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Economia Global e Gestão

versão impressa ISSN 0873-7444

Economia Global e Gestão v.12 n.3 Lisboa dez. 2007

 

A lusofonia do século XXI

Mário Murteira*

 

Estive recentemente, e pela primeira vez, em Goa. Foi uma surpresa encontrar sinais aparentemente tão vivos da cultura portuguesa numa economia e numa sociedade de grandes contrastes, tão referidos a propósito das novas «nações emergentes» no mercado global e de grandes dimensões, como a China e o Brasil.

O estado de Goa tem o maior nível médio de vida na Índia. A miséria atroz que podemos observar, por exemplo, em Bombaim, não é ali patente. Recém-chegado a Goa esqueci, por algum tempo, o espectáculo horroroso das duas velhas desgrenhadas, esfomeadas e andrajosas, em Bombaim, lutando ferozmente pelas rupias que lhes dera como esmola, sem saber o que fazer perante tal exibição de degradação humana.

Em Pangim, ou Nova Goa, um bairro de nome Fontaínhas (palavra que o jovem indiano que me conduzia no seu táxi não conseguia pronunciar correctamente) exibe belas moradias que pertencem a  famílias de nomes  como Gonçalves, Cunha e Soares. Por tais sítios, ainda hoje podemos falar bom português, em especial com goeses idosos que gostam de voltar a estar com portugueses No majestoso palácio de Chandor, insólito sobrevivente na velha Goa, uma idosa senhora, amável e triste, ajuda-nos a conhecer as maravilhas ainda sumptuosas do palácio dos Menezes e Braganças onde, entre outras  memórias de tempos gloriosos, percorremos amplo e bem decorado salão de festas, como se estivéssemos no palácio de Buckingham, na Inglaterra. E encontramos belas peças decorativas oriundas de Macau. Abundam as sugestões de velhos impérios globais que se desvaneceram no imenso tempo decorrido, deixando todavia, teimosamente, marcas nos caminhos percorridos, tal como os animais pré-históricos assinalaram a respectiva passagem.

Em Macau, todavia, a presença portuguesa não penetrou tão profundamente como em Goa. Um miradouro localizado na ilha da Taipa, que contempla a cidade de Macau, exibe uma estátua de Dona Sancha e um letreiro em mau português, ali abundante (e que os chineses ignoram), onde se lê, «Ponto de vista da Dona Sancha». O chinês vestido de campino que fazia de porteiro do emblemático Hotel Lisboa, não podia resistir muito à passagem do tempo. Mas o Hotel - Casino, esse tinha certamente futuro, já que, como um dia me disseram, «ali, um homem pode encontrar tudo quanto necessita para ser feliz, até um quarto» E milhões de chineses procuram a felicidade, como é sabido.

Mas a China de hoje pretende utilizar Macau como ponte de acesso ao mundo lusófono, incluindo Angola e Moçambique. Macau que, ironicamente, alguns portugueses pretenderam promover a «ponte» entre a China e a Europa...Uma ponte demasiadamente estreita para tal trânsito.

Na passagem por Goa recordei estadias, também recentes, na ilha de Moçambique, onde ainda hoje encontramos persistentes traços históricos da presença portuguesa. Não só do tempo das Descobertas, pois aí também pude conversar com o último barbeiro negro do Governador português da ilha, que – um tanto arrependido – me confessou não ter querido acompanhá-lo no regresso a Portugal. Um ilhéu próximo da costa de Moçambique, à saída da ilha do mesmo nome e chamado Goa, apontava o trajecto das naus portuguesas que passavam a caminho da Índia

Que valem hoje, para além das potencialidades turísticas, estes vastos espaços culturais deixados por um Portugal pioneiro da globalização então vigorosa e também tão cheia de promessas e ameaças nos tempos que correm?

É visível o esforço da UE para alargar o seu espaço económico, político e cultural nas várias direcções do mundo global em movimento para destino desconhecido neste século XXI agora iniciado. O Primeiro Ministro português, agora também na presidência da UE, multiplica as suas digressões e contactos estratégicos na América Latina, na Ásia e na África. Num movimento que, além do mais, arrasta consigo uma promessa de maior identidade e presença global dos países lusófonos. Uma forma, talvez, de ressuscitar a globalização portuguesa de há cinco séculos. Agora, evidentemente, com cenários, modelos, meios e propósitos bem diversos dos que conduziram nossos gloriosos antepassados à ilha de Moçambique ou a Goa.

Diz-se muitas vezes, sobretudo em meios bem pensantes, que vivemos em tempo de «redes», isto é, parcerias e conexões de grande agilidade e significado estratégico, bem suportadas pelas novas tecnologias da informação e comunicação. Os actores do mercado global, com efeito, dificilmente trabalham hoje «sem rede», como corajosos e imprudentes artistas de circo.

Mas convém, é claro, não esquecer que as redes não dispensam os actores nem a clareza e convicção no desempenho dos respectivos papéis.

Por isso, a revitalização e globalização da Lusofonia, além do mais, requer diálogos e comportamentos sérios, por exemplo, entre Portugal e Angola, Portugal e Moçambique, Portugal e o Brasil.

Dir-se-á, nesta perspectiva, que estamos a minimizar a Europa também em (re)construção. Tudo depende, claro, do que se entende e projecta nessa «Europa», ao mesmo tempo difusa e omnipresente neste Século XXI.

Talvez esta Europa, no fim de contas, não seja mais do que um trânsito, ou movimento inter-activo, mais incidente em determinadas dimensões - monetárias e financeiras, por exemplo - do que noutras, mais especificamente culturais. E que nestas, espaços carregados de História, mas também com possíveis futuros relevantes, em particular para um pequeno e periférico país como Portugal, possam globalizar-se segundo vias específicas.

Voltando a Goa. É curioso verificar que uma herança cultural portuguesa deixou na Índia dos grandes contrastes, uma ilha de relativa coesão social. Desejavelmente, a Europa da UE deveria consolidar-se também como uma grande «ilha» de coesão social num mercado global cada vez mais desequilibrado, onde ainda prolifera a pobreza relativa e mesmo absoluta.

Vias lusófonas e afinal também europeias por «descobrir», uma vez mais, nas condições do século XXI e não dos séculos XV ou XVI que recordámos em Goa e na ilha de Moçambique.

 

 

*Mário Murteira

mlsmu@mail.telepac.pt

Doutor em Economia (Universidade Técnica de Lisboa). Prof. Catedrático Jubilado de Economia do ISCTE. Antigo Presidente da Escola de Gestão do ISCTE. Director da revista Economia Global e Gestão.