SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.23 número2Entre seres intangíveis e pessoas: uma introduçãoVariações sobre “livusias”: coincidência entre a terra e os (fins de) mundos contidos numa ilha no rio São Francisco, Brasil índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica vol.23 no.2 Lisboa jun. 2019

https://doi.org/10.4000/etnografica.6858 

ARTIGO ORIGINAL

“A família de Légua está toda na eira”: tramas entre pessoas e encantados

“Légua’s family are all by the threshing floor”: interactions between people and enchanted entities

 

Martina Ahlert * e Conceição de Maria Teixeira Lima **

* Departamento de Sociologia e Antropologia, Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal do Maranhão, Brasil ahlertmartina@gmail.com

** Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal do Maranhão, Brasil cittalima@yahoo.com.br

 

RESUMO

O terecô é uma religião afro-brasileira encontrada no interior do estado do Maranhão, no Nordeste brasileiro. Nela, as pessoas convivem com encantados – seres recebidos em rituais, mas também presentes em momentos ordinários. Os encantados se fazem presentes na incorporação, em sensações físicas ou em objetos que lhes pertencem. Esse conjunto heterogêneo de seres se organiza em famílias, que são formadas por parentesco consanguíneo e também “por consideração”. Aqui, na Terra, eles se relacionam com pessoas possuidoras de “mediunidade” e com aqueles que as rodeiam. Neste texto, procuramos pensar as relações entre pessoas e encantados a partir de histórias onde esses seres se cruzam em tramas de parentesco – que envolvem partos realizados por entidades, casamentos por elas previstos e anunciados, conexões geracionais e heranças em momentos de morte. Trabalhamos, especialmente, com a família de um encantado chamado Légua Boji Buá, quando procuramos chamar atenção para os princípios que regem as relações entre os encantados, a agência e a multiplicidade de formas a partir das quais eles se apresentam às pessoas.

Palavras-chave relações, encantados, família, agência

 

ABSTRACT

Terecô is an Afro-Brazilian religion found inland in Maranhão state, in the Northeast of Brazil. In this religious context, people coexist with enchanted beings who are received in rituals, through incorporation, but are also present in ordinary moments as physical sensations or through their belongings. This heterogeneous set of beings is organized in families, which are formed by blood ties and also by “respect”. Here on Earth they bond with people with “mediumistic” powers and with those around them. The article is focused in the relationships between people and enchanted beings, using as reference stories where those beings have a role in kinship affairs. Such stories involve births performed by those entities, weddings planned and announced by them, generational connections and inheritance following death. We work especially with the family of an enchanted being called Légua Boji Buá, seeking to draw attention to the principles governing the relations among those entities, their agency and the variety of forms by which they present themselves to people.

Keywords relationship, enchanted entities, family, agency

 

Apresentação

A parteira que “pegou” Pedro em seu nascimento foi Chica Baiana, incorporada em seu avô materno. O casamento de Dona Regina foi previsto por Coli Maneiro ainda em sua gestação, durante um festejo. O filho de Luiza negociou com Duardo Légua o fim do consumo de bebidas alcoólicas quando este “descia”. Dona Vanda “recebeu” Seu Zé Porteira de sua mãe, quando ela faleceu e deixou de chefiar a tenda de terecô do povoado onde viviam. Como essas, são diversas as situações nas quais pessoas (como Pedro, Regina, Luiza e Vanda) acionam encantados (como Chica Baiana, Coli Maneiro, Duardo Légua e Zé da Porteira) para falar sobre quem elas são, para contar sobre suas famílias, para explicar suas trajetórias.

Essas situações nos foram descritas em uma pesquisa etnográfica em Codó, durante os últimos oito anos.[1] Codó é um município de cerca de 120.000 habitantes, localizado na região leste do estado do Maranhão, no nordeste do Brasil. A cidade recebeu certa notoriedade, entre outros motivos, pela presença de pais e mães-de-santo e pela quantidade de tendas (como são chamados os espaços onde são realizados os rituais) de religiões afro-brasileiras no local.[2] O terecô é a religião tradicional da cidade, mas se estima que a umbanda tenha chegado na década de 1930 e o candomblé durante os anos 80.

No terecô, ou tambor da mata, as pessoas recebem, em seus corpos, seres conhecidos como encantados. Os encantados não são percebidos como deidades, pois foram pessoas e, mesmo na condição de entidades, têm comportamentos próximos aos humanos. Eles, entretanto, não passaram pela experiência de morte (Ferretti 2000). Além de serem recebidos pelas pessoas que os corporificam, podem ser vistos como “espíritos”, sentidos em sonhos ou percebidos em objetos que lhes pertencem. Com a presença da umbanda e do candomblé na cidade, os encantados se encontram, nas tendas, com diversas outras entidades. As pessoas, entretanto, sabem precisar os nomes e as famílias dos encantados considerados do terecô – ainda que as fronteiras entre as religiões não sejam definidas de forma unânime.[3]

As entidades da região de Codó são chamadas de encantados da mata; uma das famílias mais importantes desse grupo é a de Légua Boji Buá da Trindade.[4] Ela é formada pelos pais desse encantado, sua esposa, irmãos e sobrinhos, além de uma grande quantidade de filhos e netos. “A família de Légua está toda na eira”, frase que nomeia esse texto, é um dos pontos cantados nas festas de terecô nas tendas da cidade para convocar a presença dos Léguas. Quando se canta para essa família, é comum ver entidades colocarem chapéus e entoarem pontos sobre bois e outros animais do campo, pois a sua história é relacionada à mata e à lida com os elementos do mundo rural.

Membros da família de Légua Boji Buá são personagens da maioria das histórias que contamos nesse texto. Nele, nossa intenção é pensar as relações entre pessoas e encantados a partir de experiências onde eles se cruzam em tramas familiares – que envolvem partos realizados por entidades, casamentos por elas previstos e anunciados, conexões geracionais e heranças em momentos de morte. Buscamos, com essas histórias, mostrar a permeabilidade e os diversos agenciamentos constitutivos de pessoas e encantados, quando chamamos atenção para os princípios que regem as relações entre uns e outros e a multiplicidade de formas a partir das quais as entidades se apresentam às pessoas.

 

Quatro tramas

Um terecozeiro (também chamado de “brincante”), costumeiramente, sente o sinal dos encantados (a “mediunidade”) ainda criança, sob a forma de aflições diversas, narradas como confusão mental, descontrole do corpo, doenças e loucura. A partir de então, uma relação não linear passa a ser estabelecida e lentamente construída entre a pessoa e as entidades (Ahlert 2013, 2016). Um brincante recebe diversos encantados e alguns deles têm presença breve e descontínua, pois estão apenas “de passagem” pelo seu corpo. Outros, entretanto, o acompanham por muitos anos. Com esses últimos, não é incomum que se criem relações intensas, ao ponto de podermos falar em participação (Levy-Bruhl 2008 [1922]; Goldman 1984; Ahlert 2016), ou seja, em uma noção de pessoa da qual as entidades fazem parte.

A discussão sobre a noção de pessoa nas religiões afro-brasileiras marca importante literatura sobre o tema, especialmente no que tange aos escritos sobre o candomblé, seja ele nagô ou angola (Bastide 2000; Goldman 1984, 1987). Para Goldman (1984, 1987), a pessoa no candomblé é constituída em um processo que tem a feitura (o processo de iniciação em um terreiro) como momento fundamental. É a partir dela que se forma a “amálgama pessoa-orixá” (Flaksman 2016a: 27), que passa então a ser produzida durante a trajetória de um filho ou pai-de-santo. Sansi afirma: “A iniciação dura muitos anos, num intercâmbio em que a ‘pessoa’ e o ‘santo’ se constroem mutuamente, porque fazer o santo é, de facto, fazer-se a si mesmo” (Sansi 2009: 144).[5]

No terecô, o termo utilizado para falar sobre a aproximação a uma casa religiosa é “preparação”. Nela, o pai ou mãe-de-santo “organiza as correntes” de um filho, conversando com as entidades e estabelecendo, com elas, atividades e obrigações. Não existe um procedimento único para realizar uma preparação; antes, cada caso parece ser pensado a partir das demandas do encantado que se manifesta com mais força na pessoa, também chamado de “chefe de croa”. É a partir desse momento que as aflições e manifestações das entidades se tornam minimamente controladas.

