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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica vol.23 no.1 Lisboa jan. 2019

https://doi.org/10.4000/etnografica.6431 

MEMÓRIA

 

Teoria feminista, agência e sujeito liberatório: algumas reflexões sobre o revivalismo islâmico no Egito

 

Feminist theory, agency, and the liberatory subject: some reflections on the Islamic revival in Egypt

 

 

Saba MahmoodI

IUniversity of California, Berkeley, USA

 


RESUMO

Este artigo defende uma separação entre a noção de agência e a de resistência como um passo necessário para pensar as formas de vontade e política que não se adequam às formas seculares e liberais feministas. Através de uma análise das práticas de um movimento pietista feminino, integrado no revivalismo islâmico no Egito, este artigo sugere que a agência é melhor entendida através do paradoxo da subjetivação: um processo que não só assegura a subordinação do sujeito às relações de poder, mas também produz os meios através dos quais ele se transforma numa entidade autoconsciente e num agente. Nesta perspetiva, a agência não é simplesmente um sinónimo de resistência a relações de dominação, mas também uma capacidade para a ação facultada por relações de subordinação específicas.

Palavras-chave: agência, embodiment, feminismo, Islão, resistência, autonomia


ABSTRACT

This article argues for uncoupling the notion of agency from that of resistance as a necessary step in thinking about forms of desire and politics that do not accord with norms of secular-liberal feminism. Through an examination of the practices of women’s piety movement, part of the larger Islamic Revival in Egypt, this article suggests that agency is better understood through the paradox of subjectivation: a process that not only secures the subject’s subordination to relations of power but is also the means by which she becomes a self-conscious identity and agent. Viewed in this way, agency is not simply a synonym for resistance to relations of domination, but a capacity for action that specific relations of subordination enable and create.

Keywords: agency, embodiment, feminism, Islam, resistance, autonomy


 

 

Saba Mahmood, in memoriam

Saba Mahmood (1962 – 10 de março de 2018) explorou, em Politics of Piety (Princeton University Press, 2004), a interseção entre género e religião nos movimentos pietistas islâmicos do Cairo, por forma a obrigar-nos a desafiar o próprio carácter sacralizado do princípio da liberdade. O livro, conceptualmente provocatório, foi atacado por algumas feministas liberais. Em 2006, a Etnográfica publicou parte da etnografia cairota que sustentou esse livro – integrada no dossiê “Social movements in Islamic contexts”, vol. 10 (1) –, em artigo que agora aqui se republica.
Por outro lado, em Religious Difference in a Secular Age: A Minority Report (Princeton University Press, 2015), Saba contesta as ideias convencionais de que o secularismo – vulgarmente interpretado como a separação entre a religião e o Estado – reduziria as tensões religiosas e políticas nos países muçulmanos, argumentando que a condição secular implica, ao contrário, um envolvimento ativo do Estado na regulação da vida e das instituições religiosas.
O não reconhecimento da necessidade de distinção “entre a noção de agência e a de resistência como um passo necessário para pensar as formas de vontade e política que não se adequam às normas seculares e liberais feministas”, que Saba sacou das suas etnografias, persiste ainda, mesmo no meio académico, como lastro pesado que atrasa um pensamento livre.
Noutros casos, as suas conclusões foram despojadas das finas etnografias que as suportaram e transformadas em bandeira acrítica e ativista, exportada aleatoriamente, provocando danos para um efetivo discurso sobre o exercício de liberdade (coisas que Saba Mahmood pressente já no final do texto que a Etnográfica aqui retoma).
Os limites que Saba Mahmood (não) impôs à reflexão sobre religião, feminismo e secularismo são desafiadores e potencialmente perturbadores do ponto de vista político e disciplinar, mas imprescindíveis para uma reflexão apartada sobre Estado, liberdade religiosa, género e, também, antropologia.
A comissão editorial da Etnográfica

Nas duas últimas décadas, uma das questões que mais preocupou as intelectuais feministas foi a de pensar como as questões da especificidade histórica e cultural podem afetar tanto a análise como a política de qualquer projeto feminista.[1] Apesar de este questionamento ter obrigado a importantes tentativas de integração de questões de diferença sexual, racial, de classe e nacionalidade na teoria feminista, a problemática da diferença religiosa manteve-se relativamente inexplorada. A relação problemática entre o feminismo e as tradições religiosas é, provavelmente, mais manifesta nas discussões sobre o Islão. Por um lado, isto acontece por causa da relação historicamente litigiosa que o Islão desenvolveu com o que se veio a denominar de “Ocidente”; por outro, pelos desafios que os movimentos islâmicos contemporâneos colocam aos movimentos seculares e liberais, onde o feminismo assume uma importância central, se não mesmo fulcral. A suspeição com que muitas feministas tendiam a olhar para os movimentos islâmicos acabou por se intensificar na ressaca dos ataques aos Estados Unidos da América em 11 de setembro de 2001, especialmente com o despoletar de sentimentos anti-islâmicos que a partir daí se desenvolveram. Se os apoiantes do movimento islâmico já não eram muito apreciados pelo seu conservadorismo social e rejeição de valores liberais – cujo elemento chave é a “liberdade das mulheres” –,[2] a sua associação com o terrorismo – hoje em dia quase sempre tomada como certa – serviu para reafirmar o seu estatuto como agentes de uma irracionalidade perigosa.[3]

Neste ensaio, refletirei acerca de alguns dos desafios conceptuais que a participação de mulheres no movimento islamista coloca aos teorizadores feministas e analistas do género, através de uma etnografia do movimento feminino das mesquitas, que faz parte do revivalismo islâmico no Cairo, Egito.[4] “Revivalismo islâmico” é um termo que se refere não só às atividades de grupos políticos institucionalizados mas também, de uma forma mais abrangente, a um ethos ou sensibilidade religiosa que se desenvolveu no seio das sociedades muçulmanas em geral, e em particular no Egito, a partir dos anos 70 do século XX.[5] Desenvolvi dois anos de trabalho de campo com um movimento pietista feminino de base, levado a cabo nas mesquitas do Cairo. Este movimento é composto por mulheres de estatuto socioeconómico diversificado, que se reúnem em mesquitas para se ensinarem mutuamente sobre as escrituras islâmicas, as práticas sociais e sobre formas de comportamento corporal consideradas apropriadas para a cultivação do ser ideal virtuoso.[6] Apesar de as mulheres egípcias muçulmanas terem tido sempre uma certa aprendizagem informal sobre o Islão, o movimento das mesquitas representa um contacto inédito com materiais académicos e raciocínios teológicos que, até então, apenas estavam ao alcance dos homens doutos. Movimentos como este, não provocando uma indiferença entre os intelectuais seculares, certamente incorporam uma série de associações incómodas com o fundamentalismo, subjugação das mulheres, conservadorismo social, atavismo reacionário, pobreza cultural, etc. O meu objetivo neste ensaio não será o de analisar o reducionismo de um fenómeno tão complexo como o que é provocado por estas associações; não será também o de recuperar um elemento válido do seio do movimento islamista através do resgate do seu potencial liberatório. Pelo contrário, pretendo centrar a minha análise concretamente nas conceções de self, agência moral e embodiment que instituem as práticas deste movimento não liberal e, assim, tentar compreender os projetos éticos que o motivam.

Quero começar por mostrar como um entendimento particular da noção de agência humana na teoria feminista – entendimento que procura situar a autonomia moral e política do sujeito em relação ao “poder” – foi invocado no estudo de mulheres envolvidas em tradições religiosas patriarcais como o Islão. Argumentarei que, apesar das importantes contribuições fornecidas por essa proposta, esse modelo de agência limita a nossa capacidade para compreender e interrogar as vidas das mulheres cujo sentido de self, aspirações e projetos foram configurados no seio de tradições não liberais. De forma a poder analisar a participação das mulheres em movimentos religiosos como o movimento das mesquitas egípcio que estou a descrever, sugiro que pensemos na agência não como um sinónimo de resistência em relações de dominação, mas sim como uma capacidade para a ação criada e propiciada por relações concretas de subordinação historicamente configuradas. Este entendimento relativamente abrangente de agência inspira-se na teoria pós-estruturalista da formação do sujeito, mas também se afasta dela, no sentido em que exploro modalidades de agência cujo significado e efeito não se encontram nas lógicas de subversão e ressignificação de normas hegemónicas. Como argumentarei, apenas quando o conceito de agência se desligar do tropo da resistência é que se poderão desenvolver questões analíticas que são cruciais para o entendimento dos projetos não liberais, sujeitos e vontades cuja lógica excede a enteléquia das políticas liberatórias. Na segunda parte deste ensaio, defenderei este ponto através da análise de um exemplo etnográfico, retirado do meu trabalho de campo, que justapõe duas modalidades diferentes de agência e explica as diferentes contribuições de cada modalidade para a forma como as estruturas de desigualdade de género são habitadas e perpetuadas.

 

Topografia do movimento das mesquitas

O movimento feminino das mesquitas ocupa um lugar de certa forma paradoxal no contexto das políticas feministas. Representa a primeira vez, na história do Egito, que um número alargado de mulheres se mobiliza para receber ensinamentos de doutrina islâmica nas mesquitas, alterando assim o carácter historicamente masculino-centrado das mesquitas e a própria pedagogia islâmica.[7] Esta tendência foi obviamente facilitada pela mobilidade e sentido de poder facultados pelo maior acesso da mulher à educação e emprego fora da esfera doméstica no Egito pós-colonial. Nos últimos quarenta anos, as mulheres entraram em novos domínios sociais e adquiriram novos estatutos públicos em espaços de que eram anteriormente excluídas. Um efeito paradoxal destes desenvolvimentos é a proliferação de formas de pietismo que parecem incongruentes com a trajetória das transformações ocorridas em primeiro lugar.[8] Concretamente, apesar de este movimento ter permitido que as mulheres entrassem em áreas da pedagogia islâmica no contexto institucional das mesquitas, a sua participação é criticamente suportada por – e procura por sua vez apoiar – os limites de uma tradição discursiva que olha para a subordinação a uma vontade transcendente (e em consequência, em muitas instâncias, à autoridade masculina) como o seu grande objetivo.[9]

De acordo com as suas organizadoras, o movimento feminino das mesquitas emergiu em resposta à perceção de que o conhecimento religioso, enquanto meio para a organização da vida quotidiana, se encontrava progressivamente marginalizado no contexto das estruturas de governo secular. As participantes neste movimento frequentemente criticam aquilo que consideram ser uma forma progressivamente prevalecente de religiosidade no Egito e que atribui ao Islão o estatuto de sistema abstrato de crenças que não tem relação direta com a forma como cada indivíduo estrutura a sua vida quotidiana. Esta tendência, frequentemente apelidada de “secularização”(‘almana) ou “ocidentalização” (taghrīb) da sociedade egípcia, é percecionada como tendo reduzido o conhecimento islâmico (tanto como forma de conduta quanto como conjunto de princípios) ao estatuto de “costume e folclore” (‘āda_ūa fūkloriīa).[10] O movimento feminino das mesquitas, portanto, procura educar muçulmanas leigas nas virtudes, capacidades éticas e formas de raciocínio que as participantes consideram como tendo-se tornado indisponíveis ou irrelevantes nas vidas do muçulmano comum.

No Egito de hoje, o Islão foi incorporado numa variedade de práticas, movimentos e ideias.[11] Neste contexto, muitos egípcios encaram o Islão como sendo constitutivo do terreno cultural sobre o qual a sua nação adquiriu o seu carácter histórico único; alguns entendem o Islão como um sistema doutrinal com fortes implicações políticas e jurídicas na organização do Estado e da sociedade; e outros ainda – tais como as mulheres com quem trabalhei – veem o Islão essencialmente como práticas individuais e coletivas de vida devocional. Isto não significa, no entanto, que o movimento feminino das mesquitas seja, em termos gerais, apolítico, ou que represente uma rejeição das questões político-sociais. Pelo contrário, o tipo de pietismo que procura incide em (e transforma) muitos aspetos da vida social.[12] O movimento feminino das mesquitas produziu alterações em vários aspetos do comportamento social dos egípcios de hoje, incluindo a forma como se veste e se fala, o tipo de entretenimento considerado apropriado para adultos e crianças, onde investir dinheiro, como tomar conta dos pobres e, ainda, quais os termos em que se conduz o debate público.

