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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica vol.20 no.1 Lisboa fev. 2016

 

ARTIGOS

 

Entre projeto e convivialidade: um exercício de reflexividade etnográfica em torno da socialidade juvenil em Cabo Verde

 

Between project and conviviality: an exercise of ethnographic reflexivity in research on youth sociality in Cape Verde

 

 

Filipe MartinsI

ICRIA / UMinho; Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico do Porto, Portugal. E-mail: filipemartins79@gmail.com

 

 


RESUMO

Neste artigo apresenta-se o percurso de análise reflexiva que acompanhou uma pesquisa etnográfica sobre práticas coletivas e associativas de jovens habitantes das periferias pobres da cidade do Mindelo, em Cabo Verde. Este exercício analítico parte de uma interpretação eminentemente relacional da socialidade juvenil, na qual os processos de constituição dos jovens enquanto sujeitos sociais são tomados como eixo de revelação e compreensão de conceções diversas e complementares – tanto do autor como dos jovens estudados – sobre juventude e, consequentemente, sobre pessoa. No contexto das transformações recentes ocorridas na sociedade cabo-verdiana a socialidade juvenil parece configurar-se de modo paradoxal, entre a imaginação de projetos individuais orientados para o futuro e, paralelamente, o investimento quotidiano na convivialidade e na interdependência entre pares enquanto modalidade central de constituição de si, sendo esta tensão profundamente dependente – e definidora – da ambiguidade e da incerteza associadas à condição juvenil contemporânea em Cabo Verde.

Palavras-chave: Cabo Verde, juventude, projeto, convivialidade, interdependência


ABSTRACT

This article presents the reflective path that accompanied an ethnographic research on collective and associative practices of young people living in poor suburbs of the city of Mindelo, Cape Verde. This analytical exercise is based on a relational interpretation of youth sociality in which young people’s processes of constitution as social subjects become the axis of revelation and understanding of various and complementary conceptions – both the author’s and young people’s – about youth and, consequently, about person. In the context of recent transformations in the Cape Verdean society, youth sociality seems to develop in a paradoxical way, between the imagination of individual projects of future fulfillment and the everyday investment in conviviality and interdependence among peers as a key way of self making, this tension being deeply dependent on – and defining of – the ambiguity and uncertainty associated with youth in contemporary Cape Verde.

Keywords: Cape Verde, youth, project, conviviality, interdependence


 

 

Iniciei a minha pesquisa para doutoramento em Cabo Verde, em 2007, com o objetivo de estudar “os jovens” cabo-verdianos.[1] Não era para mim um contexto novo; na verdade sentia-o como familiar, pois tinha trabalhado neste país como voluntário de uma ONGD portuguesa por curtos períodos nos anos de 2002, 2003 e 2004, no contexto de projetos de cooperação com grupos e associações juvenis. Porém estes trabalhos sempre me deixaram um sentimento de superficialidade e de desadequação, e a possibilidade de regressar a Cabo Verde a cada ano confirmava-me a ausência de impactos ao nível do envolvimento dos jovens em atividades associativas e a descontinuidade das iniciativas promovidas. Tal parecia evidenciar um desencontro entre o que era enunciado e projetado pelos jovens e aquilo que realmente era posto em prática após cada “projeto”. Partindo desta constatação, impunha-se um sentimento de que algo faltava compreender para dar sentido ao aparente desfasamento entre o assumido pelos jovens e aquilo que efetivamente realizavam ao longo do tempo. Algo faltava conhecer sobre as suas vidas que “justificasse” porquê as suas prioridades e motivações pareciam inverter-se depois de terminadas as ações de formação e os desenhos de projetos…

Naturalmente eu sabia que os contextos formativos e de planificação, por mais participativos que fossem, constituíam sempre espaços abstratos e de algum modo desfasados dos contextos de vida dos participantes, permitindo, se não uma fuga à realidade, pelo menos um esquecimento parcial dos constrangimentos sociais que a determinam. Como tal, era justamente aí que eu imaginava estar a raiz do “desfasamento” entre o discurso e a prática dos jovens cabo-verdianos, e foi isso que me propus conhecer com maior profundidade: as suas vidas fora da sala de trabalho, os seus contextos de sociabilidade, os seus constrangimentos, as suas aspirações. Este pareceu-me um projeto relevante, dado que na altura quase nenhuns estudos existiam em Cabo Verde sobre a juventude, uma faixa etária demograficamente dominante mas sobre a qual muito pouco conhecimento sistematizado e baseado em pesquisas empíricas havia sido produzido, em particular de natureza etnográfica. E fazia ainda mais sentido num contexto em que, pelo contrário, a “crise da juventude” (associada à criminalidade, desemprego, ociosidade, consumismo e comportamentos de risco) se tornava um tópico central nos discursos quotidianos e a “área” da juventude crescia como lugar de intervenção social, política e policial.

Optei por levar a cabo a pesquisa etnográfica na cidade do Mindelo, na ilha de São Vicente, uma vez que, devido à rápida urbanização do país nas últimas décadas, tem sido nas maiores cidades que a presença (demográfica, cultural, mediática) da juventude se tem tornado mais expressiva. Paralelamente, era no Mindelo (a segunda maior cidade do país) que se registavam os maiores índices de pobreza e desemprego juvenil, e interessava-me conhecer justamente os percursos dos jovens mais vulneráveis socioeconomicamente. Assim, ao longo da pesquisa fui ensaiando a construção de um olhar que fosse especificamente dedicado aos “jovens” cabo-verdianos, procurando compreender melhor o significado de “ser” jovem em Cabo Verde e a forma como estes construíam as suas identidades “juvenis” e imaginavam os seu percursos de vida, em especial num contexto de crescente urbanização, fragilidade socioeconómica e assimetrias materiais e simbólicas.

 

Juventude e mudança social em Cabo Verde

Em Cabo Verde, bem como genericamente em todo o continente africano, a categoria “juventude” vem ganhando importância e extensão, tanto demográfica, como económica, política e simbólica. Essa extensão é no entanto marcada pela ambiguidade do seu conteúdo e dos seus limites – quem são os jovens?, o que querem eles?, quando termina a juventude? – refletindo ao mesmo tempo as ambiguidades das paisagens sociais contemporâneas. Assim sigo, na minha análise, a antropóloga Deborah Durham quando esta afirma: “A juventude como categoria social historicamente construída, como um conceito relacional, e os jovens como um grupo de atores formam uma lente especialmente aguda através da qual as forças sociais estão focadas em África, tal como em grande parte do mundo” (2000: 114). Tomando a juventude como eixo central de análise, interessei-me por compreender como as rápidas e drásticas mudanças ocorridas nas últimas décadas em Cabo Verde têm originado a reconstrução – ou a continuidade – das dimensões simbólicas da individualidade e da agencialidade (cf. Durham 2000).

Com efeito, após a independência nacional, a 5 de julho de 1975, Cabo Verde tem registado progressivas melhorias em múltiplos indicadores de desenvolvimento (crescimento económico e rendimento per capita, literacia e acesso à educação, saúde, infraestruturas de transporte e comunicação, administração pública, setor empresarial, sistema democrático estável desde 1991, organização da sociedade civil).[2] Em especial desde a “abertura política” de 1991 (designação local das primeiras eleições multipartidárias livres), o país tem seguido uma política económica liberal alinhada com as orientações das organizações internacionais e sustentada pela ajuda destas (Lobban 1995), tendo como corolário o rápido desenvolvimento de uma economia de mercado essencialmente assente nos setores do comércio, serviços e turismo internacional (Lobban 1995). Em paralelo, os consecutivos governos desde a independência têm assumido como estratégia basilar o investimento no capital humano (Pina 2009; CGE 2012), tendo-se consequentemente universalizado o acesso ao ensino básico e generalizado o acesso ao ensino secundário (mais recentemente também ao ensino superior, embora centralizado nos dois principais polos urbanos).