Clara Flaksman (2016a), em uma etnografia realizada no terreiro do ­Gantois, em Salvador, toma a categoria êmica de “enredo” para pensar, não apenas a noção de pessoa constituída na relação entre pessoa e orixá, mas também as relações em um sentido mais amplo (que conectam histórias familiares e orixás entre si):

“Enredar, nesse caso, significa não somente se envolver numa trama, numa história, num entrecho. Ter enredo é ter uma relação; ou melhor, um complexo de relações, que podem se dar de inúmeras maneiras e em planos diferentes – pois um enredo pode consistir de relações tanto entre orixás quanto entre humanos e ainda, muito frequentemente, entre humanos e orixás” (Flaksman 2016a: 14).[6]

Apesar de enredo ser um termo utilizado no contexto do candomblé soteropolitano, ele pode nos ajudar a pensar as informações trazidas nesse texto – que remetem a histórias que se passam entre encantados, e entre encantados e seus “cavalos”.[7] Igualmente, ajuda a pensar que as entidades não se relacionam apenas com aqueles que as recebem, mas com seus parentes, vizinhos e amigos. Dessa forma, os familiares dos brincantes participam ativamente das relações com os encantados e podem arbitrar os encontros, se colocarem contra a presença desses seres, se sentirem obrigados a aceitá-los ou contribuir para o desenvolvimento da vida “no santo”. Isso não é, evidentemente, exclusivo do terecô. Em outro contexto, analisando especialmente a relação das pombagiras com os maridos das mulheres nas quais incorporam, Capone (2009) registra que “o médium, embora se submeta à vontade dos espíritos, também impõe essa vontade aos que o cercam” (Capone 2009: 191). Em sentido semelhante, Véronique Boyer-Araujo (1993) mostra como o matrimônio e a família são impactados pelas relações estabelecidas entre a pessoa e suas entidades, indicando como, para além de uma relação individual, a mediunidade fala de uma experiência também coletiva.

Pensar as relações das entidades com as famílias nos permite falar das intervenções “sobrenaturais” no cotidiano. Segundo Birman (2005), essas manifestações são um dos elementos que pautam a importância de analisar a agência destes seres, ou seja, seu poder de ação e produção de efeitos na vida das pessoas. Como afirma a autora, considerar a agência implica em conceder seriedade à “realidade tal como concebida pelos religiosos” (Birman 2005: 409), algo que nos permite ir além de uma explicação funcional ou meramente pragmática das experiências religiosas. Nesse sentido, a relação entre uma pessoa e suas entidades remete a uma difícil “gestão da autonomia”:

“O que ‘elas’, entidades, fazem para proteger seus filhos-de-santo não é algo que possa ser separado dos atributos que as singularizam – seus temperamentos, gostos, moralidades bem como as formas como se relacionam com a família da médium, como cônjuges e filhos, sem falar dos clientes. O que as entidades fazem é algo que a médium precisa obrigatoriamente levar em conta e que, como tudo na vida, precisa ser objeto de cuidados específicos” (Birman 2005: 411).[8]

Esses cuidados, como desejamos demonstrar, são importantes, não apenas na relação entre o “cavalo” e a entidade, mas também entre membros da mesma família e entre membros da família dos encantados. Com esse intuito, na sequência do texto, apresentamos quatro histórias – ou trechos de biografias – onde os encantados e as famílias de pais e mães-de-santo estão em interação. Elas nos permitem desdobrar considerações sobre cuidado e proteção; sobre continuidades e rupturas nas experiências marcadas, continuamente, pela presença dos encantados. Permitem pensar ainda nas formas variadas pelas quais esses seres se apresentam às pessoas, de acordo com o momento e o espaço em que se manifestam.

 

Dona Chica pegando menino

Pedro era um pai-de-santo jovem, de pouco mais de 30 anos, que vivia em um bairro próximo ao centro de Codó. Morava em uma casa simples, com ­diversos quartos que abrigavam sua mãe, sua irmã e sobrinhos. Dois quartos da casa eram destinados ao trabalho com as entidades e ao atendimento aos “clientes” que pro­­-

curavam seus serviços. Não era incomum haver uma circulação grande de ­pessoas pelo espaço doméstico, onde nós mesmas estivemos diversas vezes, assistindo novela com a mãe de Pedro, conversando, comendo ou esperando alguma ­consulta.

Os encantados sempre fizeram parte das histórias de Pedro e o acompanhavam desde que nasceu. Segundo nos contou, o seu parto foi feito por Dona Chica Baiana, entidade do seu avô, “em cima” dele – ou seja, nele incorporada. Segundo a mãe de Pedro, Dona Chica acompanhou todo o crescimento do menino, período em que pregava peças escondendo a criança pela casa para que não fosse encontrada. Ainda na infância, Pedro sentiu os primeiros sinais de mediunidade, quando via diversas coisas que o assustavam, o faziam gritar e chorar. Diante dessas manifestações, foi acompanhado pelo avô a partir dos sete anos de idade. Nesse momento, junto com um primo, passou a residir e ser criado na casa de Seu Gili – como era conhecido seu avô, um afamado brincante do tambor, padrinho de importantes casas de terecô em Codó.

Os dois meninos conviveram com a familiaridade com que o avô se relacionava com as tendas e as “brincadeiras”. Pedro se lembra de ouvir quando ele, depois de colocá-los para dormir, saía para dançar terecô. Recorda-se, ainda, de segui-lo, atrás do som dos tambores, para assistir os toques e giras. Nesse período, as crianças não podiam dançar nos salões e Pedro era reprimido pelos encantados do avô, que acreditavam que ele era muito novo para o tambor. Outros encantados, porém, logo percebiam sua mediunidade e o levavam para dentro do salão, onde participava das “giras”.

Pouco tempo depois, quando Pedro tinha nove anos, Seu Gili faleceu. Após sua morte, Chica Baiana, antes recebida pelo avô, “passou para a croa” de Pedro, ou seja, foi recebida pelo menino.

“Dona Chica Baiana está na vida da minha família há muitos anos. Acho que mais de 100 anos. Desde minha bisavó, mãe do meu avô, que chamava de Catita e que morreu com 98 anos. Mas, quando morreu, ela já tinha preparado meu avô para cuidar da missão dela na Terra. E quando eu tinha sete anos meu avô me preparou, mas acho que Dona Chica Baiana me acompanha desde o ventre da minha mãe, porque quando eu nasci, a parteira que me pegou foi Dona Chica Baiana, incorporada em meu avô” [Pedro, em 24 de setembro de 2011].

Aos dez anos, Pedro já trabalhava com os encantados, cuidando de pessoas da família. Ele é um dos casos – existem outros na cidade – de pessoas que não foram “feitas” ou preparadas por nenhum pai-de-santo (Sansi 2009). Segundo nos contou, ele foi “zelado” por uma pessoa de mais tempo na religião, mas nunca precisou de mestre, “porque já vem toda uma preparação de fundo” (forma que referia para dizer que recebeu uma herança). Em virtude disso, se referia à Dona Chica Baiana, encantada recebida do avô, como sua mãe-de-santo.

