SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.13 número3Uma Questão de Ética?Uma nota sobre a justiça fiscal em Portugal índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Economia Global e Gestão

versão impressa ISSN 0873-7444

Economia Global e Gestão v.13 n.3 Lisboa dez. 2008

 

A crise financeira sem mistérios. Convergência dos dramas econômicos, sociais e ambientais

Ladislau Dowbor*

 

RESUMO: O presente artigo visa apresentar os principais encadeamentos da crise financeira. Partindo dos mecanismos imediatos que a desencadearam, analisa em seguida a deterioração dos mecanismos e das instituições de regulação e o papel-chave que os EUA desempenham. Na linha da avaliação dos impactos, busca delinear quem deverá em última instância pagar pela bancarrota do cassino, analisando como a especulação financeira contribui para a concentração de renda, e como os mecanismos se dão de maneira diferenciada no Brasil. Na parte final, o artigo apresenta dois grupos de propostas; dos que querem manter o sistema, mas melhorar a sua regulação, e dos que vêem a crise como oportunidade para se colocar de maneira mais ampla os problemas da alocação racional de recursos em função dos dramas sociais e ambientais: é a crise no seu contexto mais amplo, na sua dimensão de oportunidade de resgate do desenvolvimento sustentável.

Palavras-chave: Globalização, Crise Financeira, Especulação, Regulação

 

TITLE: The Financial Crisis without Mysteries: bridging the economic, social and environmental issues

ABSTRACT: The workings of the 2008 financial crisis are not very misterious. A mixture of greed, a good dose of outright fraud, and blatantly absent or corrupt regulation. The paper starts presenting the mechanisms of the financial machine, including the institutions supposed to regulate it. It then concentrates on the impacts – who pays for what – and presents the results in terms of income concentration, followed by a few pages on the specific situation of the Brazilian financial intermediation system. The last part of the paper presents two groups of responses: on one hand, the ideas concerning the improvement of the regulatory framework, emitted by analysts or institutions interested in maintaining the system while making it more efficient; on the other hand, the views of those who consider that the present crisis is an opportunity to restructure the system, showing that the crisis of the financial system is in fact a part of the larger picture, that involves the social and environmental dramas.

Keywords: Globalization, Financial Crisis, Speculation, Regulation

 

 

Texto completo disponível apenas em PDF.

Full text only available in PDF format.

 

1. «A sedução do jogo envolveu até gerentes de empresas industriais, como os da Sadia, que perdeu R$670 milhões apostando em derivativos, e a Aracruz, que perdeu R$1,85 bilhão» (Bernardo Kucinski, 2008, Revista do Brasil, Novembro, p. 18). A Sadia demitiu 350 funcionários, em Janeiro de 2009, como se fossem os responsáveis.

2. A Lehman, por exemplo, com alavancagem de 31 em 2007, entrou numa corrida para reduzi-la e tentar evitar a quebra que acabou ocorrendo (Business Week, 28 de Julho, 2008). A revista explica um mecanismo simples: se a instituição emprestou 150 bilhões sobre um capital de 10 bilhões, portanto com uma alavancagem de 15, uma redução de 3 bilhões de capital próprio a obrigaria a reduzir a sua exposição em 45 bilhões (3 bilhões x 15) para manter a mesma alavancagem. Haja «liquidez». No momento da quebra, a Lehman tinha bilhões em cerca de um milhão de acordos de «derivativos» com cerca de 8 mil empresas, deixando os novos administradores bastante desorientados (Business Week, 20 de Outubro, 2008).

3. RAJAN, Raghuram (diretor do departamento de pesquisa do FMI) (2005), «Risky Business», Finance and Development, IMF, Setembro: «While it is hard to be categorical about anything as complex as the modern financial system, it’s possible that these developments are creating more financial-sector induced procyclicality than in the past. They may also create a greater (albeit still small) probability of a catastrophic meltdown» (p. 54).

4. DODD, Randall (2007), «Sub-prime: Tentacles of a Crisis», IMF, Finance and Development, Dezembro, p. 15. O autor do artigo é Senior Financial Expert in the IMF Monetary and Capital Markets Department.