Apesar de, frequentemente, o movimento das mesquitas ser visto como uma alternativa quietista a formas mais militantes de ativismo islâmico, também é, em vários sentidos, encarado como sendo incómodo para determinados aspetos do projeto secular liberal promovido pelo Estado.[13] Estas tensões devem-se, em parte, às formas específicas de vontade, desejo, paixão e prática que este movimento procura cultivar, e às formas como ele reorganiza a vida e o debate público de acordo com a ortodoxia do pietismo islâmico. Não é surpreendente, portanto, que o governo egípcio tenha recentemente procurado regular e sancionar o movimento, reconhecendo que a proliferação deste tipo de sociabilidade islâmica dificulta – quando não impossibilita – a manutenção de uma sociedade liberal e secular.[14]

 

Agência, resistência, liberdade

Os sujeitos devotos do movimento feminino das mesquitas ocupam um lugar incómodo na teoria feminista: eles promovem práticas e ideais implantados numa tradição que historicamente atribuiu um estatuto subordinado à mulher, e procuram cultivar virtudes associadas à passividade e subalternização feminina (por exemplo, a vergonha, modéstia, perseverança e humildade – algumas das quais discutirei mais adiante). Por outras palavras, os próprios idiomas empregues pelas mulheres para afirmar a sua presença em esferas anteriormente detidas pelos homens são os mesmos que asseguram a sua subordinação. Se, nos anos 60 do século xx, não seria invulgar encontrar explicações sobre a participação de mulheres nestes movimentos como “falsa consciência” ou uma internalização das normas patriarcais através da socialização, hoje observamos um progressivo desconforto com este tipo de argumentação. Inspiradas em produções oriundas das ciências sociais e humanidades que, desde os anos 70 do século xx, se centraram na ação da agência humana no seio de estruturas de subordinação, as feministas procuraram entender as formas como as mulheres resistem à ordem dominante masculina através da subversão dos significados hegemónicos das práticas culturais e da sua reinterpretação em função dos seus próprios interesses e agendas. Uma questão central explorada no seio destas teorizações foi a seguinte: como é que as mulheres contribuem para reproduzir essa dominação, e como é que lhe resistem ou a subvertem? As intelectuais que trabalhavam nesta linha procuravam então explorar as tradições religiosas em termos dos recursos conceptuais e práticos oferecidos para que as mulheres os pudessem redirecionar e recodificar em função dos “seus próprios interesses e agendas”, uma recodificação que se situa como o eixo da agência feminina.[15]

É necessário reconhecer que este objetivo de localização da agência feminina, quando emergiu, assumiu um papel crítico na complexificação e alargamento dos debates sobre o género em sociedades não ocidentais, para além dos registos simplistas da submissão e patriarcalidade. Em particular, a atenção à agência feminina forneceu uma revisão crucial da erudição no Médio Oriente, que retratara, ao longo de décadas, a mulher muçulmana e árabe como passiva e submissa, presa às estruturas da autoridade masculina.[16] Esta produção académica teve a virtude de restaurar a voz ausente da mulher nas análises das sociedades do Médio Oriente, mostrando as mulheres como agentes ativos cuja existência é muito mais complexa e rica do que era sugerido nas narrativas anteriores.[17]

Apesar de esta abordagem ter sido extremamente produtiva na complexificação do modelo “opressor/oprimido” das relações de género, do meu ponto de vista este enquadramento não só continua carregado com os termos binários de resistência e subordinação mas também é insuficiente na atenção às motivações, desejos e objetivos que não são necessariamente captados por esses termos. Mais concretamente, nesta análise a agência feminina parece reproduzir uma consciência feminista – às vezes reprimida, às vezes ativa – articulada contra as normas culturais hegemónicas masculinas das sociedades árabes islâmicas. Mesmo em situações onde é difícil localizar uma agência feminina explícita, existe a tendência para procurar momentos de resistência que possam sugerir um desafio à dominação masculina. Quando as ações das mulheres parecem reinscrever o que parecem ser “os instrumentos da sua própria opressão”, o analista social poderá atender a pontos de disrupção da – ou articulação de pontos de oposição à – autoridade masculina, pontos que se poderão encontrar nos interstícios da consciência da mulher (frequentemente entendida como uma “nascente consciência feminista”) ou nas consequências diretas das ações das mulheres, por muito inadvertidas que sejam.[18] A agência, deste ponto de vista, é entendida como a capacidade de cada pessoa para realizar os seus interesses individuais, em oposição ao peso do costume, tradição, vontade transcendental ou outros obstáculos individuais e coletivos. Portanto, o objetivo humanista da autonomia e expressão das capacidades individuais constitui o substrato, as cinzas dormentes que poderão desatar em chamas sob a forma de um ato de resistência quando as condições assim o permitam.[19]

No entanto, uma questão raramente problematizada nestas análises é a universalidade do desejo de ser livre das relações de subordinação e, para as mulheres, das estruturas da dominação masculina, um desejo que é central no pensamento liberal e progressista e pressuposto pelo conceito de resistência que o próprio autoriza. Esta postulação da agência feminina como sendo consubstancial à resistência às relações de dominação, e a concomitante naturalização da liberdade como um ideal social é, do meu ponto de vista, um produto do carácter dual do feminismo como um projeto simultaneamente analítico e politicamente prescritivo. Apesar das várias tendências e diferenças no seio do feminismo, aquilo que atribui uma coerência analítica e política a esta tradição é a premissa de que, ali onde a sociedade é estruturada para servir os interesses masculinos, o resultado será uma negligência, ou simplesmente supressão, dos interesses das mulheres.[20] O feminismo, portanto, oferece simultaneamente um diagnóstico do estatuto das mulheres nas diversas culturas e uma diretiva para a mudança da situação das mulheres, que são vistas como marginais/subordinadas/oprimidas.[21] Neste contexto, a articulação das condições de relativa liberdade que permitem à mulher formular e colocar em prática objetivos e interesses autodefinidos constitui o objeto das teorizações e políticas feministas. Tal como acontece no liberalismo, a liberdade é normativa para o feminismo: é aplicado um maior escrutínio crítico àqueles que pretendem limitar a liberdade das mulheres do que aos que a pretendem estender.[22]

As discussões feministas sobre a liberdade individual devem-se em grande parte à distinção defendida pelo liberalismo entre liberdade positiva e negativa. Na tradição liberal, a liberdade negativa refere-se à ausência de obstáculos externos à opção e ação autodirigida, sejam estes impostos pelo Estado, pelas corporações ou por indivíduos privados.[23] Por seu turno, a liberdade positiva é entendida como a capacidade para realizar uma vontade autónoma, geralmente entendida em termos dos predicamentos da “razão universal” ou do “interesse individual”, e portanto liberta do peso do costume, da vontade transcendental e da tradição.[24] Apesar de se manter ainda um debate importante acerca da formulação e coerência destas noções interligadas,[25] pretendo aqui definir o conceito de liberdade individual, que é central para ambas, e os elementos concomitantes de coerção e consentimento, que são fulcrais para esta topografia da liberdade.

Os conceitos de liberdade positiva e negativa, juntamente com o requisito obrigatório da autonomia processual, constituem a base sobre a qual se desenvolve grande parte do debate feminista.[26] Por exemplo, a conceção positiva de liberdade parece predominar nos projetos de historiografia feminista (por vezes denominada herstory) que procuram captar as instâncias histórica e culturalmente específicas das ações autodefinidas das mulheres libertas das normas patriarcais ou da vontade dos outros.[27] Por seu turno, a conceção negativa parece prevalecer nos estudos de género que exploram esses espaços da vida das mulheres que são autónomas da influência (e eventualmente presença coerciva) dos homens, tratando esses espaços como plenos de possibilidades para a satisfação ou realização da mulher. Nesta linha, muitas historiadoras e antropólogas feministas do mundo árabe procuraram delimitar essas condições e situações, nas quais as mulheres parecem articular o seu próprio discurso (poesia, tecelagem, possessão cultural, etc.) de forma autónoma, por vezes conferindo significados potencialmente liberatórios a práticas de segregação sexual tradicionalmente vistas como marginalizadoras da mulher da arena da política convencional.[28]

Várias teorizadoras feministas construíram, ao longo dos anos, críticas incisivas da noção liberal de autonomia a partir de várias perspetivas.[29] Por exemplo, enquanto que as primeiras críticas chamavam a atenção para os raciocínios masculinizantes por trás do ideal de autonomia, reflexões posteriores atacaram esse ideal pela sua ênfase nas características atomizadas, individualizadas e delimitadas do self à custa das suas qualidades relacionais, formadas através das interações sociais no seio de diferentes modelos de comunidade humana.[30] Em consequência, produziram-se várias tentativas para redefinir o conceito de “autonomia”, de forma a poder incorporar o carácter emocional, embodied e socialmente imerso das pessoas e, em particular, das mulheres.[31] Uma linha mais radical da teoria pós-estruturalista situou a sua crítica da “autonomia” no contexto de um desafio mais abrangente colocado pelo carácter ilusório do sujeito racionalista, autónomo e transcendental pressuposto pelo pensamento “esclarecido”, em geral, e pela tradição liberal em particular. O pensamento racional, argumentam estes críticos, assegura a sua autoridade e abrangência universal através da exclusão de tudo o que é corporal, feminino, emocional, não racional e intersubjetivo.[32] Esta exclusão não pode ser substantiva ou conceptualmente resolvida através do recurso a um corpo, experiência ou imaginário feminino pacíficos (pace Beauvoir e Irigaray), mas deve antes ser pensado através dos mesmos termos do discurso da transcendência metafísica que põe em prática essas exclusões.[33]

Nas linhas que se seguem, gostaria de aprofundar as direções sugeridas por estes debates pós-estruturalistas. De facto, o meu argumento em favor da separação da noção de autorrealização da noção de vontade autónoma é devido às críticas pós-estruturalistas do sujeito transcendental, voluntarismo e modelos repressivos de poder. No entanto, como se verá, a minha análise também se distancia destes enquadramentos, no sentido em que questiono a insistência do pensamento feminista pós-estruturalista em conceptualizar a agência em termos de subversão e ressignificação de normas sociais, em localizar a agência no seio dessas operações que resistem aos modos dominantes e subjetivantes de poder. Por outras palavras, o sujeito político normativo da teoria feminista pós-estruturalista aparece frequentemente como um sujeito liberatório, cuja agência é conceptualizada sobre o modelo binário da subordinação e subversão. Este pensamento, portanto, elude as dimensões da ação humana cujo estatuto ético e político não se enquadra na lógica da repressão e resistência. De forma a poder captar estes modos de ação devidos a outras racionalidades e histórias, proponho que é fundamental descolar a noção de agência dos objetivos da política progressista.

O conceito da liberdade e independência como “os” ideais políticos é relativamente recente na história moderna. Em muitas sociedades, incluindo as ocidentais, floresceram aspirações contrárias a estes. Neste sentido, a narrativa da liberdade individual e coletiva também não se impôs de modo absoluto nas ambições das pessoas nas sociedades liberais. Se reconhecermos que o desejo de independência (ou subversão) das normas não é um desejo inato que motiva todos os indivíduos em todas as alturas, mas que é profundamente mediado por condições históricas e culturais, levanta-se uma pergunta: como podemos analisar operações de poder que constroem corpos, conhecimentos e subjetividades diferentes, cujas trajetórias não seguem necessariamente a enteléquia das políticas liberatórias?

Se a capacidade de provocar a mudança no mundo e em si próprio é histórica e culturalmente definida (tanto em termos do que constitui a “mudança” como em termos de como ela é provocada), então o significado e sentido de agência não podem ser fixados de antemão, mas antes devem emergir através de uma análise dos conceitos específicos que propiciam modos de ser concretos, responsabilidades e efetividades. Deste ponto de vista, o que aparece, de um ponto de vista progressista, como um caso de passividade insultante e docilidade, pode ser efetivamente uma forma de agência – forma que apenas pode ser entendida a partir dos discursos e estruturas de subordinação que criam as condições para o seu desenvolvimento. Neste sentido, a capacidade de agência pode ser encontrada não só em atos de resistência às normas como também nas múltiplas formas em que essas normas são incorporadas.

Poder-se-ia argumentar, em resposta, que este tipo de desafio ao status natural atribuído ao desejo de liberdade nas análises sobre o género corre o risco de orientalizar, uma vez mais, as mulheres árabes e muçulmanas – repetindo os erros da intelectualidade orientalista pré-1970, que definia as mulheres do Médio Oriente como “outras”, passivas e submissas, despojadas da consciência iluminada das suas “irmãs ocidentais” e, portanto, condenadas a vidas de submissão servil ao homem. Contraporei, no entanto, que o exame das condições discursivas e práticas através das quais as mulheres cultivam várias formas de desejo e capacidades de ação ética é um projeto sensivelmente diferente do orientalista, que localiza o desejo de submissão numa essência cultural a-histórica. De facto, se aceitarmos a ideia de que todas as formas de desejo são discursivamente organizadas (como têm defendido as teorias feministas mais recentes), será então inevitável interrogar as condições práticas e conceptuais a partir das quais emergem diferentes formas de desejo, incluindo o desejo de submissão a uma autoridade reconhecida. Não podemos tratar como naturais e imitáveis apenas aqueles desejos que se enquadram na emergência das teorias feministas.

