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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica vol.23 no.1 Lisboa jan. 2019

https://doi.org/10.4000/etnografica.6354 

ARTIGOS

 

Tecnologias e sujeitos da participação: a mobilização política dos camelôs porto-alegrenses

 

Technologies and subjects of participation: the political mobilization of street vendors in Porto Alegre, Brazil

 

 

Moisés KopperI

IMax Planck Institute for the Study of Societies, Alemanha. E-mail: moiseskopper@gmail.com

 


RESUMO

Tecnologias de participação direta na democracia, como o Orçamento Participativo de Porto Alegre, produzem lastros simbólicos, políticos e econômicos cujo alcance ultrapassa o engajamento de atores coletivos em seus espaços institucionais de participação e tomada de decisão. Com base em evidências etnográficas, se argumenta que, na relação dos grupos populares brasileiros com esses dispositivos de participação, novas subjetividades e sentidos do político são forjados. Apropriando-se de seus códigos de expressão e modos de operacionalizar disputas, esses grupos rearranjam tal capital retórico em repertórios de ação empregáveis em outras arenas de mobilização, articulando espaços de comunicação com o poder público. São analisados os repertórios e estilísticas de participação e protesto acionados por um grupo de comerciantes de rua em busca de viabilidade econômica, no contexto da transferência do comércio informal para um shopping popular em Porto Alegre (Brasil). Atenção especial é dada ao fluxo de jargões, léxicos e gramáticas participativas e sua reinvenção por lideranças e comunidades mobilizadas por direitos nos interstícios do Estado.

Palavras-chave: orçamento participativo, participação, etnografia, comércio de rua, subjetividade, movimentos sociais


ABSTRACT

Technologies of direct participation in democracy, such as Porto Alegre’s Participatory Budget, produce symbolic, political, and economic effects whose reach cannot be assessed exclusively by the engagement of collective actors in institutional spaces of participation and decision-making. Drawing from ethnographical evidence, this article reveals how new political subjectivities arise as low-income organized groups engage with these participatory devices. These groups reclaim established protocols of expression and retool this rhetorical capital into repertoires of action useful in other arenas of mobilization, thus crafting links with the government. I problematize the repertories of participation and demonstration deployed by a group of street vendors in search of economic viability, in the aftermath of their forceful resettlement into a low-income shopping mall in the city of Porto Alegre (Brazil). Special attention is given to the ways jargons, idioms, and participatory languages gain traction and travel among leaders and communities mobilized for rights in the interstices of the state.

Keywords: participatory budget, participation, ethnography, street commerce, subjectivity, social movements


 

 

Introdução

O Orçamento Participativo de Porto Alegre, implementado na década de 1990, foi considerado uma das mais bem-sucedidas experiências contemporâneas em democracia participativa. Ele despertou o interesse nacional e internacional por se tratar de uma inovação em termos de gestão do Estado – no caso, da municipalidade – e também por propiciar a um leque amplo de cidadãos o direito à opinião sobre a destinação dos recursos públicos. Passadas quase três décadas, no entanto, pode-se dizer que o processo perdeu muito de seu ímpeto e de seu encantamento, embora tenha deixado um legado importante para aqueles que dele participaram com mais intensidade.

Neste artigo, desenvolvo o argumento de que, para avaliar os efeitos de longo prazo do orçamento participativo como tecnologia de democracia direta, é preciso recalibrar as lentes metodológicas que orientam nossa leitura do fenômeno participativo. Enfoques sociológicos, políticos e antropológicos jogaram luz sobre o orçamento participativo (OP) como uma instância privilegiada de tomada de decisões, orientada pelo engajamento popular e descentralizado na distribuição dos investimentos públicos (Baiocchi, Heller e Silva 2011; ­Baiocchi 2005; Alvarez et al. 2017; Fedozzi 1997, 2000). Sob este viés, o processo participativo contemporâneo parece arrefecido e mesmo decadente. Sugiro, porém, que um olhar alternativo sobre a qualidade da participação da população em instâncias decisórias pode ser obtido ao levarmos em conta o que acontece com seus participantes para além das arenas institucionais do jogo participativo.

A chave para esta releitura do processo participativo está em considerarmos a articulação e circulação de certas modalidades de engajamento – político, econômico e subjetivo – para além dos espaços e tempos do OP, mas que a ele devem grande parte de seus códigos de expressão e modos de disputa. Por formas de engajamento reporto-me ao comumente referido na literatura sobre novos movimentos sociais como repertórios de ação e confrontos políticos: o “conjunto limitado de rotinas que são aprendidas, compartilhadas e postas em ação por meio de um processo relativamente deliberado de escolha” (Tilly 1995: 26; Tarrow 1995, 2009). Desta definição, gostaria de reter sobretudo o caráter coletivamente orquestrado dos repertórios – em que reside, igualmente, sua agência. Do ponto de vista de uma abordagem etnográfica dos fluxos políticos, especial atenção é dada à maneira como jargões, léxicos e gramáticas participativas viajam e são reinventados por lideranças e comunidades empenhadas na consecução de suas táticas de mobilização em cenários políticos diversos e móveis.

Abordagens recentes apontaram para os pressupostos normativos subjacentes à estimação do papel da participação, mostrando ainda como canais de participação emergiram no contexto da Constituição de 1988, procurando sanar os défices de inclusão das instituições políticas e do crescimento econômico. Adrian Gurza Lavalle e outros argumentaram que “o diagnóstico ou descoberta daquilo que os conselhos eram e a disputa ou invenção do sentido do que eles deveriam ser ocorreram enquanto essa inovação democrática se encontrava em plena evolução durante os anos iniciais de seu desenvolvimento” (Lavalle et al. 2017: 2). Em linhas gerais, esses estudos sugerem que sua avaliação precisa levar em conta indicadores capazes de mensurar o impacto da participação na consolidação de regimes democráticos (Avritzer 2002, 2007, 2009; Dagnino 2002; Tatagiba 2003, 2004; Lavalle, Houtzager e Castello 2006; Feltran 2010; Almeida e Tatagiba 2012).

Sem discordar dessa literatura, problematizo os efeitos da participação em sua dimensão menos evidente e estudada: a formação de subjetividades políticas que emergem na relação com tais dispositivos de participação (Junge 2018). Argumento que o orçamento participativo constitui um nódulo central no processo de socialização das classes populares na participação. Embora, obviamente, ele não constitua o único âmbito de produção e circulação de lideranças – dividindo espaço com os bastidores da política convencional, partidos e associações políticas – ele é o receptáculo privilegiado para o exercício e aprendizado de um “capital retórico”. Neste conceito busco sistematizar os processos de conversão de saberes e modos de expressão populares, leigos e comunitários em discursos com oratória, sistemática e estética próprias ao enfrentamento político – capital que, por conseguinte, permite às insipientes lideranças navegarem uma miríade de espaços políticos na busca pela consecução de suas demandas sociais.

