SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.23 número3Entre solidarité standardisée et solidarité renégociée: (re-)présentations de dettes dans un programme de microcrédit argentin índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Indicadores

Links relacionados

  • No hay articulos similaresSimilares en SciELO

Compartir


Etnográfica

versión impresa ISSN 0873-6561

Etnográfica vol.23 no.3 Lisboa oct. 2019

https://doi.org/10.4000/etnografica.7139 

ARTIGO ORIGINAL

A identidade disciplinar de Gilberto Freyre e a institucionalização acadêmica da antropologia no Brasil

The disciplinary identity of Gilberto Freyre and the academic institutionalization of anthropology in Brazil

 

Amurabi Oliveira*

*Departamento de Sociologia e Ciência Política, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Brasil amurabi_cs@hotmail.com

 

RESUMO

O processo de institucionalização do ensino de antropologia no Brasil inicia-se na década de 1930, quando são criados os primeiros cursos de ciências sociais, e com eles as primeiras cátedras em Antropologia no ensino superior. Gilberto Freyre (1900-1987), ainda que mais reconhecido pela sua vasta e relevante obra acadêmica, engajou-se também nesse processo, com destaque para sua atuação como professor na Universidade do Distrito Federal. Busco, neste artigo, analisar a atuação de Freyre como professor de Antropologia, almejando captar as direções que esta disciplina assume com ele. Para a realização deste trabalho, parto da base empírica de suas aulas taquigrafadas, as articulando continuamente com seus dados biográficos e com seu legado acadêmico.

Palavras-chave: Gilberto Freyre, antropologia brasileira, ensino de antropologia, institucionalização da antropologia

 

ABSTRACT

The process of institutionalization of anthropology learning in Brazil begins in the 1930s when the first courses in social sciences were created, and with them the first chairs in Anthropology in higher education. Gilberto Freyre (1900-1987), although more recognized for his vast and relevant academic work, was also involved in that process, notably while teaching at the University of the Federal District. I analyze in this article the work of Freyre as professor of Anthropology, aiming to capture the directions that the discipline assumes with him. For this purpose, I start from the empirical basis of his shorthanded classes, continuously articulating them with his biographical data and with his academic legacy.

Keywords: Gilberto Freyre, Brazilian anthropology, teaching of anthropology, institutionalization of anthropology

 

Introdução

Quando imaginamos a história da antropologia no Brasil, a imagem que nos vem em mente amiúde é a da “missão francesa” que fundou as ciências sociais na Universidade de São Paulo (USP) na década de 1930, da qual fazia parte o eminente antropólogo Claude Lévi-Strauss (1908-2009).[1] Em muitas narrativas sobre a história das ciências sociais no Brasil, tudo aquilo que antecede esse período, que se constrói numa narrativa quase mitológica, estaria relegado ao período “pré-científico” (Liedke Filho 2005), no qual teríamos pensadores sociais, mas ainda não a produção de fato de uma ciência social.

Ainda que devamos reconhecer a relevância da criação dos primeiros cursos de ciências sociais na década de 1930, isso não implica em dizer que a ciência social no Brasil possui como marco inaugural o advento de tais cursos, pois a circulação de autores, teorias e conceito desse campo já estava a ocorrer no Brasil, o que incluía aí um processo de rotinização desse conhecimento através da produção de manuais nessa área (Meucci 2011).[2] Mais que isso, a narrativa que opõe a ciência social produzida em São Paulo àquela que fora realizada em outras partes do Brasil (Miceli 1989) – relegando a esta um papel menor e provinciano – parece estar descolada da realidade empírica e vem a ser cada vez mais revisitada e criticada por novas abordagens sobre a história das ciências sociais no Brasil (Reesink e Campos 2014).

Nesse trabalho, volto-me para uma análise da atuação de Freyre no processo de sistematização e institucionalização da antropologia no Brasil, o que não será realizado, como é usual, através do lugar que suas obras ocuparam nesse processo, porém, sem olvidar que a publicação de Casa-Grande & Senzala (Freyre 2005 [1933]) demarcaria o advento de uma “antropologia da sociedade nacional” (Melo 1999). Deslocarei o foco da análise para a atuação de Freyre enquanto professor da cátedra de Antropologia junto ao curso de Ciências Sociais da Universidade do Distrito Federal (UDF) nos anos de 1930, o que tem sido um tema ainda pouco explorado pelos antropólogos brasileiros dedicados ao tema.[3]

O exercício que realizo aqui se mostra duplamente desafiador, uma vez que me volto para um autor que muitas vezes é compreendido como um precursor das ciências sociais no Brasil, mas não como um cientista social profissional, que atuou em um curso que teve uma curta duração (1935-1939),[4] que na compreensão de Miceli (1989) não fora capaz de produzir ciência nos termos em que tal ocorrera na USP, tendo em vista que a missão de docentes e pesquisadores teria se defrontado com uma embrionária e frágil organização universitária e com os detentores do poder político submetidos às pressões dos grupos de interesse doutrinários e confessionais, em luta aberta por espaços na máquina governamental em expansão.

Em grande medida, trata-se aqui de reescrever a narrativa da institucionalização do ensino de antropologia no Brasil, tomando como ponto de partida a atuação de Freyre como professor. A base empírica para a análise de tal realidade são oito aulas lecionadas na cátedra de Antropologia Cultural entre setembro de 1935 e março de 1936, taquigrafadas por Vera Teixeira, e material publicado pelo autor no livro Problemas Brasileiros de Antropologia (Freyre 1973 [1943]), que reúne algumas dessas aulas, revisadas por ele posteriormente.[5]

Apesar de essas aulas taquigrafadas não constituírem um vasto escopo empírico – dado que cada uma ocupa poucas páginas –, trazem uma riqueza de material significativa que ainda não foi explorada por outros pesquisadores que se dedicaram ao trabalho de Freyre (Skidmore 2002; Pallares-Burke 2005; Bastos 2006; Larreta e Giucci 2007; Cardão e Castelo 2015). Meu interesse maior por esse recorte, como já indicado brevemente, deve-se ao fato de compreender que a rotinização do conhecimento antropológico por meio do ensino constitui, a meu ver, um ângulo privilegiado de análise sobre como esta ciência se institucionalizou no Brasil.

Para uma melhor organização das ideias aqui expressas, primeiramente apresentarei a relação de Freyre com a antropologia e com seu próprio lugar enquanto antropólogo, para logo em seguida analisar sua atuação na UDF, especialmente frente à cátedra de Antropologia Cultural.