Durante nosso campo, a irmã de Pedro, que vivia na mesma casa que ele, teve um filho. Durante toda a gravidez, Dona Chica Baiana esteve rezando, benzendo e tratando com remédios a barriga da futura mãe. Segundo a própria Chica nos confessou – quando conversamos em uma sessão de atendimento em que ela estava incorporada em Pedro –, ela estava “segurando” a gravidez diante de uma ameaça de eclampsia. A irmã de Pedro conversava conosco sobre a gestação e a presença de Chica Baiana, quando disse:

“Durante a gravidez eu sempre via ela. À noite, eu dormindo, eu sentia ela, eu via ela. Eu perguntava para mamãe porque Dona Chica me visitava tanto à noite […] eu não sabia o porquê. Era porque eu estava correndo risco de vida e o meu nenê também. Quando eu entrei na sala de parto eu não estava tendo força, eu chamei em primeiro lugar por Deus e chamava por ela também…” [Eliane, em 24 de setembro de 2011].

As pessoas da família do pai-de-santo, que foram para a maternidade no dia do parto, viram a encantada – vestida de branco, de lenço na cabeça – entrar no espaço hospitalar e acompanhar todo o nascimento da criança. Ela estava presente em espírito e não incorporada, como nos explicaram.

 

As vidências de seu Coli Maneiro

Dona Regina e o pai-de-santo Zé Willan eram casados e viviam em um povoado do município de Lima Campos, chamado Morada Nova. O povoado era formado por algumas casas de taipa ou alvenaria e pela tenda Santa Bárbara. Seus moradores viviam da plantação de gêneros alimentícios e da criação de alguns animais. Muitos deles pertenciam à família extensa de Seu Zé Willan e de Dona Regina, alguns possuíam mediunidade e brincavam terecô. A família do pai-de-santo é do povoado de Santo Antônio dos Pretos, na zona rural de Codó, o mesmo local de origem do avô de Pedro, espaço considerado de “encantaria forte”, ou mesmo como “terra de encantaria”.

A história do casal tem os encantados e os festejos de santo como elementos centrais. Quando estava grávida de Regina, sua mãe teve problemas com a gestação e o médico previu os riscos de morte dela e da criança. A avó materna, chorando por causa do prognóstico, encontrou o encantado Coli Maneiro, irmão de Légua Boji (“em cima” de um senhor antigo e muito conhecido, hoje falecido), em uma festa de tambor na casa de Antoninha (casa onde o avô de Pedro era padrinho). Segundo conta Regina, Coli conversou com sua avó:

“Aí Seu Coli disse pra ela [a avó], que ela [a mãe] não ia morrer, que eu ia nascer e que eu ia ser dele. Assim a mamãe conta que eu ia ser dele. Aí eu acredito que eu ia ser mesmo, porque o mundo dá muitas voltas, que hoje eu estou aqui, cuidando dele […] Mas quem ajeitou tudo, quem fez todo o processo para que eu nascesse, foi ele” [Regina, em 25 de setembro de 2011].

Correu tudo bem no parto de Regina e ela cresceu sem apresentar sinais de mediunidade, participando dos festejos de tambor apenas nos dias em que havia “baile dançante”, para se divertir com os amigos e namorar. Seu pai e sua mãe, contudo, dançavam terecô e cozinhavam em uma tenda que tinha um tamborzeiro muito afamado, conhecido como Zé Willan. Em 1992, impressionada com as falas sobre a notoriedade do músico, Regina acompanhou os pais em uma festa nessa tenda, para ver de quem se tratava. Quatro anos depois, os dois estavam casados.

Seu Zé Willan, por sua vez, nasceu no período de um festejo de santo, em um parto acompanhado por algumas entidades. Ele recebeu um encantado de herança do seu pai, Coli Maneiro – o mesmo encantado que cuidara do nascimento de Regina e que havia dito à sua avó que a criança da gestação de sua filha viveria e “seria dele”, pois estava destinada a cuidar dele no futuro. Como se casou com um pai-de-santo que recebe o encantado, Regina acredita que seu casamento é resultado deste enredo que envolve pessoas e entidades. Anos depois, Regina também manifestou mediunidade e passou a receber o encantado de sua mãe, Ricardo Légua. Ricardo é filho de Légua Boji e, portanto, sobrinho de Coli Maneiro.

 

As ajudas de Supriano

Café começou a “radiar no santo” ainda criança, quando via coisas que lhe pareciam dedos e ratos nas paredes de casa. Seu primeiro sentimento era de medo, mas junto com sua mãe, também médium, aprendeu a ler esses sinais como encantaria e montou um pequeno altar – uma “mesinha” – onde fazia pedidos e promessas para Nossa Senhora das Candeias, ato que o ajudou a se sentir melhor. Aos 12 anos de idade, ele sumiu por cinco dias e foi encontrado pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas, encantado que era recebido por sua mãe. Café estava amarrado e dormindo embaixo de uma árvore, com as calças dobradas e com o corpo coberto de fitas. Algumas pessoas pensavam que ele já estava morto, mas ao ser levado para casa e posto em frente ao altar, houve uma manifestação de seu encantado, Supriano, que disse ser “um castigo para ele aprender a obedecer aos guias dele”. Se, com a manifestação mais frequente dos encantados, ele pode contar com a ajuda da sua mãe, que o apoiava e ajudava com as questões relativas ao terecô, seu pai, por sua vez, não aceitou a relação com as entidades e, por esse motivo acabou se afastando, tanto dele quanto de sua mãe.

Ainda jovem, Café era muito vaidoso e gostava de jogar bola, mas foi avisado pelas entidades que não poderia mais fazê-lo. Diante dos avisos dos encantados, ele conseguiu se afastar de determinadas “vaidades”, menos do futebol. Por isso, segundo nos contou, Supriano quebrou sua perna. Ele ficou muito tempo se recuperando desse acidente e se lembra de se sentir plenamente curado apenas no dia que, vendo uma procissão de uma tenda no seu bairro, foi tomado por um encantado que o colocou entre as pessoas que seguiam o andor. Quando retomou a consciência, já sentia que sua perna tinha voltado ao normal.

Nesse momento, Café começou a trabalhar providenciando objetos – como cachimbo, fumo e velas – para as atividades com as entidades. Pelo convite de um amigo, foi à Tenda Espírita de Umbanda Rainha Iemanjá, a maior tenda da cidade, que pertence ao Mestre Bita do Barão. Lá foi recebido pela encantada do velho pai-de-santo, que confirmou que sua presença era esperada no espaço. Foi nesse local que Café conheceu uma brincante da casa, Deusimar, que se tornou sua esposa. Para poder sair com ela, pensou ser mais prudente pedir autorização a Mestre Bita.

Após um tempo de namoro, Café e Deusimar foram morar juntos em uma casa alugada. Apesar dos trabalhos realizados com os encantados, ele não conseguia suprir todas as despesas domésticas. Foi quando Supriano lhe mandou um aviso, comunicando que em sete dias receberia uma “herança” por ele enviada (a herança era um conselho, uma indicação). Nesses sete dias, Café e a esposa passaram por diversas privações, pois estavam com pouco dinheiro, até que lhes foi apresentado um terreno para compra. Café foi conhecer o lugar e achou o chão muito ruim, inclinado e com muitas pedras, mas seu encantado confirmou que deveria ir viver no local. O terreno custava 1200 reais e, ao negociar o pagamento com a proprietária, Café combinou pagá-lo em seis parcelas de 200 reais, dinheiro conseguido a partir do trabalho com a entidade. No espaço, na parte da frente do terreno, construiu uma casa. Nos fundos, a tenda de umbanda.