5. New Scientist, 25 de Outubro de 2008, p. 9.

6. «Credit-rating agencies: Special Report», The Economist, 28 de Março de 2005, p. 67. A última citação é de Glenn Reynolds, de uma firma independente de pesquisa de crédito, no mesmo artigo. O The Economist de 15 de Novembro de 2008 refere-se ao «oligopólio criado» e ao «central conflict bedevilling the industry: although ratings are relied on by investors and regulators as impartial measures, the rating agencies are paid by those they rate for their judgments. With their marks of approval stamped all over the most toxic assets poisoning the financial system, they were quickly blamed for helping cause the credit crunch» (p. 91).

7. Paul de Grauwe (2008) explica: «We learned from the Great Depression that in order to avoid such crises we have to limit risk taking by bankers. We unlearned this lesson during the 1980s and 1990s when the banking sector was progressively deregulated, thus giving banks opportunities to seek high risk investments. The culmination of this deregulatory movement was the repeal of the Glass-steagall Act in 1999 under the Clinton Administration. This ended the separation of the commercial and investment banking activities in the US – a separation that had been in place since the 1930s banking collapse. Repeal of the Glass-Steagall Act opened the gates for US banks to take on the full panoply of risky assets (securities, derivatives and structured products) either directly on their balance sheets or indirectly through off-balance sheet conduits. Similar processes of deregulation occurred elsewhere, in particular in Europe, blurring the distinction between investment and commercial banks, and in the process creating “universal banks”. It now appears that this deregulatory process has sown the seeds of instability in the banking system» (Paul de Grauwe, 2008, «Returning to narrow banking, What G20 leaders must do to stabilise our economy and fix the financial system», VoxEU.org Publication, 9 de Novembro, p. 37). O documento apresenta visões e propostas de 17 especialistas, em trabalho coordenado por Barry Eichengreen – http://www.voxeu.org/index.php?q=node/2543.

8. Disponível em http://www.monthlyreview.org/081201foster-magdoff.php.

9. O The Economist («A Special Report on the Future of Finance», 24 de Janeiro de 2009) informa: «The world is only beginning to count the cost of the bust. In America the share of household and consumer debt alone went up from 100% of GDP in 1980 to 173% today, the equivalent to around $6 trillion of extra borrowing» (p. 20).

10. Em Novembro de 2008, a balança comercial dos EUA estava deficitária em 848 bilhões nos 12 meses, segundo The Economist, de 15 de Novembro de 2008, p. 118.

11. Avaliação de riscos futuros do dólar no WEF de Davos (2009, World Economic Forum, «Global Risks»): «Major fall in US$: Experts consider that the dollar could come under pressure as investors reflect on the long-term impact of current monetary expansion, high fiscal deficits and the continuing fragility of the US financial system» (p. 28) - www.globalrisks2009.pdf.

12. A reunião do G20 se referiu de maneira extremamente delicada à responsabilidade norte-americana: «Policy-makers, regulators and supervisors, in some advanced countries, did not adequately appreciate and address the risks building up in financial markets» – «Statement from the G-20 Summit», 15 de Novembro, 2008, ponto 3 (sublinhado nosso).

13. Típico deste mecanismo é o carry trade, onde um especulador pega um empréstimo barato, por exemplo no Japão, e aplica onde rende mais, por exemplo no Brasil. Não produz nada, desorganiza a eficiência da política monetária de cada país, pelo próprio volume de recursos asssim mobilizados.

14. The Economist, 15 de Novembro, 2008, p. 89.

15. A UNCTAD, sob orientação de Rubens Ricúpero, já alertava no início dos anos 2000 para esta deformação do sistema. Ver por exemplo UNCTAD, «Trade and Development Report 2001», p. vii; a avaliação de Ricúpero sobre as dimensões políticas da crise financeira pode ser encontradas em «A crise financeira e a queda do muro de Berlim», em http://dowbor.org/crise/08ricupero.pdf.

16. KELLY, Marjorie (2001), The Divine Right of Capital, San Francisco, Berrett-Koehler, pp. 33-35. Reproduzimos aqui um segmento do que estudamos mais amplamente no ensaio Democracia Econômica, Vozes, 2008 – Ver também http://dowbor.org.         [ Links ]

17. As diversas classificações de pagamento aos administradores corporativos, com os valores, podem ser encontradas em http://toomuchonline.org/ExecPayScoreboard.html.