Nesse sentido, o OP guarda semelhanças com os dispositivos de cidadanização discutidos por Duarte (Duarte et al. 1993), na medida em que se constitui como uma tecnologia que abre canais de comunicação entre a sociedade civil e o governo em que são gestadas expectativas sobre demandas e desenvolvidos repertórios de ação que terminam por alargar e transformar os sentidos do político. Sem reduzir, completamente, a riqueza estética e oral à linguagem do cidadão moderno consciente de seus direitos e deveres, os espaços-tempo alargados da participação prestam-se à observação privilegiada das sobrevivências e reinvenções do capital retórico e das estratégias de cidadanização das classes populares em sua busca ativa por reconhecimento público, inclusão econômica, e valorização política.

Para desenvolver este argumento, ocupo-me do caso de um grupo de camelôs (comerciantes) que passou por um processo de remoção das ruas que culminou com sua transferência para um shopping popular, em 2009.[1] A iniciativa foi promovida pela Prefeitura de Porto Alegre – que cedeu um terreno no centro da cidade – em parceria com uma empresa privada encarregada da construção da obra e de posse do direito de exploração comercial do shopping – inclusive mediante cobrança de aluguel dos camelôs – por 25 anos. Como tecnologia de intervenção conectada a um projeto político de reurbanização, higienização e gentrificação das ruas, o Shopping do Porto/Camelódromo visava não apenas remover populações consideradas indesejadas de espaços públicos com alto valor de mercado, mas também ressocializá-las em espaços pedagógicos onde poderiam ser convertidos em outra classe de sujeitos – isto é, bons pagadores de aluguel e empreendedores sociais disciplinados (Kopper 2012, 2015). Interpelados pela propaganda do “novo” espaço – meio estatal, meio privado, pois engendrado pela parceria público-privada (PPP) –, os camelôs aderiram, de início, entusiasticamente à proposta. Logo, contudo, sobrevieram a desconfiança, a ansiedade, as dívidas, a tensão, a revolta e os conflitos.

Tomando este contexto por referência, o presente texto, de viés etnográfico, problematiza as experiências de um grupo particular de camelôs e as estratégias políticas por eles adotadas durante a negociação das condições de implementação do Shopping do Porto/Camelódromo. Acompanho seus deslocamentos, inicialmente pelos espaços de participação do OP e, em seguida, em suas reivindicações junto à Câmara de Vereadores por concessões da Prefeitura e mesmo da empresa que administra o Shopping do Porto/Camelódromo. O texto subdivide-se em três partes. Na primeira, introduzo o leitor à problemática empírica, descrevendo a articulação e os trânsitos do grupo de camelôs por dentro dos espaços institucionais do OP. Na segunda parte, faço um contraponto teórico às leituras convencionais acerca da experiência do OP, passadas mais de duas décadas de sua implementação em Porto Alegre. Argumento que a participação nesses espaços é decisiva na configuração de repertórios e formas de mobilização, protesto e participação latu sensu entre grupos populares – isto é, para além de suas instâncias formais de atuação.

Na terceira parte, trato de um evento organizado pelos comerciantes do Bloco B – vinculados à Associação dos Feirantes da Rua da Praia (Asferap) –, em crise nos primeiros meses no Camelódromo, junto à Câmara de ­Vereadores. Essa mobilização foi escolhida, entre outras por eles protagonizadas – caminhadas, fechamentos de rua, idas ao Ministério Público, às secretarias de governo, etc. – pois cristaliza a expressão pública da palavra, no púlpito do auditório principal, frente a frente com vereadores. Na ocasião, foram instigados à realização de uma performance (Bakhtin 1993) política, articulando a arte oratória aprendida no OP – o jargão cidadão e o respeito aos preceitos democráticos – ao repertório de gestos e palavras carregadas de emoção, bem ao estilo da estética popular. O fato de se considerarem legítimos na forma e no conteúdo de suas reivindicações atesta que o OP, cujo processo decisório está em crise no presente, propiciou uma experiência inovadora ao nível dos coletivos e das subjetividades políticas que dele tomaram parte.

 

Os camelôs no Orçamento Participativo

O trabalho etnográfico de longa duração em torno da transição da rua para o Camelódromo revelou diferenças acentuadas entre grupos de camelôs, especialmente entre aqueles que não se encaixavam na lógica do empreendedorismo mercadológico. Tais clivagens foram traduzidas em tensões políticas que atravessaram as instâncias participativas do OP, expondo estratégias distintas de mobilização e reivindicação.

Dois grupos de reassentados participavam do Orçamento Participativo, mesmo antes do projeto da PPP vir a público, e intensificaram as presenças ao longo da sua execução. Um deles, estabelecido há décadas na região central, possuía um representante assíduo no fórum temático denominado “Desenvolvimento Econômico, Tributação e Turismo”.[2] Um segundo grupo, estabelecido há menos tempo nas ruas do centro e em geral menos capitalizado economicamente, mas muito bem articulado politicamente, vinculava-se à Asferap, uma entidade que eles próprios haviam organizado, e frequentavam o Fórum da Região Centro (FROP Centro).[3] Este segundo grupo era presidido por Juliano Fripp – um sujeito de baixa estatura e performances ousadas, com articulações político-partidárias que o situavam à esquerda no espectro ideológico.[4]

A chegada da Asferap ao OP foi concomitante à formação de uma aliança com a ONG Integração dos Anjos, representada por Chiquinho dos Anjos.[5] Este grupo, designado de Unidade (Kopper 2009; Ruppenthal 2010) e autoproclamado apartidário,[6] reuniu sob seus auspícios um vasto conjunto de comunidades e foi, durante cerca de dois anos, a facção hegemônica em termos de poder decisivo no FROP Centro.[7] Juntos, monopolizaram a conquista e reivindicação de demandas, bem como o uso da palavra durante as reuniões.

A adesão inequívoca da Asferap à proposta de construção do Camelódromo estava vinculada à sensibilidade dos grupos populares na relação com os políticos de ofício – que os fazia prognosticar sua própria remoção das ruas como algo inevitável em longo prazo. Mas foi, também, a possibilidade de discutir e propor um modelo específico de Camelódromo, pelos espaços da democracia participativa, na interlocução direta com autoridades municipais, que fez recrudescer a convicção na eficácia do projeto. No FROP Centro, travaram-se discussões acaloradas entre conselheiros e delegados, muitos dos quais intuíam que a saída da rua não seria um bom negócio para os camelôs.

Em jogo estavam argumentos pontuais e clivagens partidárias. Juliano, em particular, vinha de uma tentativa frustrada de eleger-se vereador em 2008, durante o período de finalização de construção da obra, o que o colocava em tensão direta com os conselheiros ditos “apartidários”. Com o apoio moral da Unidade nos embates políticos, quem quer que fosse contrário ou crítico ao projeto era imediatamente vaiado e desautorizado. Contudo, mudanças no projeto da obra – como a inclusão de um estacionamento de veículos no terceiro pavimento –, associadas a paralisações na construção, instauraram um clima de dúvidas no OP, que rapidamente se transformaria em indisposição e enfrentamento. A partir de outubro de 2008, a Asferap passaria a “pautar” seguidamente a presença da Secretaria Municipal de Indústria e Comércio (SMIC) nas reuniões do FROP Centro, não mais para celebrar a parceria com o governo, mas para contestá-lo pelas alterações no projeto e execução do shopping popular.