 

O antropólogo Gilberto Freyre

A revisita ao trabalho e à biografia de Freyre tem sido bastante intensa nos últimos anos, ultrapassando as barreiras nacionais e disciplinares. Ainda que não caiba aqui realizar um estado da arte desses levantamentos, o que fugiria do foco e do escopo desse trabalho, se justifica realizar alguns breves apontamentos.

Como é bem apontado por alguns autores (Fonseca 1985; Araújo 1994; Lehmann 2008; Lima 2013), a recepção de Freyre num primeiro momento, especialmente da obra Casa-Grande & Senzala (2005 [1933]), fora profundamente positiva, ainda que isso não signifique que não houvesse críticas a seu trabalho, o que era recorrentemente respondido por meio de novas edições, às quais se agregavam novos capítulos, notas de rodapé e prefácios (Sorá 1998). Esta recepção foi acompanhada de um amplo reconhecimento de seu status de sociólogo e antropólogo, ou seja, antes mesmo do processo de institucionalização das ciências sociais no Brasil, Freyre atingira o patamar de referência inconteste nesse campo, ainda que ele preferisse não atrelar seu trabalho a um campo disciplinar específico (Skidmore 2002).

O fato é que, apesar dessa recusa de Freyre de se filiar exclusivamente a um campo disciplinar – como atestam os trabalhos aqui referenciados que analisaram sua trajetória –, ele assumiu uma posição acadêmica privilegiada num momento decisivo de institucionalização das ciências sociais no Brasil. O objeto de reflexão trazido para esta análise, acerca da atuação de Freyre como professor de antropologia na década de 1930, busca captar, justamente, esse momento no qual este pensador chega a se situar disciplinarmente de forma mais clara, ainda que seja sempre bastante complexo o exercício de situar Freyre no campo da antropologia, sem levar em consideração as contradições de seu próprio projeto intelectual (Sánchez-Eppler 1992).

A trajetória de Freyre é cercada de ambiguidades, muitas delas alimentadas por ele próprio, como é realizado de forma explícita no livro Como e Porque Sou e Não Sou Sociólogo? (Freyre 1968b), no qual ele demarca sua relação com a sociologia, a antropologia, a história e a literatura. Sabe-se que ele não realizou estudos formais na antropologia, de modo que sua dissertação de mestrado fora defendida na área de História Social, tendo sido orientada por Carlton Hayes (1882-1964).

Todavia, ao tratar de sua formação, é bem mais conhecida a passagem, no prefácio da primeira edição de Casa-Grande & Senzala, na qual afirma que “O professor Franz Boas é a figura de mestre de que me ficou até hoje maior impressão. Conheci-o nos meus primeiros dias em Colúmbia” (Freyre 2005 [1933]: 31). No entanto, Motta (2008) chega a questionar em que medida essa narrativa sobre o peso de Boas sobre sua trajetória acadêmica representa a realidade, tendo em vista que Franz Boas (1858-1942) não foi orientador, no sentido formal do termo, de Freyre.

Motta e Fernandes (2013) levantam como hipótese que Freyre, pelo menos desde a publicação de Casa-Grande & Senzala, teria optado por destacar o legado de Boas em detrimento de seu relacionamento com Hayes. Para estes intérpretes, a filiação que Freyre passou a reivindicar ligava-se a questões ­subjetivas e objetivas do autor, que se refeririam tanto à possibilidade de se destacar academicamente – ao se aproximar da sociologia e da antropologia, que eram ciências novas e que possuíam poucos catedráticos no Brasil –, quanto à influência real que Boas exerceu sobre sua obra.

Tendo em vista a formação que ele recebeu em Colúmbia, fica evidente que a sua vocação transdisciplinar era patente desde logo, uma vez que realizou cursos diversos nesta instituição: segundo seu histórico escolar, fez seis cursos de História, dois de Lei Pública, dois de Sociologia, dois de Antropologia, um de Inglês e um de Belas-Artes, ainda que não seja claro se chegou a concluir todos esses cursos.[6]

Também é relevante destacar as condições objetivas que se verificavam quando Freyre voltou para o Brasil em 1923, pois entre os anos de 1920 e 1930 ocorreram intensas mudanças políticas e sociais no país, o que incluiu reformas educacionais capitaneadas por alguns intelectuais, como foi o caso da que sucedeu em Pernambuco pela mão de Carneiro Leão (1887-1966), que introduziu a sociologia no curso de formação de professores junto à Escola Normal de Pernambuco. Freyre foi, em 1928, indicado para assumir a cátedra dessa disciplina, e ainda que tenha havido uma experiência anterior – em 1925, no Colégio Pedro II no Rio de Janeiro, com Delgado de Carvalho (1884-1980) –, Freyre reivindica para si o pioneirismo de ter sido o primeiro a lecionar Sociologia de forma articulada com o trabalho de campo (Freyre 2003). Tratava-se, portanto, de um momento de ascensão das ciências sociais no campo acadêmico brasileiro.

Quando lecionou na Escola Normal de Pernambuco, Freyre ainda não havia publicado o livro que o tornaria célebre nacional e internacionalmente, de modo que podemos aventar como hipótese que a docência neste espaço foi relevante no processo de legitimação de sua atuação como cientista social. Mesmo lecionando a cátedra de Sociologia, na sua aula inaugural na Escola Normal, Freyre destaca que esta ciência não estaria acima das demais ciências, encontrava-se, em verdade, num processo de interdependência com as demais, e isso é importante para que compreendamos também sua concepção de antropologia, como estando também num processo de interdependência com outras ciências.[7] Há que se considerar ainda que, nesse momento, a divisão disciplinar ainda não estava tão clara, e que a própria antropologia no Brasil surge bastante ligada à sociologia (Peirano 2000). Ademais, como nota Valente (1973), sua atuação a lecionar Sociologia na Escola Normal dava-se sobre bases antropológicas, e o próprio Freyre afirmou continuamente quão estreitas são as relações entre tais ciências (Freyre 2009 [1945]).

Em Como e Porque Sou e Não Sou Sociólogo (Freyre 1968b), é importante destacar que há um capítulo intitulado “Como e porque sou mais antropólogo do que sociólogo”, o que pode nos dar pistas interessantes não apenas sobre a autorrepresentação que Freyre construía para si mesmo e para os demais, como também sobre sua concepção de antropologia. Ele começa esse capítulo indicando o seguinte:

“Considero-me mais antropólogo do que sociólogo. Mais discípulo de Boas do que de Giddings: dois dos grandes mestres cujas lições muito concorreram para fazer dos meus dias de estudante de Mestrado e de Doutorado na Universidade de Columbia – estudante, repita-se, desde os estudos de Bacharelado, desdenhoso de graus, que lhes têm sido dados mais por consagração do que por postulação – uma série inesquecível de aventuras de descobrimentos: descobrimentos intelectuais” (Freyre 1968b: 83).

