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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica vol.23 no.2 Lisboa jun. 2019

https://doi.org/10.4000/etnografica.6874 

ARTIGO ORIGINAL

Variações sobre “livusias”: coincidência entre a terra e os (fins de) mundos contidos numa ilha no rio São Francisco, Brasil

Variations on “livusias”: the coincidence of land and the (ends of) worlds contained in an island in the São Francisco River, Brazil

 

Márcia Nóbrega*

* Programa de Pós-Graduação de Antropologia Social, Universidade de Campinas (Unicamp), Brasil marciamnobrega@gmail.com

 

RESUMO

Esse artigo se propõe pensar de que forma pessoas, “almas” e “caboclos”, em suas diversas modulações, convivem e povoam o espaço de uma ilha situada no trecho submédio do rio São Francisco, no Brasil, a Ilha do Massangano. Por viverem numa ilha em meio ao semiárido nordestino, seus habitantes articulam a presença desses seres à força dos regimes das águas do rio e sua relação com o sem-fim da “terra firme”, atualizado ali no bioma da caatinga. Em oposição à terra firme, a ilha ela própria anda, movida pela força das correntezas do rio. Junto a terra da ilha, também caminham com sua gente algumas modalidades de espíritos, as “almas” e os “caboclos”, que estão “por aí”, no dizer, povoando certos lugares, aqueles que carregam “livusias”. Diante disso, procuro pensar como os mundos e suas povoações contidos na ilha são afetados pelo regime de transformações que a terra em que habitam vem sofrendo.

Palavras-chave caboclos, almas, povoamento, terra, mundo

 

ABSTRACT

The article explores how people cohabit with different kinds of “souls” and “caboclos,” all populating the space of the island of Massangano, located in the lower-middle region of São Francisco River, in Brazil. Living on an island in the semi-arid Northeast, its inhabitants associate the presence of those other beings to the power of the river’s waters and its relationship with the unending “dry land,” there taking the form of the caatinga biome. As opposed to the mainland, the island itself walks, moved by the force of the river’s streaming. Along the island’s ground, some modalities of spirits, the “souls” and “caboclos,” are “out there,” as they use to say, accompaning the people and populating certain places, those that carry “livusias.” Accordingly, I try to think how the worlds and their populations confined on the island are affected by the changes suffered by the land that they inhabit.

Keyword caboclos, souls, settlement, land, world

No trajeto entre sua casa e a “casa de caboclos”, situada na outra ponta da Ilha do Massangano, Dona Amélia, hoje com 82 anos, segurou forte a minha mão com a desculpa de que eu a ajudasse a desviar de eventuais percalços que atravessassem nosso caminho.[1] Embora suas vistas “cheias de cinzas” ou “anuviadas”, conforme gosta de dizer, lhe dificultassem enxergar os paus e as pedras que vez ou outra traíam seus pés em topadas, Dona Amélia conhecia tão bem o percurso que era capaz de antecipar, com alguma precisão, onde estaria a pedra que a faria tombar ao chão. Também não era raro que vez ou outra me puxasse de canto para desviarmos de lugares onde, para mim, parecia não haver coisa alguma – a não ser o próprio caminho. Contra a minha insistência em seguir em frente, ela me dizia: “Não é porque eu não vejo a pedra que está ali que se eu tropeçar nela não vou cair. Bem assim é com os espíritos, eles estão por aí, a gente é que não vê”. Com “o sentido” na caminhada, Dona Amélia não se poupava em adicionar à conta do cálculo do percurso de nossa caminhada a necessidade de certos desvios: contornávamos certas encruzilhadas, cruzeiros, e passávamos ao largo de alguns trechos de rio. Com o tempo, não foi difícil perceber que não desviávamos apenas de paus e de pedras, mas também de outros seres que, embora nem sempre possam ser vistos, estão “por aí” habitando certos lugares – especialmente aqueles que carregam, no dizer, “livusias”.[2]

A Ilha do Massangano está situada entre as cidades de Petrolina, no estado de Pernambuco, e de Juazeiro, no estado da Bahia. Ali, segundo as agentes de saúde locais estimaram, no ano de 2015 viviam cerca de 600 pessoas que, se for “puxando pra trás”, conformam “um povo só”, o “povo de Iaiá Celestina” – esta antepassada comum de quem derivam (ao mesmo tempo em que também é composta por) uma miríade de outros povos que, como eles, beiram aquelas margens de rio. É ao equacionamento da relação entre os lugares enquanto caminhos e aqueles que os percorrem que este artigo se dedica. Aqui importa menos nos debruçarmos sobre a ideia de “povo”, já explorada em outra ocasião (Nóbrega 2017a), do que sobre a de povoamento, cujo equacionamento nos permite acessar a coincidência numa mesma “terra” de entes que habitam “mundos” outros, a saber, o mundo das “almas” e o dos “caboclos”, sendo a distinção entre um e outro marcada pela qualidade da vida que os povoa: enquanto as “almas” são apresentadas como algo que já foi vivo e que morreu, desprendendo-se de seu corpo físico, os “caboclos” não são tidos exatamente como mortos, porque a vida nunca lhes foi um necessário ponto de partida. Seguindo a proposta que Vânia Cardoso (2004) fez em sua etnografia sobre o “povo da rua” na Baixada Fluminense do Rio de Janeiro, também tomarei tais entidades da Ilha do Massangano como “guias” – outro termo nativo que na ilha designa um tipo de “caboclo” – que nos ajudarão a evitar o desvio e seguir os percursos por eles traçados.

“Livusias” são os rastros deixados na terra por estes entes de outros mundos. Tal como aparece no Dicionário Aurélio, o termo “livusia” seria uma corruptela da palavra “aleivosia”, que se refere a tudo aquilo que for falso: “s. f. 1. Traição, perfídia, deslealdade. 2. Dolo, fraude. 3. Falsa acusação; calúnia. [sin. ger.: ­aleive.]”.[3] No entanto, na Ilha do Massangano, “livusia” designa algo que tem um sentido inverso ao da mentira. Justamente, passar por um lugar que tem “livusia” é correr o risco de deparar-se, na terra, com os efeitos da presença de entes de outros mundos: seja uma casa pegando fogo, um gato crescendo à altura de um poste, uma corrente de ouro que se arrasta, uma lapada que lhes enverga as costas, ou uma surra que, mesmo não se sabendo de onde veio, não deixa de doer no corpo. A “livusia” é, antes, um atestado de existência.

Ao falar da vida dos espíritos na Ilha do Massangano, tento me aproximar daquilo que Jeanne Favret-Saada (1990) fez quando falou sobre a feitiçaria no Bocage francês, na medida em que a intensão não é explicar os fenômenos espirituais, mas tentar compreender os processos através dos quais os espíritos se fazem existentes e produzem seus efeitos. Assim, é seguindo os efeitos na Terra desses outros mundos, ou seja, desses lugares de “livusia”, que procuro mostrar como os domínios do social e do material são muitas vezes tidos como “um só”.