“Não sei se vocês já observaram, pelos jornais e pelo rádio, a polêmica desse Camelódromo”, comentou dona Diva – uma senhora de cerca de 60 anos e uma das mais antigas integrantes da Asferap – em certa ocasião, no FROP Centro. “A ideia veio daqui, do OP, do Juliano, e agora ele tá sendo tomado por grandes empresários paulistas! Eles vão ficar com os melhores espaços!”, ela criticou. Como medida de cautela, Juliano buscaria apoio jurídico contra o governo. Em tom de denúncia, ele proferiria: “Nós da Asferap, legítimos na demanda do Camelódromo, estamos entrando na Justiça. Nós não vamos nos render à SMIC. Nós fomos traídos por esta secretaria”.

Os reveses políticos tiveram como efeito visível a destinação de meu grupo de informantes para o Bloco B do Camelódromo, que, além de menos prestigioso e presumidamente de menor fluxo de vendas, também concentrava as bancas de menor tamanho. Assim, a observação participante que conduzi junto à Asferap deslocou-se também no espaço. Desde meados de 2008, várias entidades passaram a ser acionadas estrategicamente pela Asferap para a revogação dos privilégios concedidos a outros grupos de camelôs: comissões da Câmara de Vereadores (sobretudo a Comissão de Defesa do Consumidor, Direitos Humanos e Segurança Urbana, e a Comissão de Economia, Finanças, Orçamento e do Mercosul),[8] Prefeitura Municipal, Ministério Público,[9] e por aí afora. Tal estratégia, ao mesmo tempo em que tornava públicas as reivindicações, protestos e reuniões, através da cobertura dos meios de comunicação, impedia que o desencantamento com o projeto fosse formulado como uma quebra no circuito de reciprocidades entre Juliano, sua comunidade e o governo, razão pela qual as decisões mais graves, que àquela altura já estavam tomadas e consolidadas entre a mídia e a sociedade, jamais foram revertidas.

 

O Orçamento Participativo revisitado

Porto Alegre tornou-se uma referência de inovação em democracia com a criação do OP, no início da década de 1990. A cidade passou a ser frequentada por pesquisadores, jornalistas e gestores, brasileiros e estrangeiros, para conhecer de perto o processo de discussão orçamentária, embora o orçamento ­propriamente dito fosse apenas um dos temas dos quais se ocupassem os frequentadores dos diferentes fóruns constitutivos do OP. Este visava, entre outros objetivos, tornar transparente, acessível e discutível a gestão dos recursos públicos municipais. Em contraposição a outras modalidades de gestão, caracterizadas pela centralização da autoridade sobre os investimentos públicos – incluindo-se, aqui, o padrão hegemônico seguido pelas democracias liberais –, o OP pressupunha a participação ostensiva dos cidadãos nas tomadas de decisões. Para efetivar tal postulado, organizou-se um circuito de assembleias – de tamanhos, formas e fins variados, porém articulados – com o objetivo de propiciar a participação deliberativa de todos os cidadãos interessados.

Passadas as desconfianças iniciais, o OP conseguiu atrair boa parte dos movimentos sociais, em particular as associações de bairros e de luta por moradia, e com eles as principais lideranças populares. Durante aproximadamente uma década, o OP se transformou num dos espaços de debate e deliberação mais importantes da cidade. Com regras bem definidas, o OP abriu a possibilidade de participação de grupos e de agentes marginalizados pelas formas convencionais de governo praticadas pelas democracias liberais, nas quais a política se tornou, paulatinamente, uma atividade profissional (Bourdieu 1996). Mais do que um instrumento de gestão dos bens públicos, ou de parte deles, o OP se transformou em espaço de debate político, no sentido amplo do termo, pois não havia tema que não pudesse vir a ser discutido. Sob certo aspecto, o OP possuía traços que lembravam a utopia habermasiana da ação comunicativa (Habermas 1991) – mesmo porque alguns de seus idealizadores se inspiraram teoricamente nesta perspectiva.

Embora a participação fosse quantitativamente restrita, nem todos os aspectos do orçamento pudessem ser discutidos e certos métodos convencionais da política estivessem presentes – tais como a cooptação de lideranças, as intrigas partidárias (ou entre facções dos partidos), a negociação de apoios, conchavos e, por extensão, de recursos, entre outros –, o OP propiciou a difusão de obras, beneficiando grupos tradicionalmente alijados da partilha dos bens públicos, porque excluídos (ou mesmo autoexcluídos) da política. Mais do que isso, o OP tornou-se um espaço estratégico para o aprendizado e o exercício prático da gramática dos direitos, sobre a qual se assenta a noção moderna de cidadania. Um dos momentos mais intensos e valorizados do processo era justamente aquele no qual os agentes de governo – incluindo-se os eleitos e os burocratas de carreira – ficavam frente a frente com os cidadãos e, portanto, sujeitos ao enfrentamento direto, não raro de oradores e plateias hostis.

Com efeito, a participação popular fez do OP algo substancialmente distinto. Sua plasticidade semântica, longe de inibir ou subsumir o espectro identitário e cultural dos frequentadores, investiu seus espaços em verdadeiros palcos para a dramatização e performance públicas, tão heterogêneas quanto as ­modalidades de engajamento de líderes e comunidades em suas arenas de ­discussão. Além de atrair lideranças forjadas em diferentes movimentos políticos – incluindo-se a luta contra a ditadura, o movimento estudantil, sindical, religioso, partidário, etc. – e, portanto, já experimentadas, o OP forjou ou potencializou novos líderes.

A participação, em si mesma, tornou-se um valor, razão por que o direito a ela passou a ser objeto de reivindicação permanente em questões atinentes à gestão dos bens públicos. Por um lado, a participação no OP implicava um sentido pedagógico: o domínio ou o aperfeiçoamento da arte da oratória, dos itinerários da burocracia e, fundamentalmente, a incorporação do léxico dos direitos, a partir do qual os bens e serviços disponibilizados pelo Estado podem ser reivindicados publicamente, num registro distinto do clientelismo convencional. Por outro lado, no OP imprimiu-se uma dinâmica tal que a intervenção dos não iniciados – categoria que incluía as pessoas que não dispunham de traquejo político, em sentido amplo – era suficientemente tolerada, desde que isso implicasse a sua lenta absorção pelo próprio ordenamento cotidiano dos rituais de participação. Efetivamente, o OP instigou os grupos populares a se empenharem no domínio do referencial moderno.

Com o passar do tempo, e a reordenação partidária que retirou a Administração Popular do poder em 2004, após 16 anos consecutivos, o OP aos poucos perdeu fôlego em Porto Alegre. Esse período coincidiu com a emergência de uma literatura crítica sobre a qualidade da participação, acompanhada da profusão de movimentos sociais que se construíram como intermediários diretos na obtenção de políticas governamentais, recriando os laços entre participação e cidadania (Lavalle 2011).