 

A negociação com Duardo

Duardo Légua era um dos encantados recebidos por uma mãe-de-santo chamada Dona Luizinha. Não era incomum que, após as giras de tambor em sua pequena tenda, ele permanecesse para conversar conosco. As pessoas que frequentavam o local – as filhas-de-santo, as irmãs biológicas e alguns vizinhos de Luiza – já eram com ele bastante familiarizadas. Quando se apresentava, ele lembrava que seu nome era Duardo e não Eduardo, e cantava os pontos que falavam sobre si. Sempre chegava brincando, com uma postura que indicava o consumo de bebida alcoólica. Nas suas aparições, era corriqueiro informarem que ele gostava de beber e que, antigamente, “bebia em cima” de Luiza, ou seja, quando estava nela incorporado.

Esses episódios eram contados com alguma tensão, pois beber “em” Luiza não era bem visto por seus familiares. Certa vez, como nos contaram posteriormente, o encantado deixou a mãe-de-santo bêbada e deitada no chão para dar uma resposta ao pai dela, que teria dito que nenhum espírito poderia deixar uma pessoa bêbada se ela não bebia. Nesse dia, Duardo Légua desceu para trabalhar e, após finalizar a atividade, começou a beber tanto que, quando ele “subiu”, a mãe-de-santo ficou muito mal, sem poder se levantar. Tal atitude do encantado deixou o pai de Luiza muito triste.

Duardo, quando comentou a história, disse que o fizera para revelar seu poder ao pai de Luiza, para mostrar a força da encantaria. Para ele, os familiares da mãe-de-santo haviam duvidado de sua mediunidade, o que a levou a sofrer durante sete anos quando, incompreendida, teve seu equilíbrio emocional abalado. Apesar de ter dificuldades de relacionamento com parte da família da mãe-de-santo, o encantado conversava com seus parentes e negociava determinados aspectos de sua postura, como, por exemplo, deixar de beber quando estava incorporado, por causa do pedido do filho de Luiza:

“Agora eu larguei de fazer… Ela tem um filho que chama, o nome dele é Francisco do Nascimento, mas ele é conhecido como Chiquinho! Eu chego na Dona Luiza como eu cheguei agora e eu lançava cachaça pra todo mundo ver […] Aí, um dia, ele [o filho de Luiza] chegou assim: ‘Você que é Seu Duardo Légua?’ Eu disse: ‘Eu mesmo, meu filho, Duardinho aqui!’ ele disse assim: ‘Eu vou lhe fazer só um pedido! Nunca mais lance [beba] em cima de minha mãe!’ Eu digo: ‘Porquê, meu filho? [Chiquinho:] ‘Porque o povo diz que ela bebe cachaça e fica vomitando bêbada, e eu nunca vi minha mãe bebendo […]’. Eu disse assim: ‘Meu filho, você é uma criança, mas eu vou prometer pra você, eu, Duardinho Légua Boji Buá, uma banda de Deus outra do Diabo, um lado faz bem outro faz mal, nunca dei nó pra ninguém dessa terra desatar. Eu levo de caceta ou de saco de fubá, se eu não achar de fubá eu levo de areia, mas só levo é cheio. Mas eu vou te dizer bem aqui, nunca mais eu lanço em cima da tua mãe, nunca mais!’” [Duardo “em cima” de Luiza, após uma gira em sua casa, em julho de 2015].

Nesse dia, Duardo negociou com Chiquinho um dos traços do seu comportamento e marca de sua família, o consumo de bebida alcoólica. Foi quando passou a não beber mais quando era recebido por Luiza. Isso não impediu que já chegasse bêbado, como alegremente nos contou algumas vezes. A alegria, o tom provocativo e a animação eram características suas quando vinha conversar no final das pequenas giras da tenda. Quando se fazia presente na noite da maior festa da casa, entretanto, se comportava de forma diferente. Em 2015, apareceu sério e ficou, a maior parte do tempo, sentado na cadeira ao lado do altar. Levantou-se algumas vezes para dançar, mas não fez brincadeiras com as pessoas. Após o episódio, ele foi indagado por um dos vizinhos da casa, sobre sua seriedade. O encantado respondeu que era brincalhão e bêbado apenas quando estava com as pessoas mais próximas e que, em outros lugares ou com desconhecidos, ele não se comportava dessa forma. Nesses momentos, precisava estar atento e proteger o espaço, pois a circulação de pessoas era intensa.

 

Tecendo relações

As quatro histórias apresentadas têm como personagens pessoas e encantados que se conhecem e que convivem em tendas e rituais, mas também em diversos outros contextos, na medida em que não há uma delimitação clara ou fronteiras marcadas entre o que é considerado religioso e o que não é. Os encantados, portanto, impactam no parentesco, na saúde, na construção das casas e das tendas. Igualmente, as histórias mostram que receber um encantado tem uma dimensão individual (na constituição da pessoa e no compartilhar do corpo) e outra coletiva, porque a mediunidade influencia muitas das relações que alguém vive em sua vida, como, por exemplo, com os familiares, os amigos e os vizinhos.

Como afirmamos no início do texto, essas histórias, em nossa pesquisa sobre o terecô, são bastante recorrentes. Para um brincante não há nada extraordinário em um sinal dado por um encantado ou em uma entidade recebida como herança de algum membro da família. Como lembra Cardoso (2007), ao contar histórias sobre a ação do povo da rua na macumba carioca, esses são contextos constituídos também pelas entidades, sem as quais, portanto, a vida das pessoas não seria dotada de sentido. Para além de um contato e de um engajamento no âmbito do estritamente religioso, portanto, as relações com os encantados constituem aspectos práticos, alianças para o enfrentamento das dificuldades – como se torna evidente, por exemplo, na aquisição do terreno de Café – e das situações surgidas na vida cotidiana, como indicam, para outros contextos, Stefania Capone (2009) e Véronique Boyer-Araujo (1993). É a partir dessas histórias – onde os encantados preveem o futuro, definem caminhos, cuidam, acompanham e conversam com as pessoas – que gostaríamos de falar sobre questões relativas à família, cuidado e agência.

 

Família, cuidado e companhia

Os encantados interagem com famílias: foi à avó de Regina que Coli Maneiro comunicou suas previsões; foi o filho de Luiza que negociou com Duardo Légua o consumo de bebida alcoólica; foi a Café e sua esposa que Supriano avisou sobre a escolha do terreno da casa; foi do avô que Pedro recebeu Chica Baiana, outrora sua parteira. As entidades reforçam laços entre determinadas pessoas e traçam conexões entre gerações, na medida em que, “não apenas adensam relações que já são fortes, como marcam positivamente vínculos cuja importância cambia ao longo da história de vida ou que estão em tensão com outros laços igualmente significativos para os sujeitos” (Rabelo 2008: 193). A vinda e também a passagem das entidades marcam, portanto, determinadas conexões familiares e chamam atenção para aspectos não lembrados ou não evidentes das biografias, como também indicou Clara Flaksman (2016b), ao analisar as relações entre o parentesco de sangue e o parentesco de santo no candomblé.

A presença dos encantados impacta a vida das pessoas, acionando diversas temporalidades. No momento em que se apresentam, as entidades trazem transformações com as quais os sujeitos precisam lidar – elas modificam, por exemplo, formas de educação e de coabitação, como na história de Pedro que, ao ter sua mediunidade reconhecida, vai morar na casa do avô. Ao mesmo tempo, as entidades se projetam para o futuro e induzem as pessoas que as recebem a fazer o mesmo, como aconteceu com Regina e a tarefa de cuidar de Coli Maneiro quando se tornasse adulta. Igualmente, reativam conexões do passado, pois podem ser recebidas como herança diante da situação de morte de um familiar, o que aciona uma leitura de momentos pregressos na busca de sinais que auxiliem a compreender a transmissão da entidade. Essas diferentes temporalidades estão entretecidas na trajetória dos sujeitos: voltando a Pedro, vemos que Chica Baiana conviveu e convive com diferentes gerações familiares, participando de importantes momentos – aniversários, casamentos, nascimentos. Faz, ainda, parte dos planos para o futuro, quando se especula qual das crianças receberá a encantada depois da morte do pai-de-santo.[9] A herança, como pontua Rabelo (2008, 2014) para o caso do candomblé nagô em Salvador, carrega tanto a ideia de uma dívida contraída com a entidade, quanto a perspectiva do cuidado. Desta forma, existe a “formulação de que a afinidade com o candomblé e com os orixás não é simplesmente uma característica da pessoa singular, mas um traço de sua família, que a distingue e singulariza enquanto portadora de uma obrigação herdada” (Rabelo 2008: 192).

