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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica vol.22 no.2 Lisboa jun. 2018

https://doi.org/10.4000/etnografica.5347 

ARTIGOS

 

“Paizões”, “filhotes” e a “simbiose do amor”: regulações de gênero entre homens frequentadores da comunidade dos “ursos” no Recife (Brasil)

 

“Daddies”, “cubs” and the “symbiosis of love”: gender regulations among men frequenting the “bear” community in Recife (Brazil)

 

 

Luís Felipe RiosI

I Laboratório de Estudos da Sexualidade Humana/LabESHU, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Brasil. E-mail: lfelipe.rios@gmail.com

 

 


RESUMO

O texto analisa estilos de ser homem na comunidade dos “ursos” (homossexuais corpulentos e peludos) no Recife. Identifica entre “ursos” um sistema de gênero que, na regulação das relações afetivo-sexuais, estigmatiza a feminilidade e aciona significados de idade/parentesco (autonomia/dependência) e das práticas sexuais (ativo/passivo), expressos em “paizões”/“ativos”/autônomos e “filhotes”/“passivos”/dependentes. No entanto, no cotidiano, os binarismos e alinhamentos são matizados por desalinhamentos, hibridizações e posicionalidades expressos, por exemplo, nas categorias “comportamento neutro” e “postura sexual versátil”.

Palavras-chave: gênero, sexualidade, homossexualidade, homens


ABSTRACT

The text examines styles of being a man in the “bear” community (burly and hairy homosexual men) in Recife. It identifies among the bears a gender system that, in the regulation of sexual and affective relationships, stigmatizes femininity and uses meanings of age/kinship (autonomy/dependence) and sexual practices (“top”/“bottom”), expressed in “daddies”/“top”/autonomous and “cubs”/“bottom”/dependent. However, in everyday life, the binarisms and alignments are blurred by misalignments, hybridizations and positionalities expressed, for example, in the “neutral behavior” and “versatile sexual posture” categories.

Keywords: gender, sexuality, homosexuality, men


 

 

Introdução

Este trabalho analisa os estilos corporais dos homens integrantes de uma das vertentes da comunidade homossexual do Recife, os “ursos”, procurando compreender a operação do sistema de sexo-gênero (Rubin 1993) na regulação das relações afetivas e sexuais.[1]

A discussão aqui apresentada está embasada em pesquisa etnográfica que aconteceu entre maio de 2011 e abril de 2014, no âmbito de um projeto mais amplo sobre homossexualidade e estigma na comunidade gay do Recife (capital do estado de Pernambuco, Nordeste do Brasil) e foi viabilizada por observação participante em sites da Internet e espaços de sociabilidade homossexual off-line do centro do Recife, conversas informais online e off-line, e 79 entrevistas de várias modalidades. Neste artigo, foco o contexto dos “ursos” e apresento dados oriundos de observação – coletados basicamente em dois estabelecimentos comerciais, um bar, aqui denominado Toca, e um site, a que chamo aqui Site dos Ursos – e de dez entrevistas temáticas com informantes-chave e três entrevistas com foco biográfico. Uso pseudônimos para me referir às pessoas e locais, de modo a guardar a confidencialidade quanto à identidade dos interlocutores. O projeto que deu origem aos dados aqui analisados foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFPE.[2]

Na pesquisa, busquei dar relevo ao contexto comunitário dos “ursos”, ocupando-me da tarefa de compreender a cultura sexual (Parker 1991, 2002; ­Gagnon 2006), permitindo a emergência de categorias êmicas, a interpretação que os “nativos” lhes dão e como delas se utilizam, sem me furtar, entretanto, a oferecer minha própria interpretação sobre o fenômeno objeto de investigação, à luz do referencial teórico que enfatiza a construção sociocultural dos eventos sexuais (Rubin 1993, 1998; Butler 2003, 2010).

Investiguei as parcerias e práticas afetivas e sexuais na perspectiva de apreender regimes de produção de diferenças sociais (Brah 2006) nos corpos-subjetividades e chegar à compreensão daquilo que Gayle Rubin (1993) denominou sistemas de sexo-gênero: arranjos socioculturais que constituem os sujeitos afins a determinada cultura, e operam instituindo, por um lado, o tabu da homossexualidade e, por outro, diferenças, assimetrias e complementariedades entre os seres sexuados (nos afetos, na sexualidade, na divisão do trabalho, na lida doméstica, na aparência corpórea, etc.) de modo a garantir a multiplicação dos indivíduos e a reprodução social. Ela observou que em muitas sociedades, mesmo quando o tabu da homossexualidade é relaxado, haveria uma tendência para uma manutenção das assimetrias de gênero, expressas, sobretudo, na formação de casais que, embora sejam (biologicamente) do mesmo sexo, são estilisticamente compostos por alguém masculino e alguém feminino.

Querendo me aproximar dos corpos como territórios das experiências subjetivas, estou utilizando a noção de estilo corporal para operacionalizar a análise do processo de posicionamento que os marcadores sociais, em intersecções (Brah 2006; Piscitelli 2008), realizam. Os estilos são compreendidos como (com)posições sociais, resultados estéticos e de expressividade do agenciamento (consciente ou inconsciente) de elementos corporais, como constituição física, gestual, sotaque, vestuário, adereços, emoções, sentimentos, etc., os quais possuem efeitos de enunciações de identidade. Quando alguém é adscrito a um estilo, há a produção de sentidos (significados, valores, sentimentos e direcionamentos) que medeiam a construção de si e a apreensão dos/pelos outros (Rios et al. 2017).

Vale também lembrar com Judith Butler (2003, 2010) que o gênero opera performativamente. Nos atos de significação são constituídos corpos generizados: inteligíveis, reguláveis e passíveis de legitimação e normatização. No entanto, por efeito da iterabilidade e citação, os atos de significação também produzem deslizamentos e descontinuidades, permitindo o surgimento de novas inteligibilidades, regulações, legitimações e normatizações (cf. também Pinto 2013).

Situados os enquadramentos teóricos e metodológicos da pesquisa, passarei à apresentação dos resultados, que foram divididos em três partes. Na primeira, discuto a organização das comunidades homossexuais e o lugar dos “ursos” nesse contexto mais amplo. Em seguida, estabeleço uma primeira aproximação analítico-descritiva dos “roteiros sexuais” (Gagnon 2006) atualizados em estilos corporais “paizão” e “filhote”, que, na comunidade “ursina”, enredam a formação de parcerias sexuais. Finalmente, adenso a interpretação sobre a operação do sistema de sexo-gênero nas configurações e expressões de desejos e formação de parcerias sexuais.

 

Comunidade dos “ursos”

Uma série de estudos têm apontado para os modos como pessoas com práticas homossexuais se organizam comunitariamente para enfrentar o estigma (Krieger 1998; Green 2002). No caso do Brasil, sem marcações territoriais muito precisas em termos de moradia de seus integrantes, as comunidades homossexuais se delineiam e emergem do fundo social quando a vida urbana das grandes cidades do Brasil é objeto de observação mais cuidadosa. Surge, então, uma profusão de lugares de sociabilidade homossexual, ainda que dispersos entre a hegemonia heterossexual.