A perda de espaço político e decisório do OP para outras formações participativas não implica, entretanto, seu ocaso. Do ponto de vista antropológico – e dos sujeitos que dele tomam parte –, é preciso estar atento à formação de outros excedentes simbólicos para além dos objetivos institucionais da participação popular. Muitas vezes, isso implica rearranjar as metodologias de pesquisa. No presente caso, conquanto o OP permitisse a observação in loco das dinâmicas de representação e reputação entre líderes comunitários, as performances de quem quer que fizesse uso da palavra sugeriam que não bastava acompanhar apenas seus espaços protocolares de atuação.

Na transição para outros lugares e temporalidades, resquícios dessa frequentação e da retórica ali exercitada se fizeram sentir não apenas na permanência de certas pessoas, grupos e interesses, mas, sobretudo, na recriação de uma modalidade de ação: as formas poéticas de expressão da e na política – o que inclui um amplo espectro de recursos retóricos, entre os quais, por exemplo, a expressão das emoções, da intimidade, do gosto pelos embates acirrados, e por aí afora. O OP reaparece na reinvenção da estilística da participação, apropriada à medida que os agentes transitam pelos espaços urbanos de expressão da palavra pública (Damo 2006, 2008; Ghasarian 2007).

O que se observa, ainda no âmbito do OP, mas sobretudo no caso da mobilização dos camelôs da Asferap, liderados por Juliano, e mais tarde identificados como pertencentes ao Bloco B do Camelódromo, é a sobrevivência de um longo aprendizado sobre como os grupos populares devem se organizar para os embates políticos. Na transição dos espaços do OP para o Camelódromo, observa-se não apenas a permanência de certas pessoas, de certos grupos, de certos interesses, mas sobretudo a recriação de uma modalidade de ação. As pautas são outras, os espaços e os interlocutores também, mas muito do que havia sido praticado no espectro do OP foi então recuperado em outra frente de disputa. É dessa agência reconfigurada que tratarei na sequência deste artigo.

 

Os camelôs na Câmara de Vereadores

Esta seção objetiva descrever um dos momentos mais dramáticos da luta política desencadeada pelos camelôs do Bloco B – em sua maioria membros da Asferap e liderados por Juliano – para reverter a periclitante situação econômica acarretada pela transição para o Camelódromo. Um mês depois da abertura do empreendimento, um grande protesto de fechamento das bancas marcou as páginas dos principais jornais da capital gaúcha – e contou com o acionamento de deputados estaduais, vereadores, agentes da mídia e, sobretudo, conselheiros, delegados e representantes governamentais atuantes nos espaços do OP. Não demoraria muito para que a Asferap retornasse à Câmara de Vereadores, desta vez para a Tribuna Popular, em sessão realizada em abril de 2009, quando mais de 600 camelôs lotaram o auditório principal. Os canais da democracia representativa seriam acionados reiteradamente nos meses seguintes, de maio a agosto de 2009, na realização de seis reuniões no âmbito da Comissão de Finanças e Tributação (Cefor) da Câmara de Vereadores.

O olhar atento e surpreso dos vereadores diante da plenária denunciava que a presença maciça de comerciantes populares não era esperada – e, mais importante, que era preciso convencê-los de que “valera a pena” deslocar-se até aquele espaço. Seus discursos de abertura sinalizaram respeito e apoio à mobilização – bem como a seu líder –, evidenciando ainda o trabalho de mediação dos vereadores entre os anseios existenciais dos camelôs e a agência centralizadora do Estado, preocupado com a construção (e fiscalização) de um novo indivíduo, supostamente autônomo e responsável, legalizado e adimplente.

Juliano foi o primeiro a fazer uso da palavra. Ele expôs as angústias, incertezas, hesitações, esperanças e frustrações que se acumularam entre os camelôs da Asferap:

“– Vereador Ferronato, a gente vendo aqui em torno de 100 pessoas das 800 que estão no Camelódromo, eu lembro do dia 30 de abril, onde essas galerias aqui tavam lotadas, e esse movimento permaneceu firme e ­constante em busca de uma solução pro Camelódromo, que parece que não ter fim. Parece que não existe vontade das pessoas de solucionar um problema que tá matando muita gente, não de enterrar no caixão, mas de fazer isso aqui, ó [aponta para a plenária]: pessoas que deveriam estar trabalhando, e que não querem mais trabalhar no Camelódromo, porque não tem mais sustentabilidade lá dentro! E todos sabem [aplausos e gritos de estertor]! O senhor sabe! A vereadora Fernanda sabe! […] Infelizmente tem 100 pessoas aqui, porque as pessoas acabaram desacreditando da Câmara de Vereadores, que não têm força para fazer o prefeito voltar atrás e assumir que ele errou!! [Aplausos e gritos da plenária] Qu’é que é isso?! Eu não consigo entender como, depois de 194 dias, ainda não houve uma solução para essas pessoas que tão morrendo à míngua lá dentro.
– O que nós temos que fazer hoje: nós temos que sair daqui e ir pra frente da Prefeitura!
– Eeeeehhhhhhhhhhh!!
– É lá!! É lá!! É lá que tá o prefeito! É lá que vai estar o secretário!
– Covardeeeeeeeeeeeeee!”

Juliano deu o tom – acalorado – das intervenções, na tentativa de jogar estrategicamente com a reputação dos vereadores e com as expectativas de reciprocidade que lhes eram dirigidas pela comunidade. Ao mesmo tempo, encorajou seus colegas, que até então somente ouviam e interagiam por meio de aplausos, gritos e xingamentos, a fazerem uso da palavra e a reelaborar suas experiências constituídas nos bastidores da transição, em conversas cotidianas de corredor, enquanto esperavam pelos clientes que não vinham.

A narrativa metafórica de seu Leal inaugurou esse processo, no uso de termos como “suspeita”, “desconfiança”, “roubo”, “exploração” e “engano”, articulados à retórica do cidadão de direitos.

“Eu gostaria de citar que lá eles tão se intitulando dono: o prefeito, o seu secretário, que manda nessa história. Eu tive uma discussão séria com eles. […] Tô suspeitando que aqueles empreendedores lá são laranjas, entendeu, tô suspeitando e tenho direito de suspeitar, como cidadão. […] Isso aí é exploração! Eles querem enriquecer em cima de nós! […] Aquilo lá é um shopping comercial, pessoal, só não vê quem não quer! Aquilo lá não vai ser pra nós, vai ser pra eles, que já tão vendendo até lojas lá dentro! […] Então eles tão tirando vocês, aí, deputados, vereadores, pra palhaço! Vocês votaram uma lei; tudo bem, vocês têm o direito de errar. Vocês pensaram que ia ser bom pra nós; não, foi ruim pra nós, e aí nós temos que ir à luta pra ficar bom! Agora! [Aplausos e gritos]”

Carla – outra comerciante estabelecida no Bloco B e participante da ­Asferap – falou das alianças e rupturas, proximidades e distanciamentos da política convencional. Ao jogar e atacar a reputação das autoridades legislativas, buscou restituí-la ao líder da associação. Nesse movimento, o retorno à rua é, sempre, dramatizado como legítimo para satisfazer as necessidades mais prementes, o acesso às quais foi aviltado pela transição.