A par das transformações descritas, o país registou um crescimento demográfico muito intenso nas últimas décadas, com uma população que cresceu de 200.000 habitantes em 1960 para 491.575 em 2010 (INE 2010). Este crescimento foi acompanhado por um expressivo peso demográfico da população jovem: 54,4% dos habitantes de Cabo Verde têm menos de 25 anos de idade e 70,4% tem menos de 35 anos (INE 2010). Paralelamente, num país com uma forte tradição rural, hoje 62% da população reside em núcleos urbanos: 120.000 habitantes na cidade da Praia (capital do país, na ilha de Santiago), e 70.000 habitantes na cidade do Mindelo (INE 2010).

A nível socioeconómico, se nas últimas décadas se registou uma expressiva redução da pobreza e uma melhoria geral das condições de vida, a contínua dependência macroeconómica externa (ajuda internacional e remessas dos emigrantes), a par de uma reduzida produção local, têm originado uma elevada dependência de bens importados, aumentando assim o custo de vida face aos baixos rendimentos da maioria da população (Lobban 1995). Este fator, reforçado ainda por uma persistente taxa de desemprego – mais expressiva entre os jovens[3] – tem tido como consequência um aumento das desigualdades sociais nos últimos anos (Laurent e Furtado 2008; Proença 2009; Lima 2011). Por outro lado, a frágil economia nacional é ainda incapaz de sustentar um sistema público de proteção social que apoie eficazmente os grupos mais desfavorecidos da sociedade, entre os quais se encontram muitos jovens.

Por fim, se a emigração tem sido desde há muito em Cabo Verde um dos principais mecanismos de “fazer a vida” (Åkesson 2004) face à fragilidade socioeconómica, também aqui se verificaram mudanças recentes, uma vez que os países europeus e norte-americanos, principais destinos da emigração cabo-verdiana, têm vindo a endurecer as suas políticas imigratórias. Como consequência, atualmente tem-se registado em Cabo Verde uma severa restrição de uma das estratégias mais importantes de subsistência e de mobilidade social: a mobilidade internacional (Carling 2002; Åkesson 2008).

No contexto destas rápidas mudanças, os jovens foram conquistando um lugar de destaque na sociedade cabo-verdiana; porém, um lugar paradoxal. É inegável que aumentaram as oportunidades de realização dos jovens nos domínios da educação formal, das comunicações, do consumo e do lazer. ­Contudo, face à sua crescente pressão demográfica, os frágeis sistemas económico e de proteção social do país, aliados às crescentes dificuldades para emigrar, tornam difícil responder às crescentes aspirações de autonomização de grande parte da juventude nacional, nomeadamente de obtenção de um emprego estável, de uma habitação própria, de padrões de consumo mais elevados e de estabelecimento de núcleos familiares autónomos. Consequentemente, muitos jovens cabo-verdianos encontram-se atualmente num lugar identitariamente ambíguo e socioeconomicamente vulnerável, o que gera sentimentos de frustração e incerteza face ao futuro (Martins 2009, 2011).[4]

Foi justamente no seio desta contradição entre aspirações e frustrações, ambas crescentes, que situei a minha pesquisa etnográfica, procurando compreender como ela tem determinado – e como dela se têm apropriado – as trajetórias sociais dos jovens em Cabo Verde. Para tal procurei afastar-me de uma visão externa e abstratizante do grupo social “juventude” e de uma análise das relações sociais definidas por interesses coletivos, comummente concebidas no plano normativo, e nas quais os jovens teriam de se “socializar”. Ensaiei antes uma análise de natureza eminentemente relacional e processual, assente na noção de socialidade (neste caso juvenil), ou seja, nos “modos de [se] constituir e [de] agir socialmente” (Viegas 2007: 52) dos jovens estudados, pretendendo desse modo realçar a experiência vivida destes e o seu processo de constituição como sujeitos sociais, como seres-no-mundo (cf. Strathern 1988; Toren 1999) num contexto social de elevada instabilidade e incerteza.

 

Etnografia de um lugar juvenil

Desenvolvi uma parte significativa da minha pesquisa etnográfica em torno de estruturas coletivas juvenis (mais ou menos formais), na expectativa de compreender como os seus objetivos e práticas faziam transparecer o leque de representações e intenções que eram veiculadas sobre (e para) os jovens, e como estas eram (ou não) entendidas, apropriadas e negociadas pelos próprios como elementos constitutivos das suas socialidades.[5] Para tal escolhi como contexto etnográfico privilegiado uma associação juvenil que passarei a designar “Associação União Juvenil” (AUJ), e cuja atuação se centrava na periferia sudeste da cidade, sendo responsável pela dinamização de dois centros juvenis em duas zonas distintas. Nestes pude conhecer e envolver-me em atividades coletivas com um elevado número de jovens residentes nessas áreas, algumas das mais densamente povoadas e mais pobres da cidade.

A AUJ surgira da vontade e do empenho do seu presidente, A., que, embora natural de um país europeu, vivia em São Vicente desde 1993 e sempre mantivera grande proximidade e envolvimento com as áreas e grupos mais pobres da cidade. Ele tinha dado início à AUJ em 2002, constituindo-a primeiramente a partir de um grupo informal de pessoas suas conhecidas (principalmente professores) motivadas a apoiar os jovens mais vulneráveis da cidade. Nessa fase, A. tinha mobilizado também um conjunto de jovens na zona da “­Fontinha” (nome fictício), no leste da periferia do Mindelo, e obtido a autorização da Câmara Municipal de São Vicente para restaurar e dinamizar um antigo centro social naquela localidade. Acompanhado por estes, A. conseguiu em poucos meses abrir um centro juvenil naquela zona, oferecendo oportunidades de prática desportiva e danças tradicionais, sessões de cinema, uma pequena biblioteca, um espaço de estudo com um computador, e ainda um espaço de lazer com televisão e jogos, onde também era possível realizar festas e atividades culturais, assim como palestras e ações de formação. Em 2007 a AUJ formalizou-se enquanto associação e obteve autorização municipal para restaurar e dinamizar, com recursos e atividades da mesma natureza, um novo centro social na zona de “Covada” (nome fictício), no sul da periferia da cidade.

Para A., esta era a forma mais adequada de apoiar os jovens: oferecer-lhes espaços. Num texto de sua autoria, de fevereiro de 2009, procurando reescrever as linhas orientadoras da AUJ, constava no preâmbulo:

“Quando algo vem à existência ocupa um espaço. Se não tiver o espaço necessário arrisca-se ao sufocamento. Não encontrar o espaço procurado leva a sofrer uma condição de marginalização. A falta de espaço põe a risco a formação de uma identidade. […] Mesmo se a juventude é hoje uma camada social considerada, torna-se difícil que as estruturas da sociedade satisfaçam os seus anseios. É um problema dado pela dificuldade de entender as aspirações da juventude, que utiliza linguagens e categorias muitas vezes pouco compreensíveis, pela falta de sensibilidade de quem dirige a sociedade, por o facto que a juventude precisa [de] serviços muitas vezes não imediatamente rentáveis e pela falta de interlocutores capazes de dialogar com eles. Mesmo a disponibilização de um espaço é algo que carrega os seus custos para os quais a juventude, na maioria das vezes, não [se] pode responsabilizar. […] Oferecer um espaço é criar, antes de mais, uma defesa e para quem está na aprendizagem da vida isto é uma necessidade. […] Criar e oferecer espaço para a existência duma dinâmica juvenil é a primeira aposta da nossa iniciativa. O espaço é reconhecedor da existência”.

