ser atingidos.

Por outro lado, as novas Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC) tornaram, sem dúvida, o mundo mais transparente e podem servir como algo decisivo para o desenvolvimento humano mundial, ou seja, a globalização do conhecimento. O acesso fácil ao conhecimento em qualquer ponto do globo, por mais remoto que seja, desde que tenha acesso à Internet, é hoje uma realidade...

Mas se o mundo se tornou mais transparente, também se tornou mais enganador. Mediático, como se costuma dizer, e também mistificador. Verifica-se que, por vezes, como é flagrante no caso português, aumentou sobretudo a distância entre aspirações e expectativas, isto é, entre desejos e reais possibilidades de atingi-los.

Pode, assim, haver melhoria absoluta das condições de vida, mas, ao mesmo tempo, ter aumentado a frustração da pessoa.

Reconheça-se, ainda: mais do que na «economia baseada no conhecimento» tantas vezes anunciada, pode dizer-se que estamos na sociedade do «conhecimento baseado na economia». De certo modo, o conhecimento geralmente procurado é o conhecimento valorizado pela economia mercantil. Há como que um «mercado do conhecimento», em lugar do «mercado de trabalho», a ocupar o lugar central na acumulação de capital do capitalismo «desenvolvido». Parece que, muitas vezes, é o dinheiro que dirige o conhecimento, em lugar do contrário, como seria desejável.

Numa visão de mais longo prazo, podemos identificar grandes questões nos caminhos possíveis do futuro «desenvolvimento humano», que explicitarei a seguir.

 

TENDÊNCIAS DEMOGRÁFICAS E SUSTENTABILIDADE

Embora crescendo cada vez mais lentamente, ou mesmo decrescendo nalgumas regiões, como em grande parte da Europa, estima-se que a população mundial atingirá cerca de 9,5 biliões por meados deste século, ou seja, um crescimento da ordem dos 50%. Se a tendência dominante vai no sentido de prolongamento da esperança de vida, mas com redução das taxas de natalidade, tal significa tendência para o envelhecimento médio das populações. E isto, como é evidente, terá consequências sobre modos de vida, expectativas e valores dos seres humanos, questão que não irei aqui desenvolver.

Mas referirei duas dimensões fundamentais do chamado desenvolvimento sustentável. Uma refere-se à relação com o meio ambiente: o moderno crescimento económico, associado à grande expansão demográfica que referi, tem tido consequências nefastas sobre a envolvente natural do planeta e que não poderão prolongar-se por mais tempo. A degradação do meio ambiente, note-se, tem no imediato dois grupos principais de vítimas: os pobres ou muito pobres das áreas mais atrasadas do planeta, sobretudo dos localizados em subúrbios poluídos de grandes cidades, como São Paulo, Bombaim, Calcutá, Cantão ou Xangai; e as futuras gerações que irão habitar um planeta porventura irrecuperável. Isto é: em ambos os casos, aqueles que mais sofrem ou poderão sofrer da degradação do meio ambiente, não dispõem de qualquer poder para influenciar positivamente o presente curso de acontecimentos.

O que nos conduz à outra dimensão da sustentabilidade, no plano estritamente social: as presentes tendências de exclusão e de acentuação de desigualdades também não poderão manter-se num sistema económico e social compatível com noções elementares de liberdade e dignidade humanas. Um desenvolvimento realmente sustentável pressupõe coesão social, não um mundo em que coexistem minorias muito ricas entrincheiradas em condomínios reservados e multidões sobrevivendo com dificuldade nas periferias circundantes. Num mundo como o sugerido pelo humor amargo dos brasileiros que habitam a favela de São Paulo que eles próprios designam de «Alfavela» circundando a denominada «Alfavila» dos ricos citadinos.

 

A PRESENTE CRISE SISTÉMICA

Para além de tudo isto, muito distante de algum «Admirável Mundo Novo», que o paradigma neo-liberal prometia nos seus tempos áureos, entrámos num período de crise económica global que parece terminar um ciclo de expansão do capitalismo. O lado positivo desta crise será, porventura, forçar caminhos alternativos para a economia e a sociedade, caminhos que, embora por muitos desejados, têm vindo a ser adiados ou desvirtuados.

Procurarei referir essa crise na perspectiva do desenvolvimento humano que tenho questionado. A presente crise sistémica parece marcar o fim de uma trajectória do capitalismo em que a globalização financeira predominou sobre a globalização do conhecimento, num sentido que passo a expor de forma necessariamente muito abreviada.

A «globalização» que se acentuou a partir do último quartel do século passado significa essencialmente maior integração ou interdependência da economia mundial. Uma das dimensões deste processo foi a liberalização dos movimentos de capitais que, em tempo de novas TIC, permite que o capital real ou supostamente titulado em dinheiro possa, afinal, deslocar-se à velocidade da luz. Neste sentido, pode dizer-se que o «capital» se tornou mais ágil do que nunca, e também mais poderoso.