Circulando por esses lugares, é possível perceber redes de símbolos, práticas e significados compartilhados pelas pessoas que os frequentam e que, a despeito de muitas delas quererem se dizer gays, homossexuais ou outro termo nativo correlato, as fazem se marcar como “entendidas” (categoria nativa) no que resulta de suas práxis nesses lugares. Ainda assim, os modos como a pessoas se posicionam nesse campo de poder e desejo (Parker 2002) vão rumar para o corpo para configurar diferenciações (Brah 2006) nos estilos corporais.

Nessa linha, as várias vertentes que compõem a comunidade homossexual se organizam em um campo que se define e se faz, nas bordas, em relação à heteronormatividade hegemônica, e nos centros, por estilos de ser homossexual. A literatura tem destacado algumas das estilizações de homossexualidades, como a “bicha”, o “bofe”, o “boy”, a “pintosa”, a “barbie”, etc.[3] (Fry 1982; Perlongher 2008; Green 2002; Parker 2002; Guimarães 2004; Simões, França e Macedo 2010; França 2013; Rios 2008; Rios et al. 2017; entre outros). Essas e outras personagens entram na composição da sociabilidade homossexual mais ampla, da qual participam homens e mulheres de diferentes orientações sexuais e posicionamentos de gênero, registradas nas páginas das etnografias das cenas homossexuais à brasileira.

Algumas das categorias mencionadas conseguem constituir uma espécie de segunda rede de entendimento, demarcando fronteiras com a comunidade homossexual englobante, desenvolvendo coletivamente formas de sociabilidade muito próprias. Assim parece ser com os “ursos”. Comunidade de homens com práticas homossexuais surgida nos EUA (Wright 1997) e que cresce em afins no Brasil (Trindade 2004), a comunidade “ursina” tem alguns marcadores que a tornam singular se comparada com outras vertentes das comunidades gay.

Isadora França (2013), analisando os sentidos sobre espaços de homossociabilidade da cena paulista, elege como um dos lugares-chave de sua ­investigação a Ursound, uma das mais importantes festas “ursinas” do Brasil. Conforme a autora, esta se configura como uma cena alternativa dentro do universo gay, dialogando e se opondo ao que seria a sua porção mais valorizada. Esta última, no contexto paulista, é atualizada pela boate The Week, que tem como característica sua participação nos fluxos internacionais que produzem os “consensos” sobre o que é ser um gay bem-sucedido. Sobre isso, França (2013) destaca a relação que se estabelece entre aparência corpórea e capital sexual, com grande valorização do corpo modelado.

A Ursound é frequentada por homens que não atenderiam ao estilo esperado na The Week, por apresentarem, nas palavras da autora, um “tipo de masculinidade menos suave, às vezes referida como normal”, ou seja, uma valorização de “um relativo desleixo nas roupas, a camisa, os gestos mais comedidos, uma saliente barriga […] trazendo também algum grau de rejeição aos mais femininos e espalhafatosos” (França 2013: 155). França sublinha ainda:

“[…] os ursos e suas iniciativas ganhariam alguma visibilidade por desafiar determinados ‘consensos’, por comunicarem-se com referências internacionais e por demonstrarem algum nível de organização enquanto ‘comunidade’, com discussões a respeito da categoria urso e da demarcação de fronteiras e iniciativas para além do lazer noturno (com a criação de revistas, sites, confecções e eventos voltados para esse público). Essa diversidade de ações, bem como a produção de discursos em torno da categoria, faz com que os ursos sejam comumente reconhecidos como um contraponto aos ‘consensos’ na cena gay” (2013: 155).

Daniel Santos e Mara Lago (2013), que etnografaram um bar de “ursos” em Florianópolis, caracterizaram-no por certo nomadismo identitário, agregando pessoas consideradas fora dos padrões estéticos apreciados na comunidade gay (em especial velhos, gordos, peludos). Nesses contextos, a figura do animal urso é ícone do estilo corporal que se espera dos homens: corpulentos, peludos e masculinos (Wright 1997). Não obstante, vários subtipos se inscrevem a partir desse ideal corporal (“caçador”, “musclebear”, “cubby”, e muitos outros), como mostra José Ronaldo Trindade (2004) em relação à cena “ursina” paulista. Mas é grande a distância entre o “urso” idealizado e os frequentadores da comunidade dos “ursos” em Recife. O mais encontrado é o “homem comum”, de “meia-idade”, que figuraria despercebido em termos de sua orientação sexual em qualquer contexto da sociedade brasileira.

Josemir Domingos (2010) sugere que os “ursos” se contrapõem à estética gay hegemônica por liberarem seus integrantes das árduas exigências da ­transformação corporal diante de uma norma feminizante da cultura gay, iconificada pelas “barbies”. Eu duvido dessa liberação. Se, para um olhar desavisado, qualquer homem “heterossexual” (leia-se masculinizado) transitaria muito bem na comunidade “ursina”, vale lembrar que há todo um investimento corporal para que os próprios homens heterossexuais constituam os estilos de serem homens socialmente esperados (Almeida 1995; Miskolci 2006).

Assim, não basta ter pelos e ser gordo, ser “urso” exige bem mais dos homens. Eles não devem se vestir excessivamente fashion,[4] mas também precisam ressaltar atributos valorizados na comunidade “ursina”. Para ir à Toca, um estabelecimento comercial que fica localizado no complexo de entretenimento homossexual do centro do Recife, as camisas de botão, em geral quadriculadas, ou “camisetas machão” são as favoritas dos homens, uma vez que deixam à mostra partes do corpo (dorso e ombros) em que estão os tão valorizados pelos. Para compor o visual, cintos largos e bonés, que acenam para as Forças Armadas ou torcidas de futebol; calças surradas, aparentando desgastadas pelo tempo; bermudas apontando para certo desleixo. Todos esses elementos acenam para uma hipervalorização de atributos (de vestuário) de virilidade entre militares, motoqueiros e trabalhadores braçais. Essa construção corporal não se dá apenas pela imitação, mas também pelo constrangimento, perante comentários depreciativos e (suposta indiferença dos) olhares dirigidos aos que, desavisada ou intencionalmente, resolvem entrar fashion nos lugares off-line da comunidade.