Para A., este entendimento do espaço como condição de existência e de identidade articulava-se com a sua visão dos jovens mais pobres do Mindelo, cujas vulnerabilidades conhecia bem. Para ele, em Cabo Verde, e em especial nas zonas urbanas periféricas, os jovens passavam por dificuldades familiares, económicas e culturais que se reforçavam mutuamente e que agravavam uma já natural vulnerabilidade associada à condição juvenil.

Ao perguntar-lhe o que pretendia conseguir com a AUJ, A. respondeu-me com uma metáfora e com uma intenção:

“Eu queria bater, ou diminuir, ou enfraquecer aquele sentimento de abandono que a sociedade cria nesta juventude, que cria em toda a sociedade, não é?, mas que o jovem pode ser mais afetado. Também porque o jovem precisa de um acompanhamento, de um apoio, de um espaço seu; o jovem não se pode pensar que tenha de pagar cada divertimento, cada instrumento que utiliza. E o raciocínio é a sociedade como uma família; na minha família os filhos não pagam para comer, não é?, e na sociedade os filhos não pagam para se divertir. O divertimento não é opcional; para um jovem é a forma de [se] relacionar com os outros, a forma de descobrir a si, é a forma para aprender a entrar na sociedade. Então este divertimento pelo menos até uma certa medida deve ser oferecido, como se oferece o prato de comida na casa. […] E depois quero mostrar que isso deve ser, digamos assim, se pode fazer coisas, há pessoas que fazem sem interesses económicos ou políticos, mesmo religiosos; […]. Essa é uma mensagem que quero passar” [entrevista a A., 12 de dezembro de 2010].

A associação que A. tinha criado estava assim estruturada em torno de uma ética “familiar”, onde justamente se valorizava uma relação de orientação entre os adultos e os jovens e o caráter gratuito e quase incondicional dos serviços prestados. Para A., este era um modelo de apoio social que valia a pena divulgar e multiplicar, uma “crítica à sociedade”, assente em valores solidários alternativos ao economicismo, individualismo e egoísmo que lhe pareciam ser dominantes na sociedade cabo-verdiana atual.

Coerente com esta visão, a AUJ assumia como objetivos “oferecer espaços de encontro saudáveis onde os jovens podem encontrar-se e conhecer-se sem gastos de dinheiro, apoiar as iniciativas que surgem do meio juvenil e criar dinâmicas educativas de grupo que ajudem o indivíduo no crescimento da sua personalidade e da sua inserção social e política”.[6] Estes objetivos eram prosseguidos através da dinamização dos dois centros juvenis da associação e, consequentemente, foi nestes locais que passei mais tempo com os jovens, embora privilegiando o centro da Covada que, por ser mais amplo e oferecer mais atividades, atraía um número consideravelmente maior de frequentadores.

Para me aproximar das práticas quotidianas desta associação, assim como dos jovens que as realizavam, disponibilizei-me desde logo a envolver-me nas suas atividades e a participar nas reuniões de gestão. Para isso procurei criar uma relação de confiança e colaboração com os responsáveis operacionais destes centros, designados de “educadores”. Naquela altura estes eram Elton e Stip, ambos com 24 anos de idade, que haviam sido escolhidos por A. para frequentar um curso de nove meses sobre animação juvenil numa universidade europeia, no compromisso de posteriormente assumirem funções de coordenação nos centros juvenis da associação. Assim, em abril de 2008, Stip era responsável pela coordenação do centro juvenil de Covada e Elton, envolvido há mais tempo na associação e conhecido de A. desde criança, coordenava o centro juvenil de Fontinha. Nos meses seguintes acompanhei estes dois educadores nos seus trabalhos nos centros e partilhei com eles ideias sobre a juventude do Mindelo e sobre as atividades da AUJ.

Naquela altura a AUJ apostava em promover atividades de interesse para os jovens no recém-inaugurado centro da Covada e procurava constituir um grupo de jovens locais que voluntariamente assumisse responsabilidades na sua organização e manutenção. Prontifiquei-me a colaborar neste processo, encarando-o como uma possibilidade de integração e pesquisa. Deste modo tive oportunidade de participar e dinamizar reuniões, sessões de formação e debates com um grupo alargado de jovens locais,[7] conhecendo as suas perspetivas sobre a juventude, sobre as suas comunidades e sobre o sentido que davam ao seu envolvimento enquanto voluntários na AUJ. Com efeito, a adesão dos jovens às propostas da AUJ era entendida por estes como natural, pois estava em linha com atividades e coletividades juvenis informais já previamente existentes a nível local (as designadas “maltas de zona”, muito frequentes em todo o país, sendo a mais expressiva manifestação de práticas coletivas juvenis em Cabo Verde). A AUJ viria apenas dar um enquadramento físico e organizacional a algo que para os jovens já era familiar.

Neste contexto, vários jovens rapidamente se mobilizavam para participar em iniciativas comunitárias promovidas pela AUJ (recolha e dádiva de bens para famílias carenciadas, campanhas de limpeza de espaços públicos, palestras de sensibilização, doação de sangue, apoio escolar a crianças e adolescentes…), bem como em atividades culturais e lúdicas (festas, passeios, desfiles e concursos, grupos de dança, de teatro ou desportivos). Impressionado por este intenso envolvimento voluntário, procurei em diversos contextos compreender o sentido que os jovens lhe atribuíam. Por exemplo, numa sessão de debate sobre cidadania, notei o seguinte:

“Finalmente, quanto à obrigatoriedade de se dedicar parte do tempo livre à sua comunidade, dividiram-se as opiniões. De um lado estavam os que concordavam, valorizando o voluntariado como uma coisa drêt,[8] o espírito de entreajuda e solidariedade comunitária, e revelando ainda uma forte ligação às suas zonas e comunidades de residência; de outro lado estavam aqueles que também valorizavam estes aspetos mas que achavam que tal não devia ser obrigatório e que só o fazíamos quando isso também fosse bom para nós e nos desse prazer. Um dos jovens deste grupo disse mesmo que o melhor que temos a fazer pela nossa comunidade é desenvolvermo-nos a nós mesmos” [notas de campo, 17 de abril de 2008].

Se, por um lado, os jovens associavam o voluntariado a um forte sentido de obrigação de ajudar os mais carenciados e a um contributo comunitário importante, por outro lado o exercício do voluntariado constituía também um meio de integração social e autopromoção, com vantagens para o desenvolvimento pessoal, para a aquisição de novos conhecimentos e para a vivência de novas experiências e amizades.

Este envolvimento juvenil era frequentemente concebido pelos próprios sob a forma de “projetos”, por vezes inclusivamente através de documentos escritos que explanavam objetivos, atividades, cronogramas e orçamentos. Porém, a sua concretização era quase sempre pontual, descontinuada e descoordenada, com pouca ou nenhuma correspondência com os “projetos” delineados previamente. Na verdade, as atividades e os projetos da AUJ que eram assumidos pelos jovens voluntários e pelos educadores (nos quais A. quase nunca intervinha) raramente tinham continuidade, sendo tão rapidamente idealizados como abandonados. Tal aconteceu inclusivamente com o projeto de estruturação do próprio grupo de voluntários (processo no qual me envolvi também), que se desenrolou por várias reuniões durante dois meses para, logo após a festa da sua apresentação pública, ficar esquecido e não ser implementado.

Com efeito, ao longo de todo o período em que acompanhei a AUJ, o envolvimento dos jovens voluntários foi sempre caracterizado por colaborações esporádicas e descoordenadas, principalmente motivadas por razões de convívio e amizade. Estas eram motivações, aliás, transversais às práticas da generalidade das coletividades juvenis (formais e informais) que conheci no Mindelo, que de forma mais ou menos organizada prontamente se dispunham a dinamizar festas, passeios, refeições coletivas e atividades pontuais de beneficência comunitária, sem que as mesmas se integrassem numa perspetiva de continuidade.