Além de se relacionarem com familiares e conectarem pessoas nesse âmbito, os encantados ainda são vistos como propulsores da inclusão de novas pessoas entre os parentes, ou seja, são responsáveis por expandir as famílias.[10] O aumento pode ter como vetor a relação de afinidade – quando entidades aproximam casais, como Café e a esposa, ou Zé Willan e Regina. Uma segunda possibilidade é o compadrio, quando podem se tornar padrinhos ou madrinhas de crianças. Pedro acionou ainda outra possibilidade de inclusão, em uma conversa que tivemos, quando proferiu um agradecimento aos encantados que recebia, não apenas por cuidarem dele, mas de todos “aqueles que fazem parte da casa, que chega como cliente, mas termina fazendo parte da família”. Sua irmã tinha nos dito algo semelhante havia pouco, ao nos contar que Dona Chica Baiana, através dos atendimentos, possibilitava a convivência intensa de alguns “clientes” com a família do pai-de-santo – o que os fazia continuar frequentando a casa depois de encerrarem seus tratamentos.

É possível, portanto, fazer parentes, ou seja, incluir pessoas na família. O que faz um parente, nesse sentido, é compartilhar cuidados e companhia, pois se espera que as pessoas de uma mesma família – vivendo ou não próximas, sendo ou não consanguíneas – cuidem umas das outras, lembrem-se dos seus membros e façam companhia uns aos outros. Como em tantos outros contextos (Sahlins 2013; Pina-Cabral e Silva 2013), cuidar é um ato fundamental no cotidiano das pessoas com as quais convivemos em Codó, seja para vigiar as crianças, para a ida aos serviços públicos, no pagamento de contas, nas trocas de alimentos para subsistência das casas ou nos diversos encaminhamentos nas situações de doença e de morte.

É possível ainda cuidar a partir do cultivo da lembrança, que acontece na presença e na ausência das pessoas (vivas e mortas) e dos encantados. Cuidar a partir do lembrar-se tem a ver com fazer companhia, falar sobre quem está longe, reconhecer familiares – mesmo sem vê-los há muito tempo –, telefonar, mandar recados e notícias. Pode-se ficar anos sem informações de algum primo ou tio, mas, em respeito às memórias dos períodos vividos em proximidade ou do encontro em eventos familiares, a casa é aberta para recebê-los, recursos financeiros são compartilhados, doentes recebem cuidado e acompanhamento. As relações se desdobram no tempo porque são cultivadas na lembrança, o que ativa a presença das pessoas.

Também pudemos perceber algumas medidas de cuidado entre as famílias dos encantados. Muitas delas nos pareceram remeter ao âmbito do encontro entre as entidades, ocasionado, em grande parte, por uma dinâmica de visitas que conecta diferentes tendas em virtude da realização de suas festas. ­Leguinha, encantado jovem da família de Légua Boji Buá da Trindade, certa vez (em janeiro de 2016) nos contou que iria para um terecô na casa de Folha Seca, em Bacabal (outra cidade do Maranhão), pois o encantado era de sua família. Disse-nos ainda que, em suas andanças, havia encontrado Teresa Légua e que tinham conversado durante muito tempo. Ela o havia presenteado, certa vez, com um chapéu – um dos acessórios mais utilizados pelos membros da família de Légua. Ricardo Légua, incorporado em Regina, afirmou que ­aprendeu a beber com seu Rei de Mina, filho de seu tio Coli Maneiro e, portanto, seu primo; e Sebastiãozinho, encantado criança recebido por Luiza, frequentemente fazia referências a Tio Duardo, quando comentava sobre as histórias entre eles. Aprendizados, companhia, presentes e visitas marcam, portanto, a relação entre os encantados de uma mesma família.

Relações de cuidado ainda marcam a relação entre um pai/mãe e seus filhos-de-santo, pois é esperado que um mestre cuide de seus filhos, organizando suas correntes, preparando-os para ficarem firmes quando receberem uma entidade, instruindo-os no cumprimento de suas obrigações.[11] Aqueles que não o fazem são vistos com reprovação pelos demais chefes de tenda, que percebem transes violentos e a falta de controle dos médiuns em relação ao seu corpo. Em certo sentido, o contrário também é válido: filhos-de-santo são vistos como cuidando dos seus pais-de-santo na medida em que cumprem bem suas obrigações e rezas, auxiliam na manutenção das atividades das tendas, se responsabilizam por festejos e ajudam nas tarefas de limpeza do espaço físico onde são feitas as giras de tambor.

A mediunidade significa, portanto, um aumento das relações sociais e mesmo da família, ao incluir novas pessoas e também os encantados nas experiências pautadas por princípios como o cuidado e a lembrança. Entretanto, “ter encantado” fala ainda sobre rupturas, quebras de vínculo ou conflitos. Enquanto recebeu apoio da mãe, Café viu seu pai se afastar em virtude das manifestações dos encantados, pois não concordava com o trabalho com as entidades. Duardo Légua desconfiava do pai de Luiza porque, por muitos anos, os membros de sua família não compreenderam ou acreditaram nas manifestações dos encantados em sua vida, tratando-a com represálias. Como na história de Luiza e Café, quando os terecozeiros contam sobre suas trajetórias e informam sobre as primeiras manifestações das entidades, não é estranho ouvir sobre parentes que se distanciaram porque não compreendiam, tinham receio ou não aceitavam a “vida no santo”. Ou seja, enquanto existem, nessas narrativas, parentes que acionam diversos espaços e serviços para tratar da mediunidade (levando as pessoas a médicos, rezadores, pais e mães-de-santo), existem ainda aqueles que deixam de investir nos laços familiares, pois se recusam a aceitar a presença das entidades.

 

Capacidades e agência

Como indicamos desde o início do texto, os encantados também se organizam em famílias. As entidades constituem parentes de forma análoga às famílias dos seres humanos, onde existe parentesco consanguíneo e por afinidade – quando, nos termos locais, existe convivência, cuidado e “criação”. Ouvimos sobre isso em um encontro entre Coli Maneiro, Ricardo Légua, Rei de Mina e Caboclo Cearense. Nesse dia, Ricardo Légua nos disse:

“Eu, Ricardo Légua Ferreira da Trindade Boji Buá, sou sobrinho de Coli Maneiro Ferreira da Trindade. Coli Maneiro é irmão de meu pai. Então é assim, nós é parente como vocês aqui na terra do pecado, não tem parente de sangue? Pois eu mais Coli Maneiro é parente de sangue. É assim, não é que eu respeito menos ele ou que ele me respeita menos, é assim, ele é meu tio” [Ricardo Légua “em” Dona Regina, agosto de 2011].