18. Fonte do gráfico: IMF, Finance & Development, Junho de 2007, p. 21.

19. Há imensa literatura sobre o assunto. O gráfico acima é do Relatório de Desenvolvimento Humano 1998 das Nações Unidas; para uma atualização em 2005, ver Human Development Report 2005, p. 37. Não houve mudanças substantivas. Uma excelente análise do agravamento recente destes números pode ser encontrada no relatório Report on the World Social Situation 2005, «The Inequality Predicament», United Nations, New York, 2005; O documento do Banco Mundial, «The next 4 billion», que avalia em 4 bilhões as pessoas que estão «fora dos benefícios da globalização », é igualmente interessante – IFC. «The Next 4 Billion», Washington, 2007; estamos falando de dois terços da população mundial. Para uma análise ampliada do processos, ver o nosso Democracia Econômica, ed. Vozes, 2008, bem como o artigo «Inovação Social e Sustentabilidade», ambos disponíveis em http://dowbor.org.

20. The Economist, «A Special Report on the Future of Finance», 24 de Janeiro de 2009.

21. The Economist, «A Special Report on the Future of Finance», 24 de Janeiro de 2009.

22. Ver «Pesquisa mensal de juros», http://www.anefac.com.br/m3_preview.asp?cod_pagina=10782&cod_idm=1.

23. Segundo pesquisa industrial divulgada, em 2009, pelo O Estado de S. Paulo «na média entre Outubro e Dezembro, período mais agudo da crise mundial, que fez subir o custo dos financiamentos, os desembolsos para pagamentos de juros foram 11% superiores aos gastos com salários» (p. 3). Pesquisa da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) sobre os gastos da indústria brasileira com pagamentos de juros (O Estado de S. Paulo, 02/02/09). O lucro de um banco, o Bradesco, foi de 7,6 bilhões de reais em 2008, cifra próxima da totalidade do Programa Bolsa-Família. Até uma pessoa tão pouco suspeita de proximidades com a esquerda como Marcos Cintra, clama contra o cartel de bancos comerciais no Brasil e os spreads escandalosos («It’s the Spread, Stupid», Folha de São Paulo, 2 de Fevereiro de 2009, p. 3). Para os não familiarizados, vale lembrar que a formação do cartel significa que todos praticam juros e tarifas semelhantes, e que portanto não temos escolha. Trata-se, assim, de um imposto privado e, na medida em que cartel é crime, trata-se tecnicamente de crime contra a ordem econômica. A maravilha, é que não há culpado. O culpado é um ente invisível chamado misteriosamente de «mercado ».

24. IPEA – «Pobreza e riqueza no Brasil metropolitano» – n.º 7, Agosto de 2008, p. 11 – Documento disponível em http://www.ipea.gov.br/sites/000/2/comunicado_presidencia/ReducaoPobreza_CPresi7.pdf.

25. O crescimento econômico, em particular na segunda gestão Lula, permitiu simultaneamente o aumento da renda dos estratos superiores e a melhoria muito significativa do rendimento dos trabalhadores. O salário mínimo na gestão Lula teve um aumento real de 46,05%, o que atinge cerca de 25 milhões de trabalhadores e 18 milhões de aposentados. Em 2009, a partir de Fevereiro, o salário mínimo passou para 465 reais (160 euros). De certa forma, o Brasil já adotou uma política anticíclica antes da crise ao expandir o consumo na base da sociedade. Mas sejamos realistas: o ponto de partida é muito baixo e a desigualdade herdada é extrema. Uma política keynesiana ainda terá de subir vários degraus no Brasil.

26. A composição do Comité de Basileia de Supervisão de Bancos é eloquente: «The Basel Committee on Banking Supervision provides a forum for regular cooperation on banking supervisory matters. It seeks to promote and strengthen supervisory and risk management practices globally. The Committee’s members come from Belgium, Canada, France, Germany, Italy, Japan, Luxembourg, the Netherlands, Spain, Sweden, Switzerland, United Kingdom and United States» (www.bis.org/press/p081120.htm). A era colonial não está tão longe.

27. O Press Release do presidente do Comité: Mr Wellink emphasised that the Committee’s efforts will be «carried out as part of a considered process that balances the objective of maintaining a vibrant, competitive banking sector in good times against the need to enhance the sector’s resilience in future periods of financial and economic stress». Trata-se portanto de manter um sistema visto como «vibrante e competitivo», com algumas salvaguardas (www.bis.org/press/p081120.htm).

28. O lema do BIS de Basileia comove: «The BIS is an international organization that fosters cooperation among central banks and other agencies in pursuit of monetary and financial stability».