Na AUJ, tal tendência teve para mim o seu expoente maior na preparação do desfile de Carnaval da associação. Sendo o Carnaval uma festa que ­mobiliza e anima toda a cidade, tinha surgido entre os voluntários a ideia de a AUJ participar no desfile dos grupos de animação, a realizar no centro da cidade no domingo de Carnaval. Esta era uma atividade que ia claramente ao encontro dos seus interesses e os voluntários rapidamente se mobilizaram para a tornar possível. O desfile começou a ser discutido na associação em janeiro e, logo numa primeira reunião, os voluntários quiseram escolher um tema para o desfile. A meio da discussão, um rapaz que eu não conhecia levantou-se e fez um discurso inflamado sobre a luta dos jovens para terem sucesso na vida. A forma como falou, mais do que o conteúdo do seu discurso, cativou os presentes e todos rapidamente concordaram que o tema seria “Nos luta” (a nossa luta). Curiosamente, nunca voltei a ver este rapaz no centro, mas a sua sugestão permaneceu.

Interessado nesta súbita movimentação em torno do desfile de Carnaval, que aliás tornara o envolvimento dos voluntários na AUJ quase exclusivamente centrado nesta atividade, decidi envolver-me também como parte do grupo de voluntários. Propus assim dinamizar uma reunião para definir que lema escrever nas nossas camisetas para o desfile, já que me interessava explorar as razões da escolha do tema do desfile, as “lutas” que estes jovens imaginavam travar.

“Propus que pensássemos inicialmente a partir do tema geral que é ‘Nos luta’, sobre as nossas lutas individuais, as lutas e objetivos da nossa vida. Eles próprios já tinham dito que queriam ir para além dos lugares-comuns, queriam algo original. A ideia seria escrevermos as ‘nossas lutas’ em pequenos papéis, anonimamente, e depois juntar todos, ler cada um e construir a frase a partir daí. Lentamente eles começaram a escrever, uns a levar a tarefa mais a sério do que outros. Resultaram daqui muitas ideias genéricas, tais como ‘lutar pelos sonhos’, ‘sem medo, com responsabilidade’, ‘lutar para sobreviver’, ‘liberdade e independência’, ‘paixão’, ‘paz’, ‘amor’, ‘ajudar o companheiro’, ‘mudar’, ‘vencer’ e ‘um futuro melhor’, mas também algumas lutas mais concretas como ‘estudar’, ‘trabalho e família’ e ‘dignidade e respeito’. No final foi difícil escolher algumas das mais concretas e acabou por se dar mais valor às expressões ‘sem medo, com responsabilidade’ e ‘vencer’. Finalmente, todos se identificaram com a ideia de ‘vencer’, que ganhou força também com a comparação de Liliane entre a vida e um jogo de futebol, onde temos de lutar para atingir os objetivos – vencer – contornar obstáculos, defender e temos sempre alguém na plateia para nos apoiar. Mas como esta ideia era difícil de passar para uma só frase, optou-se por escrever apenas ‘vencer’ nas t-shirts” [notas de campo, 27 de janeiro de 2009].

Nos meses seguintes, porém, todo o processo de preparação do Carnaval viria a tornar-se confuso e desorganizado e eu duvidava cada vez mais que os jovens conseguissem organizar este evento.

“Toda a preparação do Carnaval tem sido complicada e desorganizada, com reuniões em que faltam sempre voluntários que aparentemente tinham assumido algum papel de liderança e em que se decidem coisas que depois não acontecem e não se percebe bem porquê. Por vezes é a mensagem que não é compreendida, outras vezes porque se decidem coisas mas ninguém é responsabilizado pela sua implementação, outras vezes ainda porque as pessoas responsáveis não aprecem ou não fazem o que tinham assumido e ninguém é capaz de lhes exigir o seu trabalho” [notas de campo, 15 de fevereiro de 2009].

À medida que se aproximava o fim de semana do Carnaval, tudo o que já tinha vivido com os voluntários da AUJ na preparação do desfile me fazia duvidar das suas capacidades de organização. Todavia, este grupo iria mostrar-me como era capaz de, no meio do que a mim me parecia confusão e despreocupação, realizar grandes atividades coletivas, sempre com muito entusiasmo e prazer.

“No dia do desfile optámos por chegar ao centro só depois das 14h30 (tinha sido decidido encontramo-nos todos às 14h) mas ainda não estava lá quase ninguém. […] às 15h começaram a chegar os voluntários e muitos outros jovens e crianças da zona para se pintarem e receberem as suas t-shirts. Algumas das voluntárias responsáveis pela organização do desfile chegaram fantasiadas e pintadas, muito animadas, sem apresentar qualquer justificação para o atraso e nem mostrar preocupação com a falta de tempo que tínhamos, já que o desfile devia começar às 16h30 na Praça D. Luís, no centro da cidade. Eu não queria acreditar, mas resignei-me e aderi à animação.
Stip tinha saído para almoçar quando nós chegámos ao centro e só voltaria quase às 16h. […] Entretanto todos estavam a ficar nervosos e com pressa. Finalmente alguns voluntários tinham percebido o quão tarde era e começaram a gritar que era tarde e que tínhamos de ir embora. Faltavam 15 minutos para as 16h quando começámos a sair e percebeu-se que se fôssemos a pé nunca chegaríamos ao centro da cidade a tempo. Então Stip, que acabava de chegar, aproximou-se de mim e perguntou-me: ‘podíamos alugar dois Amizades?’ [autocarros da companhia Amizade]. Eu fiquei estupefacto! Como se tinha lembrado ele disto agora? Porquê só agora? E seria assim tão fácil alugar autocarros em tão pouco tempo? E teríamos nós dinheiro para isso?… Em cinco minutos os autocarros chegaram. Afinal Stip tinha um amigo na companhia de autocarros e foi só fazer um telefonema. Rapidamente todos entrámos nos autocarros, alegres, divertidos e confiantes. Durante todo o percurso até ao centro da cidade cantámos a nossa música e sentia-se o orgulho a crescer à medida que íamos percorrendo aquelas ruas mais do que conhecidas a caminho da Morada.[9] Uma alegria esfusiante vibrava dentro do autocarro e transbordava para as ruas, fazendo os transeuntes olharem para nós. Uma grande festa para aqueles jovens…” [Notas de campo, 27 de fevereiro de 2009]

Acabámos por chegar ao centro da cidade no horário previsto e rapidamente todo o grupo da AUJ se organizou para desfilar. O desfile começou com energia e organização, mas à medida que avançávamos fomos perdendo ritmo e gradualmente os voluntários abandonaram a coreografia para passarem a dançar frenética e desorganizadamente. Contudo, o grupo cumpriu todo o percurso e o desfile terminou com grande alegria. No final, todos os voluntários estavam orgulhosos e consideravam esta atividade como mais um sucesso.

 

Diferentes noções de pessoa: um exercício de reflexividade

Participar, de modo comprometido, na preparação e desenvolvimento das atividades e “projetos” da AUJ foi para mim um exercício exigente de confronto com um modo de organização e planeamento que não eram os meus. Os constantes atrasos ou ausências dos jovens nas reuniões ou atividades, a desorganização das mesmas, o incumprimento de compromissos assumidos e os frequentes desencontros entre o que se dizia e escrevia e o que se fazia, sem que isso tivesse aparentemente qualquer consequência, tornaram o meu percurso de envolvimento com estes jovens uma contínua angústia.

Tal experiência, marcada por um íntimo sentimento de frustração, reativava o propósito inicial da minha pesquisa, nomeadamente a busca da razão pela qual os sucessivos projetos de “formação”, “capacitação” e “organização” juvenil em Cabo Verde (promovidos por agentes nacionais ou internacionais) pareciam sempre resultar em insucessos e na sua própria repetição. Fui procurando, no decorrer da pesquisa, retomar este propósito, esta pergunta, porém menos para lhe encontrar uma resposta – que seria sempre ingénua e simplista –  do que para analisar as condições da sua formulação: o que significava fazê-la? Porque é que ela podia ser colocada? Num esforço para tentar passar “da ansiedade ao método” (Devereaux 1967), procurei assumir a minha própria experiência de envolvimento com a AUJ como elemento passível de análise etnográfica. Consciente de que tais sentimentos revelavam tanto sobre mim como sobre o contexto que eu analisava, ou melhor, revelavam algo sobre mim nesse contexto, procurei destrinçar os elementos culturais que se confrontavam neste meu encontro com o contexto juvenil cabo-verdiano.

Gradualmente fui percebendo que eram noções de autonomia, realização e responsabilidade individual, em suma, de pessoa, que se confrontavam. Porém, o que se afigurava mais desconcertante, e por isso mais revelador, era o facto de este confronto não se operar através de uma simples oposição entre noções de pessoa exógenas (as minhas) e endógenas (as dos jovens). Tal confronto operava-se também nas próprias pessoas com quem estava envolvido. Eram também os jovens que eu pesquisava que evocavam e expressavam este confronto paradoxal entre diferentes formas de (des)envolvimento pessoal e coletivo. Embora investindo aparentemente mais na festividade, no convívio e na busca hedonista do prazer imediato,[10] eles também investiam nos estudos e aspiravam ao sucesso profissional mesmo em face de grandes constrangimentos (Martins 2011; Martins e Fortes 2011), também exigiam e participavam em ações de formação, também desejavam e elaboravam projetos, também se envolviam em associações cívicas e em atividades comunitárias. Por isso percebia que as minhas representações de pessoa – racional, livre, independente e responsável – não eram apenas minhas; também eram dos jovens com quem me confrontava, e por isso eu podia colocar a pergunta sem correr o risco de ser demasiado etnocêntrico: porque é que os jovens parecem querer e ao mesmo tempo não querer projetos, formações, desenvolvimento?…

O próprio funcionamento da AUJ se afigurava como um reflexo deste mesmo paradoxo. A. tinha-a idealizado com base numa metáfora familiar e intergeracional. Consequentemente ele próprio assumia uma autoridade quase paternal junto dos jovens, atuando como provedor (de espaços, de recursos materiais e financeiros) e como dirigente (definindo as principais linhas de atuação), mas deixando os jovens entregues a si próprios nas suas “atividades” juvenis (festas, passeios, jogos, reuniões, teatro, desfiles de Carnaval). A criação deste “espaço” juvenil, que para A. era “reconhecedor da existência”, era aliás o principal objetivo explícito da associação, já que ele acreditava que tal contexto de “divertimento” juvenil (gratuito) era formador de “processos afetivos construtivos”, de “ligações e valores” – como a “solidariedade”, que ele considerava um valor tradicional do país que estaria atualmente em declínio, face ao desenvolvimento de uma ética mercantil e individualista – em suma, uma forma de “aprender a entrar na sociedade”.

Porém, através da sua autoridade paternal, A. não deixava também de estimular o desenvolvimento individual de cada jovem, quer tornando materialmente possível a muitos dos que se envolviam na associação a frequência escolar ou universitária (através do pagamento das propinas escolares ou do apoio escolar), quer oferecendo-lhes oportunidades de formação profissional ou de trabalho, quer promovendo as suas capacidades de organização e planeamento, quer ainda exigindo-lhes responsabilidades face aos seus compromissos, tanto na associação como nas esferas escolar, laboral e familiar.

E se aparentemente os jovens que frequentavam os espaços da associação não se mostravam (aos meus olhos) autónomos e responsáveis, capazes de realizar projetos e assumir compromissos de longa duração, eles, porém, não deixavam de lá estar, envolvidos nesta relação “filial” com A., procurando e aceitando tanto as suas exigências como os seus recursos, tirando deles partido tanto coletivo como individual. Isso mesmo se revela nos seus próprios discursos sobre a associação e sobre o voluntariado, evidenciando sempre em paralelo dimensões individuais e comunitárias que se articulam numa “convivência” que tanto “ajuda” os outros como a eles mesmos.

 

A importância da convivência

A par do envolvimento nas atividades da AUJ, procurei sempre consultar os educadores sobre a forma como entendiam o desenrolar do trabalho da associação. Com efeito, Elton reconhecia que o envolvimento dos voluntários era pontual e imprevisível e, generalizando, entendia que a maioria dos jovens tinha dificuldades em assumir responsabilidades. Acreditava aliás que para envolver os jovens era sempre necessário disponibilizar “estímulos” que os atraíssem, tais como comida, festas, bens materiais ou retribuições financeiras. Esta era também a opinião de A., que aliás transparecia no frequente apoio prestado pela associação a atividades festivas e refeições coletivas ou nas retribuições individuais.[11] Já Stip considerava que o que atraía os jovens para o voluntariado era o desejo de “fazer qualquer coisa para a sociedade”. Contudo, acreditava que muitos também eram motivados pelo desejo de ganhar experiência e pela possibilidade de terem acesso a formações, ambas com vista a gerar oportunidades futuras de trabalho.

Elton identificava nos jovens cabo-verdianos alguma “passividade” e “falta de empreendedorismo”, características que para ele se manifestavam numa tendência a viver no presente e não fazer planos a longo prazo, permanecendo antes à espera de apoios ou oportunidades externas. Referindo-se em particular aos jovens da periferia da cidade, Stip reforçava esta ideia: “Às vezes eles não têm muito interesse, falta de empenho, de motivação, ficam sempre aqui […]. Ficam à espera que o trabalho venha ter com eles. Às vezes é mesmo um desleixo” [entrevista a Stip, 24 anos, 16 de março de 2009]. Todavia, este educador justificava parcialmente esta tendência pelas carências económicas sentidas pela maioria dos jovens da periferia, assim como pelo seu afastamento da informação e das iniciativas de apoio ­existentes no centro da cidade, que raramente chegavam ao conhecimento deles. Já Elton entendia que a passividade juvenil estava relacionada com uma “baixa autoestima” dos jovens, um receio de falhar nos seus projetos de vida, o que relacionava com a falta de políticas de apoio aos jovens, nomeadamente para estudar, trabalhar ou ocupar os tempos livres. Elton acreditava, contudo, que a passividade e falta de confiança dos jovens também emergia como consequência da ausência de crítica social numa sociedade pequena e profundamente partidarizada como a cabo-verdiana, onde o medo de manifestar opiniões e fazer exigências se sentia desde a escola até aos locais de trabalho, por receio de se ser prejudicado e excluído de redes sociais ou de privilégios.

Como alternativa, Elton, à semelhança de A., encarava a AUJ como um contexto onde seria possível promover uma interação positiva entre os jovens. De resto, o aspeto mais valorizado tanto por Elton como por Stip no trabalho da associação era justamente o contributo que os centros juvenis teriam dado para que os jovens se conhecessem entre si e para que se construíssem relações de convivência e amizade nas respetivas zonas e entre elas. Stip referia com orgulho que na zona de Covada existiam grupos de jovens rivais que depois se vieram a dissolver como consequência do trabalho do centro juvenil. Para Elton, aliás, tão importante como manter as atividades já oferecidas pelos centros nas áreas do desporto, cultura e apoio ao estudo, seria também promover atividades de grande dimensão que envolvessem os jovens de todos os grupos dos centros, de forma a “manter a união”.

Paralelamente, procurei compreender a visão dos voluntários sobre o trabalho da AUJ, assim como as suas motivações para frequentar os seus espaços e atividades. As respostas que obtive caracterizaram-se tanto pela sua consistência como pela sua generalidade. A totalidade dos jovens tinha uma boa, mas genérica, impressão do trabalho desenvolvido e valorizava a presença dos centros juvenis nas suas zonas. Este enraizamento geográfico era aliás um fator muito evidenciado, sendo frequentemente ressaltado o contributo da associação a nível comunitário: “fazer bem pela zona” (Liliane, 20 anos), “ajudar a comunidade a desenvolver-se” (Max, 25 anos), “aproximar grupos rivais” (Júnior, 22 anos). Este contributo era evocado, no entanto, sempre de forma pouco concreta, e os jovens tendiam a resumi-lo numa ideia central: “convivência”.

“— […] Por isso eu digo um ‘excelente trabalho’.
“— E o que é que tu achas que se podia fazer mais, o que é que era importante para os jovens da zona?
“— É chegar a outras zonas, para conhecer outros lugares.
“— Mas há algum tipo de atividade que tu gostavas que fizessem mais? Algum apoio?
“— Sim… humm… estar com outras pessoas, ajudar a outras pessoas… eu não sei que tipo de ajuda mas o centro faz um excelente trabalho porque teve uma época, no fim de ano, que deram tinta para caiar as casas, nós limpámos a zona, nós demos cal para caiar a beira do passeio, umas limpezas, nós fizemos um bocado de coisas para a convivência aqui neste centro” [entrevista a Mac, 24 anos, 24 de março de 2009].
“— Achas que este centro é bom?
“— Claro.
“— Porquê?
“— Porque muitos meninos que estão aqui antes estavam na rua a brincar, mas sempre saíam aquelas confusões e eles resolviam era com pancada, mas quando eles vêm para aqui, até a ver televisão, pelo menos alguns ficam quietos, falam com eles e eles ouvem, é melhor do que ficarem lá na rua, onde podem acontecer uma data de coisas mariod[12] isso é importante. Ele é um centro de convivência, não é verdade?” [Entrevista a Luísa, 17 anos, 12 de março de 2009]

A par do envolvimento comunitário, o conhecimento de pessoas novas e as amizades estabelecidas através da AUJ eram frequentemente apontados pelos jovens tanto para valorizar o trabalho da associação como para justificar a sua própria participação na mesma. Muitos deles gostavam de lembrar, aliás, que tinha sido ali que se tinham conhecido e tornado amigos.

Numa interface entre uma dimensão interpessoal concreta (novas pessoas, novas amizades) e um envolvimento comunitário mais genérico (fazer o bem, ajudar os outros), evidenciava-se assim uma “convivência” que, facilitada pela AUJ (mas também noutros contextos de iniciativa coletiva juvenil como maltas de zona, grupos desportivos, religiosos ou culturais), parecia ser uma dimensão importante nos quotidianos destes jovens. Liliane, uma das voluntárias mais envolvidas naquela altura, no seu jeito eloquente, explicitava bem esta articulação:

“— E aqui no centro porque é que tu achas importante, porque é que participas no centro?
“— Eu gosto [risos], não é a primeira vez que eu faço estas coisas, eu gosto, tu sentes… quando fazes aquelas coisas tu… tu sentes um alívio… não sei… tu sentes que estás a fazer uma coisa drêt. E depois aqui tu estás no meio de amigos, tu sentes que estás a fazer mas tu estás… para outras pessoas fazerem também; e perante a situação que nós temos aqui no centro, aqueles meninos que nós temos aqui, quando nós fazemos uma coisa destas nós sentimos que estamos a ajudar, a contribuir para a nossa comunidade, nós não estamos só a estragar, tem um bocado aqui que está só a estragar, pelo menos nós estamos a fazer alguma coisa drêt para mais logo no futuro nós dizermos que nós ajudámos a fazer aquela coisa lá.
“— Sentes que o centro está a fazer um bom trabalho?
“— Sim, porque o centro chama muita gente, pelo menos um bocado de nós conhecemo-nos aqui, ganhámos mais intimidade com os companheiros foi aqui” [entrevista a Liliane, 20 anos, 20 de fevereiro de 2009].

Ao relacionar o “alívio” que sentia por fazer “uma coisa drêt” quando estava a “contribuir para a nossa comunidade” com a “intimidade” que ganhou com os novos “companheiros”, Liliane mostrava a relevância de uma dimensão relacional dentro da qual parecia não haver oposição entre os seus pares (os seus amigos) e a “comunidade” (concretizada no seu discurso através das crianças e adolescentes apoiados pela AUJ). Ao evocar estas relações de “convivência” em conjunto para falar do seu envolvimento na associação, Liliane evidenciava com clareza o modo como estas dimensões aparentemente distintas (para mim) se articulavam e complementavam (para ela) no contexto das suas práticas “­juvenis”.

 

Da socialidade juvenil como projeto…

Refletindo sobre a socialidade juvenil no contexto africano pós-colonial, a antropóloga Deborah Durham (2002) identifica a emergência de uma “agencialidade híbrida”, “hibridizada entre um liberalismo fortemente afirmado e a relevância renovada das experiências grupais” (2002: 165). Para esta autora, tal agencialidade estaria ancorada numa subjetividade essencialmente definida pela incerteza, sendo esta tanto mais acentuada quanto, em cada contexto nacional, as promessas de democracia e desenvolvimento económico tiverem tido maior penetração (2002: 139). Durham desenvolve o seu argumento a partir do contexto do Botswana no final dos anos 90, no rescaldo de um período de três décadas de relativo crescimento económico e significativa mobilidade social. Eu creio poder-se afirmar o mesmo sobre Cabo Verde no final da década de 2000.

As recentes transformações ocorridas no arquipélago após a independência impulsionaram claramente uma ética liberal assente no primado do indivíduo, do seu desenvolvimento e independência, favorecendo tanto um processo social de individualização (cf. Beck e Beck-Gernsheim 2002) como a emergência de valores individualistas (cf. Velho 1994). A rápida expansão do ­sistema de ensino formal (Afonso 2002) teve aqui um papel central, reforçando e massificando possibilidades – mas principalmente aspirações – de mobilidade social ascendente entre os cabo-verdianos. Tal processo foi fortalecido pelo rápido crescimento dos setores público e terciário nacionais, oferecendo ­crescentes oportunidades de trabalho (mais e menos qualificado) na ­administração pública ou no comércio e serviços (Afonso 2002; Lobban 1995), e ­acompanhado da abertura do mercado nacional a bens de consumo importados e ao imaginário global (cf. Appadurai 2004 [1996]).

No mesmo sentido, nos discursos, nas políticas e nos serviços dedicados à juventude, foram progressivamente implementadas medidas de apoio à “capacitação” da população juvenil, nomeadamente através da concessão de subsídios de apoio escolar e bolsas de estudo, de ofertas de formação profissional e estágios profissionais, de serviços de orientação vocacional, acompanhados de uma retórica de matriz liberal e moderna de reforço da necessidade (e obrigação) de empenho escolar, da responsabilidade individual e da capacidade de iniciativa (cf. Dubet 2002). Paralelamente, foi sendo cada vez mais valorizada a “participação” social dos jovens, nomeadamente através da constituição de associações e plataformas juvenis formais (embora genericamente pouco estruturadas) e da elaboração e implementação de projetos comunitários subvencionados por agências nacionais e internacionais. Foram ainda criadas (modestas) políticas de concessão de crédito bancário a jovens para aquisição de habitação ou criação de pequenos negócios, acompanhadas por iniciativas de apoio e formação para o empreendedorismo.

O contexto atual em Cabo Verde tornou-se assim claramente favorecedor de uma noção de pessoa – e em particular de pessoa jovem – que me era familiar, a saber, uma pessoa que se vê a si mesma num processo de desenvolvimento individual, projetando metas para um futuro em que se imagina independente e competente para fazer escolhas racionais em função dessas mesmas metas. Escrevo esta frase não sem alguma intenção de (auto)provocação, com consciência de que ela poderia ser uma definição (neo)liberal de “jovem”, da qual fui reconhecendo que partilhava ao longo do meu “confronto” com o universo juvenil cabo-verdiano. Mas os seus termos – “desenvolvimento”, “individual”, “projetando”, “metas”, “futuro”, “independente”, “competente”, “escolhas” e “racionais” – não eram só meus; eles eram evocados também pelos discursos políticos e institucionais sobre e para a juventude, bem como pelos próprios jovens cabo-verdianos. A sua origem, porém, pode facilmente ser identificada numa tradição intelectual ocidental que “define a ação humana como comportamento que cumpre uma intenção prévia” (Johnson-Hanks 2005: 365), deste modo articulando conceções de desenvolvimento individual e desenvolvimento socioeconómico (cf. Maira 2004) em torno de noções como racionalidade e liberdade e, mais recentemente, de agencialidade.

Quando aplicados à juventude, estes discursos evocam, em suma, aquilo que Durham, num texto mais recente, chama “o romance da agencialidade juvenil” (2008). Para esta autora, a teoria sociológica e psicológica do século XX sobre a juventude é distintamente romântica: “… porque coloca o jovem como herói de uma narrativa em forma romanesca, caracterizada por desafio, crise e resolução e pela atenção à interioridade humana” (2008: 167). Tal visão tende a definir a juventude como um tempo de construção de uma identidade individualizada, realizada através de um movimento de autonomização que é tanto liberatório como desenvolvimental (2008: 167-168).[13]

Neste quadro teórico (e sociopolítico), a ideia de “projeto” torna-se central, tanto a nível individual como coletivo. Os jovens tornam-se (no sentido em que tanto representam como incorporam) projetos, tanto pessoais como comunitários, ou até nacionais (Martins 2011). Os jovens devem ter “projetos de vida” e devem envolver-se em “projetos comunitários”; os jovens falam em projetos e desejam projetos, os seus grupos e associações tornam-se lugares de promoção e realização de projetos. Mas qual o significado cultural de tão expressiva presença de “projetos” na contemporaneidade?

Segundo o antropólogo brasileiro Gilberto Velho (1994), a noção de projeto torna-se fundamental para compreender a constituição das identidades individuais face a uma fragmentação social que seria característica das sociedades modernas.

“Nas sociedades onde predominam as ideologias individualistas, a noção de biografia, por conseguinte, é fundamental. A trajetória do indivíduo passa a ter um significado crucial como elemento não mais contido mas constituidor da sociedade. É a progressiva ascensão do sujeito psicológico, que passa a ser a medida de todas as coisas. […] Carreira, biografia e trajetória constituem noções que fazem sentido a partir da eleição lenta e progressiva que torna o indivíduo biológico em valor básico da sociedade ocidental moderna” (Velho 1994: 100).

Velho recorre a Shutz para definir projeto como “conduta organizada para atingir finalidades específicas” (1979, cit. em Velho 1994: 101) e aponta a centralidade da noção de projeto na constituição do sujeito moderno: “o indivíduo-sujeito é aquele que faz projetos” (1994: 101). Para Velho, se a memória dá consistência à biografia, o projeto permite representá-la no futuro. Memória e projeto seriam assim as amarras fundamentais das identidades sociais modernas, pois “situam o indivíduo, suas motivações e o significado das suas ações, dentro de uma conjuntura de vida, na sucessão das etapas de sua trajetória” (1994: 101).

Se aplicado à juventude, o argumento de Velho em torno do projeto parece, porém, replicar facilmente o “romance da agencialidade juvenil” ­denunciado por Deborah Durham. A distância entre a retórica do projeto (como ­compromisso, como trajetória, como identidade) e a sua realização – justamente aquela distância que se evidenciava entre os jovens que acompanhei na AUJ – permanece ainda por percorrer, por compreender. Jean-Pierre Boutinet, no prefácio da sua obra ­Antropologia do Projeto (1997), salienta justamente este desencontro, alertando para algumas “derivações patológicas” do conceito de projeto nas sociedades atuais:

“São estas derivações que se torna, hoje em dia, imprescindível inventariar, a fim de compreender melhor como é que um regulador psicológico e cultural, o projeto, pode transformar-se em perturbador social, tal como um imaginário sempre apresentado como criador e emancipador se transforma no seu inverso, um imaginário enganoso e alienante” (Boutinet 1997: 9).

Num exercício de “arqueologia” do conceito, Boutinet demonstra como este emergiu e logo se tornou uma figura emblemática da modernidade. Num contexto crescentemente marcado pela “individualização das condutas” e pela “fragilização do tempo” (1997: 25), o projeto, como instrumento (racional) antecipador num tempo prospetivo (em mudança), tornou-se uma referência simbólica incontornável, cuja conotação positiva dominante advém do facto de conferir um valor, um ganho identitário (narcísico) ao seu promotor. Mas, para Boutinet, tal “cultura em projeto”, definida por uma profusão de condutas antecipadoras, não procuraria mais do que fundar um lugar de legitimidade, individual ou coletiva, “numa época em que esta legitimidade não é mais concedida” (1997: 8), sendo esta busca de legitimidade tanto mais premente quanto mais frágeis e precárias forem as posições dos atores. É neste sentido que Boutinet alerta para uma das principais “derivações patológicas” do conceito de projeto:

“… aquela da desilusão ou da imposição paradoxal, que empurra os fora-de-projeto da nossa cultura (jovens mal escolarizados, desempregados no fim do seu período de direito ao fundo de desemprego, profissionais em reconversão problemática) a construir, para si próprios, um projeto que não terão, na maior parte dos casos, meios para realizar, por diferentes razões, relacionadas quer com as especificidades da sua história pessoal, quer com as possibilidades limitadas oferecidas pelo seu ambiente; daí decorrem, para as pessoas em situação precária, os riscos de ilusão e, logo, de desilusão em face de um futuro demasiado rápido e artificialmente idealizado” (1997: 9-10, itálico do autor).

Com efeito, também Velho (1994: 40) sublinha que a construção de projetos não implica uma liberdade absoluta (de cariz racionalista) da parte dos indivíduos, e lembra que a sua deliberação é sempre enformada pelas circunstâncias socioculturais – o campo das possibilidades – que delimitam e constrangem os sujeitos. Contudo, o que Boutinet demonstra é mais do que a contingência dos projetos; é a fragilidade do próprio conceito de projeto. Frequentemente assente na “pura abstração”, ele torna-se facilmente um discurso ideológico de legitimação que não procura mais do que mascarar uma “ausência fundadora” (Boutinet 1997: 13).

Se a adoção (e imposição) da retórica do projeto entre os jovens cabo-verdianos pode sugerir a emergência de formas mais individualizadas, se bem que contextualizadas, de construção das identidades (cf. Velho 1994), ela parece também constituir um discurso ideológico que evidencia rutura e alienação (cf. Boutinet 1997) e cuja incapacidade de concretização deixa justamente entrever a marginalidade dos próprios jovens. O caráter pontual e repetitivo das “atividades” associativas juvenis e as frequentes frustrações na realização das aspirações individuais (Martins 2011), ambas designadas paradoxalmente “projetos”, mostram com particular acutilância a limitação deste conceito para compreender os jovens cabo-verdianos na atualidade.

 

… à socialidade como convivência (reflexões finais)

“To imagine youth, and to imagine the concept relationally, is to imagine the grounds and forces of sociality” (Durham 2000: 117).

Durante a maior parte da minha pesquisa, as práticas juvenis que observava – tanto nas sociabilidades coletivas como nas trajetórias pessoais – pareciam-me superficiais, pontuais, descomprometidas, irracionais, em suma, irresponsáveis. Mas, percebi depois, tal entendimento revelava muito mais de mim do que das práticas daqueles jovens: para mim um (des)envolvimento “responsável” implicaria sempre um compromisso racional e individual. Ora, foi exatamente aqui que os jovens que conheci me ajudaram a pensar de outra forma. Ao praticarem e valorizarem uma “convivência”, ao mesmo tempo lúdica e solidária, ao assumi-la como aquilo que os atraía para o associativismo, para a comunidade, para o voluntariado, uns para os outros, e ainda assumindo-a como aquilo que os fazia sentirem-se “integrados”, percebi a fragilidade da minha análise “racionalista” e “individualista”. Era justamente essa “convivência” que os definia, que os constituía, (re)ativando relações intergrupais, intergeracionais e comunitárias.

Estes jovens, ao evocarem a “convivência”, evocavam assim uma noção de pessoa bem diferente da minha, da moderna ocidental, do “indivíduo-sujeito” em “projeto”. O que os jovens revelavam era antes uma noção de pessoa intersubjetiva, cuja existência enquanto ser-no-mundo estaria sempre mediada por – e partilhada com – outras pessoas, dependente da abertura ao outro e do entrelaçamento intersubjetivo (cf. Toren 1993, 1999; Merleau-Ponty 1999 [1945]). Curiosamente, A. parecia (talvez sabiamente) promover, através da AUJ, esta mesma conceção de pessoa e, enfim, um modo de socialidade juvenil assente tanto (ou mais) na “convivência” como no “projeto”. Colocando a “convivência” no centro da socialidade juvenil distanciamo-nos assim de um entendimento da agencialidade dos jovens constituído em torno de noções de empowerment e individualização, de dependência ou independência, e reforçam-se antes as dimensões da interdependência e da intersubjetividade.

Nesta mesma linha de análise, o cientista social camaronês Francis Nyamnjoh, ao refletir sobre a constituição da subjetividade dos grupos mais marginalizados do seu país, coloca a questão de “como os indivíduos são capazes de ser quem são – agentes – através de relações com os outros?” (Nyamnjoh 2002: 111). Tal enfoque na intersubjetividade não nega que os indivíduos exerçam liberdade e racionalidade nos seus quotidianos, contudo assume que os “projetos” e os “sucessos” individuais são sempre dependentes do repertório de expectativas e referências reconhecidas e legitimadas pelos outros. Aceitando-as, cada indivíduo afirma a sua pertença ao grupo e tais expectativas – a cultura – asseguram-lhe uma orientação para a ação sem necessariamente a determinarem. Ora, segundo Nyamnjoh este processo, marcado pela negociação entre objetivos pessoais e interesses coletivos, teria essencialmente lugar em contextos de convivialidade: “a liberdade de perseguir objetivos individuais ou de grupo existe dentro de um quadro socialmente predeterminado, que enfatiza o convívio com interesses coletivos, ao mesmo tempo que permite a criatividade individual e a autorrealização” (2002: 115). Nyamnjoh conclui, aliás, que este processo de “coletivização do sucesso e do insucesso” assente na interdependência – um processo que designa “de domesticação da agencialidade e da subjetividade” – seria justamente um alívio contra a pressão para o sucesso independente, inevitavelmente frágil e transitório num mundo de oportunidades cada vez menores (2002: 115).

Quando Elton oscila entre, por um lado, uma crítica à irresponsabilidade e passividade dos jovens, que no entanto justifica pelo “medo de falhar” e pelo “medo de expressar a suas opiniões” e, por outro lado, um interesse em reforçar as grandes atividades conviviais, mesmo que seja necessário oferecer “estímulos” para mobilizar os jovens, o que ele revela é justamente a importância desta constante negociação entre interesses individuais e coletivos, assente numa convivialidade que, mesmo se constrangedora, acaba por proteger os jovens do insucesso individual. A metáfora do jogo de futebol que Liliane evocou quando discutimos o sentido do “vencer” nas t-shirts do desfile de Carnaval torna-se assim uma visão perspicaz sobre a (inter)subjetividade juvenil: há um jogo pessoal a empreender, mas “temos sempre alguém na plateia para nos apoiar”.

Comentando o argumento de Nyamnjoh na introdução de Postcolonial Subjectivities in Africa, Richard Werbner reforça esta visão de uma subjetividade “incorporada” pela “implicação do sujeito na intersubjetividade” e evoca, por fim, uma perceção bastante disseminada na África pós-colonial: “viver a vida ao máximo é vivê-la em interdependência, em convivialidade, se possível” (2002: 19-20). Os jovens que conheci em Cabo Verde diziam-me e praticavam isto mesmo. Preso a uma oposição entre “projeto racional” e “convivência superficial”, eu é que não os sabia ouvir.

 

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NOTAS

[1]     Pesquisa realizada entre outubro de 2007 e dezembro de 2010, financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (SFRH / BD / 29586 / 2006) e orientada por Miguel Vale de Almeida. Este artigo resulta de uma adaptação do capítulo 4, “Práticas e lugares de socialidade juvenil em Cabo Verde”, da minha tese de doutoramento (Martins 2013).

[2]     Para uma visão geral da evolução dos indicadores de desenvolvimento de Cabo Verde, ver o perfil do país do Banco Mundial (http://data.worldbank.org/country/cape-verde).

[3]     Em 2010 o desemprego afetava 25,1% na população entre 15 e 24 anos de idade e 9,5% na população nacional entre os 25 e os 44 anos de idade em meio urbano (INE 2010).

[4]     Esta condição juvenil, entendida como uma moratória indefinida face à assunção plena da idade adulta, apresenta em Cabo Verde muitos dos mesmos contornos materiais e simbólicos identificados noutros contextos ocidentais (para Portugal, ver Alves et al. 2011; para a Europa, ver Pais 2010). Contudo, diferencia-se destes pelo acentuado desequilíbrio entre a elevada expressão demográfica das faixas etárias jovens e a profunda escassez e fragilidade dos mecanismos estatais de proteção e equidade social a elas destinados, intensificando assim a experiência local de estagnação e de vulnerabilidade dos jovens (Martins 2013).

[5]     Esta pesquisa foi complementada pela aplicação de um questionário a 92 jovens do Mindelo, entrevistas a 13 profissionais locais do setor da juventude e entrevistas biográficas a 21 jovens.

[6]     Adaptado de um documento de apresentação da Associação União Juvenil de julho de 2009.

[7]     Jovens com idades entre os 16 e os 30 anos e com habilitações escolares muito diversas, desde o 6.º ano de escolaridade à frequência do ensino superior.

[8]     Expressão do cabo-verdiano que significa “bom” ou “correto”.

[9]     Designação local para referir o centro da cidade.

[10]    Neste sentido recorriam muitas vezes à expressão “depós de passá sabe morrê é ca nada” (que poderia ser aproximadamente traduzida como: “depois de passar um bom momento morrer não importa”) para expressarem a forma como priorizavam a busca de momentos prazerosos.

[11]    Práticas também frequentes noutras estruturas nacionais de mobilização juvenil, tais como os Centros da Juventude governamentais, as juventudes partidárias ou as organizações não governamentais.

[12]    Expressão do crioulo cabo-verdiano que significa “incorreto”, “errado” ou “estragado”.

[13]    Em coerência, aliás, com as tradicionais perspetivas da sociologia da juventude, centradas nos processos de individualização, autonomização e transição para a vida adulta; para uma revisão crítica, ver Pappámikail (2010) e Côté (2000).

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