Consideremos, por exemplo, o caso das mulheres do movimento das ­mesquitas com quem trabalhei. A tarefa de embarcar no pietismo colocava estas mulheres numa situação de conflito com várias estruturas de autoridade. Algumas destas estruturas assentavam em cânones instituídos da ortodoxia islâmica; outras em normas do discurso liberal, na autoridade de pais e irmãos masculinos ou, finalmente, em instituições estatais. No entanto, o rationale por trás destes conflitos não era objeto de discurso, e portanto não podia ser entendido apenas por referência a argumentos a favor da igualdade de género ou resistência à autoridade masculina. Tão-pouco as práticas destas mulheres poderão ser interpretadas como uma reinscrição de papéis tradicionais, já que o movimento feminino das mesquitas reconfigurou significativamente as práticas de género da pedagogia islâmica e a instituição social das mesquitas. Poder-se-ia, no entanto, contrapor que, independentemente dos esforços destas mulheres, os efeitos práticos das suas ações podem ser analisados em termos do seu papel no reforço ou combate a estruturas de dominação masculina. Mesmo reconhecendo que esse tipo de análise é exequível e útil em determinados contextos, argumentarei, no entanto, que ele permanece ainda ensombrado pelos termos binários da resistência e subordinação, ignorando projetos, discursos e vontades que não são captados por esta terminologia, tais como aqueles expressados pelas mulheres com quem trabalhei.[34]

O meu argumento será inteligível para aqueles antropólogos que há muito reconheceram que os termos que as pessoas utilizam para organizar as suas vidas não são uma mera glosa de ideologias universalmente partilhadas acerca do mundo e do lugar de cada um no seu seio, mas são de facto constitutivos de diferentes modalidades de pessoa, conhecimento e experiência.[35] Por esta razão, achei necessário, nas páginas que se seguem, atender com cuidado à lógica específica do discurso do pietismo, uma lógica que é inerente tanto à intencionalidade dos atores como também às relações que são articuladas entre palavras, conceitos e práticas que constituem uma tradição discursiva particular.[36]Insisto, no entanto, em que um apelo para a compreensão da coerência de uma tradição não significa necessariamente uma justificação da própria tradição nem um argumento a favor de essencialismo irredutível ou relativismo cultural. Pelo contrário, é um passo necessário para explicar a força que o discurso despoleta.

 

Docilidade e agência

Para poder elaborar a minha abordagem teórica, permitam-me começar por examinar os argumentos de Judith Butler, que continua, para muitos, a ser a teórica predominante do pensamento feminista pós-estruturalista, e cujos argumentos têm sido fundamentais para o meu próprio trabalho. Para a sua análise, são centrais dois raciocínios inspirados em Michel Foucault, ambos bastante reconhecidos hoje em dia. O poder, de acordo com Foucault, não pode ser entendido apenas a partir do modelo de dominação, como algo que é atribuído ou retirado pelos indivíduos ou agentes de soberania a outros a partir de uma intencionalidade, estrutura ou localidade singular que preside sobre a sua racionalização e execução. Pelo contrário, o poder deve ser entendido como uma relação de forças estratégica que permeia a vida e produz novas formas de desejo, objetos, relações e discursos.[37] Em segundo lugar, o sujeito, tal como argumenta Foucault, não precede as relações de poder, como uma consciência individualizada, mas é produzido através destas relações que conformam as condições necessárias para a possibilidade da sua existência. Central para esta formulação é aquilo que Foucault chama de paradoxo da subjetivação: os mesmos processos e condições que garantem a subordinação de um sujeito são também os meios através dos quais ele se transforma numa identidade e agência autoconsciente.[38] Por outras palavras, poderíamos argumentar que o conjunto de capacidades inerentes ao sujeito – ou seja, as capacidades que definem os modos da sua agência – não são o resíduo de um self não domesticado, existente antes das operações de poder, mas são, em si mesmas produto dessas operações.[39] Este entendimento do poder e formação do sujeito permite-nos conceptualizar a agência não só como um sinónimo de resistência a relações de dominação, mas também como uma capacidade para a ação criada e propiciada por relações de subordinação específicas.

Inspirada nos raciocínios de Foucault, Butler coloca uma questão chave: “se o poder funciona apenas para dominar ou oprimir sujeitos existentes, mas também forma sujeitos, que formação é essa?” [40] Questionando o estatuto pré-discursivo do conceito de sujeito, e atendendo às relações de poder que o produzem, Butler distancia-se das analistas feministas que formularam a questão da “pessoa” em termos da relativa autonomia do indivíduo em relação ao social. Portanto, para a autora, não se trata de como o social representa o individual (tal como foi defendido por gerações de feministas), mas sim de quais as condições discursivas que sustentam o edifício metafísico da individualidade contemporânea.

Dada a teoria do sujeito de Butler, não é surpreendente que a sua análise da performatividade também influencie a sua conceptualização da agência; de facto, como ela afirma: “a iteração da performatividade é uma teoria de agência”.[41] Na medida em que a estabilidade das normas sociais é resultado da sua representação continuada, a agência, para Butler, assenta na abertura essencial de cada iteração e na possibilidade de esta falhar ou ser reapropriada ou ressignificada para outros propósitos que não a consolidação das normas. Dado que todas as formações sociais são reproduzidas através de uma representação das normas, as mesmas normas tornam-se vulneráveis, já que cada representação pode falhar. Assim, a condição de possibilidade de cada formação social é também “a possibilidade do seu desmoronamento”.[42]

Há vários pontos onde Butler se distancia das noções de agência e resistência que critiquei mais acima. Por exemplo, Butler questiona aquilo a que chama de “modelo emancipatório de agência”, um modelo que presume que todos os seres humanos, qua humanos, são “possuidores de uma vontade, uma liberdade e uma intencionalidade”, cuja ação é “frustrada pelas relações de poder consideradas externas ao sujeito”.[43] No seu lugar, Butler localiza a possibilidade da agência no seio de (e não fora de) estruturas de poder e, mais importante, sugere que a estrutura reiterativa das normas não serve apenas para consolidar um regime particular de discurso/poder, mas também fornece os meios para a sua desestabilização.[44] Por outras palavras, não existe uma possibilidade de “desfazer” normas sociais que seja independente do “fazer” das mesmas normas; a agência reside, portanto, no seio desta reiterabilidade produtiva. Butler também resiste à tendência de colar o significado da agência a uma teleologia predefinida de discursos emancipatórios. Como resultado, no enquadramento proposto por Butler, a lógica de subversão e ressignificação não pode ser predeterminada, porque os atos de ressignificação/subversão são, do seu ponto de vista, contingentes e frágeis, revelando-se em lugares inesperados e comportando-se de maneira imprevisível.[45]

Considero a crítica de Butler às conceções humanistas de agência e sujeito particularmente relevante e, de facto, os meus argumentos neste ensaio estão manifestamente influenciados por ela. No entanto, pareceu-me relevante debater algumas tensões que caracterizam o seu trabalho, de forma a expandir a sua análise para outras e distintas problemáticas. Uma dessas tensões tem a ver com o facto de ela, por um lado, enfatizar a iniludível relação entre a consolidação e desestabilização das normas e, por outro, debater a questão da agência focando aquelas operações de poder que ressignificam e subvertem as normas. Neste sentido, apesar de a própria insistir, uma e outra vez, que todos os atos de subversão são produto dos termos da violência aos quais se procuram opor, a sua análise da agência privilegia frequentemente aqueles momentos que “abrem possibilidades para a ressignificação dos termos da violação contra os seus objetivos violadores”, ou que “propiciam uma ocasião para uma rearticulação radical” do horizonte simbólico dominante.[46] Por outras palavras, o conceito de agência no pensamento de Butler desenvolve-se principalmente em contextos onde as normas são postas em questão ou são sujeitas a ressignificação.[47]

Obviamente, a elaboração de Butler da noção de agência deve ser compreendida no contexto específico das intervenções políticas pretendidas nos seus trabalhos. A prática teórica desenvolvida por Butler nos últimos quinze anos é claramente influenciada pela preocupação com a violência que a normatividade heterossexual coloca em cena e com as formas em que ela delimita as possibilidades de uma existência humana digna de ser vivida. A sua teoria da agência, portanto, deve ser entendida na sua dimensão performativa: como uma práxis política destinada a perturbar discursos dominantes de género e sexualidade. Uma consequência importante deste aspeto do trabalho de Butler é que a sua análise do poder das normas permanece assente num enquadramento agonístico, onde as normas suprimem e/ou são subvertidas, são reiteradas e/ou são ressignificadas – o que não fornece muita informação relativamente ao comportamento das normas para lá deste registo de supressão e subversão no seio da constituição do sujeito.

As normas não são apenas consolidadas e/ou subvertidas, mas também performadas, habitadas e experienciadas de várias maneiras. Penso que Butler concordaria com esta constatação; de facto, nos seus escritos ela regressa ao tropo da psyche e da linguagem psicanalítica para captar a densidade dos laços através dos quais o indivíduo é atraído pelo poder subjetivante das normas.[48] No entanto, a exploração de Butler desta densidade permanece frequentemente subserviente, por um lado, do seu interesse mais amplo na identificação das possibilidades de resistência ao poder regulador da normatividade e, por outro, do seu modelo de performatividades, que é conceptualizado primariamente em termos de uma estrutura dualista de consolidação/ressignificação – fazer/desfazer – das normas.[49]

 

O sujeito das normas

Gostaria de dirigir a problemática das normas numa direção que me parece permitir aprofundar a análise da formação do sujeito e, igualmente, abordar o problema de ler a agência essencialmente em termos de resistência ao poder regulador das estruturas da normatividade. Em particular, pretendo aprofundar o raciocínio de Butler de que as normas não são apenas uma imposição social no sujeito, mas constituem a própria substância da sua interioridade, valorizada e íntima. No entanto, para fazê-lo, afastar-me-ei do enquadramento agonístico e dualista – onde as normas são conceptualizadas no modelo de fazer e desfazer, consolidação e subversão – para pensar na variedade de formas em que as normas são vividas, incorporadas, procuradas e consumadas. Como a seguir argumentarei, isto obriga-nos a explorar a relação entre a forma iminente assumida pelo ato normativo, o modelo de subjetividade que pressupõe (articulações específicas de volição, emoção, razão e expressão corporal) e os diferentes tipos de autoridade sobre os quais esse ato se apoia. Para tal, discutirei os problemas que uma conceção dualista das normas coloca para a análise do movimento das mesquitas.

Consideremos, por exemplo, a virtude islâmica da modéstia feminina (al-ihtixām, al-Haīā’), muito considerada e valorizada pelos egípcios muçulmanos. Apesar do consenso em relação à sua importância, existe um debate considerável sobre a forma como esta virtude deve ser vivida e, em particular, sobre se a sua adoção requer o uso do véu. A maioria das participantes no movimento das mesquitas (e no movimento mais abrangente de pietismo, onde aquele se integra) defendem que o véu é uma componente necessária para a virtude da modéstia, porque exprime simultaneamente a “verdadeira modéstia” e os meios através dos quais ela é adquirida.[50] Constroem, portanto, uma relação tal entre a norma (modéstia) e a sua tradução prática (o véu) que o corpo coberto com o véu se transforma no meio necessário através do qual a modéstia é criada e, simultaneamente, exprimida. Contrariando este entendimento, a perspetiva associada aos escritores secularistas proeminentes argumenta que a virtude da modéstia não é diferente de qualquer outro atributo humano, tal como a moderação ou a humildade: trata-se de um rasgo de carácter, mas não se liga necessariamente a um repertório expressivo como, por exemplo, o uso do véu.[51] Mais concretamente, estes autores opõem-se ao uso do véu, mas não à virtude da modéstia, que continuam a entender como necessária para a conduta feminina apropriada. O véu, na sua opinião, foi investido de uma importância que acaba por ser irrelevante para os julgamentos sobre a modéstia feminina.

O debate sobre o véu é apenas uma parte de uma discussão mais abrangente no seio da sociedade egípcia, onde as diferenças políticas entre islamistas e secularistas, e mesmo entre islamistas de distintas tendências, são exprimidas através de argumentos acerca do comportamento ritual e performativo. Os aspetos mais interessantes deste debate encontram-se não tanto no facto de a norma da modéstia ser subvertida ou representada, mas nas formas radicalmente distintas em que essa norma é supostamente incorporada e vivida. Neste sentido, cada ponto de vista propõe uma conceptualização bastante diferenciada acerca da relação entre o comportamento incorporado e a virtude ou norma da modéstia: para os pietistas, o comportamento corporal é o fator fundamental para o próprio cumprimento da norma; para os seus opositores, trata-se de um elemento contingente e desnecessário para a prossecução da modéstia.

Levantam-se, a partir destas observações, as seguintes questões: como podemos analisar o esforço realizado pelo corpo nestas diferentes conceptualizações da norma? O comportamento performativo é entendido de forma distinta em cada uma destas conceptualizações? Em caso afirmativo, em que sentido? Como é que o self se adequa à autoridade imposta pela norma em cada um dos imaginários descritos? Mais ainda, que tipos de sujeitos éticos e políticos são pressupostos em ambos os casos, e quais as modalidades de vida ético-religiosa que tornam possível ou impossível? Estas questões não poderão ser respondidas enquanto nos mantivermos dentro da lógica binária da construção/destruição de normas. Pelo contrário, requerem que se desmonte a categoria de normas para poder identificar os seus elementos constituintes – examinar a forma iminentemente assumida pelas normas e indagar das ligações que a sua morfologia desenvolve no seio da topografia do self. A razão pela qual proponho esta mudança tem a ver com o meu interesse em perceber como distintas modalidades de ação ético-moral contribuem para a construção de diferentes tipos de sujeitos, cuja autonomia política não poderá ser definida sem a aplicação de um escrutínio crítico à forma específica tomada pelas suas ações incorporadas.[52]

Nas linhas que se seguem, refletirei acerca destas questões através da análise de dois exemplos etnográficos retirados do meu trabalho de campo com o movimento feminino das mesquitas no Egito. A etnografia, aqui, aparece menos como uma “ilustração do real” e mais como uma substanciação da minha anterior proposta para atender ao desenvolvimento específico de poderes disciplinados que propiciam formas particulares de investimento e agência.