O que põe “gente”, “almas”, “caboclos” e também a própria “terra” em relação, para ficarmos com os modos de dizer da ilha, é o fato de que caminham juntos. Esses caminhos conduzirão o presente texto em duas direções: a primeira trata da proeminência ontológica do movimento em relação à paragem – esta sim, o extremo derradeiro do mundo; a segunda, uma espécie de desdobramento da primeira, mas não menos importante, trata do fato de que inclusive a terra, ali, também “anda”. Certa vez, Conceição, uma outra amiga de lá, me disse ao contemplarmos juntas o rio: “repare como encaixa direitinho uma na outra”. Apontava-me o desenho das margens ao nosso redor. Em outro momento, Pedro, seu vizinho e parente, dizia não achar outra explicação do porquê da abundância de tantos “pés de paus” submersos entre a Ilha do ­Massangano e sua ilha vizinha, de nome Rodeadouro: “Quem ia botar aquilo ali? Toda a vida esteve”. Para Conceição e Pedro, o desenho das beiras e a presença de paus no entre-ilhas, cuja saliência se revelava a cada dia pelo decrescente volume de águas do rio, atestava que a Ilha do Massangano, a sua ilha vizinha e a porção continental da “banda do Pernambuco” já teriam um dia formado “uma terra só”. Para eles, a terra, ao menos potencialmente, “anda” – sendo, para usarmos um termo que Bruno Latour (2012) formalizou em sua teoria do ator-rede, uma actante, ou, ainda, uma “terr(-)ente”, outro termo que vem ganhando força nos estudos sobre povos cuja equivocidade da palavra “terra” põe em xeque os sentidos de “território”, muitas vezes imputados a eles desde fora (cf. T/terra 2017).[4] De toda forma, para quem vive na ilha, o estranho não é bem que a terra caminhe, mas que, ao contrário, ela fique parada.

O movimento de “caminhar com a gente” ou ser “mais nós” é condição de produção de conhecimento na Ilha do Massangano. É caminhando juntos que se fazem “um só” e que se fazem “inteligentes” nas ciências dali – o que não é a mesma coisa que ser “sabido”. Para eles, o sabido é o “só um”, aquele que chega sozinho e que, de repente, diz saber. Isso porque o conhecimento só pode prosseguir numa narrativa acompanhada, produzindo-se a partir de um ordenamento sucessivo de nomes e lugares. Podemos dizer, para usarmos uma imagem do pensamento de Tim Ingold (2015), que o conhecimento na Ilha do Massangano é em grande medida “topográfico”. Mas dizer isso, no nosso caso, não basta. A ênfase evidenciada pelos meus amigos da ilha ao caminharmos juntos não estava tanto nos pontos que colocavam em ordem nossos caminhos, mas naquilo que se deslocava entre um ponto e outro. Isto é, interessava-lhes, sobretudo, escolher em que companhia desejavam estar.

No limite, na Ilha do Massangano nunca se está sozinho e tampouco a solidão é um estado desejado. Isso, em grande parte, deve-se ao fato de que a ilha nunca esteve desabitada. Bem antes de as senhoras que me contavam essa história se “entenderem por gente”, outros povos e povoações já caminhavam por ali. Chica, uma outra amiga, de cerca de 60 anos, contava que, ao cultivarem cebola em uma terra de lá, sua mãe e demais presentes surpreenderam-se ao depararem com uma porção de crânios enterrados. Enterrar gente assim, em qualquer lugar, só podia ser coisa de índio, concluíram. Ao trazer esse “causo” a título de prova, Chica me contava da presença de “índios brabos” – e, depois também, de “negros fugidos” – como causa de tantas “livusias” na ilha. Mesmo que nem sempre os possamos ver – como Dona Amélia bem nos ensinou no caso que abre esse artigo, ao rebater com precisão meu empirismo ingênuo –, eles existem e estão no “por aí” caminhando “mais eles”, numa mesma terra, mas em distintos mundos, o “das almas” e “dos caboclos”.

O conceito de “livusia” fala, pois, sobre a coincidência de um mundo em outro numa mesma terra, esta que “anda”, mas que também “carrega”. Trata-se de um conceito que aponta para um certo modo específico de estar e agir num mundo, incluindo-se entre estes agentes a própria terra. Em sentido semelhante, Cecília Mello (2017) propõe uma espécie de “quarto plano”, que deriva como uma espécie de bifurcação (ou de um desvio englobante, para usarmos uma imagem conceitual mais próxima aos termos da ilha) das três ecosofias propostas por Felix Guattari (1990), ao pensar as diversas agências atuantes no Movimento Cultural Afroindígena na cidade de Caravelas, no estado da Bahia:

“A ecosofia não seria uma doutrina ou uma proposta de ação pré-constituída, mas um exercício de articular num ‘novo paradigma estético’ dimensões da experiência que se encontram desarticuladas nas análises e ações e que caberia, portanto, reconectar: os planos da produção de subjetividade (ecologia mental), o plano das formações sociais (ecologia social) e o plano das visibilidades (ecologia ambiental) […]” (Mello 2017: 33).

No entanto, considero que o termo nomeado pela autora por “plano de invisibilidade” como uma alternativa que dê conta dessa “bifurcação ou quarto plano” da proposta guattariana – aquele que diz respeito às agências não humanas – é insuficiente para alcançar aquilo que na ilha aponta para o que a partir de agora eu chamarei de “plano de livusia”. Considero este termo vantajoso para pensar porque ele recusa o sentido de “intangível” que o termo “invisível” pode sugerir. Como vimos, o “plano de livusia” só se mostra porque tem consistência – alcançada sobretudo através da pragmática dos efeitos na terra do mundo dos espíritos. A “livusia” tem o poder de tomar o aparente paradoxo da tangibilidade a seu favor: ao modo do que Diana Espírito Santo e Ruy Blanes (2013) escreveram na introdução da coletânea The Social Life of the Spirits,[5] também na Ilha do Massangano só é possível acessar a agência dos ditos “intangíveis” a partir, justamente, de sua tangibilidade. Isso porque o “plano de livusia” se coloca de modo transversal às demais ecosofias descritas por Guattari: ele é ao mesmo tempo “mental”, “social” e “ambiental”, assim como sugere o quarto plano proposto por Cecília Mello.