“O que eu quero dizer é uma coisa que tá aqui [aponta para o pescoço], principalmente pro senhor que é vereador há muitos anos. […] Sempre fui uma pessoa que aprendi desde pequenininha a nunca ficar em cima do muro: vote em alguém, em algum partido, e sempre lutei pelos partidos que eu acreditava. E hoje eu vou dizer uma coisa pro senhor: se eu tiver que votar, vai ser em branco, porque isso aqui que eu tô vendo é uma vergonha! [Aplausos] Lá dentro do Camelódromo eu estava me sentido uma coisinha, […] aí eu vim aqui e me senti um nada! Cadê o pessoal, cadê os vereadores que querem os nossos votos?! Cadê?! Eu vou dizer uma coisa pro senhor, vereador Ferronato, o senhor já teve o meu voto…
– Obrigado…
– Mas eu sinceramente estou totalmente desacreditada, e eu acho que a gente tem que acreditar numa pessoa assim, ó, que nem o Juliano, que eu muito critiquei, mas que tá lutando, que eu não sei nem como é que não mataram esse guri ainda, porque ele luta com gente muito grande… […] O que vai acontecer com a gente enquanto a gente espera por uma solução? Eu estava passando fome até a semana passada, eu tenho uma bebezinha que todo mundo conhece. Eu não sei vocês, mas eu, de vez em quando, vou vender na Rua da Praia pra poder comer. Paciência, mas fome eu não posso passar! [Aplausos]”.

Valdir, que até aquele momento só ouvira, atribuiu os problemas de venda às condições infraestruturais de comercialização. Sustentou que o projeto do Camelódromo havia sido mal concebido desde sua gestação: “Tudo que foi falado aqui até agora já era premeditado. […] Eu digo e repito: eu não conheço nenhum shopping de Porto Alegre que tenha 800 pessoas num lugar só e que comece no andar de cima! Isso já é o primeiro erro”. A ideia de horizontalização e de extensão da rua (isto é, de um projeto que dispensasse a escada de acesso) é tomada como o indício da boa transição. Em meio aos corredores mal iluminados e pouco frequentados, narrativas de especulação e lendas urbanas catastróficas eram gestadas e condensavam os problemas vividos no cotidiano.

“Eu sempre denunciei isso lá nos corredores do Camelódromo e agora vou falar aqui. Eu acho que tem que chutar o pau do barraco, pra mim aquilo lá não foi feito pra nos ajudar! Aquele projeto é de ódio político, e tudo que é feito com ódio não pode dar certo! […] Tá comprovado, tá gravado isso, que os representantes do comércio do centro de Porto Alegre admitiram que se hoje eles pudessem voltar atrás, eles seriam contra a retirada dos camelôs da rua! Porque tá provado que nós não causamos desemprego! Nós geramos emprego!
– Eeeehhhhhhhhhh!! [Aplausos e gritos da plenária]
– Eu sou um cara revolucionário, sim! Porque uma pessoa de quarenta e poucos anos não tem outra alternativa! Se eu perder a minha banca no camelódromo, eu não vou ter mais nada!
– Não tem outra alternativa! Não tem!! [Aplausos e gritos]
– Se tiver que ir pra luta, se tiver que enfrentar polícia, se tiver que pegar em pau, então vamos pro pau!
– Eeeehhhhhhhhhh!! [Aplausos e gritos da plenária]
– Nós não vamos deixar meia dúzia de políticos interesseiros e safados nos patrolar! É a nossa vida que tá em jogo! E essa aqui é a última reunião que nós participamos! Chega!
– É isso aí!! É isso aí!! Chegaaaaaaa!! [Aplausos]
– Eu conclamo todo mundo pra ir pra frente da Prefeitura, pegar todo mundo e se não resolver hoje, nós vamos articular outra passeata e vamos fechar as ruas de Porto Alegre!”

Os aplausos e gritos efusivos vindos de todos os lados foram acompanhados de xingamentos e gesticulações na direção da mesa principal. Diante do coro uníssono de vociferações que se instituiu, algumas exclamações se destacaram: “Aaaeeeeeeeeeee!!”, “Ruaaa!! Ruaaaa!! Vamo pra rua!”, “É melhor apanhar e ter o que comer do que ficar lá passando fome!”, “É isso aaaaeeeeeeeeeeeeeeeeeee!!”

A empolgação e o clima de efervescência da plenária deixou pouca margem de manobra àqueles vereadores interessados em manter sua reputação como mediadores políticos. Um deles tornou público seu posicionamento, tão logo se fez um período de silêncio no auditório: “– Os vereadores estão juntos nessa empreitada com vocês! Aaaaeeeeeeeeeeeeeee!! É isso aaaaeeeeeeeeee!! [Aplausos]”.

Seu Noé, que carregava consigo um caderno de orações, foi o próximo a fazer uso do microfone. Discursou por seis minutos – o dobro do tempo previsto pelo protocolo. Sua performance engajava, simultaneamente, o visual e a oratória, nas posturas corporais e entonações da voz. Noé era pastor de uma igreja neopentecostal e comercializava artigos religiosos em sua banca do Camelódromo. Semanalmente, nas segundas-feiras pela manhã, reunia parte dos comerciantes populares no terceiro pavimento do prédio para rezar coletivamente. Transitando entre a política e a religião, seu discurso narrou o tempo vivido da rua e do Camelódromo e invocou o que Turner chamou de sinais distintivos do estrato inferior, isto é, da experiência simbólica de ocupar as margens da sociedade (Turner 1974, 2008). Animalizando a subjetividade, ferida pelo deslocamento, falou de corpos que lutam e sofrem os efeitos funestos da transição.