 

Cultivando a timidez

Ao longo do meu trabalho de campo, estabeleci laços com quatro mulheres trabalhadoras de classe média-baixa, todas chegando aos seus quarenta anos e experientes na arte do pietismo islâmico. De facto, poder-se-ia chamá-las de “peritas do pietismo”. Para além de frequentarem aulas nas mesquitas, encontravam-se em grupo para ler e discutir questões da doutrina islâmica e exegese corânica. Nenhuma destas mulheres era oriunda de uma família devota, e de facto algumas tiveram mesmo de lutar no seio familiar para poderem ser devotas. Elas contaram-me as suas lutas, não só com as suas famílias mas também, e mais importante, consigo mesmas, para cultivar o desejo de uma maior exatidão religiosa.

Tal como outras mulheres das mesquitas com quem trabalhei, estas mulheres também procuravam cultivar o pietismo nos seus quotidianos – aquilo que descreviam como a condição de se estar próximo de Deus (referida como taqarrab allah e/ou taqūa). Apesar de o pietismo poder ser alcançável através de práticas de carácter tanto devocional como mundano, era necessário mais do que a mera performance de atos: o pietismo também implicava a inculcação de autênticos dispositivos através de um treino simultâneo do corpo, das emoções e da racionalidade até ao ponto em que as virtudes religiosas adquirissem o estatuto de hábitos incorporados.

Uma das virtudes religiosas (faDāil) que são consideradas como sendo importantes para os muçulmanos devotos em geral, e para as mulheres em particular, é a da modéstia ou timidez (al-Haīā’), um tópico de discussão frequente entre as frequentadoras da mesquita. Praticar al-Haīā’ significa ser diferente, modesto e capaz de sentir e mostrar vergonha. Se é um facto que todas as virtudes islâmicas são associadas ao género (no sentido em que a sua medida e critério variam quando aplicadas a homens ou mulheres), isso é particularmente verdade no que se refere à timidez e modéstia (al-Haīā’). Pude sentir a dificuldade da tarefa de cultivar esta virtude quando, no decorrer de uma discussão sobre a exegese de um capítulo do Corão, intitulado “A História” (Sūrat al-Qaçaç), uma das mulheres, Amal, chamou a nossa atenção para o versículo vinte e cinco. Este versículo fala de uma mulher que caminhava com vergonha – com al-Haīā’ em direção a Moisés para lhe rogar que pedisse ao seu pai a sua mão em casamento. Ao contrário das restantes mulheres do grupo, Amal era particularmente extrovertida e confiante, raramente hesitando em se afirmar em situações sociais, tanto com mulheres como com homens. Numa situação normal, eu não a descreveria como sendo tímida, porque considerava a vergonha como sendo contraditória com qualidades como a autoconfiança e o à-vontade numa pessoa. No entanto, como viria a perceber, Amal tinha aprendido a ser extrovertida de uma forma que respeitava os cânones islâmicos da reserva, contenção e modéstia exigidos às mulheres devotas. A conversa desenrolou-se nos seguintes termos:

“Contemplando a palavra istiHīā’, que é a décima forma do substantivo Haīā’,[53]Amal disse: ‘eu costumava pensar que, mesmo que Deus nos tenha requerido o sentimento de vergonha (al-Haīā’), se eu agisse envergonhadamente estaria a ser hipócrita (nifāq), porque não o sentia verdadeiramente dentro de mim. Mas um dia, lendo o verso vinte e cinco da Sūrat al-Qaçaç (‘A História’), percebi que al-Haīā’ se encontrava entre as boas ações (huūa min al-ā’māl al-çāliHa) e, dada a minha propensão para a falta de timidez (al-Haīā’), teria de criá-la primeiro. Percebi que criar (çana’) a timidez em ti mesma não é hipocrisia (nifāq), e que eventualmente o teu interior também aprende a ter al-Haīā’ ’. Naquele momento, ela olhou para mim e explicou o significado da palavra istiHīā’: ‘Significa tornar-se tímida, mesmo que isso signifique criar a timidez (īa’ni īa Saba,īa’mil nafsuhu īitkisif Hatta lau san’ati)’. Ela prosseguiu com o seu argumento: ‘E finalmente percebi que, uma vez conseguido, o sentido de vergonha (al-Haīā’) acaba por fazer parte de ti (al-xa’ ūr īiTba’ ’ala juūaki)’. Outra amiga, Nama, uma mulher solteira na casa dos trinta que apenas escutara a conversa sentada, acrescentou: ‘É como com o véu (Hijāb). No início, quando começas a usá-lo, sentes-te embaraçada (maksūfa) e não queres usá-lo porque as pessoas dizem que pareces mais velha e menos atrativa, que não conseguirás encontrar um marido e casar-te. Mas tens de usar o véu, primeiro porque é um desígnio de Deus (Hukm Allah), e depois porque, com o tempo, o teu interior aprende a sentir-se envergonhado sem o véu; se o retirares, todo o teu ser se sentirá incómodo (mix rāDī)’ ”.

Para muitos leitores, esta conversa representará uma deferência gratuita em relação às normas sociais, que reflete e simultaneamente reproduz a subordinação da mulher. Efetivamente, a luta interior de Amal na tentativa de se tornar uma pessoa tímida poderá parecer mais uma instância da interiorização de noções de comportamento feminino, uma instância que pouco contribui para o nosso entendimento da noção de agência. No entanto, se pensarmos na “agência” não apenas como sinónimo de resistência às normas sociais, mas sim como uma modalidade de ação, aí a conversa acima reproduzida coloca algumas questões interessantes acerca das relações estabelecidas entre o sujeito e a norma, entre o comportamento performativo e a disposição interiorizada. Por exemplo, o que chama aqui a atenção é o facto de, em vez de as vontades humanas inatas elicitarem formas externas de conduta, serem as práticas e ações aquilo que determina as emoções e desejos individuais. Por outras palavras, a ação não nasce a partir de sentidos naturais, mas antes cria-os. Mais ainda, é através de atos corporais repetidos que nós treinamos a nossa memória, desejo e intelecto de acordo com padrões de conduta estabelecidos.[54] Concretamente, Amal não interpreta o simular da timidez na sua autocultivação inicial como uma hipocrisia, tal como se definiria através de determinadas conceções liberais do self, onde a dissonância entre sentimentos internos e expressões externas é uma forma de falta de honestidade ou autotraição (ilustrada em frases como: “Como posso fazer uma coisa de forma sincera quando o meu coração não o sente?”). Pelo contrário, tomando a ausência de timidez como marca de um processo de aprendizagem incompleto, Amal desenvolve a virtude da modéstia sincronizando o seu comportamento externo com as suas motivações internas até ao ponto em que a discrepância entre ambos se dissolve. Este é um exemplo de uma relação mutuamente constitutiva entre a aprendizagem corporal e o sentido corporal – como refere Nama, o corpo começa a sentir-se incómodo se não é coberto com o véu.

Em segundo lugar, outro elemento relevante deste programa de autocultivação é que os atos corporais – tais como o uso do véu ou o comportamento humilde em interações sociais (em especial com os homens) – não servem como máscaras manipuláveis, destacáveis de um self essencial e interiorizado no jogo da apresentação pública. Pelo contrário, são os marcadores críticos do pietismo e também os meios iniludíveis através dos quais uma pessoa treina para se tornar devota. O uso do véu, servindo inicialmente como um método de autocontrolo em relação ao atributo da timidez, é simultaneamente integral à prática da timidez: uma mulher não pode simplesmente descartar o véu uma vez desenvolvida uma postura de modéstia, porque o véu é em si mesmo definitório dessa postura.[55] Este é um aspeto crucial do programa disciplinar procurado pelas participantes do movimento das mesquitas e cujo significado é elidido quando entendido apenas em termos do seu valor simbólico, enquanto marcador da subordinação da mulher e da identidade islâmica.

A complexa relação entre aprendizagem, memória, experiência e o self que suporta a pedagogia adotada pelas frequentadoras das mesquitas foi por vezes abordada pela academia através do termo latino habitus, como um atributo adquirido, onde o corpo, a mente e as emoções são simultaneamente treinados para adquirir competência num determinado aspeto (por exemplo, a meditação, a dança ou o tocar um instrumento musical). Apesar de o termo habitus ter ficado mais conhecido nas ciências sociais através da obra de Pierre Bourdieu, o meu trabalho invoca uma história mais antiga e complexa do termo, uma história que se ocupa da centralidade das capacidades corporais em certas tradições de cultivação moral.[56] De origem aristotélica, e adotado por três tradições monoteístas, o significado mais antigo de habitus remete para um processo pedagógico específico, através do qual as virtudes morais são adquiridas através da coordenação entre o comportamento externo (atos corporais, conduta social) e disposições internas (estados emocionais, pensamentos, intenções).[57] Portanto, neste entendimento o habitus refere-se a um esforço consciente para a reorientação da vontade, motivada pela concordância entre motivações internas, ações externas e estados emocionais através da prática repetida de atos virtuosos.[58]

Esta conceção aristotélica de formação moral influenciou uma série de pensadores islâmicos, entre os quais se destaca o teólogo do século XI Abu Hamid al-Ghazali (1058-1111), mas também al-Miskawayh (932-1030), Ibn Rushd (1126-1198), e Ibn Khaldun (1332-1406). O historiador Ira Lapidus chama a atenção para esta genealogia na sua análise do uso do termo arábico malaka por Ibn Khaldun.[59] Lapidus argumenta que, apesar do uso por Khaldun do termo malaka ter sido frequentemente traduzido por “hábito”, o seu sentido será mais bem entendido através do termo latino habitus, que Lapidus descreve como “aquela qualidade interior desenvolvida como resultado de uma prática exterior que torna a prática uma capacidade perfeita da alma do ator”.[60] Em termos de crença, a malaka, de acordo com Lapidus, “é a aquisição, através da crença do coração e das ações dela resultantes, de uma qualidade que tem um controlo absoluto sobre o coração, comandando a ação dos membros do corpo fazendo com que cada atividade se desenrole em sua submissão, de forma tal que todas as ações se tornam subservientes a esta afirmação de fé. É este o grau mais elevado de fé. É a fé perfeita”.[61] Este legado aristotélico continua a influenciar as práticas do movimento pietista contemporâneo no Egito. Ele é evidente na frequente invocação dos exercícios espirituais e técnicas de cultivação moral de Abu Hamid al-Ghazali, que encontramos nos populares manuais de instruções sobre como se tornar devoto e nas referências dos participantes no revivalismo islâmico.[62]

 

Perseverar é ratificar?

Nesta secção, pretendo explorar as diferentes modalidades de agência cujas operações escapam à lógica da resistência e subversão das normas, mas que colocam questões interessantes acerca do que significa o sofrimento e a luta contra estruturas de desigualdade de género. Nas linhas que se seguem, ­investigarei sobre como o sofrimento e a sobrevivência – duas modalidades da existência frequentemente consideradas como a antítese da agência – se articularam no seio das vidas de mulheres que viveram sob as pressões de um sistema patriarcal que as obrigou a conformar-se com as exigências da monogamia heterossexual. Tendo em conta que estas condições de desigualdade de género afetam as mulheres egípcias de maneira uniforme, independentemente do seu envolvimento religioso, estou particularmente interessada em compreender como uma vida vivida de acordo com as virtudes islâmicas afeta a capacidade da mulher para incorporar as normas patriarcais. Quais os recursos e capacidades propiciados pelo estilo de vida pietista para as mulheres participantes no revivalismo, e como é que os seus modos de incorporação dessas estruturas se diferenciam dos das mulheres que procuram recursos de sobrevivência noutras instâncias? Particularmente, pretendo compreender as implicações práticas e conceptuais de um imaginário religioso onde os seres humanos são considerados como sendo apenas parcialmente responsáveis pelas suas ações, em contraposição com um imaginário onde os seres humanos são considerados como os únicos responsáveis pelas suas ações. O que me interessa aqui não são apenas as repercussões epistemológicas destes diferentes registos da ação humana,[63] mas sim como ambos os registos afetam a capacidade da mulher para sobreviver no seio de um sistema de desigualdade e para crescer apesar dos constrangimentos.