E para fazer evidente esta dimensão colocada pelo “plano de livusia”, trago à análise a controvérsia gerada pela iminente “morte do rio” que espreita a terra dos habitantes da Ilha do Massangano. Diz-se por lá que, da mesma forma que tudo o que é vivo caminha, o que está parado está morto. O represamento das águas e a consequente contenção das correntezas de todo o curso do rio São Francisco, dada a partir da construção do complexo de barragens pela Companhia Hidrelétrica do São Francisco (CHESF), concluída no final da década de 1970 – em especial, para o caso da ilha, da barragem de Sobradinho, que está situada a cerca de 40 quilômetros a montante –, fazem-nos deparar com uma terra que já não mais caminha, mas que cresce (pra cima e para os lados); com uma água que já quase não corre e que, portanto, não mais “carrega” (ao menos não como antes), seja, por um lado, terra e sedimentos, seja, por outro, peixes e demais entes de outros mundos.[6] Em poucas palavras, o que desejo alcançar nesse artigo, ao seguir os habitantes da ilha em seu “plano de livusia”, é o que “faz fazer” (ou não pode mais “fazer fazer”) os distintos mundos e suas povoações, quando a terra onde coincidem já não mais se movimenta com eles e para eles. Nesse sentido, seguindo o rastro deixado no “plano de livusia”, procurarei acessar a coincidência – bem como os afastamentos – entre as noções particulares de mundo e de terra contidas na Ilha do Massangano. Este será o assunto da próxima secção do texto.

 

Os mundos como vários, a terra como “uma

Dora, filha do irmão mais velho de Dona Amélia que há tempos mora fora, “na rua”, em Juazeiro, ao me contar de sua saudade do tempo que viveu na ilha, me deu a mais bela definição do que seja viver ali, “onde se morre afogada na areia”. O aparente paradoxo na fala de Dora é revelador da mecânica das movimentações dos caminhos e, portanto, do que gera a vida na ilha. Ela me falava da relação entre água e terra. Para os habitantes da ilha, há uma forte distinção entre os que vivem “no meio do rio” e aqueles que vivem em “terra firme”. Sem desconsiderar que a afirmação de tal distinção comenta a assimetria de prestígio entre um lugar e outro – cuja balança pende em direção à terra firme –, trata-se, sobretudo, de um comentário sobre a substância da terra, do que ela é feita. Quando em contato com a água e a força de sua correnteza, a terra da Ilha do Massangano forma-se inconstante e imprecisa. Por isso, para que a água não “comesse” todo o perímetro de suas terras, os “antigos” costumavam dispor de tecnologias para mantê-las largas: cabia a eles plantar nas beiras para que tais plantas pudessem agarrar aquilo que a corrente transportava. Assim, transformaram o que era pedra no que hoje é terra. Sempre souberam que, dependendo da vazão do rio, de seu avanço ou recuo, pode-se ter mais ou menos terra. Porque a terra se expande ou se encolhe sempre pelas beiradas.

O tom melancólico do comentário de Dora referia-se ao pouco movimento das águas ao redor. O rio, que no “tempo de primeiro” já fez a Ilha do ­Massangano e sua vizinha, a do Rodeadouro, serem “uma só” – designadas ambas pelo nome de Rodeadouro, em função da forte correnteza que estava ao seu redor –, hoje mingua sem correnteza. “É só croa e pedra”, é o que costumam dizer quando olham para um rio que já não é mais (como antes). De certa forma, o dizer atualiza o que nossa amiga Dora, ao modo de uma profetisa, anunciava. A “croa”, um outro nome que dão às porções de terra cuja saliência se nota sobre as águas dos rios, já não mais se movimenta de um lugar a outro – agora ela cresce para cima, se espalha no leito do rio, afogando-os na areia. Não apenas para prover energia elétrica para a região, mas para, sobretudo, garantir que empresas de agronegócio de fruticultura por irrigação (por eles chamadas de “firmas”) fossem viabilizadas ali, a CHESF construiu um complexo de barragens ao longo do rio São Francisco para controlar seu regime de vazantes. Confinado entre duas barragens – a de Sobradinho e a de Itaparica – e sem vazão de água considerável que o movimente, o trecho de rio que abarca a ilha mingua sem correnteza. De seu lado, sob o risco de verem suas plantações inundadas de um dia para o outro ao sabor da decisão dos técnicos das barragens de liberarem mais ou menos água, aqueles que vivem nas beiras do rio deixaram de plantar nas margens, tornando-as um imenso areal. Sem margens que sustentem a terra e sem correnteza que a carregue, o rio, no dizer, deixa de ter “beira”; a terra assoreada se acumula no leito do rio diminuindo sua profundidade, dando a impressão de que o rio esteja cheio quando, na verdade, ele está raso.[7]

Se é verdade que, com menos água e com menos força, a terra onde se vive se movimenta menos, podemos dizer o mesmo sobre as movimentações dos mundos – este ou aquele, onde vivem gente e espíritos? Para responder a essa questão, retomo a narrativa de minha amiga Dora, quando nos contava das saudades que tinha do tempo em que vivia na ilha. Dora lamentava tanto estar fora da “terra” quanto distante do “mundo” onde fora criada. Ainda que a terra ali fosse traiçoeira, foi ela que lhe apresentou o “mundo” tal como o conheceu. O mundo na ilha, como também sua terra, deu a Dora uma certa vida. De modo geral, penso que quando os habitantes da Ilha do Massangano falam de “mundo”, estão fazendo antes uma afirmação sobre a vida: onde se vive, como se vive e como se caminha.

A vida, tal como a percebi na Ilha do Massangano, não se opõe necessariamente à morte. Não é raro, por exemplo, um espírito vir “em vida” no intuito de dar algum recado. Peba, uma amiga da ilha, me contava como seu pai lhe fez o pedido para que nunca deixasse de cumprir a obrigação que ele fez com Cosme e Damião.[8] Peba enfatizava que o pai veio “em vida” porque ele “caminhava”, “assim mesmo como nós, andando, Márcia! Como gente viva mesmo”. A ênfase de Peba na vida do espírito de seu pai referia-se à autonomia com que ele podia caminhar (independentemente das pernas de médiuns) [9] e ser visto neste mesmo mundo onde vivemos – aqui na terra. De todo modo, a impressão que se tem é que o exercício de qualificação de determinado ser num estado ou noutro (vivo ou morto) é relativo ao plano de existência a que determinado ser pertence – isto é, no limite, sempre se é vivo no mundo onde se vive. Sempre lhes parecia bastante óbvio o que para mim não era: que os espíritos, desde seu respectivo mundo, são vivos para si próprios.