A Toca é um estabelecimento que comporta, conforme placa localizada na entrada, 200 pessoas. É composto de um espaço com mesinhas, uma pista de dança, saleta para jogo de sinuca, banheiro e algumas cabines para sexo. Nos dois primeiros espaços, há venda de bebida e comida. No espaço de dança, há uma grande TV de plasma, exibindo, além de anúncios sobre a casa e sua programação, fotos de homens peludos e/ou gordos e/ou maduros, nus e/ou em interação sexual, além de pequenos trechos de filmes pornô e clipes de performances caricatas. Em uma pequena sala, à meia-luz, está posicionada uma mesa de sinuca, dois sofás e outra TV exibe filmes pornô, com personagens de agrado dos “ursos”. Para os que quiserem, existem algumas cabines disponíveis gratuitamente para contatos sexuais mais íntimos. Todo esse aparato situa o clima de “libertinagem” sexual, que marca o lugar – muito assemelhado com o descrito por Santos e Lago (2013) sobre o bar de “ursos” em Florianópolis.

As expectativas dos homens que frequentam a Toca são variadas, ainda que permeadas pela eroticidade que o próprio espaço ajuda a constituir. Há homens (indivíduos e casais) que querem encontrar e fazer amigos, papear, jogar sinuca, escutar e dançar músicas das décadas de 1970, 1980 e 1990. Há, e em grande maioria, os que, sem dispensar todos os supracitados ­divertimentos, vão buscar parceiros para ter sexo (o que, a posteriori, pode resultar em namoro, amizade ou nada mais que um encontro prazeroso fortuito).

Na Toca, os flertes e “cantadas” são muito comuns. Se se está casado ou namorando e o parceiro é muito ciumento, aquele não é o melhor lugar para ir. Os “ursos” são muito “afoitos”, os interesses sexuais são mais facilmente explicitados do que em outros bares e boates gay – onde o jogo de sedução pelos olhares, antes de passar à conversa, é, em geral, mais demorado.

Também há os casais em busca de terceiros parceiros para interações sexuais; há os homens que partilham um relacionamento aberto, que podem estar na Toca sozinhos ou acompanhados; há os que “pulam a cerca”; e há os que, saindo de relacionamentos fixos, voltam à Toca em busca de diversão.

Na Toca é possível beijar várias bocas em uma única noite; e não é incomum ver beijos a três ou mais. Em dias de muito movimento, com a casa lotada, o calor aumenta e os homens são convocados a tirar a camisa. Há festas onde os que entram nus, ou de cueca, não pagam ingresso.

Mas o clima de “libertinagem” sexual não impede a construção de amizades, tampouco a presença e a concretização dos ideais de amor romântico e a possibilidade de se passar, ou mesmo transitar, do “sexo livre” ao “par estável”. Os meus interlocutores falavam do desejo de formar casal, mas apontavam as muitas desilusões ou o gosto pela “sacanagem” como as reticências que os faziam titubear quando conheciam alguém interessante, que gostariam de ter para mais que apenas uma “curtição”. Muitos apontavam que gostariam de ter parceiros como aqueles dos casais que frequentavam a Toca – que “curtem” relacionamento aberto, em que sozinhos ou em dupla podem desfrutar de interações sexuais com outros homens. Outros diziam que estavam dispostos a uma vida mais recatada, caso o parceiro ideal chegasse e não gostasse dos ménages, “surubas” ou relacionamentos abertos. Boa parte desejava mesmo a monogamia, a formação do casal.

No Site dos Ursos a busca por parceiros sexuais é ainda mais enfática. Os perfis apresentam as características corporais, os modos de ser, as preferências e os interesses sexuais e eróticos dos participantes. Em boa parte dos perfis, fotos dos rostos e/ou dos corpos nus, ou parte deles, desfilam na apresentação dos homens. Estes podem aparecer sozinhos ou em interação sexual. No site há ferramentas de apresentação e de busca que possibilitam a assunção de opções subjetivas em conformidade com os ideais (internacionais) da comunidade dos “ursos”, como constituição (gordão, gordinho, gordo, normal, musculoso, magro, parrudo), pelos corporais (muitos, nenhum, normal, pouco), quantidade de cabelo (calvo, careca, comprido, curto, ficando ralo), barba (barba curta, barba longa, bigode, cavanhaque, sem barba), cor da barba (não se aplica, castanha, grisalha, loira, preta, ruiva), comportamento (paizão, filhote, neutro) e tipo ursino (caçador, gordo sem pelos, lontra, urso, urso gordo, urso musculoso, urso negro, urso parrudo, urso polar).[5]

No site também é possível ficar sabendo dos eventos “ursinos” que acontecem em todo o Brasil, inclusive os da Toca. Em adição, era comum reconhecer os homens que tinham fotos de rosto no perfil do site quando estavam na Toca. Nesse âmbito, ao ofertar-se como lugar online para a sociabilidade de homens que fazem sexo com homens (do Brasil e também de outros países), cumpre o papel de trazer para o Recife categorias e modos de pensar “ursinos”, e, em conjunto com a Toca, produzir o consenso, aludido por França (2013), para que haja o reconhecimento dos seus participantes enquanto parte de uma comunidade que consegue se diferenciar e se afirmar em sua singularidade na cena gay do Recife.

Nessa linha, mais que ser corpulento e peludo, para participar da comunidade, o importante é a afinidade com os ideais que a fazem existir. Dada a centralidade da fruição sexual nos dois espaços investigados, é preciso que os participantes se apropriem dos códigos e regras que regulam as interações e compartilhem dos roteiros que orientam a formação de parcerias. É sobre isso que passarei a descrever.

 

A formação dos casais

Analisando as representações sobre parcerias homossexuais entre homens no Brasil, Peter Fry (1982) apontou para a existência de um modo de lhes dar sentido, mais antigo e associado às classes populares, que o autor qualificou como assimétrico, em que posições sexuais (sexo anal insertivo e sexo anal receptivo) e identidades de gênero são articuladas de modo que o homem feminino/“passivo”, comumente nomeado de “bicha” (ou “frango”, “veado”, “pintosa”), se relacionaria com o masculino/“ativo”, “homem mesmo” (ou “bofe”, “cafuçu”) – o último não concebido como homossexual. Em adição, haveria um outro modelo, associado ao processo de modernização do país, mais presente nas camadas médias, em que haveria uma lógica simétrica: as parcerias independeriam de identidades de gênero e ambos os parceiros, a despeito das posições sexuais, seriam concebidos como homossexuais (cf. também Parker 1991, 2002; Green 2002; Guimarães 2004).[6]

Os dois modelos foram encontrados em pesquisas mais recentes sobre as comunidades gay das metrópoles brasileiras (Monteiro et al. 2010; Simões, França e Macedo 2010; França 2013). Não obstante, as posições se ampliaram do “ativo” e “passivo”, dando passagem para a “versatilidade” (sexo anal receptivo e insertivo) (Rios et al. 2017). Embora haja referências, nas etnografias mais antigas, a práticas receptivas e insertivas realizadas por uma mesma pessoa, o termo “versátil” (e os híbridos “versátil mais passivo” e “versátil mais ativo”) é de uso recente, parecendo acompanhar o advento dos sites brasileiros de busca de parceiros na Internet, versões de congêneres estrangeiros.

