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Economia Global e Gestão

versão impressa ISSN 0873-7444

Economia Global e Gestão v.13 n.3 Lisboa dez. 2008

 

Como enfrentar a crise?

Mário Murteira*

 

Ao panorama já complexo e preocupante da evolução da economia mundial, juntou-se recentemente a alarmada consciência de uma ‘crise’ de grandes proporções, que provém, em primeira instância, da peculiar globalização financeira do capitalismo actual, mas que inevitavelmente se vai propagando à esfera da chamada economia real.

Sobre uma tal crise, cuja análise aprofundada não cabe neste texto, é no entanto possível juntar algumas notas de enquadramento.

Em primeiro lugar, deve reconhecer-se a especificidade da presente conjuntura, que não é semelhante à Grande Depressão dos anos 30 do século passado, ao contrário do que por vezes é sugerido. E isto fundamentalmente por duas razões: a estreita interpenetração (ou globalização) das economias no presente sistema mundial e a escalada de um capitalismo financeiro, ávido de dinheiro e desregulado, que contamina a chamada economia real de fragilidade e incerteza.

Já sabemos que a globalização consolida um mercado global único, embora cada vez mais desigual. A globalização, na sua vertente financeira actual, permite que o mercado global seja fortemente condicionado por movimentos especulativos do capital, mais do que por factores próprios da economia real, como a produtividade e a inovação.

Em segundo lugar, pode reconhecer-se que a Economia (dimensão específica do processo histórico) continua a ter papel determinante na evolução social global do capitalismo, mas a Economia, que pretende ser «científica», no quadro do chamado paradigma neo-liberal, é irrelevante para a compreensão da primeira. Por outras palavras: o ponto de vista económico hoje dominante (a «ideologia», no sentido de Schumpeter, dos economistas) não favorece, antes dificulta, a compreensão profunda do que correntemente se designa por crise. Lamentavelmente, nem Marx nem Schumpeter parecem merecer do pensamento económico actual novas leituras ou interpretações adequadas a este incerto dealbar do Séc. XXI.

Em terceiro lugar, surge um aparente consenso sobre a necessidade de encontrar novas formas de regulação do capitalismo. Mas o consenso desaparece quando se trata de afirmar, com algum rigor, os meios e os fins das pretendidas reformas de instituições como o FMI e o Banco Mundial, ou até o Banco Central Europeu. Na verdade, o próprio «Consenso de Washington», que durante algum tempo constituiu um quadro de referência normativo das políticas económicas nacionais dos estados, digamos, «bem comportados», deixou de merecer a designação, pois está-se longe de um consenso, seja ele qual for.

Perante este panorama, que dizer da estratégia necessária para superar a actual crise sistémica do mercado global?

Procurando evitar o banal discurso de boas intenções, o fácil wishful thinking que confunde desejos com realidades, julgamos justificado apontar alguns critérios básicos que deverão nortear essa estratégia.

Critérios que, além do mais, deverão abrir perspectivas para largos consensos não só nos princípios mas também nas práticas a seguir.

Não faria sentido procurar uma «receita» apropriada para curar as actuais maleitas deste capitalismo do Séc. XXI, tão diferente do capitalismo do tempo da chamada Revolução Industrial inglesa e tão semelhante, apesar disso, nalguns dos seus fundamentos essenciais: propriedade privada dos meios de produção, objectivo primordial do lucro máximo por parte dos actores que concorrem no mercado, tendência para a concentração do poder económico nalguns desses actores.

Uma surpreendente e notável característica do capitalismo consiste exactamente nessa capacidade de se transformar, em função dos contextos históricos que se vão sucedendo, e ao mesmo tempo manter determinadas configurações básicas que lhe conferem a identidade e vitalidade próprias.

Ora, também nesta matéria se poderá afirmar que «o caminho faz-se, fazendo-se»: o que está em causa é a busca de uma prática bem orientada e capaz de autocorrecção pela leitura da experiência adquirida. Importa, portanto, tentar caracterizar essa prática, para esboçar ou sugerir o correspondente «caminho».

Há alguns critérios gerais, aliás reconhecidos com crescente frequência, que parecem indiscutíveis:

• a estratégia deve ser transnacional, isto é, deve assentar numa multiplicidade de entidades que, apesar de representativas de diferentes nacionalidades, convergem em certas formas de concertação;

• a estratégia deve ter um fundamento ético explícito e credível, isto é, o discurso sobre os princípios não deverá confundir-se com alguma fórmula mais ou menos hipócrita de marketing, cultural, social ou político;

• a estratégia deve permitir a mobilização dos diferentes actores da sociedade civil, ou seja, deve abrir um largo campo de actuação «de baixo para cima», e não apenas dirigir-se aos grandes actores habituais da política económica.

De passagem, note-se que a aceitação destes critérios implica necessariamente a superação do «político» no estrito sentido habitual do termo, que além do mais conduz a classificações do tipo «esquerda» ou «direita», cada vez mais difíceis de caracterizar, mesmo nesse terreno próprio da acção «política».

Vejamos mais de perto estes três critérios.

A tentativa de encontrar uma solução «nacional» para a presente crise, mesmo que se trate da nação ainda mais poderosa do mundo, é incompatível com a dimensão da globalização em que temos insistido, isto é, a «integração» formal ou informal das economias nacionais num «único» mercado global. Mudar a ordem económica hoje prevalecente apenas à escala de um país significaria necessariamente uma tentativa – mesmo à partida condenada ao fracasso – de proteccionismo ou autarcia.

O que conduz a uma reflexão sobre a reforma de instituições como o Banco Mundial ou o FMI e à necessidade de algo como um segundo acordo de Bretton Woods para reformulação do presente sistema de regulação da economia mundial.

A questão ética é primordial, se for tomada com a seriedade e a profundidade que se tornam necessárias. É neste plano que a visão cristã do homem e das relações sociais poderá ser recuperada e valorizada. Não como discurso moralista, que quando muito apela para boas intenções, mas como núcleo essencial à profunda reforma do sistema económico mundial hoje ainda dominante.

Seria, com efeito, desejável que algo como um novo «Consenso de Washington», explicitamente fundado em princípios éticos e associado à realização empenhada dos «Objectivos do Milénio», preconizados pela ONU, pudesse surgir nesta perspectiva.

A visão bottom up do desenvolvimento carece de novo impulso, quer em extensão quer em profundidade.

Um largo campo de «inovação social», como as propostas de Muhammad Yunus, prémio Nobel da Paz, no domínio do microcrédito e daquilo que designou por «negócio social», abre-se aqui aos actores económicos, mesmo situados num contexto de economia de mercado. É desnecessário acentuar o apelo prático e fundamental que aqui encontramos para a prática dos valores éticos (em lugar dos cotados na bolsa...) na superação da presente crise do mercado global.

 

* Mário Murteira

mlsm@iscte.pt

Doutor em Economia (Universidade Técnica de Lisboa). Prof. Catedrático Jubilado de Economia do ISCTE.

Antigo Presidente da Escola de Gestão do ISCTE. Director da revista Economia Global e Gestão.

PhD in Economics (Lisbon Technical University). Emeritus Professor of Economics of ISCTE. Former President of ISCTE Business School. Director of Global Economics and Management Review.