Uma das participantes no movimento das mesquitas era uma mulher casada, na casa dos trinta, chamada Nadia; era uma professora de escola primária e também ensinava o Alcorão a crianças numa mesquita, numa tarefa que ela considerava como sendo uma responsabilidade social no contexto da contínua promoção do pietismo. Num dos meus encontros com Nadia, participei numa conversa que ela mantinha com uma amiga, uma mulher mais jovem chamada Iman, já a chegar aos trinta anos e, de acordo com os padrões egípcios, tendo já ultrapassado a idade de casar. Um colega de Iman, casado, tinha-lhe pedido a mão em casamento.[64] Iman sentia-se incómoda porque, apesar de o homem ser muito respeitado no local de trabalho e de ela sempre o ter tido em boa consideração, ele já tinha uma primeira mulher. Ela sentia-se confusa em relação ao que devia fazer, e pedia conselhos a Nadia. Para minha surpresa, Nadia aconselhou Iman a dizer ao homem para se dirigir formalmente aos seus pais para pedir a sua mão em casamento e a permitir que os seus pais investigassem o passado do homem, de forma a se certificar se ele seria ou não um bom partido.

Fiquei perplexa com a resposta. Eu esperava que Nadia dissesse a Iman para não pensar mais no assunto, já que o homem não só tinha quebrado as regras da conduta apropriada como também era já casado. Uma semana depois, quando estava sozinha com Nadia, coloquei-lhe a pergunta que me incomodava: porque é que ela não dissera a Iman para cortar todas as relações com este homem? Nadia pareceu algo incomodada e perguntou-me porque é que eu achava que esse seria o conselho adequado. Quando eu lhe expliquei, ela respondeu: “Não há nada de mal no facto de um homem abordar uma mulher para lhe pedir a mão em casamento, desde que as suas intenções sejam sérias e ele não esteja a brincar com ela. Isto aconteceu muitas vezes no tempo do Profeta”. Eu interrompi-a, dizendo: “E em relação ao facto de ele já ser casado?” Nadia olhou para mim e perguntou: “Achas que ela não devia considerar um casamento com um homem casado?” Eu acenei afirmativamente. Nadia deteve-se a olhar para mim, de forma contemplativa, e disse: “Não sei como é que é nos Estados Unidos, mas essa questão não é assim tão simples aqui no Egito (al-mas’ila di mix sahla fi Maçr, īa Saba). Se ainda és solteira depois da adolescência ou por volta dos vinte anos – como acontece com Iman – toda a gente à tua volta te tratará como se tivesses um defeito (al-naqç). Toda a gente sabe que não te podes oferecer para casar com um homem, que tens de esperar que um homem se aproxime de ti. No entanto, toda a gente age como se a decisão estivesse nas tuas mãos! O que é pior é que mesmo a tua família mais próxima começa a pensar desta maneira”. Nadia reconheceu que os homens solteiros eram tratados de forma diferente porque, como disse, “o que se assume é que o homem, se quisesse, poderia ter-se proposto a qualquer mulher: se ele não é casado é porque ele não o quis ou que não encontrou uma mulher suficientemente boa para ele. No entanto, para a mulher assume-se que ninguém a quis a ela, porque não está nas suas mãos tomar a iniciativa”.

Quando perguntei a Nadia o que é que uma mulher deveria fazer numa situação destas, ela respondeu: “Tens de ser forte, deves ser paciente (çābira) face às dificuldades (lāzim tikūni çābira), confiar em Deus (taūuakali ‘ala Allah) e aceitar o facto de que é isso o que Ele dispôs como teu destino (qaDā’); se te estiveres sempre a queixar da tua situação, então estás a negar que apenas Deus, e não os humanos, tem a sabedoria para saber porque é que vivemos nas condições em que vivemos”.

Perguntei a Nadia se ela tinha sido capaz de adquirir esse estado de espírito, tendo em conta que ela casara bastante tarde. Nadia respondeu de uma forma inesperada. Disse: “Saba, não se aprende a ser paciente (çābira) ou a confiar em Deus (mutaūakkila) apenas quando se é confrontado com dificuldades. Há muitas pessoas que experienciam dificuldades e que não se queixam, mas que não são çābírīn (pacientes, sofredoras). Cultivamos a virtude da paciência (çabr) porque é uma boa ação, independentemente de a nossa vida ser complicada ou alegre. E mais, praticar a paciência perante a felicidade é ainda mais difícil”. Perguntei a Nadia: “Mas eu pensei que tinhas dito que uma pessoa precisa de ter paciência para poder lidar com as dificuldades”. Nadia respondeu, dizendo: “çabr (paciência) é uma condição do ser: praticamo-la independentemente de nos sentirmos felizes ou tristes. Se ela te traz conforto depois da dificuldade, isso é uma consequência secundária (al-natīja al-thānaūiīa) da prática da virtude de çabr. Deus é misericordioso e Ele recompensa dando-te a capacidade de ser corajosa em momentos de dificuldade. Mas deves praticar çabr porque é a ação correta no caminho de Deus (fi sabīl lillah)”.

Regressei da minha conversa com Nadia bastante espantada pela clareza com que ela ilustrou a condição das mulheres na sociedade egípcia – uma situação criada e regulada por normas sociais e pela qual as mulheres eram culpabilizadas. Enquanto que a resposta de Nadia acerca das opções que tinham de tomar era relacionável com as das egípcias seculares, a sua defesa da cultivação da virtude da çabr (enquanto perseverança sem queixume face às dificuldades) parecia-lhes mais problemática. Tendo em conta que çabr[65] implica uma perseverança face às dificuldades, ela invoca, para muitos, a passividade que muitas mulheres são encorajadas a cultivar face à injustiça. Sana, uma mulher trabalhadora na casa dos trinta, oriunda de uma família de classe média alta e autointitulada “muçulmana secular”, concordava com a descrição de Nadia acerca de como a vida se tornava progressivamente mais difícil para as mulheres no Egito, mas discordava fortemente do seu conselho relativamente à çabr. Dizia ela: “çabr é um princípio islâmico importante, mas esses tipos religiosos (mutadaīinīn) pensam que é uma solução para tudo. É uma forma demasiado passiva de lidar com a situação”. Enquanto que também para Sana uma mulher precisava de ter uma “personalidade forte” (xakhçiīa qaūiīia) para lidar com estas circunstâncias, para Nadia isso implicava adquirir autoestima e confiança (thiqa fi al-nafs ūa al-dhāt). Como explicava Nadia, “a autoestima faz-te independente daquilo que as pessoas pensam de ti. Começas a pensar no teu valor não só em termos de casamento e homens, mas sim em termos de quem realmente és e, no meu caso, tenho muito orgulho no meu trabalho e na minha capacidade para fazê-lo. Onde é que a çabr te leva? Em vez de te ajudar a melhorar a tua situação, apenas te leva a aceitá-la passivamente como o teu destino”.

Apesar de Nadia e Sana partilharem o reconhecimento da situação complicada sofrida pelas mulheres solteiras, distanciavam-se claramente nas respetivas perceções desse sofrimento, cada uma incorporando uma modalidade de agência diferente face ao mesmo problema. Para Sana, a capacidade de sobreviver à situação que ela vivia assentava na procura de um empoderamento através da cultivação da autoestima, como uma capacidade psicológica que, do seu ponto de vista, permite que uma pessoa possa desenvolver escolhas e ações autodirigidas sem ser condicionada pelas opiniões de outras pessoas. Pelo contrário, para Nadia a prática da çabr não faculta necessariamente uma imunidade face às opiniões das outras pessoas. De acordo com ela, uma pessoa opta, em primeiro lugar e sobretudo, pela prática da çabr porque é um atributo essencial do carácter devoto, um atributo a ser praticado independentemente das situações com que se depara. Mais do que aliviar o sofrimento, a çabr permite que uma pessoa suporte as dificuldades de forma correta, tal como é prescrito por uma tradição islâmica de autocultivação.[66] Como diz Nadia, se a prática da çabr fortifica a tua capacidade para lidar com o sofrimento social, esta será a sua consequência secundária, não a essencial. Para explicar este conceito, Nadia colocou o exemplo da figura de Ayyub (conhecido como Job na Bíblia), que, dizia ela, é conhecido não pela sua capacidade de se erguer sobre o sofrimento, mas precisamente pela maneira através da qual viveu o seu sofrimento. A perseverança de Ayyub não minorou o seu sofrimento: este apenas acabou quando Deus assim o decidiu. De acordo com este ponto de vista, a ausência de queixume face às dificuldades conta como çabr, mas é a forma como a çabr influencia a vida e modo de ser de uma pessoa que a torna çābira (aquele que exercita a çabr).

É conveniente recordar que a noção de çabr de Nadia estava ligada à ideia da causalidade divina, cuja sabedoria não pode ser decifrada pela mera inteligência humana. No entanto, tal como acontecera com Sana, muitos egípcios secularistas olham para a abordagem de Nadia como derrotista e fatalista, uma aceitação da injustiça social, cujas origens reais se encontram nas estruturas do patriarcado e nas convenções sociais, e não tanto na manifestação da vontade de Deus como destino (qaDa’). Nesta lógica, poder responsabilizar os seres humanos pelas injustiças sociais permite uma possibilidade de mudança que não é possível na causalidade divina. No entanto, o peso atribuído por Nadia ao destino não absolve os humanos de responsabilidade pelas circunstâncias injustas sofridas pelas mulheres. Pelo contrário, como ela viria a dizer mais adiante, uma coisa é predestinação e outra é escolha (al-qadr xai ūa al-ikhtiīār xai ākhir); enquanto que é Deus quem determina o teu destino (por exemplo, se és pobre ou rico), são os seres humanos quem escolhe como lidar com as suas condições (por exemplo, poderás roubar ou, pelo contrário, usar meios lícitos para aliviar a tua pobreza); em última instância, Deus os responsabilizará pelas suas opções. Portanto, o que temos aqui é uma noção de agência humana definida em termos de responsabilidade individual que é delimitada por uma estrutura escatológica, por um lado, e social, por outro.

Tal como a prática da autoestima estruturou as possibilidades de ação que se abriram para Sana, o mesmo aconteceu com a prática da çabr para Nadia: permitindo formas determinadas de ser e excluindo outras. Mais concretamente, o exercício da çabr não inibiu Nadia de embarcar num projeto de reforma social em menor medida que o cultivo de autoestima o fez para Sana. Reconhecer isto não desvaloriza o projeto de reforma de condições sociais opressivas – coisa que nem Nadia nem Sana poderiam procurar, por várias razões. Não deveremos, portanto, construir correlações precipitadas entre disposições seculares e a capacidade para transformar condições de injustiça social. Para além deste ponto, também pretendo enfatizar que analisar as ações das pessoas em função de tentativas bem-sucedidas ou frustradas de transformação social é, necessariamente, reduzir a heterogeneidade da vida à narrativa superficial do sucumbir ou resistir a relações de dominação. Tal como as nossas vidas não se encaixam completamente nas exigências de um requisito tão severo, também é importante que o recordemos quando tentamos analisar as vidas de mulheres como Nadia e Sana, assim como os movimentos de reforma social acima descritos.

Finalmente, tendo em conta que grande parte do esforço analítico deste trabalho é dirigido à especificidade dos termos internos às práticas do movimento das mesquitas, gostava de reiterar que a força destes termos deriva não tanto das motivações e intenções dos atores, mas sim do seu envolvimento iniludível com formações históricas conflitivas e sobrepostas. Neste contexto, o meu projeto baseia-se numa dupla rejeição do sujeito humanista. A primeira rejeição é evidenciada na minha exploração de determinadas noções de agência que não podem ser reconciliadas com o projeto de recuperar as vozes perdidas que ficaram de fora das “narrativas feministas hegemónicas”, para poder trazer à luz o seu humanismo e combatividade – precisamente porque fazê-lo implicaria, uma vez mais, o silenciamento da narrativa do sujeito soberano como autor da sua voz e história.

A segunda rejeição do sujeito humanista no meu projeto manifesta-se na minha recusa em recuperar os membros da mesquita enquanto “feministas subalternas” ou “outros fundamentalistas” da agenda feminista progressista. Fazê-lo, na minha opinião, seria reinscrever uma forma específica de ser humano que uma narrativa particular de “pessoa” e política nos disponibilizou, obrigando a complexa multiplicidade de vontades e ambições a encaixar-se nessa moldura narrativa já gasta. Pelo contrário, as minhas reflexões acerca das práticas do movimento feminino das mesquitas destinam-se a perturbar os raciocínios chave que se encontram no centro do pensamento liberal e através dos quais muitos destes movimentos são interpretados. Estas interpretações não só incorporam a rejeição ipso facto destes movimentos como antitéticos das agendas feministas como também procuram, por vezes, adotá-los como formas de feminismo, lançando-os assim ao imaginário liberal.[67] Desenhando aqui as múltiplas modalidades que informaram as práticas das participantes das mesquitas, procuro recordar a profunda incapacidade por parte do pensamento político feminista para visualizar formas relevantes de crescimento humano fora dos limites do imaginário liberal.

 

Conclusão

Em conclusão, gostaria de clarificar as implicações deste enquadramento analítico na forma como pensamos a política, especialmente à luz de algumas das questões que me foram colocadas quando apresentei este ensaio em público. Quando questiono os limites do projeto analítico do feminismo, sou frequentemente questionada se não estarei a ignorar a prescrição política do mesmo. Será que a atenção às formas como a agência moral e as normas funcionam no seio de um imaginário particular implica a suspensão da crítica? Quais são – perguntam-me – as “agendas implícitas” deste ensaio?