“– Cada semana a nossa dívida aumenta, a comida na nossa panela tá faltando. Temos dificuldade pra comprar roupa pros nossos filhos, material escolar, a nossa loja tá ficando com menos mercadoria, a dívida aumenta rápido, a Prefeitura e o empreendedor posa de dono lá dentro, não nos permitem fazer nada, nós estamos com as mãos amarradas! […] Eu parabenizo vocês, que tão aqui pra suportar, pra ouvir, mas tem gente lá que tá chorando, e a gente vê eles fazendo propaganda de um Camelódromo falido, usando a nossa gente, os nossos filhos, a nossa vida, o nosso sofrimento, pra vender pros empresários! Eles querem que nós saímos dali!
– Aaaeeeeeeeeeee!! [Aplausos]
– Amigos, eu sempre morei e nasci aqui na beira do rio. E trabalhei. A primeira vez que a Prefeitura pegou a minha mercadoria eu tinha cinco anos de idade. Os fiscais vieram e prendeu! Prendeu! E até hoje a gente não vê uma atitude! […] Se vocês não tiverem condições de nos ajudar, nós vamos comunicar pra mídia nacional, vamos colocar isso no centro do Brasil, e vai rodar pelo mundo inteiro [aplausos], vai ficar conhecido, que a Câmara de Vereadores não faz nada pelo povo da cidade, pelos trabalhadores da cidade!
– Aaaaeeeeeeeeeeeee!! É isso aaaaeeeeeeeeeeee!! Tá certooooo!!
– Eles querem vender aquilo ali, pois bem, que venda, mas que retirem o nosso nome do SPC, do Serasa, que, de alguma forma, tire essa dívida da gente e nos coloque novamente na rua![10] Que abram um lugar pra nós trabalhar na rua!! Porque nós temos que sustentar a nossa família! Nós temos que sustentar os nossos filhos!
– É isso aaaeeeeeeeeeee!! Pra ruaaaa!! Vamo pra ruaaaaa!!
– É como disse o colega ali: não tá morto quem peleia! Nós somos gaúchos! [aplausos] Nós somos brasileiros! Essa gente não nos conhece! Eles não sabem com quem tão lidando!”
Enquanto a plenária ovacionava o orador, dona Diva se encaminhou até a frente da mesa. Além de dar sequência às demandas por reciprocidade encaminhadas na direção das autoridades legislativas, ela cumpriu o papel de auxiliar Juliano na formulação das táticas futuras sobre como proceder, permitindo-se dirigir publicamente recomendações ao líder do grupo.

“Essa casa não se preocupa com o Zé Povinho [aponta para a plenária], pros senhores pouco interessa! ‘Virem-se!’ Mas não é assim, senhores! [Aplausos] A mesa de vocês tá farta! E como é que tá a nossa mesa?! […] Aquilo lá é uma exploração, é beber o nosso sangue de canudinho! E não tô vendo fazerem nada! […] Vocês acham que o secretário vai fazer alguma coisa, com aquela arrogância, o prazer dele é pisar em cima de camelô! [Aplausos] É como ele disse na TV: ‘os camelôs eu pego um por um, quebro eles e boto pra casa!’ Não é bem assim! Nós vamos pra rua de novo! Eu acho que tá na hora, gente, a Asferap sempre foi pacífica, o Juliano nunca deixou brigar e fazer acontecer. […] Mas agora isso aí, senhores, tá cansando. As nossas forças de lutar pacificamente acabou! Nós vamos botar pra fora! Já não dá mais, senhores!
– Vamos pra rua!!
– Vamos pra rua!! Vamoooooooo!!
– Já tamos cansados de pedir, já tamos cansados de implorar! Se é preciso chegar nesta Câmara e dizer [se prostra diante da mesa principal]: ‘Senhores, pelo amor de Deus, resolvam o nosso problema!’, a gente faz, mas eu acho que os senhores estão com os olhos tapados pela vontade do senhor prefeito e a vontade do secretário”.

O vocabulário da subserviência – do “pisar em cima”, da prostração diante das autoridades públicas – deu o tom de vários discursos. Tal vocabulário refletia o engajamento sistemático no OP, de um lado, e a circulação difusa pelos espaços de bastidor da política, de outro. Reconhecer-se como cidadão, sempre que o jogo participativo o demandasse – para exigir, por exemplo, direitos como trabalhadores –, não impedia a prostração diante de um vereador para resolver os problemas e demandas comunitárias.

A fala de José Carlos – ou simplesmente seu Zé, como era conhecido entre os colegas –, também foi ilustrativa da combinação do jargão democrático com o vocabulário da honra pessoal. Sob a atenção dos vereadores, seu Zé circulou por todo o púlpito, em frente à mesa principal, gesticulando mãos e braços em convergência com as palavras, que lhe caíam com certa intermitência e lentidão.

“– Foi falado aqui muita bobagem! Já começando que chamaram nós de miserável! Nós não semo miserável! Miserável é aquele que tá debaixo da ponte e que não tem ninguém por si! Nós temo lutando por aquilo que nós queremos! [Aplausos] […] Já foi falado antes que tinha 30 dias pra resolver o nosso problema. E eu digo, também, que se não resolverem o nosso problema, nós vamos pra rua!
– Eeeeeeeehhhhhhhhh!!
– Infelizmente quem deveria estar aqui hoje não tá, que seria o prefeito e o secretário. E já digo mais: ele não é homem de palavra! Infelizmente, eu vou ter que dizer uma coisa que eu não gostaria de dizer pra vocês: Ele é um mentiroso! [Aplausos e gritos] E se ele tivesse aqui, eu ia sê bem homem pra dizer! […] O cara tem que ser homem e vir aqui e falar! Eu sou mais um que tô devendo, mas não vou fugir da raia! O que nós queremos é uma solução imediata pro nosso problema! […] Essa história de ensinar nós a vender é bobagem! Quando, quando que o secretário foi camelô?! Nunca foi! Quem sabe vender é o pessoal que tá aqui! Nós temo calejado! Aquilo lá é um presídio! […] E eu quero que vocês passem pro secretário, que quem falou foi o José Carlos. Eu não tenho medo de ninguém! [Aplausos] E se ameaçar ele ali [Juliano], vocês tão ameaçando os 800 camelôs!”

Dona Isolda, a próxima a falar, não era particularmente afeita às negociações empreendidas por Juliano nos espaços públicos, preferindo, pelo contrário, a articulação por meio de canais judiciários, como, por exemplo, a possibilidade – sempre levantada nas reuniões de bastidores – da impetração de uma ação coletiva pela manutenção das bancas. Naquele dia, contudo, parecia atipicamente exaltada, a ponto de propor o caminho inverso. De pé, dirigiu-se, do fundo da plenária, em tom quase ameaçador, aos vereadores:

“É muito fácil de resolver isso! Não deram condições pra gente de se manter lá dentro, tudo bem, tacamos fogo naquilo! Fica com o que é de vocês! Mas queimado! Se cada um pegar uma garrafa de álcool e um fósforo, nós vamos resolver! Nós temos que resolver isso imediatamente! Porque nós estamos de-to-na-dos mesmo! Nós estamos sem dignidade; querem nos fazer perder a vergonha na cara?! Então a gente vai descer do salto mesmo! Vamos é tacar é fogo! [Aplausos]”.

Dona Rosa vestia orgulhosamente a camiseta vermelha da Asferap. Em tom de crítica, falou das consequências subjetivas do projeto na vida dos camelôs, mostrando como palavras e discursos podem repercutir na produção de sentimentos de vergonha, fragilização, humilhação, baixa autoestima. Assinalando a dimensão individual do engajamento coletivo, dona Rosa deixava claro que o que estava em jogo não era somente um argumento político. Decisões carregavam consequências: deterioração pessoal, negação de si e do self fomentado na intervenção do Estado:

“O secretário pensa que os camelôs são escravos dele! Desde que a gente tava na rua, ele torturava nós! Agora a gente tá lá, e eu acho que ele quer torturar nós de uma outra maneira, que como ele não pode entrar com a polícia e bater e fragilizar a pessoa do camelô… Porque é uma humilhação pra quem não tem condições de pagar! Eu nunca fiquei devendo antes na minha vida, e agora tenho que passar por essa vergonha! Ele quer colocar gente grandona lá, gente que nunca na vida foi camelô, que nunca passou as dificuldades que a gente passou na rua!”