Ele acaba por tomar como fio condutor a influência de Boas sobre seu trabalho, fazendo referência às lições que foram mais relevantes em sua formação antropológica, bem como a possíveis recomendações que ele teria lhe dado. Freyre faz ainda referência ao último encontro que teria tido com Boas, em 1939 na Universidade de Colúmbia, no qual este teria não apenas aprovado o modo, entre o ecológico e o antropológico, como tratara do Brasil em Casa-Grande & Senzala, como se teria mostrado interessado na verificação da hipótese levantada pelo discípulo – assim Freyre se autointitula – sobre a adoção de métodos árabes pelos portugueses no processo de colonização do Brasil, referindo-se assim à adoção da família poligâmica e mestiça.[8]

É interessante notar que, em termos de filiação intelectual, ele se coloca mais como continuador do trabalho de Boas, ligado à antropologia, que do de Franklin Henry Giddings (1855-1931), ligado à sociologia; entretanto, em suas memórias de juventude, ele se refere ao “antropólogo Giddings” (Freyre 2006b [1975]: 108), ou seja, a própria classificação de Freyre sobre seus mestres parece oscilar, a depender da finalidade com que eles são acionados: ­Giddings ora é apresentado como sociólogo, ora como antropólogo. Mais que isso, em suas memórias, parece-me por vezes que a figura de Giddings tê-lo-ia marcado até mais que a de Boas, pois as referências a suas aulas são mais constantes e detalhadas nesse período de 1920-1921.

Em carta a Manoel Oliveira Lima (1867-1928), Freyre destaca quão acertada estaria sua escolha, não apenas pela dinâmica acadêmica da universidade, como também pelas oportunidades culturais que Nova Iorque ofereceria.[9] Como bem pontua Pallares-Burke (2005), a ida para Nova Iorque é um divisor de águas na formação intelectual de Freyre.

Sem embargo, por mais que sua filiação intelectual seja continuamente reivindicada ao longo do tempo, Freyre não aponta apenas continuidades com relação ao trabalho de Boas, pois como ele indica,

“Pode-se reparar como, tendo sido discípulo da disciplina de Antropologia de um Boas, famoso pela sua aversão ao que fosse processo, além de especulativo, intuitivo, de indagação ou de análise antropológica, venha eu juntando aos trabalhos objetivamente antropológicos que tenho procurado realizar ou orientar, arrojos especulativos e audácias intuitivas. Nem todo discípulo segue de um mestre todas as lições. Encontro-me, há anos, entre os antropólogos que lamentam em Boas o seu extremo objetivismo – a sua quase mística de objetivismo indutivo: obstáculo à realização, por homem, como ele foi, de gênio, de obra mais ampla” (Freyre 1968b: 92).

Essas críticas fazem sentido quando buscamos compreender que tipo de antropologia Freyre realizava, que era baseada, sobretudo, na intuição e na produção de imagens (Motta 2009), utilizando mesmo da saudade de forma recursiva metodologicamente (Villas Boas 2006). Ainda em suas próprias palavras:

“Venho sendo antropólogo preocupado menos com problemas abstratos de teoria antropológica do que com os concretos, mais relacionados com a vida, com a experiência e com a vivência do Brasil, em particular, e, em geral, de conjunto transnacional de populações e de culturas, em processo de constante interpenetração e já hoje, por vários outros antropólogos, sociólogos, economistas, reconhecido como luso ou hispanotropical” (Freyre 2006b [1975]: 89).

Ora, as referências ao trabalho de Boas só aumentam no decorrer dos anos, não é de surpreender que, em sua dissertação de mestrado, Vida Social no Brasil nos Meados do Século XIX (Freyre 2008 [1964]), não encontremos referências a seu “mestre”; no entanto, elas aparecem em número considerável nos prefácios escritos para as edições em língua portuguesa, especialmente no primeiro.

Ao que me parece, Freyre realiza um complexo jogo de aproximações e distanciamentos em relação a Boas para demarcar seu fazer antropológico, pois, ao mesmo tempo em que se legitima enquanto antropólogo (cultural), busca apresentar seu trabalho como original, considerando não apenas o cenário brasileiro, mas também o internacional (Freyre 1968a). Sua contribuição ao campo da antropologia dar-se-ia, em grande medida, a seu estilo de “livre-atirador”, em oposição a um modelo de especialista ligado a uma só instituição ou mesmo a uma só ciência.

Percebamos que Freyre não apenas busca legitimar-se e distinguir-se como antropólogo, em oposição a outros pensadores sociais da época, mas como antropólogo cultural e social, em oposição àqueles vinculados a uma antropologia física. Esse modo de compreender a antropologia, ligada de maneira inevitável a outras ciências, assentada largamente do processo intuitivo, estará presente também em seu curso de Antropologia Cultural na UDF.

Claro que situar Freyre no campo da antropologia é em certa medida uma simplificação, uma vez que (como já apontado) seu trabalho era essencialmente transdisciplinar. Sua preocupação centrava-se na interpretação do Brasil, o que ele operacionalizou principalmente por meio da questão racial (Motta 2000), sem ignorar outros elementos sociais e políticos (Needell 1995) que se coadunassem com sua elaboração em torno da singularidade cultural brasileira (Tavolaro 2013).

 

Gilberto Freyre professor da UDF

A UDF surgiu como um projeto ligado à ação do Anísio Teixeira (1900-1971), que era amigo de Freyre e esteve empenhado pessoalmente na ida do intelectual pernambucano para o Rio de Janeiro. É relevante rememorar que o curso de ciências sociais da UDF fora o terceiro do Brasil e que o primeiro abrira em São Paulo; todavia, tratava-se de um curso inserido num projeto de universidade substancialmente distinto daquele existente na USP: esta se voltava para a produção de elites intelectuais e políticas capazes de conduzir o povo, ao passo que a UDF ligar-se-ia ao processo de democratização do acesso à cultura (Meucci 2015).

É válido dar relevo ao fato de que, a essa altura, Freyre já era um autor consagrado, e nesse momento estava trabalhando no livro Sobrados e Mucambos (2006a [1936]), que pretendia dar continuidade à interpretação do Brasil iniciada com Casa-Grande & Senzala (2005 [1933]). Portanto, sua presença na UDF visava agregar prestígio àquela instituição.