Segundo Ricardo Légua, há similaridades entre a forma como se organiza o parentesco no “mundo do pecado” (entre as pessoas) e na encantaria, onde existem tanto os laços de sangue como os de consideração. Nesse mesmo dia, ele ainda contou que Rei de Mina, além de guia do salão localizado na Morada Nova (local do terreiro onde vinham dançar naquele dia), era filho de Coli Maneiro (logo, sobrinho de Légua Boji) e foi com ele que aprendeu a consumir bebida alcoólica. Caboclo Cearense, que também estava presente, segundo Ricardo, “é meu tio, é primo de Coli Maneiro e de meu pai Légua Boji Buá. Nós somos de uma descendência só, de uma família” [Ricardo Légua “em” Dona Regina, agosto de 2011].

Ainda de forma análoga à noção de família perceptível entre nossos interlocutores em Codó, podemos encontrar, também entre os encantados, filhos de criação ou filhos adotivos. Em uma conversa, a encantada Lionesa Légua (“em cima” de Pedro) nos disse que sua família tem 21 filhos de sangue e 375 filhos adotivos, sendo ela filha de sangue.[12] No entender de Dona Luizinha, em janeiro de 2016, a família de Légua é grande porque Légua Boji acolhia muita gente. Segundo ela, quando o encantado via uma entidade fraca, ele a pegava para cuidar e ela se tornava um Légua. A mãe-de-santo acreditava que Seu Légua era uma pessoa de coração bom, justamente porque recebia em sua família muitos encantados diferentes, fazendo com que se tornassem parentes.

Nas histórias que contamos, buscamos mostrar como os encantados podem agir na vida das pessoas – ou seja, como os terecozeiros narravam a participação e os efeitos desses seres em suas vidas, especialmente na forma como iam sendo, continuamente, configuradas suas famílias. Se as famílias das pessoas não são definidas a priori, mas diminuem-se e expandem-se na dinâmica da vida – podendo haver rompimentos ou a inclusão de novos membros –, também a dos encantados não é imutável ou homogênea. Por um lado, as entidades que a compõem apresentam traços em comum, mas também diferenças. Quando os encantados da família de Légua chegam a uma tenda, é costumeiro fazerem menção a algumas características que compartilham entre si, como a relação com a mata, espaço (tangível e intangível) muito presente nas músicas e nas suas histórias; a lida com animais, como os bois, com os quais esses encantados têm relação constante, pois são tidos como valentes vaqueiros; o uso de chapéus que remetem ao campo e às atividades a ele associadas (sendo os mais comuns os de veludo ou couro); e o gosto pela bebida alcoólica. Podemos ver algumas dessas características no ponto que nomeia esse artigo:

“A família de Légua está toda na eira

A família de Légua está toda na eira

Bebendo cachaça e quebrando barreira

Bebendo cachaça e fazendo poeira”

Ou ainda em pontos de apresentação que designam conjuntamente os encantados:

“Nos filhos de Légua não se toca nem com o dedo

Eu sou filho de Légua

Légua não é brinquedo”

Entretanto, os encantados de Légua apresentam diferenças entre si, como o conhecimento da escrita ou outras habilidades, como a cura, o desejo por festas (quando são chamados de “farristas”), o trabalho com conselhos ou benzimentos. Cada encantado possui sua própria história – ou mesmo diversas histórias –, conhecida por nós sempre parcialmente, por intermédio de conversas com ele em uma tenda, pelos pontos cantados ou por sua manifestação em sonhos. Para falar sobre as versões variadas que compõem as narrativas sobre um encantado, remetemos àquilo que, em diferentes momentos do nosso campo, ouvimos sobre Légua Boji Buá (chamado ainda de Seu Légua, Velho Légua ou Pai Légua). Seu Zé Preto, um pai-de-santo da cidade, nos contou que Légua é filho de Pedro Angasso e é casado com Rosa Rainha, entidades consideradas da nobreza.

Por sua vez, Supriano, encantado de Légua, recebido pelo pai-de-santo Café, nos disse que Seu Légua era um soldado que lutava no exército de Rei Salomão, junto com Rei Sebastião. Seu Légua e Rei Sebastião foram incumbidos de uma missão, na qual teriam que matar todas as pessoas, inclusive as crianças. Por não aceitarem o desígnio, Rei Salomão ordenou que fossem mortos. Légua Boji era Ogum Militar e Rei Sebastião era Ogum Xorokê. Rei Sebastião foi amarrado e flechado em baixo de uma laranjeira, de onde sumiu aparecendo na Ilha dos Lençóis (conhecido espaço de encantaria no Maranhão). Légua Boji chegou a ser enterrado, mas certo dia, quando Rei Salomão passou pelo seu túmulo, o encantado se manifestou por meio de uma grande chama de fogo, momento em que escolheu Codó como espaço de referência para sua encantaria. Segundo a narrativa de Supriano, o pai da família é Seu Légua e a mãe é Bárbara Soeira, porque ela é a chefe da encantaria e a mãe de todos os encantados. Já em uma outra versão da origem do patriarca dos Légua, Dona Chica Baiana, encantada da família de Surrupira (Ferretti 2000), nos disse que Légua era um escravo que veio da África. Nessa condição, sempre que podia, tentava fugir entrando na mata. Ele tinha muitos filhos, inclusive adotivos, pois, segundo a encantada, se “caiu na encantaria e foi ‘pego’ por ele, já é um Légua”.[13]

O fato de existirem várias versões de relatos sobre a origem de um encantado não é exclusivo à história de Légua Boji Buá. Além disso, era comum ouvir, em campo, que nem sempre é possível reconhecer um encantado ou prever como ele aparece, porque os encantados “têm a capacidade de se apresentar de formas diferentes”. Essa habilidade – que pode ser pensada como uma ontologia múltipla (Goldman 2015), ou ainda como uma identidade não substancializada (Dos Anjos 2006) – é evidente em um dos pontos de apresentação de Duardo Légua, que registrámos na casa de Dona Luizinha:

“Na minha aldeia eu sou um índio

Na minha eira eu sou um caboclo

Na minha mesa eu sou doutor

Na minha gira eu sou caboclo girador

Mas o meu nome é Duardo Légua

Duardo Légua de Avanissê!”

Essa música chama atenção para as múltiplas possibilidades de apresentação de um encantado, ao destacar as diferentes funções às quais ele pode estar relacionado em cada uma das casas/das situações nas quais se faz presente. É por isso que duas pessoas podem trabalhar com a mesma entidade, mas ela se comportar de forma diversa de acordo com o brincante que a recebe. A agência das entidades na vida de uma pessoa – e nas suas tramas familiares – depende, portanto, do espaço em que é recebida e das negociações que realiza quando interage em cada contexto. Essa capacidade dos encantados também evidencia o fato de que, embora possamos aproximar encantados e pessoas no que tange a certas lógicas familiares, como o fizemos neste texto, é preciso lembrar que existem distinções entre esses seres, especialmente em relação às habilidades e potencialidades das entidades.

A capacidade de se apresentar de formas diferentes e a possibilidade de se aproximar e participar de uma família se soma, ainda, a outro elemento que também indica a riqueza das experiências entre encantados e pessoas. Como o terecô, sob diversas formas, se relaciona com a umbanda e com o candomblé em Codó, o panteão de entidades de uma casa pode ser bastante diverso. A coexistência de diferentes seres nas trajetórias de religiosos remete a algo percebido também por Clara Flaksman, ao afirmar sobre “o caráter agregador do candomblé”, que “engloba e acrescenta a seus princípios as ideias mais adequadas às suas necessidades, que desse modo, se incorporam a seu arsenal de recursos” (Flaksman 2016b: 19).[14]

 

Considerações finais

Em Codó, entre as pessoas com as quais convivemos, conversas sérias, brincadeiras e narrativas sobre percursos e biografias traziam interações entre pessoas e encantados como elementos constituintes da vida. Nesse texto retomamos quatro dessas histórias nas quais humanos e entidades se relacionam no âmbito familiar. Essas considerações – sobre o nascimento de novos membros, heranças em momentos de morte, arranjos matrimoniais, decisões sobre onde morar e como se portar – falam de um contexto onde a noção de família é maleável ou flexível. Intentamos mostrar, nesse sentido, o entendimento de que é possível fazer parentes e incluir novos membros na família, na medida em que se compartilham formas de cuidado e companhia. Não compreender esses princípios pode levar à diminuição da família, pois, enquanto coletivo, ela se constitui pelas interações entre seus membros, ainda que à distância, com raros encontros ou mesmo após a morte. Como dissemos, nas histórias em torno da mediunidade, se expandiram as redes de relação. Entretanto, também ocorreram rupturas e afastamentos, dado o fato de que as entidades convivem com médiuns, mas também com seus familiares.