Romeu era uma figura ambígua. Companheiro próximo de Juliano nos principais atos públicos, ainda assim não possuía banca no Camelódromo, e estava longe de ter exercido a profissão no passado. Não obstante, o vínculo de amizade criado na rua, quando vendia guarda-sóis aos próprios camelôs, e o esquerdismo político, justificavam sua participação. Por um lado, valorizava a liberdade e a possibilidade de autogestão do próprio negócio, sem a interferência do Estado quanto a como e o que comercializar. Por outro, persistia na ideia de que, se o governo não os consultara a respeito das condições de implementação da obra, não era legítimo que os camelôs arcassem com as consequências de um projeto que não reconheciam; um projeto que, ademais, os colocava ao serviço da empresa que detinha a concessão de exploração – e o termo não era jamais fortuito – e ao serviço do poder público que homologou o contrato.[11]

“Na minha opinião tá havendo uma inversão de valores. Porque o que que querem? Que o rico fique e que o pobre saia! Lá nem tem mais loja, tem magazine! Mas aquilo lá é ou não é uma área pública? O contrato que a Prefeitura assinou, ela assinou com a empreendedora. Se alguém tem que pagar, é a Prefeitura! Porque a Prefeitura não perguntou se as pessoas podiam pagar aquilo! […] Se o prefeito fez algo faraônico, o prefeito que pague! Pra nós o prefeito é o faraó, ele que pague! As pessoas precisam trabalhar! Nós queremos dignidade e continuar trabalhando!”

Os vereadores que fizeram uso da palavra trataram de redirecionar as críticas dos oradores para o poder executivo: “Eu disse desde o primeiro momento que os vereadores estão juntos, nós precisamos compreender que a tarefa é do Executivo! E nós da Câmara estamos tentando negociar, auxiliar, pra viabilizar pra vocês!” Uma delas, vinculada ao partido da preferência de Juliano, reafirmou, de pé, o pacto de reciprocidade com o grupo de camelôs. Ela também se voltou contra o Executivo e a empresa administradora do Camelódromo:

“– Eu quero dizer que vocês estão escolhendo o inimigo errado. Eu tô quase braba com vocês! Nós estamos há dois anos lutando juntos e vocês sabem! Se tem um responsável pelo que vocês estão vivendo é o prefeito José Fogaça! Ele é o responsável! […] Tem prefeito nessa cidade, ele se esconde, mas tem. Eu sou parceira de ir na frente da Prefeitura! [Aplausos e gritos] É isso aeeeeeeeeeeee!! Eu sempre falei!! [Aplausos se seguem] Nós aqui na Câmara fizemos tudo que dava pra fazer, e vamos fazer mais. Eu acho que a gente deve montar uma CPI! Nós vamos montar uma CPI aqui!!
– Eeeeeeehhhhhhhhhhh!! [aplausos da plenária]”.

Juliano encerrou a reunião com um pronunciamento de conciliação entre as partes, convocando a todos para a mobilização do dia seguinte, em frente à Prefeitura: “Nós acreditamos que esse processo que foi iniciado aqui vai terminar lá na Prefeitura, e a gente precisa da ajuda dos vereadores. […] Então, vereadores, camaradas, amigos, companheiros que tão junto com nós: não se ofendam! Quem tem que se ofender é quem não tá com nós!” Se a manifestação dos participantes da plenária tencionara a possibilidade de ruptura com o Estado, focando a urgência dos resultados, cabia ao líder refazer o diálogo. Esse ponto de articulação, Juliano o encontrou na mobilização para o protesto do dia seguinte, que faria confluir vereadores e comerciantes populares na direção da Prefeitura Municipal.

 

Considerações finais

Conquanto a Asferap nunca tenha deixado de participar do OP, eles foram conduzidos, por razões bem compreensíveis, a fixarem-se nas lutas pela viabilidade do Bloco B – alternando períodos de maior e menor assiduidade no FROP. Nesse sentido, o deslocamento de parte de meus informantes do OP para o Camelódromo não alterou o cerne da investigação, que visava compreender como os grupos populares se relacionam com o Estado, as estratégias que empreendem na consecução de seus projetos, o significado que atribuem à luta política e o modo como significam e constituem diferentes campos de possibilidade para a agência em espaços estratégicos da cidade (Velho e Kuschnir 2001; Ortner 2007).

A trajetória de mobilizações da associação, organizada em torno dos problemas que surgiram com o reassentamento, evidencia o argumento de que o OP opera como uma espécie de entreposto semântico e discursivo, ordenando e mediando o fluxo desigual de certas modalidades de capital simbólico no uso prático e contingencial que os agentes fazem das categorias apreendidas em seu processo de cidadanização. Isto implica, por um lado, na descoberta e domínio do código dos direitos, fundamental para quem deseja empreender uma disputa nas entranhas do Estado. Por outro lado, a face complementar da cidadanização, ao menos aquela exercitada no espectro do OP, capacita os agentes para uma disputa em termos civilizados. Isto implica não apenas a exclusão da violência física, por mais tentadora que fosse (não raras vezes, seu Zé se preparara para enfrentar os vereadores “no braço”), mas também o refinamento das competências no plano discursivo.

Não é que a exacerbação das emoções não seja apreciada, ou que os discursos devam ser realizados num tom ameno. Para essas pessoas de grupos populares, a persuasão passa pela retórica e esta não pode descolar-se demasiadamente da sensibilidade e mesmo das emoções que a caracterizam, sob o risco de perder sua eficácia. O OP, em especial os fóruns temáticos e regionais, funcionam como um verdadeiro laboratório nesse aprendizado, também exercitado nas assembleias anuais, que ocorrem em auditórios lotados (Damo 2006). Como enfrentar as autoridades sem titubear – “sem tremer na base” – e, ao mesmo tempo, sem se exceder?

Na transição para outros espaços e temporalidades, do OP para o Camelódromo, as secretarias de governo e agora a Câmara de Vereadores, faz-se notar o acúmulo do processo de cidadanização, o que implica, como dito acima, num domínio retórico na democracia parlamentar – no sentido genuíno, associado ao jogo com as palavras. Nessas circunstâncias, recria-se as formas poéticas da e na política (Peirano 1996, 2001; Damo 2006; Ghasarian 2007) – o que inclui um amplo espectro de recursos que acompanham as palavras, dando-lhes vivacidade e identidade plena. É no ato de recriar, performaticamente, essa estilística da participação que os contornos do engajamento no OP reaparecem, transubstanciados na plasticidade semântica e poética com que os mais diferentes agentes se apropriam e transitam pelos espaços urbanos de expressão da palavra pública.