De certa forma, estas questões denunciam a tensão derivada do carácter dual do feminismo enquanto projeto simultaneamente analítico e político, no sentido em que nenhum empreendimento analítico é considerado suficiente por e para si mesmo se não assume uma posição relativamente à subordinação das mulheres. Marylin Strathern detetou este facto quando escreveu sobre a “relação incómoda” entre o feminismo e a antropologia. Argumentava:

“Insofar as the feminist debate is necessarily a politicized one, our common ground or field is thus conceived as the practical contribution that feminist scholarship makes to the solution or dissolution of the problem of women… To present an ethnographic account as authentic (‘these are the conditions in this society’) cannot avoid being judged for the position it occupies in this particular debate. By failing to take up an explicit feminist position, I have, on occasion, been regarded as not a feminist.”[68]

Apesar de apreciar os comentários concisos de Strathern acerca do empreendimento de pensar e escrever entre a análise e a militância, também penso que o argumento que aqui ofereço tem repercussões acerca da forma como pensamos sobre a política. Neste ensaio, argumentei que os objetivos liberatórios do feminismo devem ser repensados à luz do facto de que o desejo de liberdade e libertação é historicamente situado e que a sua força motivacional não pode ser assumida a priori, devendo antes ser reconsiderada no contexto de outras vontades, projetos históricos e capacidades que são inerentes ao sujeito discursiva e historicamente localizado. Em consequência, defendo que, ao analisar a problemática da política, devemos começar por colocar um conjunto de questões fundamentais acerca da relação conceptual entre o corpo, o self e a agência moral tal como são constituídos no seio de tradições ético-morais, e não tomar um modelo como axiomático, tal como acontece com frequência na escola feminista. Isto é particularmente relevante para o movimento que aqui discuto, tendo em conta que este se organiza em torno de uma conduta ética autoproduzida (e não apostada na transformação de instituições jurídicas ou estatais), cujo entendimento deverá atender necessariamente àquilo que noutros contextos se chamou de políticas do corpo – nomeadamente, a constituição do corpo no seio das estruturas de poder.

Se há uma coisa que a escola feminista conseguiu clarificar é que as questões da política devem ser abordadas através de uma análise da arquitetura do self e dos processos sociais e técnicos através dos quais os elementos constituintes do self (instintos, desejos, emoções, memória) são identificados e inseridos num contexto de coerência. Apesar de este raciocínio ter sido frequentemente utilizado para explicar como a desigualdade de género funciona de forma distinta nos distintos sistemas culturais, tem sido dada pouca atenção a como os distintos modos de ligação afetiva poderão limitar as discussões liberais e de esquerda sobre a relação constitutiva entre a ação moral e o embodiment quando se discute a política. As relações incorporadas entre as mulheres – e entre elas e o mundo –, uma vez entendidas como uma representação das estruturas de desigualdade, servem frequentemente como o teatro onde são postos em cena projetos, afetos e compromissos já conhecidos. No entanto, se reconhecermos que a política envolve mais do que a argumentação racional e a avaliação de princípios morais abstratos, e que os juízos políticos se erguem acima do nível intersubjetivo do ser e agir, então diremos que esse nível deverá ser politicamente envolvido para podermos pensar constitutiva e criticamente acerca do que a política é ou deve ser.

Para um investigador do Islão, nenhuma destas questões poderá ser adequadamente abordada sem ter em conta os tropos essenciais através dos quais o conhecimento sobre o mundo islâmico foi organizado, sobretudo no que diz respeito ao tropo da violência patriarcal e ao tratamento dado pelo Islão às mulheres. O véu, mais do que qualquer outra prática islâmica, tornou-se no símbolo e evidência da violência que o Islão infligiu às mulheres. Raramente apresentei os meus argumentos em contextos académicos – nomeadamente o meu argumento de que o véu é uma prática disciplinar que constitui subjetividades devotas – sem me deparar com uma avalanche de perguntas de pessoas que pretendem saber porque é que eu não condenei as conceções patriarcais por trás desta prática e o sofrimento por ela causado. Frequentemente espanto-me pela falta de curiosidade da minha audiência sobre os restantes significados produzidos pelo véu para além da violação das mulheres. Estas exortações à condenação são apenas uma indicação de como o véu, e os compromissos que ele incorpora – para não falar de outras práticas islâmicas –, veio a ser olhado através do prisma da liberdade e subjugação das mulheres, de tal forma que colocar questões alternativas acerca dessa prática implica a acusação de indiferença relativamente à opressão das mulheres. A força desta associação entre o véu e a liberdade das mulheres é igualmente manifesta nos argumentos que sancionam ou defendem o véu sob o pretexto de que este é um produto da “escolha livre” das mulheres e uma evidência da sua “libertação” da hegemonia dos códigos culturais ocidentais.

O que considero mais problemático neste enquadramento é a redução analítica que causa e o silêncio que promove relativamente a uma variedade de questões – questões que chamam a atenção dos académicos que pretendem pensar de forma produtiva sobre as práticas islâmicas que propiciam o revivalismo islâmico. Compreendo a demanda política das feministas em favor da vigilância contra os argumentos culturalistas que parecem autorizar práticas que silenciam a opressão das mulheres. Acrescentaria, no entanto, que as nossas explorações analíticas não deverão ser reduzidas a exigências políticas, em parte porque o esforço despendido no campo da análise é diferente daquele requerido pelas exigências da ação política, tanto na sua temporalidade como no seu impacto social. Estas duas modalidades de ação – política e analítica – não se deverão ignorar mutuamente, mas também não se deverão fundir numa só. Concedendo alguma imunidade à interrogação teórica relativamente aos requisitos da ação política estratégica, deixamos em aberto a possibilidade de a tarefa do pensamento se poder dirigir em direções que não são definidas pelo ritmo e lógica dos acontecimentos políticos imediatos.

Wendy Brown escreveu de forma eloquente sobre o que se perde quando a análise é sujeita às exigências da corroboração, julgamento e ação política. Argumenta Brown:

“It is the task of theory […] to ‘make meanings slide,’ while the lifeblood of politics is made up of bids for hegemonic representation that by nature seek to arrest this movement, to fix meaning at the point of the particular political truth – the nonfluid and nonnegotiable representation – that one wishes to prevail […] [L]et us ask what happens when intellectual inquiry is sacrificed to an intensely politicized moment, whether inside or outside an academic institution. What happens when we, out of good and earnest intentions, seek to collapse the distinction between politics and theory, between political bids for hegemonic truth and intellectual inquiry? We do no favor, I think, to politics or to intellectual life by eliminating a productive tension – the way in which politics and theory effectively interrupt each other – in order to consolidate certain political claims as the premise of a program of intellectual inquiry.”[69]

Entendo aqui o argumento de Wendy Brown como uma insistência na importância de observar um certo grau de ceticismo, se quisermos, uma suspensão de julgamentos, relativamente aos limites do discurso político. A “interrogação intelectual”, aqui, implica lutar contra as nossas conceções e categorias incorporadas, através das quais uma série de problemas incómodos foram domesticados como hábitos costumeiros de pensamento e práxis.

Este argumento ganha uma particular relevância no atual clima político, definido pelos acontecimentos de 11 de setembro de 2001 e a subsequente “guerra contra o terror” espoletada pelo governo dos Estados Unidos da América no mundo muçulmano. A velha reivindicação feminista acerca dos males patriarcais do Islão é agora enlistada ao serviço de um dos mais declarados projetos imperiais do nosso tempo. Vejamos, por exemplo, como a campanha internacional da Feminist Majority contra o regime Taliban foi essencial para a tentativa por parte da administração de Bush para construir uma legitimidade em torno do bombardeamento do Afeganistão – convenientemente intitulada “Operação Liberdade Duradoura”.[70] Foi o corpo coberto com a burka da mulher afegã – e não a destruição provocada por vinte anos de guerra subsidiada pelos Estados Unidos da América numa das maiores operações encobertas na história daquele país – que serviu como referente primário na vasta mobilização da Feminist Majority contra o regime Taliban (e posteriormente a guerra da administração Bush). Apesar de a proibição da educação para as mulheres afegãs e as restrições impostas aos seus movimentos terem sido frequentemente invocadas, foi essencialmente a imagem da burka o que condensou e organizou o conhecimento sobre o Afeganistão e as suas mulheres, como se apenas ela pudesse fornecer um entendimento adequado do seu sofrimento. A desadequação deste entendimento é hoje por demais evidente, quando os relatórios do Afeganistão notam progressivamente como a vida das mulheres afegãs não melhorou desde o derrube dos Taliban e como a vida nas ruas se tornou progressivamente mais insegura que nos tempos do anterior regime, devido às condições de crescente instabilidade sociopolítica.[71] Talvez tenhamos que lidar com a possibilidade de que, caso tivesse sido acrescentada alguma complexidade analítica ao quadro apresentado por organizações como a Feminist Majority acerca da situação das mulheres afegãs no regime Taliban, caso a necessidade de reflexão histórica não tivesse sido hipotecada pela necessidade de uma ação política imediata, talvez aí o feminismo não tivesse sido tão recrutável para o projeto imperial.

As questões éticas que projetos imperiais desta magnitude levantam para os intelectuais e ativistas feministas também são relevantes para o contexto mais pacífico do movimento feminino das mesquitas que ocupou este ensaio. Tendo em conta que o feminismo é um projeto politicamente prescritivo, ele requer a recomposição das sensibilidades e compromissos das mulheres cujas vidas contrastam com as visões emancipatórias feministas. Muitas das feministas que decerto se oporiam ao uso de força militar não teriam dificuldade em apoiar projetos de reforma social destinados a transformar os laços, compromissos e sensibilidades que orientam as práticas de mulheres como aquelas com quem trabalhei, e assim facultar-lhes uma vida mais iluminada. De facto, a minha própria história de envolvimento na política feminista é prova de uma crença inquebrantável em projetos de reforma destinados a descrever determinadas formas de vida como provisórias, se não mesmo extintas. No entanto, acabei por me questionar – e desafio o leitor com a mesma pergunta: as minhas visões políticas concorrem alguma vez contra a responsabilidade que eu assumo pela destruição de formas de vida de forma a que mulheres “não esclarecidas” possam ser ensinadas a viver mais livremente? Será que um conhecimento íntimo de estilos de vida distintos do meu questiona a minha própria certeza sobre aquilo que prescrevo para os outros como sendo um modo de vida superior?

Foi no decurso do encontro entre as minhas próprias objeções ao modo de vida incorporado pelo movimento pietista e as texturas das vidas das mulheres com quem trabalhei que o ético e o político convergiram em mim num sentido pessoal. Quando conduzia o trabalho de campo com este movimento, acabei por reconhecer que uma investigação politicamente responsável não implica só ser fiel aos desejos e aspirações das “minhas informantes” e pedir à minha audiência “compreensão e respeito” pela diversidade de vontades que caracteriza o mundo de hoje. Nem tão-pouco é suficiente revelar as minhas conceções ou as (in)tolerâncias ou parcialidades dos meus colegas. Como alguém que acabou por acreditar, tal como várias feministas, que o projeto político do feminismo não é predeterminado mas precisa de ser continuamente negociado em contextos específicos, fui confrontada com uma série de questões: o que é que nós, as feministas, queremos dizer quando dizemos que a desigualdade de género é o princípio central da nossa análise e política? Como é que o meu envolvimento com a densa textura das vidas das minhas informantes afeta esta problemática? Estaremos dispostos a tolerar a, por vezes violenta, tarefa da reconstrução das sensibilidades, mundos e laços de forma a que mulheres como aquelas com quem trabalhei possam aprender o valor do princípio da liberdade? Mais ainda, será que o compromisso com o ideal da igualdade nas nossas próprias vidas nos confere a capacidade de saber se este ideal engloba o que é ou deve ser o direito dos outros? Se não, como será efetivamente o caso, penso que devemos repensar, com muito maior humildade que a acostumada, o que significa na realidade a política feminista. (Neste ponto quero clarificar que os meus comentários não se dirigem apenas a “feministas ocidentais”, mas também “feministas do Terceiro Mundo” e todas aquelas que se encontram noutro lugar para além deste terreno polarizado, já que estas questões nos implicam a todas, dado o ímpeto liberatório da tradição feminista.)

Questionando-me se o meu enquadramento apela para a suspensão da crítica no que se refere ao carácter patriarcal do movimento das mesquitas, a minha resposta será que não defendo essa ideia. Defendo, isso sim, uma expansão do entendimento normativo de critique, um entendimento que é prevalecente entre vários progressistas e feministas (onde frequentemente me incluí a mim própria). A crítica, deste ponto de vista, tem a ver com a desconstrução bem-sucedida da posição do oponente e a exposição da implausibilidade do seu argumento e da inconsistência da sua lógica. Este é, do meu ponto de vista, um entendimento limitado da noção de critique. A critique, penso, é mais poderosa quando deixa em aberto a possibilidade de nós próprios sermos mudados pelo envolvimento com a visão do mundo dos outros e de podermos aprender coisas que desconhecíamos antes desse envolvimento. Isto implica que, ocasionalmente, viremos o olhar crítico em nossa direção para deixar em aberto a possibilidade de sermos mudados através do encontro.