Como apontado, os participantes da comunidade dos “ursos” do Recife são pouco afeitos a gestos e maneirismos linguísticos que remetam à feminilidade. Esse é um ideal de ser homem que gera tensões na própria comunidade “ursina”. Para aprofundar a questão, transcreverei uma cena de meu diário de campo. Era noite de sábado, em uma badalada festa na Toca. Estava acompanhado por dois “ursos”, importantes  interlocutores ao longo do trabalho de campo: Fernando (branco, gordo sem pelos, 45 anos, formação superior, solteiro) e Carlos (negro, gordo sem pelos, 26 anos, ensino fundamental, solteiro).

“Na Toca: Era uma festa, das que, quando acontecem, chamam ursos e simpatizantes de outras cidades e estados. Fernando fica com um cara de outro estado. A Toca esvaziava e eu me divertia na pista de dança juntamente com Carlos. Fernando me oferece carona. Aceitei. Na saída, ele chama o ficante e também oferece carona, ele estava hospedado no mesmo bairro que o de minha residência.
No carro: Não me lembro, ao certo, por que caminho a conversa seguiu, mas o fato é que em certo ponto da viagem o outro caronista pergunta sobre a minha posição sexual (ativo/passivo). Na brincadeira, desconversei, evitando a resposta. Mas logo ele sugere uma conclusão: diz que, por eu ser pintosa, só posso ser passiva. Não se fazendo de rogado, começa a destituir minha imagem a partir da ideia de afeminamento, sugerindo uma série de práticas sexuais nas quais eu seria um expert, me tratando por categorias da comunidade gay que me remetiam à posição passiva/afeminada (bicha, frango, veado, etc.). Mesmo já estando bastante irritado por estar sendo depreciado, mantive o controle e busquei sondar de onde ele tirava a ideia de afeminamento. Eu não me via assim. Ele aciona a minha performance na dança: ocupar o centro do dancing e buscar aparecer. Na interpretação dele, homem ativo se posicionaria nas bordas e teria uma natural contenção na dança. Também elencou algo de minha gestualidade e modo de falar” [diário de campo, setembro de 2011].

Na comunidade “ursina”, algumas das categorias para nomear homens homossexuais, como “bicha”, “frango”, “veado”, são utilizadas no cotidiano de amigos “ursos” para se referirem mutuamente, não dependendo da posição sexual da pessoa. Há um menor uso, na relação face a face, dos termos no feminino, como “a senhora”, comuns em outros contextos homossexuais. O que vale destacar na cena que vivi é que essas categorias, quando utilizadas para nomear uma pessoa que não se conhece, na relação face a face ganham um grande tom ofensivo. Em especial o tratamento no feminino.

Não quero dizer que os “ursos” não deem “pinta”; efetivamente, alguns deles dão. Inclusive há momentos de licença para a “fechação” – quase sempre quando se caricatura alguém, em especial nos momentos de maior embriaguez.[7] Mas o que a cena descrita demonstra é o valor negativo implícito que o feminino tem e como ele emerge para destituir a imagem de alguém (a minha), talvez na tentativa de diminuir supostos desejos de Fernando por mim, e/ou de afirmar-se mais masculino do que eu.

Em uma análise mais superficial poder-se-ia pensar que a retirada do feminino/feminilidade da cena dos “ursos” apontaria para relações mais igualitárias – o segundo modelo proposto por Fry (1982). Não obstante, isso não ocorre. Em que pese o impedimento de agências que configurem feminilidade, as parcerias sexuais e afetivas parecem continuar obedecendo a certa regra de gênero, que sinaliza gostos nas posições sexuais, em que o operador é remetido a um plano que se apropria de categorias etárias e de parentesco para constituir estilos de ser homem. No lugar de tomar o par masculinizado/feminilizado para dar sentido às relações sexuais e/ou afetivas, como acontece nas idealizações sobre as parcerias sexuais em outros cenários da comunidade homossexual (“bofe”/“bicha”, “cafuçu”/“pintosa”), os “ursos” se utilizam de personagens “familiares”: “paizões” e “filhotes”.

Para aprofundar a análise, vejamos uma conversa no MSN[8] em que questiono Roberto (branco, 35 anos, “urso” gordo, poucos pelos, nível educacional superior incompleto, solteiro) sobre os sentidos de “pai” e “filhote”:

“F           […] tou fazendo uma enquete/inspirada no teu perfil novo[9]/o que é um papai urso pra vc?/tou perguntando a todos os meus amigos
R   nossa/emocionei
F    kkkkkk […]
R   uia/fácil/postura alfa (dominadora)/protetor
F    sei, e um filhote?
R   fácil de dominar/sensível/organizado
F    o papai é sempre ativo?
R   S(im), papai sempre por cima/papai protege o filhote e o filhote cuida dele/simbiose do amor”. [10]

Emergem do relato de Roberto dois estilos de ser homem com práticas homossexuais: um “paizão” que domina e protege um “filhote”, e um “filhote” que depende afetivamente e cuida do “paizão”. Para ser discutido, o conjunto de elementos apresentados na conversa transcrita exige três frentes de análise: (1) o jogo discursivo que atualiza noções de parentesco e idade; (2) os gostos eróticos dos homens, demonstrados, por exemplo, na expressão “papai sempre por cima”; e (3) os modos como, nas tomadas de decisão nas interações sociais, em especial entre parceiros afetivos, “paizões”/“alfas” e “filhotes”/“fácil de dominar” demonstram, dissimulam e/ou subordinam suas opiniões e ações.

 

Sobre as idades

Preciso destacar que, nos variados contextos em que já pesquisei, além das posições de gênero (masculinizados/feminilizados) e posições sexuais (“ativo”/“passivo”), a diferença nas idades dos parceiros é recorrente organizador das parcerias homossexuais. As biografias que me foram narradas por homens jovens (19 a 26 anos) no Rio de Janeiro sugerem que o roteiro sexual pautado pela diferença de idade é atuante desde a infância, quando as crianças vão descobrindo os prazeres corporais em interações marcadas, comumente, por diferenças entre três e dez anos de idade (Rios 2013).