29. «We will implement reforms that will strengthen financial markets and regulatory regimes so as to avoid future crises. Regulation is first and foremost the responsibility of national regulators who constitute the first line of defense against market instability» (Declaração final do G20, ponto 8, www.nytimes.com/2008/11/16/washington/summittext.html).

30. Vários estudos preliminares apontam para o fato que as instituiçoes financeiras faziam o seu cálculo de risco individualmente, mas considerando que o ambiente externo se manteria estável. Assim, ninguém fazia a avaliação de risco sistêmico, nem organizava informações a respeito. Stijn Claessens (2008), do FMI, se refere ao fato que o próprio sistema de informações é inadequado: «The crisis has highlighted the size of information gaps we face, both nationally and internationally. More and better information is needed if markets and authorities are to better assess the build-up of systemic risk. Addressing this requires a review of rules on transparency, disclosure and reporting» (What G20 Leaders must do..., p. 30).

31. Willem Buiter, da London School of Economics, sugere: «Make it impossible to combine rating activities with other profit-seeking activities in the same legal entity» (What G20 leaders must do..., p. 19).

32. Statement from G-20 Summit, 15 de Novembro de 2008, ponto 8.

33. As propostas no Fórum de Davos 2009 mostram essa falta total de realismo frente às novas dinâmicas, com um pequeno catecismo chamado «5I Framework» (Insight, Information, Incentives, Investments, Institutions), na linha das bobagens tipo 5 S e semelhantes que ensinamos lamentavelmente nas ciências de Gestão. O lema do World Economic Forum nos aparece como bastante cínico: «Committed to Improving the State of the World». WEF, «Global Risks 2009», p. 14 – http://www.marsh.pt/documents/globalrisks2009.pdf. As visões sistematizadas no Fórum Social Mundial 2009 hoje aparecem com toda a sua dimensão de bom senso.

34. Com bom humor, o The Economist de 6-12 de Dezembro de 2008 mostra na capa um imenso buraco negro e a manchete «Where have all your savings gone» («Para onde foram todas as suas poupanças»). O título é uma brincadeira com a música «Where have all the flowers gone» cantada por pessoas alegres em 1968. Mas na realidade, é a poupança de uma imensa massa de pessoas que foi para o buraco, e estas pessoas não estão nada alegres. Na realidade, não desapareceu riqueza, o mundo continua a contar com o mesmo número de casas, de carros etc. É o direito sobre estas casas e outros bens que mudou de mãos. Esta apropriação de riquezas por quem não as produziu, e inclusive desorganiza os processos produtivos, constitui um dos elementos centrais da deformação do sistema.

35. New Scientist, 18 de Outubro de 2008, p. 40; para acessar o gráfico online veja http://dowbor.org/ar/ns.doc; o dossiê completo pode ser consultado em www.newscientist.com/opinion; os quadros de apoio e fontes primárias podem ser vistos em http://dowbor.org/ar/08_ns_overconsumption.pdf; contribuiram para o dossiê Tim Jackson, David Suzuki, Jo Marchant, Herman Daly, Gus Speth, Liz Else, Andrew Simms, Suzan George e Kate Soper.

36. «Measured in 2000 purchasing power parity terms, the cost of ending extreme poverty – the amount needed to lift 1 billion people above the $1 a day poverty line – is $300 billion», United Nations, «Human Development Report 2005», p. 38. Sobre a renda mínima e a sua universalização, ver os trabalhos de Eduardo Suplicy, em particular Renda de Cidadania, Cortez/Perseu Abramo, São Paulo, editado em 2006.

 

* Ladislau Dowbor

ladislau@dowbor.org

Doutor em Ciências Económicas (Escola Central de Planeamento e Estatística de Varsóvia), Professor Titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e consultor de diversas agências das Nações Unidas. É autor de Democracia Econômica (Vozes), O que é poder local (Brasiliense) e de numerosos estudos sobre desenvolvimento. Os seus trabalhos estão disponíveis na íntegra, em regime copyleft, em http://dowbor.org.

Phd in Economic Sciences (Central School of Planning and Statiscs of Varsovia), Professor of Economics at the Catholic University of São Paulo, consultant to various United Nations agencies, and author of Democracia Econômica (Vozes), O que é Poder Local (Brasiliense). Books and papers can be found (copyleft) on http://dowbor.org.