As questões acima colocadas acerca da política não devem ser vistas como um apelo ao abandono da luta contra o que consideramos ser práticas injustas no contexto situado das nossas vidas, ou como uma militância do estilo de vida devoto das mulheres com quem trabalhei. Fazê-lo seria apenas reproduzir a certeza teleológica que caracteriza algumas das versões do liberalismo progressivo que antes critiquei. Pelo contrário, sugiro que deixemos em aberto a possibilidade de as nossas certezas políticas e analíticas serem transformadas no processo de movimentos não liberais como aqueles que eu estudei, e de as vidas das mulheres com quem trabalhei poderem ensinar-nos algo para além do que aprendemos no exercício científico socialmente circunscrito de “compreender e traduzir”. Se existe uma posição política normativa subjacente a este ensaio, esta será a de apelar a que nós – os meus leitores e eu – possamos embarcar numa interrogação sem assumir que as nossas convicções políticas tenham, necessariamente, de fomentar a nossa análise teórica, mas construindo, antes, a possibilidade de colocar aos agentes da política questões que pareciam inócuas, ao embarcarmos no nosso projeto.

 

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NOTAS

[1] Gostaria de agradecer à Princeton University Press pela permissão para publicar este excerto do meu livro Politics of Piety: The Islamic Revival and the Feminist Subject, publicado em 2005. Uma versão prévia deste artigo foi também publicada na revista Cultural Anthropology, n.° 16, volume 2. Artigo traduzido por Ruy Blanes.

[2] O termo “liberal” refere-se aqui à arquitetura filosófica e política do liberalismo clássico euro-americano e à forma como esta serviu de referência para muitos movimentos emancipatórios e de esquerda, assim como para muitas linhas de investigação pelo mundo fora, que por sua vez não se identificam necessariamente com o termo “liberal”.

[3] Este dilema parece ser potenciado pelo facto de a participação de mulheres no movimento islâmico em vários países (como o Irão, o Egito, a Indonésia e a Malásia) não se limitar às classes mais pobres ou médias – classes frequentemente consideradas como tendo uma “afinidade natural” com a religião –, mas também incorporar mulheres dos estratos com rendimentos médios e altos.

[4] Existem três eixos de ação fundamentais que constituem o revivalismo islâmico: grupos e partidos institucionais, militantes islamistas (cuja presença foi diminuindo a partir dos anos 80 do século XX) e ainda uma rede de organizações sociorreligiosas sem fins lucrativos que oferecem serviços de caridade aos pobres e empreendem ações proselitistas. O movimento feminino das mesquitas é um subgrupo importante desta rede de organizações sociorreligiosas e inspira-se no mesmo discurso pietista (chamado “da’ūa”). Para uma análise das relações históricas e institucionais entre as associações sem fins lucrativos e o movimento feminino das mesquitas, ver Mahmood (2005).

[5] Esta sensibilidade tem uma presença pública palpável no Egito, evidenciada na vasta proliferação de mesquitas de bairro e outras instituições de ensino islâmico e trabalho social, no aumento dramático da frequentação das mesquitas, tanto por homens como por mulheres, e ainda em manifestações públicas de sociabilidade religiosa. Exemplos destas últimas incluem a adoção do véu (Hijāb), um enérgico consumo e produção de media e literatura, e ainda um crescente círculo de intelectuais que escreve e comenta os assuntos contemporâneos na imprensa popular a partir de um autoatribuído “ponto de vista islâmico”. As mesquitas de bairro acabaram por servir de centro organizacional para muitas destas atividades.

[6] A minha pesquisa é resultado de dois anos de trabalho de campo (1995-1997) conduzidos em cinco mesquitas diferentes, abrangendo vários estratos socioeconómicos, no Cairo, Egito. Também desenvolvi observação participante junto dos líderes e membros do movimento de mesquitas no contexto das suas vidas quotidianas. Este trabalho foi ainda complementado com um ano de estudos sobre temas da jurisprudência e prática religiosa islâmica, lecionados por um xeikh da Islamic University de al-Azhar.

[7] As mesquitas têm assumido um papel central no revivalismo islâmico do Egito: desde os anos 70 do século XX verificou-se um crescimento inédito de mesquitas em comunidades de bairros e associações não governamentais, muitas das quais oferecendo uma variedade de serviços sociais aos habitantes do Cairo (e em especial aos pobres), tais como serviços médicos, segurança social e educação. Tendo em conta o programa de liberalização económica promovido pelo Estado desde os anos 70 e o concomitante declínio de serviços sociais garantidos por este, estas mesquitas preenchem uma importante lacuna para muitos egípcios.

[8] Atualmente, praticamente não existem bairros na cidade do Cairo – de onze milhões de habitantes – onde as mulheres não ofereçam e recebam ensino religioso. A frequência destas reuniões varia entre dez e quinhentas mulheres, dependendo da popularidade da professora. O movimento continua a ser informalmente organizado pelas mulheres e não tem um centro organizacional para supervisionar a sua coordenação.

[9] Isto contrasta, por exemplo, com um movimento de mulheres desenvolvido na República Islâmica do Irão com o objetivo de reinterpretar textos sagrados de forma a construir um modelo de relações entre homens e mulheres muçulmanas mais equitativo; ver Afshar (1998) e Najmabadi (1998).

[10] Nota de tradução: A transcrição dos vocábulos árabes – feita a partir da transliteração para o inglês da versão original – seguirá de perto a versão de transliteração simplificada que José Pedro Machado utiliza no Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, atribuindo-se o gh para ﻍ. As vogais longas aparecerão da seguinte maneira: ā, ī, ū.

[11] Para estudos recentes sobre o movimento islâmico no Egito, ver Hirschkind (2001, 2006), Salvatore (1997) e Starrett (1998).

[12] O pietismo, aqui, refere-se mais à conduta prática (e portanto “secular”) do que aos estados espirituais, como é conotado na tradição puritana inglesa. Para uma análise das políticas promovidas pelo movimento pietista (e pelo movimento das mesquitas), ver Mahmood (2005).

[13] O secularismo é frequentemente entendido como o domínio da vida real emancipado das restrições ideológicas da religião. No entanto, como argumenta Talal Asad, foi precisamente a configuração de uma oposição entre o domínio secular e o religioso (onde este é visto como o campo a partir do qual aquele emerge) aquilo que forneceu a base para uma conceção normativa moderna, não apenas para a religião mas também para a política – ver Asad (2003). Esta justaposição dos domínios religioso e secular foi facilitada pela incorporação da autoridade religiosa no Estado e suas instituições legais. Dizer que uma sociedade é secular não significa que a religião é banida das suas políticas, leis e formas de associação. Pelo contrário, a religião é admitida nestes domínios sob a condição de que assumirá uma forma particular; quando se afastar dessas formas, será confrontada com um conjunto de barreiras reguladoras. A proibição do véu como indumentária apropriada para mulheres e raparigas na França e Turquia é disso um exemplo ilustrativo.

[14] Em 1996, o parlamento egípcio aprovou uma lei decretando a nacionalização da grande maioria das mesquitas de bairro e o Ministério de Assuntos Religiosos obriga todos os homens e mulheres que pretendem ensinar nas mesquitas a frequentar um programa estatal de dois anos, independentemente da sua formação anterior em assuntos religiosos. Ver al-Hayat, “Wazir al-auqaf al-masri lil-Hayat: muassasat al-Azhar tu’ayyid tanzim al khataba fi-al-masajid”, de 25 e 27 de janeiro de 1997. Mais ainda, as aulas femininas na mesquita são frequentemente gravadas e monitorizadas por funcionários do Estado. O governo egípcio continua a suspender aulas promovidas por professoras da mesquita por proferirem comentários críticos do Estado.

[15] No contexto muçulmano, ver, por exemplo, Boddy (1989), Hegland (1998), MacLeod (1991) e Torab (1996). Para um argumento semelhante no contexto dos movimentos cristãos evangélicos, ver Brusco (1995) e Stacey (1991).

[16] Para uma revisão deste pensamento no Médio Oriente, ver Abu-Lughod (1990).

[17] Em certo sentido, esta tendência no seio dos estudos de género mostra similitudes com o tratamento do campesinato nas obras da escola da nova esquerda, que também procurou restaurar uma agência humana (frequentemente descrita metaforicamente como “voz”) ao camponês na historiografia de sociedades agrárias – um projeto articulado contra as formulações marxistas clássicas, que tinham estabelecido para o campesinato um não-lugar na formação da história moderna. Um bom exemplo desta escola é o Subaltern Studies Project. Ver, por exemplo, Guha e Spivak (1988). Não é, portanto, surpreendente que, para além do campesinato, Ranajit Guha, um dos fundadores do Subaltern Studies Project, tenha invocado uma nova historiografia que restaure as mulheres como agentes e não instrumentos de vários movimentos. Ver Guha (1996).

[18] Consideremos, por exemplo, a enriquecedora etnografia de Janice Boddy acerca do culto feminino do zar no norte do Sudão, que usa idiomas islâmicos e médiuns espíritas. Analisando as práticas destas mulheres, Boddy argumenta que as mulheres que ela estudou “utilizam, talvez inconscientemente, talvez estrategicamente, aquilo que no ocidente provavelmente descreveríamos como instrumentos da sua opressão como formas de demonstrar o seu valor, tanto de forma coletiva, através das cerimónias que organizam e encenam, como de forma individual, no contexto dos seus casamentos, insistindo assim na complementaridade dinâmica com os homens. Isto é, em si mesmo, um método de resistência e delineação de limites para a dominação…” (Boddy 1989: 345, itálicos meus).

[19] Aspetos deste argumento poderão ser encontrados em vários trabalhos antropológicos sobre mulheres no mundo árabe, como por exemplo S. Davis (1983), Dwyer (1978), Early (1993), MacLeod (1991) e Wikan (1991).

[20] Apesar do debate no seio do feminismo, esta é uma premissa que é partilhada por várias posições políticas feministas, incluindo as radicais, socialistas, liberais e psicanalíticas, e marca o domínio do discurso feminista. Mesmo no caso das feministas marxistas e socialistas, que argumentam que a subordinação das mulheres é determinada por relações sociais de produção económica, verifica-se o reconhecimento da tensão inerente entre os interesses das mulheres e os interesses da sociedade mais abrangente, moldada e dominada pelos homens. Ver Harstock (1983) e MacKinnon (1989). Para um argumento antropológico sobre o carácter universal da desigualdade de género, ver Yanagisako e Collier (1987).

[21] Strathern (1988).

[22] John Stuart Mill, uma figura central na tradição liberal e feminista, argumentou, por exemplo, que “o fardo da prova é suposto estar do lado daqueles que estão contra a liberdade, que lutam por uma qualquer restrição ou proibição… A assunção a priori está a favor da liberdade…” (Mill 1991).

[23] No seio da filosofia política liberal, esta noção (identificada com o pensamento de Bentham e Hobbes) encontra a sua aplicação mais direta nos debates sobre qual o papel adequado da intervenção do Estado na esfera protegida das vidas privadas dos indivíduos. Este também é o campo onde as feministas debateram a justiça das leis antipornografia propostas por várias feministas. Ver, por exemplo, Bartky (1990), MacKinnon (1993), Rubin (1984) e Samois Collective (1987).

[24] Berlin (1969), Green (1986), Simhony (1993), Taylor (1985).

[25] Ver Hunt (1991), MacCallum (1967), Simhony (1993) e West (1993).

[26] É bastante claro que tanto as noções negativas como positivas da liberdade foram utilizadas de forma produtiva na expansão do horizonte do domínio das práticas e debates feministas legítimos. Por exemplo, na década de 70 do século xx, em resposta ao apelo das feministas brancas de classe média para desmantelar a instituição da família nuclear, que elas acreditavam ser uma fonte fundamental de opressão feminina, as feministas nativas americanas e afro-americanas argumentaram que a liberdade, do seu ponto de vista, consistia precisamente em serem capazes de formar famílias, já que a longa história de escravidão, genocídio e racismo operara precisamente na destruição das suas comunidades e redes sociais. Ver, por exemplo, Brant (1984), Collins (1991), A. Davis (1983) e Lorde (1993). Igualmente, o manifesto A Black Feminist Statement, do Combahee River Collective, rejeitou o apelo para o separatismo lésbico proposto por feministas brancas, sob o pretexto de que a história da opressão racial obrigou as mulheres negras a formar alianças com os membros masculinos das suas comunidades de forma a continuar a lutar contra o racismo institucionalizado. Ver Hull, Bell-Scott e Smith (1982).

[27] Para uma discussão esclarecedora sobre o projeto historiográfico da herstory, ver Scott (1988: 15-27).

[28] Ahmed (1999) e Wikan (1991).

[29] Para uma discussão interessante sobre as contradições geradas pela posição privilegiada atribuída ao conceito de autonomia na teoria feminista, ver Adams e Minson (1978).

[30] No primeiro grupo, ver Chodorow (1978) e Gilligan (1982); no segundo, ver Benhabib (1992) e Young (1990).

[31] Suad (1999), Friedman (2003), Nedelsky (1989).