Da infância à juventude, a diferença de idades persistia marcando as parcerias no contexto carioca. Existia uma valorização erótica da juventude dos homens entre 15-25 anos. Entre 25-30 anos, o capital erótico, constituído pela juventude e inexperiência sexual, paulatinamente dava lugar à estabilidade socioeconômica, conquistada ao galgar uma carreira profissional. A partir dos 30 anos, o estabelecimento financeiro, com porções de experiência de vida, gradativamente assumia o lugar de principal atrativo erótico (Rios 2013).[11]

No caso que estou analisando, os homens que interagem na Toca estão, em geral, acima dos 35 anos (não são mais tão jovens, de acordo com a classificação da sociedade abrangente). A idade majoritária nos locais de encontro é 45-50 anos.[12] No que se refere às idades dos parceiros, há os casais aparentando uma mesma idade, mas a grande maioria aparenta ter diferença de aproximadamente dez anos. Online, observei, utilizando as ferramentas do Site dos Ursos, que há, entre os cadastrados como do Recife (495 pessoas), uma maior presença de homens abaixo dos 29 anos (26,01% dos perfis), mas ainda assim a grande maioria deles está acima dos 30 anos (73,99% dos perfis).[13]

Fui levado a refletir novamente sobre questões etárias, uma vez que as categorias “filhote” e “paizão”, utilizadas pelos “ursos” para significar suas parcerias, carregam os sentidos de juventude (imaturidade, em processo de aprendizado, dependência financeira e/ou afetiva) e “adultez” (maturidade, saber, estabilidade profissional e financeira, autonomia) para pautar suas interações amorosas, de forma muito semelhante ao que enunciavam os jovens com quem conversei no Rio de Janeiro. Não obstante, de modo diverso do contexto carioca, no qual observei homens biologicamente mais novos interagindo com homens biologicamente mais velhos, entre os “ursos” nem sempre há correspondência entre idades biológicas e o que se chama “paizão” e “filhote”.

Utilizei as ferramentas do site para realizar uma contagem das idades dos homens, na interface com as categorias “paizão” e “filhote”, o que no site é descrito como “comportamento”. Além das duas categorias, uma terceira, denominada “neutro”, é oferecida aos homens para se apresentarem. Considerei apenas os perfis individuais (há perfis de casais) e os cadastrados como residentes no Recife. De um total de 495 perfis individuais cadastrados, 346 preencheram ambos os descritores: idade e “comportamento”. A distribuição de homens “paizões”, “filhotes” e “neutros” por categorias de idades é apresentada no quadro 1.[14]

Observei que há uma forte tendência dos homens para se dizerem “neutros” (52,9% dos perfis). No que se refere aos que se descrevem como “paizões” (16,2% dos perfis) e “filhotes” (30,9% dos perfis), embora haja uma tendência dos homens abaixo de 39 anos para se dizerem “filhotes”, há 2,9% entre os de 20-24 anos, 12% entre os de 25-29 anos e 13,63% entre os de 30-34 que se dizem “paizões”. Acima dos 40 anos, há considerável aumento do percentual de “paizões” por cada faixa de idade, à medida que os homens ficam mais velhos. No entanto, ressalto que, a partir dos 40 anos, não deixam de existir os “filhotes”, nas diferentes faixas de idade trabalhadas (exceção os acima de 65 anos), como mostra o quadro 1.

Não é demais ressaltar que, entre os “paizões” e “filhotes” da cena em análise, não há vínculos de filiação por consanguinidade e/ou adoção. O que quero argumentar com esses dados é que as categorias “paizão” e “filhote” estão como que desalojadas dos referentes empíricos do parentesco e das idades biológicas e, mais que descritivas, são performativas (Butler 2010), não importando o status anterior dos indivíduos no rol das categorizações sociais (se mais velho ou mais novo, biologicamente falando). De outro modo, as nomeações “paizão” e “filhote” não revelam uma diferença intrínseca aos atributos corporais tomados para operar a classificação. Mais que isso, elas propriamente constituem, nas relações entre homens “ursos”, significados advindos das hierarquias próprias ao sistema de parentesco. E porque os sistemas de parentesco operam relações de consanguinidade e afinidade na interface com as idades dos indivíduos, a categorização dos “ursos” também se refere ao sistema etário para significar as relações. Apagam-se, entretanto, os interditos sexuais que a utilização de “filho”/“pai” poderia carregar das nomeações – mais que isso, essas nomeações para o par sexual podem estar a serviço de um incremento erótico que a fantasia de uma quebra de interdito poderia constituir na relação.

Considerando os casais observados na cena off-line, posso afirmar que, embora exista uma tendência para “filhotes” serem mais novos de idade que os “pais”, as autoclassificações como “pai” ou “filho”, à semelhança do que ocorre online, não estão coladas às idades biológicas. Assim, a produção social da diferença (Brah 2006) fica mais evidente nos muitos casos em que os “filhotes” são mais velhos de idade biológica que seus “paizões”, ou em que ambos, “paizões” e “filhotes”, têm a mesma idade. Mesmo quando os “paizões” são mais velhos de idade biológica que os “filhotes”, na maior parte das vezes são dois homens que já estão na “adultez”, mas que, ao serem apreendidos pelas categorias oferecidas entre os “ursos” para a inteligibilidade de suas interações, (re)constituem uma diferença que supostamente seria apagada por ambos já terem alcançado a “maturidade”.

 

Posições sexuais

Retomando a conversa no MSN com Roberto, ele faz uma justaposição entre diferentes sentidos de “atividade”/“passividade” (respectivamente: “por cima”/ “por baixo”,[15] protetor/protegido, cuidado/cuidador) e afirma que todo “pai” é “ativo”. No entanto, nem todos os meus interlocutores concordam com isso. Muitos asseguram que nem todo “filhote” é sexualmente “passivo” e nem todo “paizão” é sexualmente “ativo”.

Seguindo na tentativa de compreender os sentidos das posições sexuais de “pai” e “filhote”, aproveitei mais uma vez as ferramentas classificatórias do site para investigar a inter-relação entre posições sexuais, ali denominadas “posturas sexuais”, e o “comportamento”. De um total de 495 perfis individuais cadastrados como residentes em Recife, 349 preencheram ambos os descritores. Desses, 108 se diziam filhotes (31%), 184 neutros (52,7%), e 57 paizões (16,3%). O cruzamento entre as “posturas sexuais” e o “comportamento” é apresentado no quadro 2.

Observa-se, então, que nos perfis há mais pais ativos (28,1%) ou versáteis mais para ativos (26,3%) que passivos (7%) ou versáteis mais para passivos (7%); e mais filhotes passivos (34,3%) e versáteis mais para passivos (13%) que ativos (8,3%) e versáteis mais para ativos (9,3%), o que de certa forma aponta para o recorrente alinhamento discursivo entre as posições no sexo e os estilos de ursos. Não obstante, ainda que em menores percentuais, há filhotes ativos (8,3%) e paizões passivos (7%).

Chama a atenção a quantidade de “versáteis”, sobretudo quando se consideram os “versáteis mais para ativos” e “versáteis mais para passivos”, sejam “pais” (63,1%), “neutros” (66,8%) ou “filhotes” (56,6%), ainda que exista uma maior concentração de “pais versáteis mais para ativos” (26,3%) e de “filhotes versáteis mais para passivos” (13%). Nas conversas na Toca, a categoria “versátil”, que fala de uma não exclusividade das posições sexuais/partes erógenas do corpo para a obtenção de prazer sexual, também é bastante recorrente e valorizada.