Ainda que, como procurei demonstrar, a “terra” possa ser “uma só”, o mundo é sempre apresentado como vários: “os mundos”. Enquanto, para eles, a terra nunca parece acabar porque está sempre andando, o “mundo”, ao contrário, é apresentado como algo que aparece sempre marcado por uma descontinuidade que sinaliza um fim. Falar em mundo é falar sobre o “lá naquele fim de mundo” das lonjuras do sem-fim; a temida vastidão do desconhecido “mundão de meu deus” que alguns parentes enfrentam quando vão viver em São Paulo; o perigo do “fim do mundo” antecipado nas profecias dos antigos padres que afirmavam que “o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão” – escatologia eternizada pelo famoso romance Os Sertões, de Euclides da Cunha (2016 [1902]), passado a poucos quilômetros dali.[10]

De toda forma, na Ilha do Massangano, a incidência numa mesma terra de distintos mundos se apresenta sempre como “ao lado”. Por exemplo, não se “incorpora” ou se é “possuído” por um caboclo, mas se “pega” ou se “baixa” um caboclo que já está ali. Para eles, os espíritos (sejam “almas” ou “caboclos”) de fato existem no “lá fora”, “por aí”. Tim Ingold (2015), em seu livro Estar Vivo, aborda alguns desses conceitos que se aproximam (mas também se afastam) daqueles que são correntes na Ilha do Massangano. Por exemplo, estar “por aí”, do ponto de vista de Ingold, seria algo como estar “na malha”, no movimento do caminhar entre um ponto e outro, “estar em todos os lugares” (Ingold 2015: 220). “Por aí” não coincide, portanto, com a ideia de “espaço” descrita pelo autor, já que este se define por ser “nada” e, sendo nada, “não pode absolutamente ser realmente habitado” (2015: 215). No entanto, ainda que meus amigos da ilha concordem que o espaço seja “nada”, provavelmente diriam que até mesmo o nada pode virtualmente ser habitado. Isso porque, para eles, a existência é anterior ao dado. Seja no “espaço” ou no “por aí”, a dúvida não é se os espíritos estão a seu lado, mas sobre qual espírito lhes faz companhia. Isto é, ainda que não apareçam “em vida”, sabem que toda a existência é primeira e se confirma, a posteriori, através dos efeitos deixados – “ao lado” – pelos espíritos, tanto sobre a terra quanto nos corpos daqueles que vivem sobre ela.

Caminhar ao lado, no entanto, não implica dizer que a relação entre caboclo e médiuns, por exemplo, seja uma relação simétrica entre pares. Ainda que seja típico dos caboclos saberem dos passos de seus médiuns, quase nada se sabe sobre a vida dos caboclos – a não ser aquilo que for do desejo deles nos contar.[11] À minha indagação sobre “onde vivem” ou “onde estão” os espíritos, meus amigos da ilha respondiam quase sempre com uma gargalhada acompanhada por um “e eu sei?”. Diante da minha insistência, prosseguiam respondendo ora que estão “por aí”, ora que estão “no espaço” – o que não implica dizer que um e outro sejam a mesma coisa. Enquanto o “por aí” refere-se ao todo-lugar, isto é, a presença relativa e virtual em qualquer lugar; estar no “espaço” é estar no lugar-nenhum, na imprecisão absoluta do caos do que seja, como certa vez ironizou uma amiga diante de minha insistente pergunta, o “espaço sideral”.

O “plano de livusia” faz falar uma cosmologia que não pode se separar de sua geografia. O conhecimento topográfico da mecânica terra-água de que os habitantes da ilha dispõem faz deles também excelentes geômetras da relação entre mundos. Há sempre um mundo “ao lado” de outro, um “fim” que nunca é derradeiro porque sempre supõe outro. A imagem de mundos postos “ao lado” não implica dizer que sejam paralelos. Ao contrário, tal laterização projeta sobre a terra a disposição de mundos à imagem de um poliedro infinito, cujos lados sempre podem se dobrar um sobre outro. Essa versão apresentada pelos meus amigos da ilha coincide com a “geografia celestial” tal como descrita por Edgar Barbosa Neto (2012) em sua etnografia de três casas de religião de matriz africana da cidade de Pelotas, no estado do Rio Grande do Sul. Segundo o autor, naquele contexto etnográfico “o mundo em que habitam os orixás, os exus, e os eguns, o mundo dos outros de modo geral, não é apresentado como descontínuo àquele em que se vive” (Neto 2012: 150). A “máquina de mundo”, para usarmos uma imagem do autor, que faz a passagem de lados em um “mundo repleto de lados simultâneos e heterogêneos”[12] (2012: 11), na Ilha do Massangano é operada, sobretudo, por sua noção de “terra” e pela respetiva ação.

Dizer que a laterização disposta pelo “plano de livusia” da ilha propõe uma noção de mundo desprovida de centro – ou, se houver, ele será sempre contingente ao mundo onde se vive –, não implica afirmar que, ao modo de um revés, ela supõe um centro geodésico de acontecimentos. Tampouco tenho condições de afirmar que o que acontece aos mundos da ilha é o mesmo que acontece no universo ameríndio, tal como proposto pelo famoso conceito de perspectivismo formalizado por Tânia Stolze Lima (1996) e Eduardo Viveiros de Castro (2002).[13] Não é do conhecimento nem do interesse dos meus amigos o modo como as almas ou os caboclos nos veem ou se veem entre si. Para eles, ainda que os mundos sejam vários, interessa dizer que a “terra” é “uma só”, mas não porque ela seja “só uma”. Enquanto ser “só uma” poderia configurar a terra como uma espécie de materialização de um fundo ontológico comum – o que não me parece se aplicar ao caso deles –, ser “uma só” fala, sobretudo, da agência da terra ao puxar para si o encontro de mundos diversos que a atravessam.

Na intenção de focar o encontro desses mundos, percorrerei dois “lugares de livusia” colocando atenção em, por um lado, como certas “encruzilhadas” atuam como um cruzamento não apenas de “becos”, mas também de “mundos”, e, por outro, em como tais mundos são puxados para a terra pela força das “correntezas” das águas.

 

Entre a encruzilhada e a correnteza

Para aqueles cuja vida se passa “no meio das águas”, habitar a caatinga é estar “longe demais”. Único bioma exclusivamente brasileiro, a caatinga, apesar de seu baixíssimo índice pluviométrico aliado ao alto índice de evaporação, é a região de clima semiárido com maior contingente populacional do mundo. Ainda que situados nesse bioma, para os habitantes da Ilha do Massangano, falar em caatinga é falar do que está para além da “terra firme”; é referir-se ao longe, ao sem-fim seco do sertão. É um lugar que, por oposição àqueles banhados pelas águas, não querem jamais habitar.

É justamente nessas partes mais secas, altas e distantes que são enterrados seus mortos. Pelo menos aqueles que morreram em idade adulta. Na Ilha do Massangano há espaço apenas para o cemitério dos anjinhos, onde só crianças podem ser enterradas. Ainda assim, este pequeno cemitério fica na parte “de cima” da ilha, onde a terra nunca se alaga e se sustentam os caminhos. Aos seus adultos, preferem enterrá-los fora da ilha, em “terra firme” do outro lado do rio, em lugar separado pelas águas, lá no “sem-fim” da “caatinga braba”, a uma “boa distância” de suas moradas – no cemitério da Vila do Rodeadouro, onde a terra, além de seca, é dura e pedregosa.