O curso de ciências sociais estava alocado à Escola de Economia e Direito, oferecendo tanto o título de “bacharel” quanto o de “professor”; em ambos os casos, o aluno escolheria uma área de concentração, que poderia ser a “menção História”, “menção Geografia” ou “menção Sociologia”. Há de se considerar o processo de introdução da Sociologia na escola a partir dos anos de 1920, de modo que o curso formava, sobretudo, professores que atuariam na educação básica.[10]

Nessa universidade, Freyre lecionou Sociologia, Antropologia Cultural e Pesquisa Social, destacando continuamente o caráter inédito dessas duas últimas (Freyre 1968b). Aqui nos deteremos exclusivamente nas aulas de Antropologia Cultural, que eram taquigrafadas e depois corrigidas por Freyre. Aparentemente, as aulas que foram publicadas pelo autor foram modificadas de forma mais incisiva, acrescentando indicações bibliográficas e ampliando algumas partes.

O curso de Ciências Sociais possuía tanto a disciplina de Antropologia Cultural quanto a de Antropologia Física. Meucci (2015) aventa a hipótese de que poderia haver certa tensão intelectual entre Arthur Ramos, mais ligado à segunda, e Freyre, mais ligado à primeira, ainda que Freyre (1968b) chegue a afirmar que Ramos tomou conhecimento dos trabalhos de Boas, Kroeber e Herskovits através dele, o que apontaria para certo diálogo intelectual.

A conferência de inauguração da cátedra ocorreu em 27 de setembro de 1935, e nela Freyre começa indicando a dificuldade de separar no estudo do homem o adquirido, o natural, o orgânico e o superorgânico. Indica para seus alunos que, muitas vezes, o que é considerado como expressão da diferenciação do sexo ou da raça é, em verdade, quando examinado mais cuidadosamente pela antropologia social, fruto das especializações sociais. Seu esforço, ao que parece, queria chamar atenção de seus alunos para a separação entre a raça e a cultura, principalmente nos termos postos pelo culturalismo americano. Fica evidente muito prontamente que sua cátedra abordaria problemas proeminentes em seus trabalhos, com especial destaque para a questão da raça, que se mostra como central para sua compreensão do Brasil (Oliveira 2016).

Igualmente, desde as primeiras aulas, ele demonstra uma preocupação contínua com as especializações da antropologia, destacando a dimensão social e cultural. Segundo ele:

“Convém salientar que a Antropologia muito ganhou com o desenvolvimento, nos últimos anos, da Antropologia Social e Cultural. Com esse desenvolvimento é que ela passou a ser um estudo menos anatômico e mais vivo, no sentido de ser um estudo mais de função do que de formas paradas, havendo mesmo uma escola de antropólogos modernos que faz gala de chamar-se funcionalistas. A Antropologia não é hoje o estudo só de museu, como antigamente, nem de necrotério: de dissecção de cadáveres de brancos, de amarelos, de negros. Não é simples estudo de pré-história ou de cronologia ou de culturas mortas no qual se regalou o diletantismo de abades europeus de província, gordos e um tanto simplórios, embora um abade desses tenha revolucionado a genética: Mendel. É principalmente um estudo de campo, intenso e difícil, preocupado com as culturas vivas, com as semelhanças e diferenças entre elas” [aula inaugural da disciplina de Antropologia Cultural proferida por Freyre em 27 de setembro de 1935, itálicos no original].

Percebe-se, desse modo, que há uma preocupação do autor em delimitar o objeto da antropologia, bem como suas áreas. Encontramos também uma preocupação do autor em demonstrar afinidade com a discussão contemporânea da antropologia, indicando escolhas intelectuais, mas Freyre afirma-se como um conhecedor da ciência antropológica, dialogando com uma vasta literatura.

As aulas que Freyre lecionou ganham relevância na medida em que muitos conceitos que surgem de forma “dissimulada” em seus livros são expostos em suas aulas de forma direta, como as questões que remetem à distância social, formação da identidade étnica, etc. (Larreta e Giucci, 2007). Estas observações confluem com a afirmação de Motta de que “Gilberto Freyre jamais completou a tradução, em conceitos claros e distintos, em proposições articuladas, com sequência e consequência, de sua muito poderosa intuição sobre o que faz o Brasil ser o Brasil” (2009: 149), o que é algo sensivelmente distinto do que encontramos em suas aulas.

Na aula de 4 de outubro de 1935, Freyre volta-se para a distinção entre antropologia social e cultural, indicando que o orgânico condiciona o social e o social condiciona o cultural. O cultural é, porém, especificamente humano.

A inauguração da cátedra de Antropologia Cultural, que continuamente o autor afirma ser a primeira do Brasil e talvez da América do Sul, teria uma relevância especial para um país como o Brasil, marcado pela heterogeneidade cultural. Há também uma preocupação contínua do autor de diferenciar a palavra cultura entre o que ele denomina o seu uso técnico, como seria o da antropologia e da sociologia, e seu uso geral, que seria a expressão do conjunto composto por refinamento do espírito, educação e maneiras.

Na aula de 10 de janeiro de 1936, Freyre aponta que há três focos no estudo da antropologia: a raça, que seria objeto da antropologia física, e a língua e a cultura, para as quais se voltaria a antropologia social e cultural. Todavia, ele acaba por tocar na questão da antropologia física, ressaltando inclusive a falta de dados que temos sobre nossa própria população, sugerindo modos pelos quais os diversos ministérios poderiam colaborar com o levantamento de tais informações.

Suas aulas prosseguem analisando a relação entre raça e cultura e entre raça e língua, problematizando a perspectiva que atribui aos “povos primitivos” certa pobreza vocabular, incluindo a pobreza no processo de apreensão das cores.[11] Freyre não apenas relativiza essa questão, como afirma que essa eventual “pobreza vocabular” para descrever as cores também estaria presente nos povos europeus. Suas digressões em sala de aula tocavam essas questões não apenas através da referência a outros povos, acionando assim uma ampla literatura internacional, como também da referência a suas pesquisas no Brasil. Como é apontado em uma das aulas:

“Ligeiras indagações que fizemos aos fabricantes brasileiros de panos para vestidos, toalhas e guardanapos, mas sobretudo panos para vestidos, que são os mais consumidos pela gente mais pobre, indicam entre essas populações proletárias ruraes às do Nordeste pelo menos, e na gente do povo em geral, daquellas regiões, decidida preferência pelo vermelho, a favor da qual, talvez, actuem, juntamente e com possíveis motivos de ordem physiologica de psycologia de raça, motivos de ordem social ou cultural, motivos hygienicos e motivos religiosos ou misticos, sabido como é a proeminencia que tinha o vermelho, como cor liturgica ou mistica, tanto entre amerindios como entre vários grupos africanos que entraram em nossa colonisação.

Essa proeminencia se manifesta não só nos panos de vestido mas também na pintura das casas e dos objetos de uso domestico. Na pintura das casas – principalmente nas de taipa – a preferência não é só pelo vermelho como pelo roxo e pelo amarello é, ainda hoje, notavel da Bahia para cima. No norte, somente por imposição, e até por meio de leis municipais, a preferencia por essas cores vem declinando e sendo substituida pelos cinzentos, cor considerada de melhor gosto, mais ‘civilizada’ ” [G. Freyre, aula de 17 de janeiro de 1936].

O que me parece ser relevante apreender nessas aulas é que Freyre de fato não possuía como preocupação central a difusão de conceitos teóricos e abstratos, mas sim o debate sobre a realidade cultural, ainda que não se furtasse a fazer referência a uma ampla gama de autores. Essa sua preocupação certamente vincula-se a sua perspectiva segundo a qual o maior desafio do ensino no Brasil seria superar uma prática docente livresca, desconectada da realidade dos alunos, sem que com isso o livro deixasse de ser central ao ensino (Freyre 2003), tendo essa sido uma marca de seu pensamento sobre a prática docente (Oliveira 2014).

É interessante perceber ainda que, nas aulas, Freyre preocupava-se recorrentemente em indicar as questões de ordem antropológica, as preocupações que deveriam ser próprias para o antropólogo cultural, associadas a sugestões de uma agenda de pesquisa necessária para o avanço da discussão. Entretanto, sua concepção do ensino da antropologia só pode ser plenamente apreendida se considerarmos também sua prática docente na disciplina “Pesquisas e Inquéritos Sociais”, também lecionada na UDF. Um exame mais pormenorizado escaparia do escopo desse trabalho, mas a atuação nessas duas disciplinas aponta para o fato de que, na concepção do autor, o ensino da antropologia não poderia estar restrito ao que se passava em sala de aula, deveria também se articular com o desenvolvimento de pesquisa empírica.

Em alguma medida, essa inclinação pedagógica de Freyre já estava esboçada quando lecionou Sociologia na Escola Normal, pois em seu plano de disciplina ele realiza a seguinte ponderação: “As alunas deverão conservar dois cadernos: um de notas, registrando as explicações dadas na classe; outro de retalhos de jornaes, com artigos, notícias, etc. sobre factos e actualidades de interesse sociológico” (Freyre 1930: s/p).

Em contraposição à postura dos “pedagogos de gabinete”, Freyre propõe uma reforma do ensino assentada sobre “[…] o conhecimento vivo […] e com o máximo de aproveitamento dos nossos valores tradicionais e populares. Inclusive a poesia do povo, sua música, sua arte, seu folclore” (Freyre 1973 [1943]: 140).

O que podemos ainda inferir, ainda que não seja posto de forma explícita em suas aulas, é que essa concepção de ensino vincula-se a suas experiências acadêmicas anteriores, especialmente nos Estados Unidos (Oliveira 2014).[12] Na palestra proferida em 1934 na Faculdade de Direito de Recife, sobre “O ensino de ciências sociais nas universidades americanas”, encontramos pistas interessantes sobre a concepção de Freyre acerca de como deveria se dar o ensino de tais ciências, o que incluiria a antropologia.

Chama a atenção o fato de que Freyre elogia a possibilidade aberta pelas grandes universidades americanas para que o aluno estude sua área de especialização, mas ao mesmo tempo tenha contato com as ciências correlatas. Isso tudo realizado com a supervisão dos professores, que guiam os estudantes no processo de descoberta, articulando teoria e prática. Segundo o autor: “Sem ser livresco, o ensino de ciências sociais nos Estados Unidos se apoia fortemente nos livros” (Freyre 1934: 55). Ainda nessa direção, o autor aponta:

“Mas o estudo das ciências sociais não fica nos livros. O de sociologia e o de antropologia social, principalmente, incluem o chamado ‘field work’ ou trabalho de campo; o ‘social survey’ ou sondagem sociológica limitada a certo grupo ou área social; as entrevistas sociológicas; o levantamento e interpretação de estatísticas; e, ainda, a chamada ‘social case history’ que é o documento colhido no vivo, com toda a objetividade possível e todo o escrúpulo científico. Essas pesquizas, como visitas a fábricas, a penitenciarias, a serviços públicos, a hospitais, como a colheita de dados antropometricos em bairros característicos, escolas, oficinas; essa variedade de experiências e de contactos humanos, por assim dizer dramatisam o estudo das ciências sociais nos Estados Unidos, dando ao estudante o gosto de descobrir elle próprio os fatos, o sabor quasi físico de aventura entre os elementos básicos da vida social” (Freyre 1934: 57).

Pode-se levantar como hipótese que Freyre buscou desenvolver sua prática como docente de antropologia na UDF de modo semelhante àquele que experenciou como aluno nos Estados Unidos, considerando as especificidades regionais e ecológicas existentes, para usarmos seu próprio jargão antropológico.

Em suas aulas, discutiu-se ainda a questão dos traços culturais que “sobrevivem” em um novo complexo cultural, algo que seria especialmente caro no caso brasileiro e é acompanhado da sugestão do autor para a realização de pesquisas antropológicas que visassem a demarcação de áreas de cultura no Brasil.[13] Ou seja, o desenvolvimento teórico da antropologia dependeria também de seu desenvolvimento empírico, da realização de novas pesquisas que possibilitariam, sobretudo, o Brasil se conhecer a si mesmo.

As dinâmicas culturais também foram tema tratado em suas aulas e, ao que me parece, os exemplos utilizados, bem como os estudos citados, tendem a confluir com algumas questões que são bastante caras ao pensamento de Freyre, como a ideia da interpenetração de culturas.

Penso que há nesse ponto um marcador interessante com relação ao processo de institucionalização da antropologia no Brasil, pois, ao se voltar para as dinâmicas sociais, para seus processos, Freyre de certo modo se opunha a uma dada ciência social centrada nos fatos sociais. No meu entender, talvez essa seja uma das marcas mais incisivas que Freyre deixa na antropologia brasileira, um olhar dedicado às dinâmicas sociais, nas quais mudança e continuidade não se anulam.