Também é preciso ser destacada a quantidade dos que se dizem “neutros”: 52,7% do total de perfis. Estes se distribuem com uma leve tendência para “ativos” (19,6%) e “versáteis mais para ativos” (21,7%) em relação aos “passivos” (10,9%) e “versáteis mais para passivos” (13%), com maior concentração entre “versáteis” (32,1%). A categoria “neutro” não aparece na Toca. Nunca ouvi ninguém se dizendo “neutro” (já ouvi vários se dizendo “versáteis”). No uso cotidiano das categorias para falar das pessoas, era muito comum ouvir comentários como “que paizão gostoso!”, ou “olha aquele ursinho [no sentido de ‘filhote’]…”, mas nunca ouvi ninguém usar “neutro” para designar pessoas, fossem elas desejáveis ou não. A oferta e, sobretudo, o grande uso da categoria no espaço online talvez remetam a certa posicionalidade das categorias “paizão” e “filhote”. Para os que se classificam como “neutros”, só se é “filhote” ou “pai” em uma relação, e essas posições podem mudar. Também pode ser uma tentativa de escapar da relação de subordinação a que os termos “pai” e “filhote” remetem, em prol de uma relação mais igualitária. Não cheguei a explorar tais questões em conversas informais e entrevistas, mas esse é um assunto que merece ser aprofundado.

Nas interações off-line, mesmo que sem ser interpretada como feminilidade, a demonstração de que se é “filhote” ou “paizão” é corporal: a compleição física (idealmente o “pai” é mais corpulento, mais alto e mais peludo que o “filho”), o modo como o carinho é trocado (quem alisa quem; como o alisado é realizado; como os corpos se posicionam no beijo, etc.), o modo de posicionar o corpo em relação ao parceiro (quando parados, o “pai” atrás do “filho”; quando em movimento, em lugar com pouca aglomeração, o “pai” leva o “filho” pela mão; em situações de aglomeração, o “pai” vai atrás do “filho” – em todos esses contextos, em minha interpretação, sinais de que o “pai” protege e direciona o “filho”). Vale sublinhar a importância do posicionamento dos corpos nas interações sociais que, em detrimento de outros sinais corporais (como idade biológica, estatura física e quantidade de pelos), muitas vezes assume destaque como sinalizador de quem é quem nas cenas afetivas e/ou sexuais que se estabelecem. Supostamente quem está atrás, e encosta o pênis nas nádegas do parceiro, teria mais chances de ser o “ativo” da relação, e, portanto, seria o “paizão”.

Os dados do site, as conversas informais e observações na Toca sugerem que, entre os “ursos”, o “comportamento” (“pai”/“filhote”/“neutro”) e “o que se faz entre quatro paredes” (“ativo”/“passivo”/“versátil”) são elementos distintos, mas que se articulam no momento em que alguém pensa sobre possibilidades (prazerosas) de formar parcerias com outro alguém. Na cena off-line, as pessoas tentam inferir a segunda dimensão classificatória da primeira, e tendem a associar homens “filhotes” à preferência em serem penetrados analmente durante as interações sexuais, e “paizões” à preferência de serem “ativos” nas interações sexuais. Na cena online, as duas dimensões mais explicitamente mostram nem sempre convergir e são comumente desveladas nos perfis, de modo, inclusive, a evitar equívocos no momento da passagem do online para o off-line, quando as trocas de mensagens dão passagem às transações sexuais e afetivas de maior proximidade corporal.

Explorada a dimensão sexual das noções de “paizão” e “filhote”, quero, para finalizar minha descrição, abordar como esses marcadores de diferença regulam a vida afetiva dos “ursos”, ajudando a compor aquilo que no site é descrito como “comportamento”.

 

O afeto e a tomada de decisões

A distinção entre os “paizões”/“alfas” e os “filhotes”/“fácil de dominar”, sugerida por Roberto, remete ao modo como as opiniões e decisões entre a díade/casal são demonstradas, dissimuladas e/ou subordinadas. Rita Segato (1995) já havia chamado a atenção para a importância das disposições nas tomadas de decisão na marcação das categorias de gênero quando investigou o processo de adscrição dos orixás aos adeptos do xangô (uma modalidade de religião afro-brasileira) do Recife. Os próprios orixás (divindades) figurariam como categorias de gênero, na medida em que o rol deles oferece uma gramática para dar sentido para as pessoas e as interações a partir de ideias de masculinidade e feminilidade. Mais amplo que a polaridade masculino/feminino da sociedade abrangente, constitui-se em um leque de possibilidades de ser masculino (Ogum, Xangô, Oxalá) e feminino (Oxum, Iansã, Iemanjá). Ela observou que a primeira etapa do processo de adscrição, antes mesmo de chegar aos orixás de cabeça, seria identificar se a pessoa pertence a um orixá masculino ou feminino – sublinhando que homens e mulheres podem ter orixás de cabeça masculinos e femininos, e que isso independe de suas orientações sexuais.

Para a identificação, é observado, além de uma variedade de atributos corporais, o modo como as pessoas reagem diante das tomadas de decisão: enquanto as pessoas de “santo homem” são autônomas, as de “santo mulher” são dependentes. A autora exemplifica os sentidos de autonomia e de dependência para os adeptos com o relato de uma mulher que tinha dois santos femininos, Oxum e Iansã, e um terceiro masculino, Xangô:[16]

“Eu me sentiria muito mais segura se eu tivesse Xangô [seu terceiro santo] em segundo lugar e não Iansã, assim eu teria um homem a quem recorrer: um [santo] homem é sempre um braço forte para sustentar-se. […] Então, quando eu quero resolver um problema difícil, fixo meus pensamentos no meu terceiro santo, Xangô, e parece que eu estou com ele, que atuo com ele. Xangô é masculino, e quem é masculino é sempre mais autônomo, mais capaz de tomar uma decisão rápida e se virar sozinho em qualquer situação” (Segato 1995: 15-16).

No xangô, não há preferências ou desvalorização por ter como orixá de cabeça santo homem ou mulher; os adeptos inclusive reconhecem as vantagens e desvantagens de cada caso:

“Embora a autonomia, entendida como a capacidade de tomar decisões e resolver problemas sem necessidade de orientação ou estímulo externo, seja vista como um traço vantajoso, diz-se que ela faz as personalidades masculinas muito inflexíveis e refratárias às críticas. Por outro lado, os filhos e filhas de santos femininos têm a franqueza de depender da aprovação ou da direção dos outros e, em muitos casos, essa aprovação constitui o ­objetivo mesmo das suas ações, mas se diz que isto não só lhes permite procurar ajuda e conselho, como também cooperar e engajar-se em empresas por outros lideradas” (Segato 1995: 15).

Considero pertinente a proposta de Segato (1995), em que a disposição para a tomada de decisão é importante definidor para as categorizações de gênero no xangô, para compreender processos correlatos em outros contextos, como o dos “ursos”. Retomando a conversa com Roberto à luz da análise da autora, parece-me que o cerne da questão na tomada de decisão entre os homens “ursos” está na regulação dos afetos, na produção de assimetria e reciprocidade entre os parceiros, de modo a criar a “simbiose do amor”: o “filhote” “dᔠpara o “paizão”. O “paizão”, “sempre por cima”, protege o “filhote”. O “filhote” cuida do “paizão”. O “filhote” se deixa “dominar” pelo “paizão”, delegando-lhe, ou inferindo o que ele aprovaria em termos de alguma decisão a ser tomada, de modo a garantir as trocas afetivas e prazerosas entre o casal.