Tanto o OP quanto o Bloco B são espaços estratégicos para investigações dessa natureza, pois o que está posto, de antemão, não são lutas contra o Estado, mas por dentro dele (Quirós 2009, 2011). Eles permitem o fluxo, mesmo que desigual, de pessoas, categorias e coisas e, num certo sentido, articulam os universos de sentido da classe popular ao léxico da participação que emana do Estado – seja através do OP, seja através da Prefeitura, da Câmara de Vereadores ou do Ministério Público. Para esses grupos, só é possível pensar o enfrentamento ao Estado como condicionado por sua anterior socialização pelos espaços do Estado, isto é, na circulação, negociação e reapropriação dessa agência (Clastres 2003a [1973], 2003b [1974]; Lanna 2005).

Nisso, refletem os múltiplos níveis em que, segundo Dias Duarte et al. (1993), as culturas populares enfrentam ou lidam com a cultura englobante, recorrendo ora à reinvenção criativa da linguagem, ora à lógica da inclusão e (re)combinação de discursos locais com formas estabelecidas de expressão, ora à capacidade de mimetizar os discursos hegemônicos em situações de interação em que isso lhes possa trazer vantagens. O caso dos camelôs e as disputas ­políticas acionadas em torno da sua sobrevivência econômica foi paradigmático. Ele ilustra como repertórios e linguagens foram constantemente combinados e recombinados na produção de pontes de comunicação entre os universos locais dos camelôs e as instâncias da democracia participativa e representativa. A criação de um excedente de cidadanização, nesse contexto, é ilustrada pela aquisição e manipulação de um repertório estético, linguístico, e de agência. Um processo de “indigenização” do sistema político (Sahlins 1997), se quisermos, que passa ao largo do cívico e do civilizatório, mas os incorporam em seus próprios esquemas de significação nativa do político (Goldman 2006).

A dinâmica da circulação, produção e reprodução de lideranças comunitárias, nos espaços do OP e por fora dele, segue o ritmo dos sujeitos e tecnologias de participação. O caso do grupo de camelôs ofereceu vários vestígios que apontam não só para a sobrevivência, mas para a reinvenção cotidiana das táticas de saber-fazer da cultura popular, e sua articulação às gramáticas e espaços da política, do Estado e da economia.

 

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Receção da versão original | Original version 2017/02/12
Receção da versão revista | Revised version 2018/02/06
Aceitação | Accepted 2018/04/11

 

 

NOTAS

[1] Esse processo de transição envolveu o deslocamento de aproximadamente 800 bancas instaladas nas ruas do centro histórico de Porto Alegre para um espaço fechado, inicialmente designado como Centro Popular de Compras, depois rebatizado de Shopping do Porto, e popularmente conhecido, desde sempre, como Camelódromo. Sua inauguração ocorreu em outubro de 2008, e não sem motivos, dado que a data correspondeu ao interstício do primeiro para o segundo turno das eleições municipais. O evento ocupou as páginas da mídia local e dos espaços destinados à propaganda eleitoral gratuita. Não fora preciso o então prefeito, candidato à reeleição, se exceder em autoelogios pela realização, pois a aclamação foi intensa na mídia convencional, com depoimentos das associações tradicionais de comerciantes – a Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL) e o Sindicato dos Lojistas do Comércio de Porto Alegre (Sindilojas) –, altamente interessadas no deslocamento, e dos próprios camelôs. A ocupação efetiva ocorreu alguns meses mais tarde, já no início de 2009, depois de vários adiamentos, impetrados pelo Ministério Público, a pedido de um dos grupos de reassentados. A mobilização desse grupo, que foi preterido por ocasião da distribuição dos espaços, como veremos, se estendeu para além da ocupação do Camelódromo.

[2] O OP de Porto Alegre está subdividido em 17 regiões e seis temáticas. Cada qual é responsável por organizar seus fóruns de discussões e demandas – em reuniões semanais, quinzenais ou mensais –, além de indicar dois titulares e dois suplentes que participam do Conselho do OP (COP), órgão máximo que decide inclusive sobre as regras do processo. Para mais detalhes, ver Fedozzi (2000), Avritzer (2002), Botey (2007) e Santos (2002).

[3] O FROP Centro é um dos mais ativos entre todos os fóruns que integram o OP. Apesar de circunscrever os bairros nobres da cidade, seus frequentadores são, desde os primórdios, moradores de núcleos populares – conhecidos na cidade como vilas – dispersos em diferentes bairros.

[4] A etnografia se desenvolveu sobretudo com este grupo, em particular com seus líderes, uma vez que, antes disso, realizava pesquisa etnográfica com as lideranças da Região Centro do OP.

[5] Esta entidade é ligada aos moradores do Condomínio dos Anjos, uma antiga favela com aproximadamente 60 famílias que foi urbanizada no final da década de 1990. Eles se mantêm ativos no OP desde então, demandando recursos sistemáticos, razão pela qual inauguraram uma creche ao custo aproximado de meio milhão de reais em 2007. Seu líder, Chiquinho do Anjos, é personagem conhecida no âmbito do OP pela mobilização, articulação e esperteza política, esgueirando-se por alianças heterodoxas, seja com outros líderes comunitários, seja com ONGs, órgãos públicos e políticos de todas as matrizes.

[6] Este grupo cunhou a expressão “adesivados” para referir-se aos delegados e conselheiros que explicitavam suas filiações e predileções partidárias – em oposição àqueles que, se dizendo apartidários, circulavam pela política de maneira mais difusa.

[7] Juliano, que até certa época declarava-se sem e mesmo contra os partidos – “não adesivado”, no léxico do OP – lançou-se candidato a vereador em 2008, pelo PCdoB. Justamente nesse período as obras do Camelódromo encontravam-se em fase de finalização, o que o colocava em tensão direta com outras lideranças da própria Asferap, empenhadas em fazer desaparecer seus vínculos partidários.

[8] As “comissões” são grupos de vereadores reunidos com competência para examinar projetos oriundos do Executivo ou da própria Câmara Municipal. Podem ser permanentes ou temporárias.

[9] O Ministério Público é uma instituição pública autônoma, criada pela reforma constitucional de 1988, cuja atribuição é defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis. Trata-se de um ator importante na defesa dos interesses do conjunto da sociedade brasileira, sendo seguidamente acionado por entidades de interesse coletivo, não raro contra ações do próprio Estado, em especial do poder executivo.

[10] Serasa e SPC (Serviço de Proteção ao Crédito) são empresas que registram informações pessoais, como nome, endereço, CPF (cadastro de pessoa física junto dos serviços tributários), de pessoas com dívidas atrasadas, cheques sem provisão e outras irregularidades, com o fim de disponibilizar essa informação a empresas e instituições de crédito, para melhor segurança destas em vendas, empréstimos, etc.

[11] Não era por outra razão que seu Noé demandava não somente o retorno à rua, como também o cancelamento das dívidas – afinal, qual o sentido de pagar por um projeto mal concebido que trouxera consigo, invariavelmente, a negação da subjetividade do camelô, com a deterioração das condições objetivas e materiais de vida, e que ainda lhes impunha subserviência na forma do cumprimento de prazos, datas, valores e regras de apropriação do espaço e das técnicas de comercialização?

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