[32] Butler (1993), Gatens (1996), Grosz (1994).

[33] Para uma excelente discussão deste ponto na produção sobre a ética feminista, ver Colebrook (1997).

[34] Estudos sobre o ressurgimento da popularidade do véu no Egito urbano desde os anos 80 do século xx fornecem excelentes exemplos destes problemas. A proliferação de estudos sobre o véu reflete a surpresa dos teóricos pelo facto de, contrariando as suas expectativas, tantas “mulheres egípcias modernas” terem voltado a usar o véu. Alguns desses estudos oferecem explicações funcionalistas, apontando uma variedade de razões sobre o porquê do uso voluntário do véu pelas mulheres (por exemplo, que o véu permite evitar o abuso sexual nos transportes públicos, desce os custos de indumentária para as mulheres trabalhadoras, etc.). Outros estudos identificam o véu como um símbolo de resistência à comodificação dos corpos das mulheres pelos média ocidentais importados e, de forma mais geral, à hegemonia dos valores ocidentais. Ver, por exemplo, El Guindi (1981), Hoffman-Ladd (1987), MacLeod (1991), Radwan (1982) e Zuhur (1992). Apesar dos contributos importantes elaborados por estes estudos, é surpreendente que os seus autores tenham prestado tão pouca atenção às virtudes islâmicas da modéstia ou devoção, especialmente tendo em conta que muitas das mulheres que optaram pelo uso do véu justificam a sua decisão nestes termos. Pelo contrário, os analistas frequentemente explicam as motivações das mulheres que usam véu em função de modelos prototípicos de causalidade sociológica (tais como o protesto social, a necessidade económica, a anomia ou a estratégia utilitária), enquanto que termos como a moralidade, a divindade e a virtude são classificados como imaginações fantasmagóricas daqueles que são hegemonizados.

[35] Para uma excelente exploração do uso da linguagem na construção cultural da pessoa, ver Caton (1990), Keane (1997) e Rosaldo (1982). Ver também a crítica de Marilyn Strathern às conceções ocidentais de “sociedade e cultura”, frequentemente assumidas pelas abordagens feministas desconstrutivistas às relações de género em sociedades não ocidentais (1992).

[36] O conceito de “tradição discursiva” é de Talal Asad (1986).

[37] Foucault (1978, 1980).

[38] Butler (1997a), Foucault (1980, 1983).

[39] Um aspeto importante da análise do poder de Foucault é a sua atenção àquilo que ele denominou de “técnicas”, os vários mecanismos e estratégias através dos quais o poder é exercido na sua imposição aos sujeitos e objetos. Butler distancia-se de Foucault neste ponto, no sentido em que o seu trabalho não é tanto uma exploração das técnicas de poder, mas sim das questões da representação, interpelação e manifestações psicológicas do poder. Com o tempo, Butler foi articulando as suas diferenças com Foucault em vários pontos. Ver, por exemplo, Butler (1997a: 248 n. 19, 1997b: 83-105, 1999: 119-141) e Butler e Connolly (2000).

[40] Butler (1997b: 18).

[41] Butler (1999: xxiv).

[42] Butler (1997c). Butler explica este ponto de modo sucinto em relação ao sexo/género: “Como efeito sedimentado de uma prática reiterativa ou ritual, o sexo adquire o seu efeito naturalizado; no entanto, também é por via dessa mesma reiteração que são abertas fissuras como instabilidades constitutivas nessas construções – como aquilo que excede a norma…” Esta instabilidade é a possibilidade desconstitutiva no próprio processo de repetição, o poder que desfaz os próprios efeitos através dos quais o “sexo” é estabilizado, a possibilidade de colocar a consolidação das normas do “sexo” numa crise potencialmente produtiva. Ver Butler (1993: 15).

[43] Benhabib et al. (1995: 136).

[44] Seguindo Foucault, Butler argumenta: “o paradoxo da subjetivação (assujetissement) é precisamente o facto de o sujeito que deve resistir a essas normas ser facultado, se não mesmo produzido, por essas normas. Apesar de esse constrangimento constitutivo não eliminar a possibilidade da agência, ele localiza a agência como uma prática reiterativa ou rearticulatória, imanente ao poder, e não uma relação de oposição externa ao poder” (1993: 15).

[45] Ver a abordagem de Butler a este tema em “Gender is burning” (Butler 1993; ver também 2001).

[46] Butler (1993: 122-123). Por exemplo, discutindo a questão da agência, Butler escreve: “um registo da iterabilidade do sujeito […] mostra como a agência pode muito bem consistir na oposição e transformação dos termos sociais a partir dos quais ela nasce” (ver Butler 1997b: 29). Note-se a equivalência aqui desenhada entre a agência e a capacidade da performatividade para se opor à estrutura normativa. Argumentos como este, frequentemente reproduzidos nos seus textos, colocam tensão sobre os seus próprios argumentos, neste caso no mesmo texto, onde ela avisa o leitor de que a agência não pode ser conceptualizada como “sempre e exclusivamente oposta ao poder” (1997b: 17).

[47] Amy Hollywood sugere que Butler herda esta valorização da ressignificação – a propensidade dos atos da fala para se libertar das suas significações prévias – de Derrida. Mas, como argumenta Hollywood, onde Derrida se mantém ética e politicamente neutral relativamente a esta característica da linguagem e dos signos, Butler interpreta a ressignificação como politicamente positiva. Ver Hollywood (2002).

[48] Ver, por exemplo, Butler (1997b).

[49] Butler argumenta, por exemplo, que a noção de Foucault de subjetivação pode ser produtivamente complementada com determinadas reformulações da teoria psicanalítica. Para Butler, a força deste complemento parece residir, no entanto, na sua capacidade para abordar o “problema de localizar e identificar a resistência. Onde é que a resistência à ou na formação disciplinar do sujeito ocorre? Será que a redução [de Foucault] da noção, rica do ponto de vista psicanalítico, de psyche à noção de alma como jaula [em Vigiar e Punir] elimina a possibilidade de resistência à normalização e formação do sujeito, uma resistência que emerge precisamente da incomensurabilidade entre a psyche e o sujeito? (Butler 1997: 87).

[50] Ver Tantawi (1994).

[51] Ashmawi (1994a). Para uma discussão entre ambos os grupos acerca do véu e a virtude da modéstia, ver a interação entre os então mufti do Egito, Sayyid Tantawi e o proeminente intelectual Said Muhammed Ashmawi, que se tem revelado como o líder do “liberalismo islâmico” no mundo árabe. Ver Ashmawi (1994b) e Tantawi (1994).

[52] A minha análise do trabalho que diferentes conceções e práticas normativas realizam na constituição do sujeito é fortemente inspirada nos últimos trabalhos de Foucault sobre ética. Ver Foucault (1990, 1997). Para a minha elaboração desta abordagem ao entendimento das políticas islamistas, ver Mahmood (2005), em especial os capítulos 1 e 4.

[53] A maioria dos verbos árabes são baseados numa raiz triconsonântica de onde derivam dez (e por vezes quinze) formas verbais.

[54] É interessante notar que as mulheres com quem trabalhei não empregavam a distinção corpo-mente que utilizo na minha análise. Por exemplo, referindo-se à timidez, falavam nela como uma forma de ser e de agir de tal forma que se tornava difícil discernir qualquer separação. Retive a distinção entre corpo e mente apenas para propósitos analíticos, tendo como objetivo compreender a relação concreta que é articulada entre ambos na tradição de autoformação.

[55] Este conceito pode ser esclarecido pela analogia com dois diferentes modelos de dieta: um modelo mais antigo, onde a prática da dieta é entendida como sendo uma solução temporária e instrumental para o problema da acumulação de peso; e um modelo mais contemporâneo, onde a dieta é entendida como sendo sinónimo de um estilo de vida saudável e nutritivo. O segundo modelo pressupõe uma relação ética entre a pessoa e o resto do mundo, sendo neste sentido semelhante àquilo que Foucault chamou de “práticas de cuidado do self”. As diferenças entre ambos os modelos apontam para o facto de que não adianta muito reconhecer que esses sistemas de poder marcam a sua verdade nos corpos humanos através de disciplinas de autoformação. Para poder compreender a força comandada por estas disciplinas, é necessário explicar a relação conceptual articulada entre os distintos aspetos do corpo e a noção particular de self que promove os distintos regimes disciplinares.

[56] Bourdieu (1997). Enquanto técnica pedagógica para o desenvolvimento de virtudes morais, o habitus não é, neste sentido, um termo universal, aplicável a todos os tipos de conhecimento, nem serve de ponte conceptual entre o mundo objetivo de estruturas sociais e a consciência subjetiva, tal como acontece na formulação de Bourdieu.

[57] Na sua Ética Nicomaqueia, Aristóteles faz uma distinção entre as virtudes morais e intelectuais, onde aparentemente o princípio pedagógico do habitus pertence a estas e não àquelas: “A virtude, portanto, é de dois tipos, intelectual e moral. A virtude intelectual, no geral, nasce e desenvolve-se através do ensino (necessitando, para tal, de experiência e de tempo), enquanto que a virtude moral é constituída como o resultado do hábito, daí que o seu nome ethike tenha origem numa pequena variação da palavra ethos (hábito). Portanto, é evidente que nenhuma das virtudes morais nos é dada pela natureza – porque nada do que existe pela natureza pode criar um hábito contrário à mesma… Porque as coisas que temos de aprender antes de as fazer, aprendemo-las fazendo. Por exemplo, os homens tornam-se construtores construindo e os tocadores de lira tocando; também nós aprendemos a ser justos agindo de forma justa, a ser moderados agindo com moderação, a ser bravos com atos corajosos… Através das nossas interações com os outros tornamo-nos justos ou injustos, e agindo como agimos na presença do perigo e sendo habituados a sentir medo ou confiança, tornamo-nos bravos ou covardes”. Ver Aristóteles (Aristotle 1941: 592-593). Ver Nederman (1989) para a ênfase colocada pela tradição aristotélica no treino de várias faculdades humanas e na disciplina assídua na cultivação do habitus. Para Bourdieu, o habitus é primariamente incorporado através de processos inconscientes.

[58] Com a retenção da distinção entre motivos internos e comportamentos externos – tão frequentemente invocada pelos participantes das mesquitas – não pretendo sugerir que se trata de uma descrição apropriada da realidade ou de um princípio analítico universalmente válido. Pelo contrário, estou interessada em perceber os diferentes tipos de relações construídas entre o corpo e a mente, o corpo e a alma, a interioridade e a exterioridade quando essas distinções são utilizadas numa tradição de pensamento. Por exemplo, a distinção entre corpo e alma, tal como foi empregue por Platão, sugeria uma primazia metafísica da alma sobre o corpo. Aristóteles reescreveu esta relação, vendo ambos como uma unidade inseparável, onde a alma se tornava parte da matéria corporal. As mulheres com quem trabalhei pareciam olhar para o corpo quase como a materialização da alma, enquanto que a alma era uma condição do próprio corpo.

[59] Ver Leaman (1999) para uma discussão do termo malaka na tradição islâmica.

[60] Lapidus (1984: 54). Consideremos, por exemplo, os comentários de Ibn Khaldun em The Muqadimmah, que se mostram extremamente próximos da discussão de Aristóteles: “O habit[us] é uma qualidade firme, adquirida quando fazemos uma ação e a repetimos uma e outra vez até que a forma da ação é fortemente fixada [na nossa disposição]. Um habit[us] corresponde à ação original depois de esta ser formada”. Ver Khaldun (1958: 346).

[61] Lapidus (1984: 55-56).

[62] Ver, por exemplo, Farid (1990) e Hawwa (1995). A.H. al-Ghazali foi muito crítico da influência neoplatónica no Islão. Ver Fakhry (1983: 217-233). No entanto, o seu pensamento ético manifestava uma clara influência aristotélica. Neste ponto, ver Sherif (1975) e a introdução de T.J. Winter na obra de Abu Hamid al-Ghazali’d, On Disciplining the Soul and Breaking the Two Desires: The Revival of the Religious Sciences (1995: xv-xcii). Para a obra seminal de A.H. al-Ghazali sobre as práticas de autocultivação moral, ver al-Ghazali (1984, 1992).

[63] Ver, por exemplo, Chakrabarty (2000) e Hollywood (2004).

[64] A jurisprudência islâmica permite aos homens ter até quatro mulheres.

[65] Optei aqui pelo uso de çabr em vez da sua tradução comum inglesa de “paciência”, porque çabr comunica um sentido que não é captado pela sua tradução: o de perseverança, estabilidade e tolerância perante as dificuldades, sem queixume.

[66] Sublinho aqui a particularidade desta tradição, seguida pelo movimento pietista no Egito, bastante diferenciada de outras tradições de cultivo moral no Islão, como por exemplo a tradição i ou çufi.

[67] Para a primeira, ver Moghissi (1999). Para a segunda, ver Warnock Fernea (1998).

[68] Strathern (1988: 28).

[69] Brown (2001: 41).

[70] Para este tópico, ver Hirschkind e Mahmood (2002).

[71] Amnesty International (2003), Badkhen (2002), Human Rights Watch (2002).

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