Em minha interpretação, “paizão” e “filhote” falam simultaneamente de gostos eróticos e de disposições nas tomadas de decisão diante do parceiro afetivo, ou seja, “atividade”/autonomia e “passividade”/dependência na relação entre dois homens “ursos”; homens, do ponto de vista da sociedade abrangente, masculinos. Ainda que estilizadas por personagens “familiares” advindas das categorias de parentesco e com forte acento em sentidos de idade (mas apagando as interdições sexuais que a nomeação poderia conferir à classificação), “paizão” e “filhote” são categorias de gênero.

 

Dando sentido ao que está fora de lugar: gênero, intersecções e citações

O fenômeno em análise neste artigo aponta, em parte, para uma modificação nos arranjos de sexo-gênero (Rubin 1993) na comunidade dos “ursos”, quando comparado a outros contextos de homossociabilidade e à sociedade mais ampla. Em um primeiro olhar, o par “paizão”/“filhote” rompe com o tabu da homossexualidade (Rubin 1993), ou com a matriz heterossexual (Butler 2003), tanto nos seus aspectos de sexualidade como nos de gênero. São transações sexuais entre dois homens masculinizados, consideradas, na sociedade abrangente, e em muitos contextos homossexuais, esteticamente “fora de lugar”.

Como apontei, a comunidade dos “ursos”, em sua porção off-line, é formada majoritariamente por homens adultos e idosos, que se relacionam sexualmente entre si. Ainda que não haja relações de filiação por consanguinidade e/ou adoção entre os homens, eles utilizam o par “paizão”/“filhote” para significar a si mesmos e as relações sexuais e afetivas que estabelecem – um arranjo que, para ser analisado e compreendido, exige considerar o que resulta das intersecções (Brah 2006; Piscitelli 2008) entre categorias sociais associadas aos sistemas de sexo-gênero, de sexualidade, etário e de parentesco da sociedade abrangente.

Segato (1995) propõe as assimetrias de poder, expressas nas ideias de autonomia e dependência, como chave para a configuração de categorias de gênero. Não obstante, é importante lembrar que assimetrias também estão presentes nos outros sistemas (Saffioti 1997) que se interseccionam nas categorias “paizão” e “filhote”. Nessa linha, as (com)posições que resultam do agenciamento de elementos corporais variados, citados (Butler 2010) pelos homens na constituição de si mesmos e de suas parcerias sexuais e/ou afetivas, quando são interpretadas como configurando os estilos “paizão” e “filhote”, atualizam as assimetrias que caracterizam essas categorias no sistema etário e no de parentesco da sociedade abrangente.

Em parte as categorias citadas são reiteradas em seus valores “originais” (diferenciam e hierarquizam os homens) e em parte se ressignificam por estarem sendo utilizadas “fora de lugar” (produzem deslocamentos). Me parece que o principal deslocamento é o de apagar o interdito sexual entre “pais” e “filhos” e hiperinvestir no efeito erótico que a diferença, assim nomeada, produz em termos de prazeres sexuais e afetivos. Em adição, o alinhamento entre “paizão”/“filhote” com, respectivamente, as posições sexuais “ativo”/“passivo”, possui endereçamento certo nas significações que os sistemas de gênero e sexualidade (da sociedade abrangente) se imputam mutuamente, que podem ser resumidas na ideia de que o “ativo” é superior (“por cima”) ao “passivo” (“por baixo”) (Parker 1991).

Na minha interpretação, é porque idade, parentesco, sexualidade e gênero constituem sentidos de autonomia/dependência (“papai sempre por cima / papai protege o filhote e o filhote cuida dele”) que o deslizamento das categorias entre os sistemas se torna possível, que as citações se tornam inteligíveis. Em adição, o que me faz localizar o arranjo como um sistema de sexo-gênero singular (ainda que em interlocução com o sistema de gênero da sociedade abrangente) é a sua capacidade de engendrar diferentes estilos de ser homem, imbuídos de assimetria e complementaridade erótica, produzindo desejos, encontros e prazeres sexuais e/ou afetivos, necessários para a emergência e manutenção da “simbiose do amor”.[17]

 

Considerações finais

Na perspectiva de caracterizar de forma sintética a comunidade que estudei, posso dizer que ela se organiza a partir de três marcadores de diferença, que funcionam como estigmas na sociedade abrangente: a homossexualidade, os corpos velhos, gordos e peludos (estética socialmente desvalorizada, inclusive na própria comunidade gay mais ampla) e a feminilidade quando agenciada por homens. Os homens que dela participam invertem o valor dos dois primeiros marcadores, positivando-os, e reforçam a terceira linha de estigmatização, desvalorizando os homens femininos.

Como mostrei acima, na comunidade dos “ursos” apaga-se o feminino dos gestos e sotaques e, do lugar vago, emerge um novo ordenamento estilístico de gênero. Um olhar mais estrutural, e considerando apenas o campo das representações, irá assinalar, entretanto, que o novo arranjo reitera a hierarquia inerente à formação de casais da sociedade abrangente, em um primeiro olhar desfeita com o apagamento da feminilidade do estilo de ser. Essa hierarquia situa o “paizão”/masculino/autônomo/“ativo” como superior ao “filhote”/(feminino)masculino/dependente/“passivo”.

Por outro lado, observando um espaço no qual os homens precisam tornar o mais explícito possível seus estilos e gostos, o Site dos Ursos, foi possível perceber, por um lado, uma tendência para os homens “passivos” se dizerem “filhotes” e de os homens “ativos” se dizerem “paizões” (o que ajuda a reiterar a plausibilidade das categorias), mas também é possível afirmar que, no que se refere aos gostos sobre as posições sexuais, há um predomínio da “versatilidade”.

O binarismo aparece apenas como uma espécie de artifício para início de conversa. Por ser pouco potente para descrever e orientar os gostos, a vida sexual e afetiva logo dá passagem a uma profusão de categorias e posições de sujeito. Isso é bem ilustrado pelos desalinhamentos entre “comportamento” (“paizões” e “filhotes”) e “posturas sexuais” (“ativos” e “passivos”), além de uma gama de possibilidades de cruzamentos – porque as categorizações vão se enriquecendo (“versátil” e “neutro”) e se hibridizando (“versátil-ativo” e “versátil-passivo”) – para dar conta da realidade social mais singular aos sujeitos.