Tão seca e distante é essa terra, que nem mesmo os mortos escapam de ter saudades: tanto das águas, quanto de sua gente. Numa visita ao pai no dia de finados, no duro trajeto até o cemitério, os filhos de Dona Amélia levaram consigo um par de garrafas cheias de água: “é pra matar a sede deles”, brincavam. A sede, no caso, refere-se menos a uma saudade da água e mais de uma certa vida que se passa no meio dela – como aquela que Dora nos apresentou.[14] Ao regarem a cova do pai e de outros parentes mais próximos, dosavam como podiam a “boa distância” de seus mortos. A medição do que é perto e do que é longe é sempre acionada na ilha quando o assunto é onde devem enterrar seus mortos. Um cunhado de Dona Amélia, tempos antes de morrer, reafirmava que queria ser enterrado na ilha porque o cemitério do Rodeadouro era longe demais para ele. Sua esposa, no entanto, discordou. Para ela, o bom mesmo seria que ele ficasse junto de seus outros parentes mortos. E assim ela decidiu, à revelia da vontade do marido, para que ele pudesse habitar, com mais tranquilidade, o novo mundo que lhe cabia: o das almas.

Na ilha estão sempre regendo distâncias necessárias para a mínima ordem do encontro de mundos, quando estes se atualizam numa mesma terra. Penso que o perigo de ficarem perto demais, é, pois, o de virar um mundo no outro, ficar o mundo do avesso, aproximar o fim do mundo, o sertão virar mar e o mar virar sertão. O perigo que Lévi-Strauss (2006) chamou de conjunção ou disjunção catastrófica, quando formalizou o conceito de “boa distância” no terceiro volume das Mitológicas.[15] Do lado da Ilha do Massangano, meus amigos de lá calculam essas distâncias quando, por exemplo, despejam alguma água – nem muita, nem pouca – nas covas de seus parentes mortos, sejam eles crianças ou já adultos; ou quando medem a “boa distância” que devem manter do cemitério onde enterram seus mortos adultos, que por sua vez deve estar “longe demais” (longe da ilha, do outro lado do rio, na banda da Bahia, em terra firme, no alto, no meio da caatinga brava). O mesmo acontece, para retomarmos o começo de nossa conversa, quando desviam de algumas encruzilhadas no trajeto entre uma casa e outras. Diante disso, inspirada no trabalho de José Carlos Gomes dos Anjos (2006), naquilo em que seu campo coincide com o meu, retomo a noção êmica de encruzilhada como sendo, assim como o autor a descreve, um “território de linha cruzada”; isto é, “muito além de uma simples metáfora entre a vida e os caminhos, temos [na encruzilhada] um pensamento que faz da vida um território” (Anjos 2006: 19).

No rumo e no sentido de “fazer da vida um território”, ou melhor, de “fazer vida na terra”, pretendo seguir uma certa cosmopolítica acionada na Ilha do Massangano. Lá, estão a todo momento atualizando tecnologias para mediar essas aproximações de mundos, de modo a manter seu mundo e o mundo das almas e dos cabolos sempre a uma “boa distância”. Nesse sentido, percorrerei tais distâncias em dois tempos distintos: o tempo da Quaresma – que também é o tempo das almas – e o tempo restante, quando as correntes de caboclo podem correr soltas pela ilha.

Durante a Quaresma, ao revés do que Dona Amélia me ensinou na nossa primeira caminhada, o que se procura é o desvio: é quando perseguem as encruzilhadas e ocupam sistematicamente os “lugares de livusia”. Nesse período, que segue da Quarta-Feira de Cinzas até à Sexta-Feira da Paixão, as “alimentadeiras de almas” saem envoltas em “panos brancos” percorrendo algumas encruzilhadas, que nesse tempo recebem o nome de “estações”. Fazem isso na intenção de cuidarem de suas almas e de todas as outras que estejam no “por aí” na Ilha do Massangano. Isso porque, juntas, as estações conformam um percurso de sete pontos que, como uma “cruz de caminhos”, abrigam uma maior probabilidade de que almas e pessoas se encontrem. O conjunto das estações pode incluir uma típica encruzilhada ou variações dela, como cemitérios, igrejas, cruzeiros e até mesmo o interior de algumas casas, quando nelas são oferecidos cafés àquelas que se dedicam a alimentar de reza as almas necessitadas. Essas “alimentadeiras de almas” são um grupo de mulheres e crianças que, ao modo de uma Via Crucis e à imagem e semelhança das próprias almas, saem durante as segundas, quartas e sextas-feiras da Quaresma pela ilha, dando “de comer” através da reza a toda sorte de almas – tanto as gerais, quanto as de seus parentes idos.[16]

As sete estações penitenciais, segundo me contaram, desde que “se entendem por gente”, sempre foram as mesmas. No entanto, quanto mais eu caminhava com elas, mais eu percebia que o que importava não era tanto a constância do lugar em que a estação se encontrava, mas o ponto a partir do qual a caminhada se dava. Explico: não precisavam evitar construir suas casas em certos locais a fim de preservar as encruzilhadas consagradas como estações; ao contrário, eram as encruzilhadas que se adaptavam ao rearranjo, sempre frequente, entre as casas daquelas que andavam com as almas. Os nomes dados às estações (estação de Joana ou da Velha Chica, por exemplo) não mapeiam propriamente um território, mas falam de relações entre as almas e aquelas que mais frequentemente caminham com elas. Se preferirmos usar uma linguagem próxima à de Ingold (2015), as estações não delimitam tanto uma área mapeada por pontos numa rede, antes elas se configuram como nós em uma malha de relações que vão sendo tecidas no percorrer da caminhada. Ou, em outras palavras, as estações são “lugares de livusia” não apenas porque as almas vivem ali, mas justamente porque a encruzilhada se define por configurar um encontro, um cruzamento, entre almas e aquelas que caminham com elas numa mesma terra.

Entretanto, o “plano de livusia” não se faz apenas de encruzilhadas – e tampouco nas encruzilhadas cruzam apenas almas. Também algumas qualidades de caboclos podem se demorar por ali. Silvano, que também habita a ilha, me contava de como jorrava água de suas mãos e de seus pés no tempo em que frequentou a casa de caboclos de maior prestígio da ilha, a “casona” de Seu Berto Barrinha, falecido cunhado de Dona Amélia. “Ali tinha força!”, disse-me ­Silvano e tantas outras pessoas que giraram as giras dos caboclos de lá. Ou ainda, como insiste em dizer Dona Amélia, que foi “cabeceira de mesa” dessa casa de caboclos, ali a “corrente” é forte.[17] Tal força, me explicou, deve-se ao fato de que vivem “no meio do rio”, onde a “correnteza” passa em toda sua potência. Com frequência traçam uma correspondência entre a “corrente das águas”, designação da linha de caboclos que mais abunda na Ilha do ­Massangano, e a “correnteza” das águas que circundam a ilha, de modo que, muitas vezes, “corrente” e “correnteza” aparecem em suas falas com significados próximos. Lembram-se com entusiasmo do tempo em que se fazia a festa da Marujada de Seu Berto Barrinha, quando um após o outro e em efeito-cascata, os médiuns se “encaboclavam” sobre os barcos que saíam em cortejo ao redor da ilha. Ali, sobre a força da correnteza, a “corrente das águas” ganhava tanta força que quem se aventurasse a segui-la tinha que cuidar para não cair no rio abaixo. E de fato não caíam.

Os caboclos em geral e, em particular, aqueles da “corrente das águas”, são tidos como seres mais afeitos às águas. Elas, as águas, movem não apenas a terra de um lado para outro, mas também toda qualidade de seres que nela habitam: seja sua gente, sejam certos caboclos que retiram das correntezas a força de sua corrente. Peba, “caboqueira fina” da ilha, me contava do tempo em que se podia ver, a troco de nada, seres que habitavam ao redor das pedras em frente à sua casa. Com alguma facilidade deparavam-se com navios repletos de pequenos marujos, os “negos d’água”, mas também com algumas sereias que, metade gente, metade peixe, estacionavam por cima das pedras onde corriam cachoeiras. Entretanto, hoje com o rio “seco e parado do jeito que está”, Peba já não vê quase nada – mas sente. Para ela, assim como para Dona Amélia no caso que abre esse artigo, não é porque a gente não mais veja os caboclos que eles não existem ou não estão “por ali”. Para peba, “caboclo não acaba”. E completa: “Acaba o terreiro, acaba tudo, mas caboclo não acaba. Caboclo caça canto”.

Mas ainda que não se saiba para que canto vão, se sabe que não estão sozinhos na debandada. Em terras não tão longe dali, há outras pedras que também já não abrigam mais espíritos; a alguns quilômetros a jusante da ilha, os índios pankararu, diante da falta nas cachoeiras de Paulo Afonso e de ­Itaparica, hoje também embarreiradas, já não mais podem encontrar certas linhas de “encantados” [18] que ali habitavam (cf. Arruti 1996).[19] Para meus amigos da ilha, o fim das correntezas implica em grande medida o fim de determinadas correntes, ou, no limite, o fim da vida – pelo menos essa com a qual sempre viveram. É sobre esses embarreiramentos de movimentos que produzem fins de mundos que tratará a próxima secção deste texto.

 

A barragem e a inversão do mundo

No tempo “de primeiro”, o período da Quaresma, também chamado de “tempo das almas”, coincidia com o “tempo das águas” na Ilha do Massangano: a chuva, às vezes miúda, às vezes farta, caía sobre a terra que, agora seca, já havia sido invadida pelas águas do rio em épocas de “vazante geral” – quando o rio enchia em sua cabeceira, fazendo com que suas águas barrentas inundassem as beiras da ilha, sempre de “cima” para “baixo”. Depois de passadas as chuvas, “nem vento não tinha”, lembrou Oséias, um outro amigo de lá. Se quisessem “empurrar canoa”, tinham de “puxar remo”. Entretanto, Oséias insistia, o tempo da estiagem não era um tempo morto: ele coincidia com o período em que chovia no “rio de cima”, na cabeceira do rio, provocando as tão lembradas cheias do rio São Francisco. O início da subida das águas indicava o tempo da colheita, quando costumavam colher mandioca ou batata com as “águas nos joelhos”, salvando a plantação antes que o rio “tomasse de conta de novo”. Nesse tempo, com exceção de uma ou outra, as poucas casas que ali havia enfileiravam-se uma única rua situada “do lado de fora” da ilha, uma vez que o lado de “dentro” era o lado interior da roça, onde ficavam as plantações. As casas estavam, portanto, no “lado de fora” e no “alto”, onde era menor a probabilidade da chegada das águas na época da cheia. Mas às vezes, ao invés de cheia, vinham as enchentes – sendo as mais lembradas as de 1949 e de 1979. Quase sempre à noite e sem avisar, a água entrava sorrateira, engolindo aos poucos o barro das casas de taipa e lambendo os pés de quem estivesse dormindo. Era sempre com as águas pelos pés que se retiravam para o alto da ilha e improvisavam-se nas terras de parentes, levando consigo, além das crianças e dos animais, os poucos pertences. Embora a casa literalmente caísse, é com alegria que lembram do tempo das enchentes: com o peixe farto à mão, comemoravam poderem viver todos juntos, “como se fossem um”, cercados por um rio bonito, cheio e escuro, porque barrento.

Por outro lado, também eram raros os períodos de larga estiagem – as secas – que faziam minguar o rio. Os mais velhos lembram-se, por exemplo, das vezes que puderam atravessar o rio a pé de lado a lado. Isso na “banda do ­Pernambuco”, porque na “banda da Bahia” só podiam chegar até a metade, porque lá, diferentemente de agora, “toda a vida foi fundo”. A diferença de um tempo para o outro, me dizia Oséias, é que ainda que já tivessem visto o rio seco, ele nunca esteve tão raso. Raimundão, primo de Dona Amélia, concordava com Oséias e dizia que, sem ter beira, aterrado e parado, o rio “raseou”:

“Porque, depois das barragens, o rio virou um poço, não tem mais carreira para puxar a terra. Antigamente, quando não tinha barragem, isso aí era tudo fundo! […] a corrente carregava a terra que ia acumulando… Aí não acumulava não, porque carregava. Aí hoje, fica a bacia do rio limpa, limpa, limpa. Só com as pedras mesmo. […] Mas… grande é Deus!” [­Raimundão, 70 anos].

Embora tenha sido construída a montante da ilha, a barragem de Sobradinho, a 40 quilômetros, é um divisor de águas na vida daqueles que caminham na ilha. Ao contrário do que aconteceu às comunidades que viviam a montante da barragem, que não mais puderam ver o rio “baixar”, ali, a jusante, testemunham um rio que nunca para de secar.[20] Entretanto, o temor de meus amigos da ilha não parece ser tanto que o rio esteja seco, mas sim que esteja raso, sem beira e sem correnteza.

Para finalizar, volto à pergunta colocada no início do artigo: no que a descontinuidade do fluxo das águas, isto é, a frenagem de sua correnteza provocada pela construção da barragem de Sobradinho, afeta os outros mundos que atravessam a terra da Ilha do Massangano? Ou, ainda, se é verdade que ali as relações entre gente, almas e caboclos são orientadas em grande medida pela passagem entre um mundo e outro, cuja consistência é dada pela relação entre terra e rio, o que acontece então quando esses territórios de passagem são “desviados”, “transpostos”, “soterrados” ou “barrados”?

Volto à conversa com minhas amigas Conceição e Peba. Conceição lamentava não poder “levar à frente” a obrigação que divide com a mãe em homenagem aos caboclos que, como ela, são gêmeos: Cosme e Damião. Me explicou que no balneário da Ilha do Rodeadouro, onde mantém uma banca de acarajés, o movimento está “quase parado”, por conta de o rio estar baixo do jeito que está, “só croa e pedra”. Seu cálculo era simples: sem acarajés vendidos não há dinheiro, e sem dinheiro não há festa. “Deus não quer da gente o impossível”, resignava-se. Diante de meu espanto com a secura do rio naquele ano, perguntei a Peba se haveria água e correnteza que levasse o barco da “festa das águas” rio adentro – ocasião em que ela, aproveitando a festa de Cosme e Damião do pai, promove uma barqueata pelo rio, oferecendo presentes aos caboclos desta corrente. Apesar da pouca água, Peba me explicou que “faz o possível”: cada ano vai até um porto mais longe, em barcos menores, caçando (como fazem os caboclos em suas correntes) alguma correnteza que os arraste. Conceição, escutando a conversa de Peba, olhava com alguma esperança para o esforço da prima. Diante da iminência de que o rio seque, Conceição não parecia temer tanto o fim do mundo, mas o fim da cidade. Isto é, parecia temer que, com o fim das águas, a ilha deixe de ser ilha, tudo vire terra (a firme), o movimento “pare” e, com ele, também a cidade a partir da qual “enfrentam” a vida – seja com a venda nos balneários, seja trabalhando como assalariados nas “firmas” de agricultura irrigada.

Penso que, diante da iminência de um fim, meus amigos da ilha reelaboram em seus termos a famosa escatologia sertaneja, cujo “sistema mítico-ritual” é conhecido como messianismo e foi batizado por Cristina Pompa (2009) como a “cultura do fim do mundo”, ao pensar o movimento “Pau de Colher” no município de Casa Nova, no ano de 1938, a cerca de 70 quilômetros dali. A subida ou descida definitiva das águas, para eles, não é propriamente um fim do mundo, mas talvez o fim de um mundo em movimento, tal qual o conheceram. Observam com alguma melancolia, mas também com profunda descrença, a ideia de um fim derradeiro. Não é a primeira vez que se deparariam com ele. Um certo mundo já se acabou para eles quando, após a construção da barragem de Sobradinho, findaram-se as navegações no curso grande do rio, as lagoas onde faziam a pesca de “rancharia” já não encheram mais, acabou-se a agricultura de várzea e já não há mais retiradas de suas casas, porque não há mais enchentes. Para eles, ainda que a terra não mais ande, o mundo não para. Mesmo que não mais vejam as sereias ou escutem seu canto, os arrepios que sentem na pele os fazem não ter dúvidas que elas estão “por aí”, em algum lugar, num outro mundo que só é possível porque, a princípio, existe.

 

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Receção da versão original / Original version         2017 / 05 / 03

Receção da versão revista / Revised version           2018 / 09 / 16

Aceitação / Accepted           2019 / 01 / 29

 

Notas

[1]             Ir “ter com os caboclos”, “brincar caboclos”, ou algum termo que o valha, é como os habitantes da ilha falam quando caminham para uma “casa de caboclos”. Se perguntados, dirão que são católicos e que praticam a “Mesa Branca”, que só trabalha para o bem e com “Jesus Cristo na frente” – ou, em outras palavras, que lá não se “bate couro”, nem se trabalha com “o esquerdo” ou, simplesmente, com “o candomblé”. Embora Mesa Branca designe um braço do espiritismo kardecista – no qual médiuns reúnem-se em volta de uma mesa coberta por panos brancos onde o consulente deita-se a fim de ser curado por guias espirituais –, para os habitantes da Ilha do Massangano, tais denominações não fazem diferença. Nas casas de caboclo, ao lado de onde fica a mesa, há um salão onde propriamente “brincam caboclo”: sem tambores e com palmas, é o guia do dono da casa quem comanda a sessão, na qual, ponto a ponto, “caboqueiros” “pegam” seus caboclos até o momento da chegada dos “cosminhos”, os caboclos crianças, que sempre encerram os trabalhos.

[2]             A etnografia aqui é apresentada é um desdobramento de minha pesquisa de doutorado, ainda em andamento, mas que teve início já no período do mestrado, em 2008, quando fiz minha primeira estadia em campo. De lá para cá, portando, já são dez anos de idas e vindas caminhando entre eles. A dissertação de mestrado, defendida pelo PPGAS da Universidade Federal Fluminense (UFF) em 2010, foi publicada em livro em 2017 (cf. Nóbrega 2017b).

[3]             Entrada “Aleivosia”, Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (Curitiba, Editora Positivo, 2004, 3.ª ed.).

[4]             “Diante disso, nosso objetivo é realinhar, de um lado, a reflexão antropológica que tem destacado a presença constitutiva de não humanos nas socialidades indígenas, e, de outro lado, esta convocação e recente emergência política desses não humanos – e da própria T/terra – nos discursos e práticas de seus porta-vozes contemporâneos. Assim, torna-se mais fácil compreender como todos esses actantes são plena e visceralmente políticos: pessoas cuja própria sobrevivência é um ato radical […]” (T/terra 2017: 20).

[5]             “This exploration rests upon a philosophical and epistemological assumption, which is also a challenge: the recognition of the anthropological relevance of the mechanics and effects of so-called invisible or intangible domains, whether these are constituted by spirits, quarks, the law, or money value” (Espírito Santo e Blanes 2013: 1).

[6]             No total, há no rio São Francisco cinco barragens. Da nascente para a foz, no trecho do alto São Francisco está a única barragem no estado de Minas Gerais, a de Santa Maria; as demais estão todas localizadas no curso do trecho submédio do rio, onde este faz fronteira com o estado da Bahia: a de Sobradinho, a de Itaparica (hoje de nome Luiz Gonzaga), o complexo de barragens de Paulo Afonso e, por último, a de Xingó. Para mais informações sobre o processo de construção do complexo de barragens ao longo do rio, em especial a da barragem de Sobradinho, ver Sigaud (1988).

[7]             Na época dos debates em torno da implementação da transposição do rio São Francisco – cujo primeiro ponto está a menos de 200 quilômetros de Petrolina, na cidade de Cabrobó, no estado de Pernambuco –, argumentava-se que o que capturaria da vazão do rio seria algo entre o mínimo de 26 m3 e o máximo de 126 m3 de água, o que não afetaria em nada a chamada “vazão ecológica” do rio, uma vez que existia o pressuposto de que há uma vazão “segura e firme” desde Sobradinho, mantida em 1800 m3/s. Em 2017 a vazão daquele trecho chegou a 450 m3/s, segundo dados da Agência Nacional das Águas (ANA). Dados disponíveis em http://www.asabrasil.org.br/noticias?artigo_id=9132 (última consulta em junho de 2019).

[8]             A Festa de Cosme e Damião é a única das grandes festas de caboclo que persiste na Ilha do ­Massangano. Os santos gêmeos são sincretizados tanto com o orixá Ibeji, que guarda a gemelaridade na cosmologia Yorubá, quanto com os erês – a qualidade infantil, o estado de criança, dos orixás (cf. V. C. Lima 2005). Na ilha, Cosme e Damião são caboclos muito queridos, cuja versão prosaica são os “cosminhos”, qualidade criança dos caboclos, que – quando os há – sempre fecham as giras.