Um último ponto que destacaria aqui é que, ainda que se possa imaginar que nem todas as aulas taquigrafadas se encontrem disponíveis para a pesquisa, pois algumas poderão ter sido perdidas, entre aquelas examinadas, o trabalho de Boas não é citado. O máximo que se pode encontrar é uma referência no texto de sua aula inaugural, que foi revisto por Freyre em 1942: o autor acrescenta ao final alguns livros que tratam da questão da raça, como uma indicação de leitura, sendo citados The Mind of Primitive Man e Anthropology of Modern Life, de Franz Boas.

Em sua palestra sobre o ensino de ciências sociais nos Estados Unidos, Freyre realiza os seguintes apontamentos sobre a questão racial no pensamento de Boas:

“Boas não se limita a opor à interpretação racial, no estudo das sociedades, a interpretação cultural. Retifica a teoria do materialismo histórico na sua insistência sobre o predomínio exclusivo do fator económico, ou antes, quebra-lhe o exclusivismo, incluindo o fator econômico nos complexos de cultura, dentro dos quais alternam os predomínios” (Freyre 1934: 51).

Ao que me parece, de fato é com o tempo que Freyre passa a reforçar suas referências a Boas, intitulando-se continuamente como discípulo dele, o que se relacionaria a sua própria afirmação não apenas como antropólogo, mas também como alguém que realiza um determinado tipo de antropologia. Porém, o exame de suas aulas aponta para influências bem mais plurais na produção de sua antropologia, o que se vincula a sua própria concepção do que é antropologia, que se realiza num diálogo amplo com outras ciências.

Se no seu livro de memórias a figura de Boas aparece continuamente (Freyre 2006b [1975]), há de se considerar que este trabalho fora reescrito ao longo do tempo pelo autor; como afirmado anteriormente, outros professores, como Giddings, aparecem ainda de forma mais recorrente e mais detalhada em suas memórias. Nas cartas que ele trocou com Oliveira Lima, a figura de Boas não parecer ter grande destaque.

Nesse sentido, suas aulas constituem um espaço privilegiado para pensarmos acerca das principais influências intelectuais na produção de sua antropologia. Afora os dois trabalhos de Boas citados acima, na versão revisada de 1942, Freyre ainda indica os seguintes trabalhos:[14]

Human Heredity de Ermin Bauer, Eugene Fischer e Fritz Lenz – Ability in Social and Racial Classes, de R. C. Davis – The Racial History of Man, de R. B. Dixon – “O estado atual do problema da hereditariedade”, Atas e Trabalhos do 1.º Congresso Brasileiro de Eugenia, de A. Dreyfus – We Europeans, A Survey of “Racial” Problems, de A. Haddon e J. Huxley – The Racial Basis of Civilization, de F. H. Hankins – The Trends of the Race, de S. J. Holmes – Up from the Ape, de E. A. Hooton – The Biological Basis of Human Nature, de H. S. Jennings – Vie et Constance dês races, de R. Martial – La espèce, La race et Le méstisage em anthropologie, de H. Neuville – Ensaios de Antropologia Brasiliana, de Roquette-Pinto – Hérédité et racisme, de J. Rostand – Assimilação e Populações Marginais do Brasil, de E. Willems

Essas indicações de leituras voltavam-se para a discussão da relação entre o biológico e o cultural, pois, por mais que o autor realize uma defesa enfática da explicação dos fenômenos sociais a partir da dimensão cultural, não nega que haja também uma influência da dimensão biológica (ou étnica). Portanto, Boas surge em meio a uma ampla literatura formada por autores de distintas nacionalidades que se propõem a pensar a questão racial, que fora tão importante para Freyre durante toda sua produção intelectual. Também na versão revista da aula de 4 de outubro de 1935 é indicada em nota de rodapé a obra Anthropology and Modern Life, de Boas, que serviria para aprofundar o assunto referente à “classificação de conteúdo de cultura”, figurando esse livro junto com os seguintes:

Anthropology, de A. L. Koreber – Anthropology, de A. Goldenweiser – Primitive Society, de R. H. Lowie – Man and Culture, de C. Wissler – Völker und Kulturen, de W. Schmidt – An Introduction to Anthropology, de Wilson D. Wallis

Na versão revista da aula de 10 de janeiro de 1936, quando tratou do desenvolvimento da antropologia, Freyre juntou outras indicações bibliográficas sobre esse tema em nota de pé de página:

History of Anthropology, de Alfred C. Haddon – Lehrbuch der Anthropologie, de R. Martin – Anthropologie, de E. Fischer e outros – Primitive Culture, de E. B. Taylor

Esses quatro primeiros trabalhos seriam os mais “clássicos” sobre o tema. Porém, Freyre também indicou publicações mais recentes sobre o tema:

The Study of Man e The Tree of Culture, de Ralph Linton – Anthropology Today: an Encyclopedic Inventory, de A. Kroeber et ali. – The Foundations of Social Anthropology e Method and Perspective in Anthropology, de S. F. Nadel – The Science of Culture, coletânea organizada por R. F. Spencer – The History of Ethnological Theory, de R. H. Lowie – Social Anthropology, de E. E. Evans-Pritchard – The Culture Historical Method in Anthropology, de Wilhelm Schmidt – Modern Sociological Theory in Continuity and Change, organizada por Howard Beck e Alvin Boskoff – For a Science of Social Man, organizada por John Gillin – International Directory of Anthropological Institutions, organizado por William L. Thomas Jr. e Anna M. Pikels – An Appraisal of Anthropology Today, organizada por Sol Tax e outros

Obviamente essas obras não estavam citadas nas aulas taquigrafadas, uma vez que algumas são produções bibliográficas dos anos de 1950. Todavia, é interessante perceber o contínuo movimento de Freyre em direção ao diálogo com uma ampla literatura internacional, e mais uma vez a obra de Boas não ganha destaque na lista de trabalhos indicados. Sua investida continua, sendo acrescentadas novas notas nas quais há mais indicações bibliográficas, apontando para sua reafirmação enquanto antropólogo no campo acadêmico brasileiro.

Claro que seu interesse maior, como já indicado, parece ser o de se afirmar ante uma nova geração de cientistas sociais profissionais que se formava no Brasil. Na década de 1940, a Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo já contava com uma divisão de estudos pós-graduados, e a Faculdade Nacional de Filosofia passou a outorgar o título de “doutor em Antropologia e Etnografia” para as turmas formadas por Arthur Ramos (1903-1949) no curso de aperfeiçoamento nesta área, ao menos duas turmas entre 1941 e 1942.