A partir das experiências de Luizinha, Pedro, Café, Zé Willan e Regina podemos perceber efeitos e impactos da presença dos encantados, que, diversas vezes, imprimem seus desígnios sobre as trajetórias das pessoas. Igualmente, como fica evidente na relação entre Luiza e Duardo Légua, os encantados se transformam à medida que se constrói sua relação com os brincantes. Talvez possamos dizer o mesmo para questões relativas à família, pois incluir encantados em redes de parentesco é uma ação humana sobre a encantaria.

Além de uma noção de família que se baseia tanto no sangue quanto nas formas de convivência, as considerações apresentadas mostram, ainda, uma concepção de pessoa percebida como uma rede de relações que inclui humanos e encantados. Quem é uma pessoa e os caminhos que toma sua vida dependem não apenas de si, mas de entidades e de heranças relacionais que a precedem. Também por isso as pessoas estão sempre acompanhadas – em presença ou em pensamento – pelos seus familiares, suas entidades e seus mortos. É importante ter com quem contar diante da “precisão” (das dificuldades) e das imprecisões da vida, na medida em que se considera a importância da companhia e do cuidado. As situações que contamos são como tramas nas quais seres diversos têm suas histórias tecidas, cruzadas, constituídas em conjunto – ao ponto de não ser possível separar os fios sem perder aquilo que formam.

 

Bibliografía

AHLERT, Martina, 2013, Cidade Relicário: Uma Etnografia sobre Terecô, “Precisão” e Encantaria em Codó (MA). Brasília, Universidade de Brasília, tese de doutorado.         [ Links ]

AHLERT, Martina, 2016, “Carregado em saia de encantado: transformação e pessoa no terecô de Codó (Maranhão, Brasil)”, Etnográfica, 20 (2): 275-294, disponível em https://journals.openedition.org/etnografica/4276 (última consulta em junho de 2019).         [ Links ]

BARBOSA, Viviane de Oliveira, 2008, “Maridos da terra e maridos do fundo: gênero, imaginário e sensibilidade no tambor de mina”, apresentado no X Simpósio da ABHR, disponível em http://www.abhr.org.br/wp-content/uploads/2008/12/barbosa-viviane.pdf (última consulta em junho de 2019).         [ Links ]

BASTIDE, Roger, 2000, Le candomblé de Bahia (rite nagô). Paris, Plon.         [ Links ]

BIRMAN, Patrícia, 2005, “Transas e transes: sexo e gênero nos cultos afro-brasileiros, um sobrevoo”, Estudos Feministas, 13 (2): 403-414.         [ Links ]

BOYER-ARAUJO, Véronique, 1993, Femmes et cultes de possession au Brésil: les compagnons invisibles. Paris, L’Harmattan.         [ Links ]

CAPONE, Stefania, 2009, A Busca da África no Candomblé: Tradição e Poder no Brasil. Rio de Janeiro, Contracapa/Pallas.         [ Links ]

CARDOSO, Vânia, 2007, “Narrar o mundo: estórias do ‘povo da rua’ e a narração do imprevisível”, Mana, 13 (2): 317-345.         [ Links ]

CUNHA, Ana Stela de Almeida, 2013, “João da Mata family: Pajé dreams, chants and social life”, em Ruy Blanes e Diana Espírito Santo (orgs.), The Social Life of Spirits. Chicago, The University of Chicago Press, 123-158.         [ Links ]

DOS ANJOS, José Carlos Gomes, 2006, No Território da Linha Cruzada: A Cosmopolítica Afro-Brasileira. Porto Alegre, Editora da UFRGS/Fundação Cultural Palmares.         [ Links ]

FERRETTI, Mundicarmo, 2000, Desceu na Guma: O Caboclo no Tambor de Mina em um Terreiro de São Luís – a Casa Fanti-Ashanti. São Luís, Edufma.         [ Links ]

FLAKSMAN, Clara, 2016a, “Relações e narrativas: o enredo no candomblé da Bahia”, Religião e Sociedade, 36 (1): 13-33.         [ Links ]

FLAKSMAN, Clara, 2016b, “ ‘De sangue’ e ‘de santo’: o parentesco no candomblé”, apresentado no 40.º Encontro Anual da ANPOCS, disponível em http://www.anpocs.com/index.php/encontros/papers/40-encontro-anual-da-anpocs/st-10/st01-8/10132-de-sangue-e-de-santo-o-parentesco-no-candomble/file (última consulta em junho de 2019).         [ Links ]

FONSECA, Claudia, 1995, Caminhos da Adoção. São Paulo, Cortez.         [ Links ]

GODOI, Emília Pietrafesa de, 2009, “Reciprocidade e circulação de crianças entre camponeses do sertão”, em E. P. de Godoi, M. A. de Menezes e R. A. Marin (orgs.), Diversidade do Campesinato: Expressões e Categorias – Estratégias de Reprodução Social. São Paulo, Editora da UNESP, 289-302.         [ Links ]

GOLDMAN, Marcio, 1984, A Possessão e a Construção Ritual da Pessoa no Candomblé. Rio de Janeiro, Museu Nacional – Universidade Federal do Rio de Janeiro, tese de doutorado.         [ Links ]

GOLDMAN, Marcio, 1987, “A construção ritual da pessoa: a possessão no Candomblé”, em C. E. M. Moura (org.), Candomblé: Desvendando Identidades. São Paulo, EMW Editores, 87-119.         [ Links ]

GOLDMAN, Marcio, 2012, “O dom e a iniciação revisitados: o dado e o feito em religiões de matriz africana no Brasil”, Mana, 18 (2): 269-288.         [ Links ]

GOLDMAN, Marcio, 2015, “ ‘Quinhentos anos de contato’: por uma teoria etnográfica de (contra)mestiçagem”, Mana, 21 (3): 641-659, disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93132015000300641 (última consulta em junho de 2019).         [ Links ]

LÉVY-BRUHL, Lucien, 2008 [1922], A Mentalidade Primitiva. São Paulo, Paulus.         [ Links ]

MAUSS, Marcel, 2003 [1923], Sociologia e Antropologia. São Paulo, Cosac Naify.         [ Links ]

OLIVEIRA, Jorge Itaci de, 1989, Orixás e Voduns nos Terreiros de Mina. São Luís, VCR Produções e Publicidades.         [ Links ]

PINA-CABRAL, João de, e Vanda Aparecida da SILVA, 2013, Gente Livre: Consideração e Pessoa no Baixo Sul da Bahia. São Paulo, Terceiro Nome.         [ Links ]

PRANDI, José Reginaldo, e Patrícia Ricardo de SOUZA, 2004, “Encantaria de mina em São Paulo”, em J. R. Prandi (org.), Encantaria Brasileira: O Livro dos Mestres, Caboclos e Encantados. Rio de Janeiro, Editora Pallas, 216-280.         [ Links ]

RABELO, Miriam, 2008, “Entre a casa e a roça: trajetórias de socialização no candomblé de habitantes de bairros populares de Salvador”, Religião e Sociedade, 28 (1): 176-205.         [ Links ]