[9]             O termo para definir quem tem relação com espíritos, de modo geral, é “médium” (frequentemente também usam a corruptela “média” para se referirem às do gênero feminino). Para quem tem relação com os caboclos (em que mais adiante me deterei melhor), também usam o termo “caboqueiro” ou “caboqueira”.

[10]           Há, inclusive, vários povoados daquele trecho de rio que têm como santo padroeiro aquele cuja imagem foi encontrada ou trazida desde Canudos após o fim da guerra. No caso da Ilha do ­Massangano, a estatueta de Santo Antônio, seu padroeiro, foi trazida por um cunhado de Celestina que o salvou intacto no meio dos destroços da guerra (cf. Nóbrega 2017b).

[11]           A etnografia de Vânia Cardoso (2004) sobre o “povo da rua”, tal como concebido pelo “povo da macumba” da baixada fluminense do estado do Rio de Janeiro, apresenta relações entre uns e outros também a partir de uma aura de indeterminação, de modo bem próximo ao que pude perceber na Ilha do Massangano na relação que traçam com os caboclos.

[12]           O politeísmo, termo através do qual Edgar Barbosa Neto (2012) escolhe apresentar as ideias de lados e dobras, permite pensar os espaços compartilhados entre gente e espíritos de modo diferente do que o sincretismo fez anteriormente. O exercício de pensar um conceito que dê conta de misturas que não se configurem como fusão de partes resultante em um todo homogêneo é apenas uma componente de um projeto maior, no qual o autor está inserido, coordenado por Marcio Goldman, sobre o que este vem chamando, ao menos provisoriamente, de relações afroindígenas (cf. Goldman 2016).

[13]           Para uma discussão sobre a controvérsia que opôs os alinhados do que se chamou de “virada ontológica” àqueles que advogam pela existência de apenas um mundo, isto é, de apenas uma ontologia, veja-se o que afirma Pina-Cabral: “Yet this is an incorrect assumption: Davidson is absolutely explicit about the fact that there is only one single ontology (there is only one world) and his dialogue with Spinoza at the end of his life is precisely an elaboration on that idea […]. To attempt to salvage the metaphysical nature of Viveiros de Castro’s perspectivism […] by twisting Davidson’s positions is plainly a misguided step” (Pina-Cabral 2014: 65).

[14]           Não há relatos entre meus amigos da ilha de que exista algo na substância da água que seja imprópria para os mortos, ou ainda, para as “almas”. Ainda que a água esteja relacionada à vida, ela não se opõe à morte. Sobre a relação entre a água e o mundo dos mortos, ver, por exemplo, Bastide (1978), quando fala dos cultos dos eguns na Ilha de Itaparica, na Bahia. A relação entre água e terra também é importante para o jarê da Chapada Diamantina, uma religião dita como um tipo de candomblé de caboclo localizada na região chamada alto sertão do rio São Francisco. Essa relação engendra aquilo que Gabriel Banaggia (2015) chamou de “metafísica telúrica”: “Essa série de disposições em relação ao chão e à terra pode ser caracterizada como parte de uma ‘metafísica telúrica’ que, se não é de modo algum exclusiva ao jarê, encontra na Chapada Diamantina um solo particularmente apropriado para elaboração” (Banaggia 2015: 176).

[15]           O famoso caso exposto por Lévi-Strauss (2006) trata do mito dos gêmeos Sol e Lua, presentes entre diversos povos. O mito trata de um gêmeo mau que mata a mãe no parto e a degola, tornando-se a cabeça pendurada a Lua ou o Sol, a depender da versão do mito. O gêmeo bom, por outro lado, irá ao leste, no firmamento, garantir o nascer do dia, estabelecer a periodicidade, o momento intervalar. Sol e Lua viajam de canoa, um na proa e outro na popa – separados, pois –, de modo a manter o equilíbrio sempre instável da organização do mundo. Em suma, o que um faz o outro desfaz. A partir daí, o autor elabora sua teoria da “boa distância”, uma vez que devem se manter separados o céu e a terra (bem como outras dualidades perigosas).

[16]           Ainda que as “alimentadeiras de almas” possuam seu correlato masculino, os “penitentes”, aqui me interessa deter-me sobre elas, no sentido em que é enfatizado no domínio das mulheres o vínculo com a terra, através do cumprimento das estações enquanto percurso – o que não acontece com os “penitentes”. Há diferenças substanciais entre um grupo e outro. As que chamam mais atenção, entretanto, são que, entre os “penitentes”, são admitidos apenas homens iniciados e em idade adulta e que, uma vez no cordão, o penitente deve, num período mínimo de sete anos, “se cortar”, reproduzindo em seu corpo o sofrimento de Jesus Cristo.

[17]           Ser “cabeceira de mesa” é uma função de prestígio dentro de uma casa de “mesa branca”. Quem ocupa essa função é responsável por anotar os recados entre os caboclos e seus consulentes durante as consultas e as giras.

[18]           Para o povo da Ilha do Massangano, o “encantado” é um tipo de “caboclo”. No geral, entretanto, entende-se por encantado aquele que se encantou, isto é, o que ao morrer passou para outro plano de existência, para um mundo muito próximo à natureza, sem, contudo, deixar vestígios de seu corpo na terra onde viveu. A “encantaria” produz um tipo de ser muito comum nas cosmologias ameríndias, tanto no Nordeste quanto no Norte do Brasil. A esse respeito, ver, por exemplo, Prandi (2011).

[19]           A lista não se limita a essas situações. Juracy Marques dos Santos (2012) alerta também para o caso do povo tuxá, de Rodelas, que teve que se deslocar de modo forçado de seus locais sagrados, após a construção da barragem de Itaparica: “A dimensão sagrada das cachoeiras e consequentemente, a expulsão dos encantados ordenadores de suas cosmovisões; a extinção de parte da ictiofauna sanfranciscana em virtude da quebra nos ciclos reprodutivos das espécies nativas após o alicerçamento dos grandes barramentos e suas consequências na vida dos pescadores artesanais, entre tantos e infinitos exemplos, ainda não estão na pauta do jogo jurídico dos processos idenizatórios nem configuram-se como condicionantes para liberação de licenças ambientais desses empreendimentos” (Santos 2012).

[20]           Em seu livro Uma Retirada Insólita, Ana Luíza Martins Costa (2013) descreveu o que aconteceu a um grupo camponeses ribeirinhos do rio São Francisco que viviam a montante de onde a barragem de Sobradinho foi construída. Acostumados, como os da Ilha do Massangano, a se retirarem nos momentos de cheia ou enchente, resistiram a sair de suas terras em definitivo, como queriam os técnicos da CHESF. Muitos apenas o fizeram – como sempre costumaram fazer – com as águas já entrando nas casas. Deu-se ali a “inversão do mundo” que a autora chamou de “insólita”, isto é, a subida definitiva das águas veio de baixo para cima (e não de cima para baixo) e numa velocidade desconcertante.

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