Novamente pensando na relevância que a formação que Freyre recebeu nos Estados Unidos teve sobre sua prática docente, nos testes que ele realizou durante seus estudos na Universidade de Colúmbia encontramos como tema recorrente a questão racial, especialmente no que diz respeito à “hibridização” das raças.[15] Como já indiquei, minha hipótese é que Freyre buscou reproduzir em suas aulas o que ele encontrou em termos de experiência pedagógica nos Estados Unidos, especialmente na Universidade de Colúmbia, ainda que adaptando seu discurso à realidade brasileira, privilegiando o uso de numerosos exemplos em suas aulas em detrimento de conceitos mais abstratos.

 

Considerações finais

Em que pese a efemeridade da experiência de Freyre na UDF, creio que podemos afirmar que de algum modo houve marcas profundas deixadas pela cátedra ali inaugurada por Freyre na antropologia brasileira, pois sua preocupação de demarcar um espaço com relação à antropologia física certamente se tornou, em grande medida, a “versão vitoriosa” da antropologia brasileira.

Acredito que o exame de suas aulas, apesar dos limites desses trabalhos, possibilita que refutemos interpretações simplistas que situam Freyre como um “precursor” da antropologia no Brasil. Ele foi de fato um antropólogo no sentido estrito do termo, ainda que isso não excluísse a possibilidade de ele ser outras coisas, como sociólogo, historiador e escritor também.

Também a partir de suas aulas é possível problematizar seus vínculos intelectuais, relativizando a influência de Boas sobre sua obra, ao mesmo tempo em que podemos vislumbrar um leque mais amplo de influências acadêmicas. As múltiplas obras citadas nas versões revisadas de suas aulas que foram posteriormente publicadas apontam para sua envergadura intelectual, bem como para suas preocupações no campo da antropologia. Como professor de Antropologia Cultural, Freyre inaugurou uma nova forma de pensar cientificamente a sociedade brasileira; mais que isso, sua atuação vincula-se diretamente ao processo de institucionalização das ciências sociais no Brasil. Longe de fazer parte de uma “pré-história” da antropologia brasileira, a atuação de Freyre na UDF demarca a sua relevância na história dessa disciplina, seu lugar no processo de constituição de um campo.

 

Bibliografia

ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de, 1994, Guerra e Paz: Casa-Grande & Senzala e a Obra de Gilberto Freyre nos Anos 30. São Paulo, Editora 34.         [ Links ]

BASTOS, Elide Rugai, 2006, As Criaturas de Prometeu: Gilberto Freyre e a Formação da Sociedade Brasileira. São Paulo, Global.         [ Links ]

CARDÃO, Marcos, e Cláudia CASTELO (orgs.), 2015, Gilberto Freyre: Novas Leituras do Outro Lado do Atlântico. São Paulo, Edusp.         [ Links ]

FONSECA, Edson Nery da, 1985, Casa Grande & Senzala e a Crítica Brasileira de 1933 a 1944. Recife, Companhia Editora de Pernambuco.         [ Links ]

FREYRE, Gilberto, 1930, Programa da Cátedra Sociologia. Recife, Imprensa Oficial.         [ Links ]

FREYRE, Gilberto, 1934, O Estudo das Ciências Sociais nas Universidades Americanas. Recife, Edições Momento.         [ Links ]

FREYRE, Gilberto, 1968a, Brasis, Brasil, Brasília: Sugestões em Torno de Problemas Brasileiros de Unidade e Diversidade e das Relações de Alguns Deles com Problemas Gerais de Pluralismo Étnico e Cultural. Rio de Janeiro, Gráfica Record Editora.         [ Links ]

FREYRE, Gilberto, 1968b, Como e Porque Sou e Não Sou Sociólogo. Brasília, Editora Universidade de Brasília.         [ Links ]

FREYRE, Gilberto, 1973 [1943], Problemas Brasileiros de Antropologia. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora.

FREYRE, Gilberto, 2003, Palavras Repatriadas. Brasília, Editora da Universidade de Brasília.         [ Links ]

FREYRE, Gilberto, 2005 [1933], Casa-Grande & Senzala: Formação da Família Brasileira sob o Regime da Economia Patriarcal. São Paulo, Global.

FREYRE, Gilberto, 2006a [1936], Sobrados e Mucambos: Decadência do Patriarcado e Desenvolvimento do Urbano. São Paulo, Global.

FREYRE, Gilberto, 2006b [1975], Tempo Morto e Outros Tempos: Trechos de Um Diário de Adolescência e Primeira Mocidade. São Paulo, Global.

FREYRE, Gilberto, 2008 [1964], Vida Social no Brasil nos Meados do Século XIX. São Paulo, Global.

FREYRE, Gilberto, 2009 [1945], Sociologia: Introdução ao Estudo dos Seus Princípios. São Paulo, Global.

GOMES, Ângela de Castro (org.), 2005, Em Família: A Correspondência de Oliveira Lima e Gilberto Freyre. Campinas, Mercado das Letras.         [ Links ]

LARRETA, Enrique Rodríguez, e Guillermo GIUCCI, 2007, Gilberto Freyre: Uma Biografia Intelectual. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.         [ Links ]

LEHMANN, David, 2008, “Gilberto Freyre: a reavaliação prossegue”, Horizontes Antropológicos, 14 (29): 369-385.

LIEDKE FILHO, Enno Dagoberto, 2005, “A sociologia no Brasil: história, teorias e desafios”, Sociologias, 7 (14): 376-436.

LIMA, Mario Helio Gomes de, 2013, Casa-Grande & Senzala: O Livro que Dá Razão ao Brasil Mestiço e Pleno de Contradições. São Paulo, É Realizações.         [ Links ]

MELO, Manoel P. C, 1999, Quem Explica o Brasil. Juiz de Fora, Editora UFJF.         [ Links ]

MEUCCI, Simone, 2011, Institucionalização da Sociologia no Brasil: Primeiros Manuais e Cursos. São Paulo, Hucitec/FAPESP.         [ Links ]

MEUCCI, Simone, 2015, Artesania da Sociologia no Brasil: Contribuições e Interpretações de Gilberto Freyre. Curitiba, Appris.         [ Links ]

MICELI, Sergio, 1989, “Condicionantes do desenvolvimento das ciências sociais”, em S. Miceli (org.), História das Ciências Sociais no Brasil, vol. 1. São Paulo, Editora Vértice/IDESP/FINEP, 72-110.

MOTTA, Roberto, 2000, “Paradigmas de interpretação das relações raciais no Brasil”, Estudos Afro-Asiáticos, 38: 113-133.

MOTTA, Roberto, 2008, “Reação a Max Weber no pensamento brasileiro: o caso de Gilberto Freyre”, Estudos de Sociologia, 13 (1): 185-206.

MOTTA, Roberto, 2009, “Élide, Gilberto, imagismo e língua de universidade”, Revista Brasileira de Ciências Sociais, 24 (69): 149-162.

MOTTA, Roberto, e Marcionila FERNANDES, 2013, “Gilberto Freyre, um enigma genealógico”, em R. Motta e M. Fernandes (orgs.), Gilberto Freyre: Região, Tradição, Trópico e Outras Aproximações. Rio de Janeiro, Fundação Miguel de Cervantes, 11-36.

NEEDELL, Jeffrey D., 1995, “Identity, race, gender, and modernity in the origins of Gilberto Freyre’s Oeuvre”, The American Historical Review, 100 (1): 51-77.

OLIVEIRA, Amurabi, 2013, “Revisitando a história do ensino de sociologia na educação básica”, Acta Scientiarum: Education, 35 (2): 179-189.

OLIVEIRA, Amurabi, 2014, “Educação e pensamento social brasileiro: alguns apontamentos a partir de Florestan Fernandes e Gilberto Freyre”, Revista de Ciências Sociais, 45 (1): 15-44.

OLIVEIRA, Amurabi, 2016, “A relação entre raça e educação na obra de Gilberto Freyre”, Universitas Humanistica, 81: 305-329.

PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia, 2005, Gilberto Freyre: Um Vitoriano nos Trópicos. São Paulo, UNESP.         [ Links ]

PEIRANO, Mariza, 2000, “A antropologia como ciência social no Brasil”, Etnográfica, 4 (2): 219-232.

REESINK, Misia L., e Roberta Bivar Carneiro CAMPOS, 2014, “A geopolítica da antropologia no Brasil: ou como a província vem se submetendo ao leito de Procusto”, em P. Scott, R. B. C. Campos e F. G. Pereira (orgs.), Rumos da Antropologia no Brasil e no Mundo: Geopolíticas Disciplinares. Recife, Editora UFPE-ABA, 53-82.

SÁNCHEZ-EPPLER, Benigno, 1992, “Telling anthropology: Zora Neale Hurston and ­Gilberto Freyre disciplined in their field-home-work”, American Literatury History, 4 (3): 464-488.

SKIDMORE, Thomas, 2002, “Raízes de Gilberto Freyre”, Journal of Latin American Studies, 34 (1): 1-20.

SORÁ, Gustavo, 1998, “A construção sociológica de uma posição regionalista: reflexões sobre a edição e recepção de Casa-grande e Senzala de Gilberto Freyre”, Revista Brasileira de Ciências Sociais, 13 (36): 121-139.

TAVOLARO, Sergio B. F., 2013, “Gilberto Freyre e nossa ‘modernidade tropical’: entre a originalidade e o desvio”, Sociologias, 15 (33): 282-317.

VALENTE, Waldemar, 1973, “Estácio Coimbra: a Reforma Carneiro Leão e a Sociologia na Escola Normal do Estado de Pernambuco”, em Gilberto Freyre (org.), Estácio Coimbra: Homem Representativo do Seu Meio e do Seu Tempo. Recife, Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, 45-64.

VILLAS BOAS, Glaucia, 2006, Mudança Provocada: Passado e Futuro no Pensamento Sociológico Brasileiro. Rio de Janeiro, Editora FGV.         [ Links ]

 

Receção da versão original / Original version         2017 / 05 / 07 Aceitação / Accepted           2018 / 02 / 15

 

Notas

[1]             Gostaria de agradecer à Fundação Gilberto Freyre pelo acesso ao material pesquisado, e de forma mais enfática a Jamille Barbosa, pela atenção e presteza durante a pesquisa.

[2]             Os primeiros cursos de Ciências Sociais criados foram os da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo (em 1933), Universidade de São Paulo (em 1934), Universidade do Distrito Federal (em 1935), Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Paraná (em 1938) e Faculdade de Filosofia da Bahia (em 1941).

[3]             No trabalho de Meucci (2015) encontramos uma análise cuidadosa da atuação de Freyre, não apenas na UDF como também na Escola Normal de Pernambuco, porém o enfoque recai no papel do autor no processo de institucionalização da sociologia.

[4]             Destaca-se que, apesar do fim da UDF em 1939, seu corpo docente e discente fora incorporado pela Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, que passou a se denominar Universidade Federal do Rio de Janeiro a partir de 1965.

[5]             As aulas taquigrafadas encontram-se disponíveis para consulta na Fundação Gilberto Freyre, que gentilmente me concedeu o acesso a esses materiais, viabilizando assim minha pesquisa. Não há uma classificação desse material, apenas a indicação de que pertence ao fundo arquivístico pessoal de Gilberto Freyre referente a sua atuação como professor na UDF.

[6]             O histórico de seu curso de mestrado está disponível para consulta na Fundação Gilberto Freyre.

[7]             A aula inaugural de Freyre para a Escola Normal está disponível para consulta na Fundação Gilberto Freyre.

[8]             “Ecológico” assume no trabalho de Freyre o sentido de meio, não supondo um determinismo geográfico, mas influências diversas que incidiriam sobre a raça, incluindo aí também o meio social e cultural. Para Araújo (1994), o trabalho de Freyre em grande medida se vincularia a uma perspectiva neolamarckiana, ainda que não se possa afirmar, em absoluto, que tenha sido um evolucionista.

[9]             As correspondências trocadas entre Freyre e Oliveira Lima foram publicadas por Gomes (2005).

[10]           Para uma análise pormenorizada do histórico da Sociologia na escola, ver Oliveira (2013).

[11]           Ver a aula de 17 de janeiro de 1936.

[12]           Freyre realizou sua graduação na Universidade de Baylor, no Texas, e seu mestrado na Universidade de Colúmbia, em Nova Iorque.

[13]           Ver a aula de 18 de outubro de 1935.

[14]           Nas indicações de Freyre, não há menção ao ano ou edição de publicação das obras indicadas, de modo que optou-se por manter este formato, dada a impossibilidade de se saber a qual edição ele estava se referindo. Também mantivemos a grafia dos títulos e autores tal como surge na publicação de Problemas Brasileiros de Antropologia (Freyre 1973 [1943]) em sua quarta edição.

[15]           Essa documentação também está disponível para consulta na Fundação Gilberto Freyre.

Creative Commons License Todo el contenido de esta revista, excepto dónde está identificado, está bajo una Licencia Creative Commons