Nessa linha, sublinho o caráter contextual que o jogo das diferenciações assume no correr das interações, em que são comuns deslizamentos de um mesmo sujeito da posição de “paizão” para “filhote”, e vice-versa; e mesmo para fora do que é esperado para os “ursos”. Se “paizão” e “filhote” funcionam como espécies de descritores-chave, uma gama de devires “urso” se abre a partir deles.[18] Na operação que realiza, o sistema de sexo-gênero intersecciona conformações corporais, posições sexuais, sentidos de idade e parentesco (com implicações de poder), entre outros marcadores, para permitir que os sujeitos se constituam e reconheçam a partir de estilos de ser homem e se tornem “ursos”.

 

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Receção da versão original | Original version 2017/01/29
Receção da versão revista | Revised version 2017/05/22
Aceitação | Accepted 2017/12/14

 

 

NOTAS

[1]             De forma muito simplória, e para início de conversa, pode-se dizer que os “ursos” são homens com práticas homossexuais, corpulentos e peludos, e que se negam a incorporar atributos (de indumentária, gestual, sotaque, etc.) usualmente considerados femininos.

[2]             Agradecemos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq, ­Brasil) pelos apoios financeiros ao projeto (processos 303056/2011-8, 405259/2012-3, 470088/2013-3 e 305136/2014-3).

[3]             “Bicha” é um dos termos mais utilizados na gíria brasileira para referir homossexuais. Em muitos contextos remete a imagem do homem feminino e “passivo” (realiza sexo anal recetivo). “Frango” e “pintosa” são termos equivalentes e muito utilizados no Recife. Vale situar que “bicha” e seus correlatos podem assumir ou não o tom ofensivo a depender do contexto (se utilizado entre amigos ou por estranhos, e modulados pelo tom da voz). Nos dias atuais, a sua utilização entre amigos homossexualmente identificados pode deixar de significar “passividade” e feminilidade e ter o sentido mais amplo de gay – uma identidade positivada. “Bofe”, “cafuçu” e “boy” são termos utilizados para se referir a homens que fazem sexo com homens, masculinizados. Os dois primeiros referem-se a sujeitos que, muitas vezes, não se percebem e/ou são percebidos como homossexuais pela configuração de masculinidade que performam e, porque, no nível das representações, seriam sexualmente “ativos” (realizam sexo anal insertivo). “Barbie” (alusão a uma boneca muito apreciada pelas classes mais abastadas) é utilizado para se referir a homens fisiculturistas, e em algumas circunstâncias de uso agrega sentidos de feminilidade.

[4]             “Fashion” no sentido de seguir as tendências da moda do “mercado cor-de-rosa”, que, aos olhos dos “ursos”, remete à feminilidade.

[5]             Há também outros descritores, comumente encontrados em sites de relacionamento para homens com práticas homossexuais, como local, idade, altura, peso, cor da pele, cor dos olhos, cor do cabelo, orientação sexual (bissexual, curioso, homossexual, heterossexual, transexual), postura sexual (ativo, versátil mais para ativo, versátil, versátil mais para passivo, passivo, sem penetração), estado civil, se fuma e se bebe.

[6]             As relações que se estabelecem entre posições nas cenas sexuais, sentidos de gênero, produção de desejos e parcerias sexuais não são fenômenos exclusivos das comunidades homossexuais brasileiras ou latinas (Dangerfield et al. 2017), e ganham especial relevância para o campo da saúde coletiva, uma vez que há diferenças nos riscos de infeção pelo HIV, em função da posição sexual assumida (Meng et al. 2015).

[7]             “Pinta” se refere a gestos e sotaques que remetem ao feminino, geralmente percebidos como involuntários; “fechação” indica um comportamento feminino exagerado, com fins de, intencionalmente, chamar a atenção.

[8]             MSN ou Messenger é um programa para a realização de conversas em tempo real na Internet.

[9]             Dias antes, numa conversa na Internet, Roberto havia me convidado para visitar o seu perfil novo no Site dos Ursos. No título do perfil constava: “Papai_urso – Onde andará o meu filhote?” Na apresentação, meu interlocutor escreveu: “Discreto, simples e simpático, descobrindo o mundo ursino pernambucano no site, assim busco fazer amizades com pessoas interessantes. Apenas ursos gordos ou gordinhos”. Roberto diz que em poucas horas já havia recebido mais de 30 mensagens, todas de homens querendo tomar o lugar do filhote, o qual “Papai_urso” tão enfaticamente dizia procurar. Vendo meu interesse no que estava acontecendo, ele copiou algumas das mensagens para o MSN: “Papai urso?? Me coloca no colo e me faz dormir… se bem que dormir é a última coisa que quero fazer com vc…rsrs Tesão!!!”; “bem, não sei se me enquadro no curriculum p/filho, só sei que preciso de um papai!!!”; “Qlqr coisa tô na fila dos filhotes rsrs. Abraço”. Alguns meses depois de ter criado o perfil, Roberto iniciou uma parceria fixa e desfez o perfil.

[10]           Tento reproduzir a própria dinâmica do MSN, no qual as palavras são escritas, na maior parte das vezes, em minúsculas, e a pontuação vai se fazendo pelo envio das sentenças, em minha transcrição sinalizadas pelo sinal barra ( / ).

[11]           Não havia, entretanto, superposição necessária e direta entre a hierarquia etária (mais velho/mais jovem), a hierarquia das posições sexuais (ativo/passivo) e as hierarquias de gênero (masculino/feminino). Sinergicamente, e caso a caso, as inter-relações entre as categorias compunham diferentes relações de poder entre os envolvidos nas parcerias afetivas.

[12]           Para uma discussão sobre o envelhecimento e homossexualidade, cf. Júlio Simões (2004), ­Fernando Pocahy (2012) e Santos e Lago (2013).

[13]           Nas conversas com os jovens do site, muitos relatam que se sentem alvo de preconceitos, porque os homens mais velhos (objeto de seus desejos) não lhes dão muita atenção, dizendo preferir homens “maduros”.

[14]           Os dados quantitativos não foram submetidos a nenhum tratamento estatístico mais sofisticado do que o mero cálculo percentual. Em meu entendimento, é um recurso suficiente para a descrição proposta.

[15]           Na gramática sexual brasileira usualmente se concebe que, no ato sexual, quem está “por cima” penetra quem está “por baixo” (Parker 1991).

[16]           Se há um orixá dono da cabeça, também há segundos e terceiros deuses com os quais cada fiel é relacionado miticamente.

[17]           Talvez tenha sido meu olhar focado na libertinagem que impediu de aparecerem outras dimensões que a regulação de gênero promove. De todo modo, vale dizer que os frequentadores da Toca, em geral, têm emprego e renda suficiente para se manterem sozinhos. Ainda assim, é muito comum os “paizões” pagarem as noitadas, ainda que os “filhotes” demonstrem ter condições de pagar sua parte pela diversão.

[18]           Por exemplo, tomando outra categorização do site, que não teve chance de ser analisada neste texto, temos os “tipos de urso”: caçador, gordo sem pelos, lontra, urso, urso gordo, urso musculoso, urso negro, urso parrudo, urso polar.

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