As imaginativas criações da chamada «engenharia financeira» permitiram, por outro lado, que a expressão nominal ou financeira da economia mundial crescesse desproporcionadamente, sem correspondência com a chamada economia real, ou seja, a efectiva produção de bens e serviços. Neste panorama alucinante, os EUA desempenham um papel fundamental: mais do que o pobre Portugal, pode dizer-se que a economia norte-americana tem vivido «acima das suas possibilidades», com uma dívida pública (além da privada) equivalente a um quinto do PIB mundial. E é, em grande parte, a China que sustenta esta posição, pois titula excedentes da sua balança de pagamentos em bilhetes do Tesouro norte-americanos.

Veja-se o absurdo desta situação: a pobre China vive «abaixo das suas possibilidades» e financia a economia mais poderosa do sistema mundial que, afinal, vive «acima dos seus meios»! Claro que a viabilidade de uma economia mundial assente em tais relações era precária e à beira de um colapso, que ocorreu, como se sabe, a partir da recente crise do mercado imobiliário americano.

A avidez mercantil e a ganância do capitalismo financeiro parecem ter conduzido a esse resultado. É, pois, urgente a prática de um novo paradigma baseado na solidariedade inerente à condição humana.

Mas vejamos agora brevemente o contexto português inserido nesse fundo… afinal, mesmo sem fundo que descrevi.

 

REFERÊNCIA À SITUAÇÃO PORTUGUESA: UMA CRISE GLOBAL ENVOLVENTE DA CRISE ENDÓGENA

No Portugal de hoje sentimos o divórcio crescente entre aspirações e expectativas: entre o que se deseja e aquilo que «vai acontecendo». Sofrimento, frustração, azedume e amargura em lugar da esperança no futuro parecem dominar a presente consciência que os portugueses têm de si mesmos.

Chamo a essa consciência a «ideologia portuguesa». Algo que em lugar de estimular uma acção positiva surge muitas vezes mais como queixume, lamúria, enfim pretexto para transferir para os outros a responsabilidade que afinal cabe a todos, no quadro da vivência activa de uma sociedade verdadeiramente democrática. Mas, claro que Portugal está longe disso: de ser uma sociedade verdadeiramente democrática. Para tanto, a conquista da democracia formal, dita «política», só pode ser um ponto de partida e não de chegada.

Não me compete, nesta sessão, examinar como economista a crise nacional. Basta-me reconhecer que estamos longe de garantir a chamada convergência real no seio da integração europeia – ou seja, de seguirmos uma trajectória convincente e sustentada de redução do nosso atraso em relação à média europeia – e que, além disso, há informação estatística que revela uma acentuação da desigualdade e da exclusão social, em lugar da correcção que julgáramos ao nosso alcance depois da queda da Ditadura.

Julgo que este simpósio apela para a estratégia mais apropriada para o contexto global e nacional que tenho referido e que afinal remete para algo a que chamo:

Um Novo Paradigma para o «Desenvolvimento Humano» na Sociedade Portuguesa

Algo que, desejavelmente, deveria tomar o lugar da deprimente e paralisante «ideologia portuguesa» que referi. De que se trata?

Creio que, nas presentes condições, o grande impulso só pode provir da sociedade «civil» e não do Estado.

Como hoje se afirma muitas vezes, mas não se pratica tanto, trata-se de conceber o desenvolvimento «de baixo para cima» (bottom up) em lugar de «cima para baixo» (top down). Ao nível individual, trata-se de entender a acção como modo de conhecimento, de dar primazia ao «homem aprendente», que constantemente procura aprender com a sua própria experiência activa, sobre o «homem marketing», que consciente e/ou inconscientemente sobretudo procura «parecer», não se interrogando sequer sobre se «ser» é apenas isso.

Nesta perspectiva, e vendo as coisas de forma mais prática, creio que está por fazer o autoconhecimento da própria sociedade civil portuguesa. E que esse conhecimento alargará o espaço da solidariedade activa dos portugueses. Creio que esta tarde iremos aprender muito sobre o tema e encontrar novos motivos de esperança na linha do desenvolvimento humano e solidário de que carecemos.

Em resumo: o «desenvolvimento humano» é ser mais numa relação solidária com os outros.

Em Portugal, como no resto do mundo.

 

* Este texto foi escrito para a minha intervenção inicial do Seminário «Reinventar a Solidariedade em tempo de crise», organizado pela Conferência Episcopal Portuguesa, que decorreu em Lisboa em 15 de Maio último. Por razões de saúde, não pude estar presente no seminário para que fui convidado, como era meu desejo e intenção.

 

** Mário Murteira

mlsm@iscte.pt

Doutor em Economia (Universidade Técnica de Lisboa). Prof. Catedrático Jubilado de Economia do ISCTE – IUL. Antigo Presidente da Escola de Gestão do ISCTE-IUL. Director da Revista Economia Global e Gestão.

PhD in Economics (Lisbon Technical University). Emeritus Professor of Economics of ISCTE – IUL Lisbon University Institute. Former President of ISCTE – Business School. Director of Global Economics and Management Review.