RABELO, Miriam, 2014, Enredos, Feituras e Cuidados: Dimensões da Vida e da Convivência no Candomblé. Salvador, EdUFBA.         [ Links ]

SAHLINS, Marshall, 2013, What Kinship Is… and Is Not. Chicago, The University of Chicago Press.         [ Links ]

SANSI, Roger, 2009, “Dom e iniciação nas religiões afro-brasileiras”, Análise Social, 44 (190): 139-160.         [ Links ]

SERRA, Ordep José Trindade, 1978, Na Trilha das Crianças: Os Erês num Terreiro Angola. Brasília, Universidade de Brasília, dissertação de mestrado.         [ Links ]

 

Receção da versão original / Original version         2017 / 05 / 03

Receção da versão revista / Revised version           2018 / 09 / 16

Aceitação / Accepted           2019 / 01 / 29

 

Notas

[1]             Martina começou sua pesquisa sobre as relações entre pessoas e encantados em 2010, ainda no âmbito de seu doutorado em Antropologia Social na Universidade de Brasília (Ahlert 2013). Em 2014 tornou-se professora da Universidade Federal do Maranhão e teve a oportunidade de acompanhar Conceição, que, desde 2015, com auxílio da Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Estado do Maranhão (Fapema) e posteriormente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), pesquisa o terecô em Codó.

[2]             Estima-se que existam cerca de 250 tendas (chamadas ainda de terreiros ou salões) de religiões afro-brasileiras em Codó, além de quartos e mesinhas (pequenos altares) dedicados às entidades. Os dados são da Secretaria Municipal de Cultura e Igualdade Racial.

[3]             A possibilidade de uma riqueza classificatória na relação entre as diferentes modalidades de religiões afro-brasileiras foi notada por diversos pesquisadores. Stefania Capone, por exemplo, afirma que “Os complexos arranjos da ortodoxia do candomblé na prática ritual indicam que os cultos afro-brasileiros não são nem construções religiosas cristalizadas e imóveis, nem entidades que se excluem mutuamente” (Capone 2009: 28).

[4]             Mundicarmo Ferretti (2000) sugere que uma das maneiras de compreender os encantados e suas associações é por intermédio da noção de família, pois as entidades possuem relações de parentesco entre si. Prandi e Souza (2004) reforçam a distinção entre famílias no tambor de mina, religião que predomina na capital do Maranhão.

[5]             Há uma complexidade na discussão sobre as formas de iniciação e confirmação “do santo” no candomblé com a qual não dialogamos no texto. Sugerimos, para aprofundar a leitura sobre a necessidade de repensar a oposição entre o dado e o feito, a iniciação e o dom, a leitura do texto de Marcio Goldman (2012).

[6]             A autora ainda afirma: “Creio, entretanto, que as relações referidas como ‘enredo’ podem se dar de inúmeras maneiras e em diferentes instâncias. […] No caso dos humanos, pode referir-se tanto a relações espalhadas no tempo (envolvendo ancestrais longínquos, por exemplo), quanto às relações cotidianas. Da mesma forma, as relações entre humanos e orixás se dão tanto no plano geral (entre uma pessoa e um determinado orixá), quanto no plano individual (entre uma pessoa e um orixá individual, seu próprio ou de outrem)” (Flaksman 2016a: 21-22).

[7]             Forma de denominar pessoas que incorporam entidades.

[8]             Como afirma a autora a partir de relatos de mulheres em outros trabalhos etnográficos: “A mediunidade, do ponto de vista dessas mulheres, supõe então uma relativa autonomia dessa agência, a entidade incorporada. E as narrativas insistem no quanto é difícil para os indivíduos a gestão dessa autonomia no espaço de circulação do médium” (Birman 2005: 411).

[9]             Tal como aconteceu com Pedro, na literatura sobre religiões afro-brasileiras existem menções a “santos herdados”, ou seja, entidades que passam entre membros de uma mesma família ou entre amigos próximos em contextos de pós-morte, e que são consideradas “já feitas”. Como afirma Goldman para o candomblé angola, “ ‘santos de herança’ [são] divindades já ‘prontas’ ou já ‘feitas’ que são transmitidas a um descendente, ou mesmo a pessoas apenas próximas, após o falecimento do transmissor” (Goldman 2012: 275). Serra (1978) e Flaksman (2016b) comentam sobre formas adivinhatórias, como o jogo de búzios, sendo realizadas para inquirir sobre o herdeiro de determinada entidade. No terecô – onde comumente não se joga búzios –, as entidades costumam se manifestar dizendo seu destino antes da morte, ou ainda incorporando, após o falecimento, na pessoa escolhida.

[10]           Em outros contextos de pesquisa sobre a encantaria maranhense, é possível encontrar casamentos ou família entre pessoas e encantados (Cunha 2013, Barbosa 2008). Em Codó não ouvimos histórias semelhantes, mas soubemos de situações nas quais os encantados e encantadas são transformados em padrinhos e madrinhas, podendo, inclusive, participar (incorporados) de batizados na Igreja Católica.

[11]           Organizar as correntes de um filho-de-santo inclui conversar com seus encantados, saber quais suas funções e as especialidades que possuem, e o que esperam do filho-de-santo. Provavelmente, a expressão engloba várias outras atividades que não pudemos conhecer ainda.

[12]           A criação de filhos não biológicos e a circulação de crianças (Fonseca 1995) é recorrente em Codó, e pode se dar entre membros da família (consanguínea ou afim) ou ainda entre pessoas conhecidas, mas sem laços de parentesco. A prática é tradicional e perpassa diferentes gerações, ganhando importância em virtude dos casos de migração para outros estados do Brasil. Nesses casos, normalmente o adulto que migrava não levava seus filhos, os deixando em Codó, para serem criados por familiares ou por conhecidos (para discussão sobre o tema, ver Godoi 2009; Fonseca 1995).

[13]           A história de Légua como negro escravo corrobora algumas versões encontradas em outras obras nas quais a família desse encantado é mencionada. Nas pesquisas de Mundicarmo Ferretti (2000), no município de São Luís e em Codó, no estado do Maranhão, Légua aparece como velho angolano (na fala de uma mãe-de-santo chamada Dona Antoninha); surge ainda, de acordo com as observações de Oliveira, em São Luís, narrado pelo pai-de-santo Jorge Itaci como “a fusão de duas entidades Dahomeanas – Bará (Exu) ou Légba e o vodum Poliboji (que adora Santo Antônio) – junção esta refletida em seu nome, Légua (Légba) Boji (Poliboji)” (Oliveira 1989: 37 apud Ferretti 2000: 140). Pai Euclides, pai de santo da capital maranhense, em conversa com Mundicarmo Ferretti, afirmou que Légua Boji “era africano e já era conhecido no Caribe muitos anos antes de surgir em terreiros maranhenses” (2000: 145). Antes de chegar no Brasil, Légua teria, de acordo com essa versão, passado por Trinidad e, ao aportar por aqui, teria ficado conhecido como Légua Boji Buá da Trindade, em referência ao lugar de onde veio. Segundo uma filha de pai Euclides, “Légua Boji já entra em Codó velho e com vários filhos”, neste lugar encontra Pedro Angasso que lhe adota como filho. Neste mesmo trabalho Mundicarmo Ferretti também apresenta falas e narrativas sobre aparições de Seu Légua na cidade de Viana (também no Maranhão) onde “é visto pelos médiuns (que têm vidência) como um preto velho angolano que usa chapéu, parecido com o do falecido artista nordestino Luiz Gonzaga. Légua também aparece para eles como um boi preto […]” (Ferretti 2000: 160).

[14]           Sansi pontua a importância de não perceber a diversidade dos espíritos como “degenerescência da religião africana” (Sansi 2009: 148-149).

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons