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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica vol.18 no.2 Lisboa jun. 2014

 

MEMÓRIA

 

Linhas de redefinição de um objeto: entre transformações no terreno e transformações na antropologia

 

The redefinition of an object: from changes in the field to changes in anthropology

 

 

Manuela Ivone CunhaI

ICentro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA), Universidade do Minho, Portugal. e-mail: micunha@ics.uminho.pt

 

 


RESUMO

O regresso a um terreno, a comparação entre duas etnografias realizadas em décadas distintas numa instituição prisional e os respetivos resultados, discrepantes mas consistentes entre si, são uma ocasião para pensar a possibilidade de uma descrição sistemática das mudanças no tempo à luz do caráter situado e da tripla historicidade da investigação etnográfica: (i) historicidade relativa ao terreno etnografado, (ii) historicidade relativa a /à etnógrafo/a e ao encontro intersubjetivo com os seus interlocutores, (iii) historicidade relativa à teoria antropológica e ao Zeitgeist teórico incorporado nos percursos intelectuais.

Palavras-chave: revisitas etnográficas, regresso ao terreno, historicidade, etnografia prisional, reflexividade


ABSTRACT

An ethnographic revisit, the comparison between two ethnographic inquiries conducted in different decades in a same prison institution, as well as between the discrepant, yet altogether consistent, results of those inquiries, provide an occasion to reflect on the limits and possibilities of ethnography for capturing historical processes. Is a systematic description of change possible in the light of the situated nature of ethnographic research and, more specifically, of its own historicity? This historicity will be reflexively considered at three levels: (i) in relation to the realities being ethnographed, (ii) in relation to the ethnographer and to the intersubjective encounter with his/her interlocutors, (iii) in relation to anthropological theory, researchers’ intellectual trajectories and changing theoretical Zeitgeist.

Keywords: ethnographic revisits, ethnographic re-study, historicity, prison ethnography, reflexivity


 

 

Introdução: revisitações de um terreno e historicidade da etnografia

O convite que me foi feito para participar neste dossiê refere-se à investigação de terreno que levei a cabo nos anos 1990.[1] É portanto em torno dela que focarei alguns pontos a propósito dos quais pode ser evocada a relação com o contexto de pesquisa e de teorização dessa época – relação essa que também fui convidada a estabelecer. A investigação a que me refiro, na verdade, revisitava um terreno, uma prisão de mulheres onde tinha feito um primeiro trabalho de campo dez anos antes (Cunha 1994, 2002).

As revisitações de um terreno começam por levantar a questão da dupla historicidade da etnografia: historicidade relativa ao contexto etnografado, historicidade relativa ao etnógrafo. Tanto etnógrafo/a como etnografados/as estão situados no tempo, mudam à medida que este progride. Por isso, cada investigação etnográfica é inevitavelmente contingente não só a um conjunto de circunstâncias e a um momento histórico particular, mas também a um encontro intersubjetivo irrepetível (Kenna 1992; Okely 1992). Os regressos ao terreno permitem justamente situar de forma mais nítida as etnografias precedentes nas etapas de evolução de um contexto. A esta dupla historicidade acrescentarei adiante um terceiro elemento: o contexto teórico em que ambos ocorrem ou se desenrolam.

Se esta natureza situada da etnografia convida a pensar a cada passo as condições do rigor etnográfico, ela não torna à partida fútil a tentativa para captar a mudança na longa duração da realidade estudada, através de uma sucessão de visitas ao terreno. Contingência e intersubjetividade, para mencionar as duas dimensões que eventualmente suscitam mais reservas em relação a uma ambição deste tipo, também não são forçosamente obstáculo a uma comparação etnográfica controlada entre o passado e o presente. A modalidade de conjugação do passado e do presente é que dificilmente pode assumir a forma de um estudo “longitudinal” clássico, à maneira dos que se realizam noutras ciências sociais através da replicação de um inquérito ao longo do tempo (e.g. Bahr, Caplow e Chadwick 1983; Phelps, Furstenberg e Colby 2002). Nem todo o acompanhamento diacrónico de um terreno é disciplinável de acordo com este modelo.

Antes de avançar neste ponto, convém precisar, primeiro, a que tipo de revisitação me refiro aqui. A questão da historicidade da pesquisa etnográfica não se coloca, de facto, da mesma maneira consoante uma investigação num dado terreno seja conduzida em diferentes momentos pelo mesmo investigador ou por etnógrafos diferentes (ver também, a este propósito, Burawoy 2003). Um etnógrafo não travará consigo próprio uma polémica como aquela que Derek Freeman (1983) travou com Margaret Mead (1943 [1928]) a propósito de Samoa, ou como a que opôs Oscar Lewis (1963 [1951]) a Robert Redfield (1930) a propósito de Tepotzlán. É certo que as revisitações de um terreno por um outro investigador não se saldam sempre por controvérsias vivas, refutações ou impugnações, como o mostrou por exemplo o regresso de Sharon E. Hutchinson (1996) aos Nuer “de” Evans-Pritchard (1969 [1940]), ou o de Annette Weiner (1976) aos Trobriandeses “de” Malinowski (1961 [1922]). Estas duas últimas foram não tanto reanálises caracterizadas por uma divergência fundamental em relação aos respetivos predecessores, mas revisitações marcadas pela complementaridade dos aspetos examinados por uns e outros. Ainda assim, mesmo neste caso, a questão da temporalidade de uma etnografia tão-pouco é dissociável da questão das condições de reinterpretação da investigação por outros investigadores que se sucedem no mesmo terreno – a qual não pretendo focar aqui.

No caso do etnógrafo que regressa ao seu próprio contexto de estudo, quer seja através de um acompanhamento regular e contínuo que vai atualizando pontualmente uma dada investigação, ou de um regresso mais espaçado no tempo inaugurando uma diferente estadia de terreno (e.g. Colson 1989; Firth 1936, 1959), a revisitação permite não só aprofundar a produção de dados, mas sobretudo seguir continuidades e mudanças, captar processos. Tal regresso corresponderia portanto, como se pode ser levado a supor, a uma espécie de versão qualitativa da investigação diacrónica levada a cabo sob a forma de estudos longitudinais. É esta figura de re-study, assim como os limites da analogia com estes estudos, que me proponho focar aqui a propósito do meu regresso em 1997 ao Estabelecimento Prisional de Tires para mais um ano de trabalho de terreno, a suceder a uma estadia de dois anos na mesma instituição na década de 1980.

 

Um regresso à prisão

Para me limitar às razões de ordem científica – que quase nunca são as únicas –, a intenção inicial desta revisitação era de facto prolongar a investigação anterior, tendo em conta mudanças organizacionais, legislativas e na demografia e perfil sociopenal da população reclusa, população essa que não só tinha quadruplicado como se tinha entretanto tornado mais uniforme. Estas transformações, a par de outras na envolvente nacional e internacional, eram suficientemente importantes para justificar só por si a comparação e o prolongamento do ­trabalho anterior. Este deveria também dar conta, de resto, dos efeitos de uma inflexão da instituição, no sentido de uma burocratização e complexificação (Barak-Glanz 1981) mais orientadas por uma razão ­gestionária do que “­ortopédica”, quer dizer, mais preocupada em gerir de maneira eficiente e ordeira o dia a dia do que em “reabilitar” reclusos (ver, a este propósito, Cunha 2014 [no prelo]).

Mas, paralelamente a estas mudanças que motivaram o meu regresso ao terreno, à chegada identificaria uma outra mutação, cuja natureza subvertia o pano de fundo de continuidade necessário para articular o passado e o presente numa lógica longitudinal, assente numa comparação ponto a ponto entre o passado e o presente. Foi por isso preciso renunciar a essa lógica. A segunda investigação não retomava senão alguns temas da primeira, abandonando outros que já não eram cruciais para a leitura desse universo, nem traziam nada à compreensão da sua transformação.

Neste sentido, tratava-se agora de um outro estudo, não de um reestudo. Passível de evocar um enfoque longitudinal linear ou de pautar qualquer acompanhamento de um terreno por este único formato, a etiqueta de reestudo pode ser de facto enganadora e inadequada para caracterizar este tipo de investigação. Não era possível simplesmente manter as questões que me tinham guiado antes e limitar-me a desenvolvê-las e aprofundá-las. Era preciso reconstruí-las ou mesmo recolocá-las. Por conseguinte, se o meu regresso ao terreno permitiu por si mesmo identificar, e tornar mais percetível, a natureza de uma mutação de fundo, foi no entanto necessário renunciar a prolongar a investigação anterior segundo um modelo longitudinal de re-study.

Essa mutação de fundo decorria da presença generalizada na prisão de redes de interconhecimento prévio ao encarceramento, sobretudo de parentes e vizinhos, e vinha convidar a uma revisão de modelos analíticos habituais nos estudos prisionais, bem como da premissa fundamental que orientava a abordagem deste tipo de instituições: a saber, a de que a prisão representaria um corte biográfico e social, uma interrupção, uma realidade entre parêntesis (Goffman 1968 [1961]) – uma heterotopia (Foucault 1984, 2009). São modelos que partem do princípio de que a prisão é um hiato social, um mundo “cortado de relações exteriores”, o que neste caso significa “cortado de relações anteriores”. É este pressuposto que tem governado o olhar sobre as instituições carcerais, a ponto de não ser excessivo falar a este propósito de um regime de representação da prisão. É aliás possível que este regime de representação tenha criado uma espécie de ângulo “morto” que impediu a identificação de redes de interconhecimento semelhantes noutros contextos prisionais, noutros países, e tenha tornado invisíveis fenómenos cuja existência é possível atestar através de numerosos indícios na literatura relevante (ver Cunha 2002, 2008).

Se falo de uma mutação de fundo, foi porque ela não só veio transformar a natureza da socialidade prisional – com implicações depois nos âmbitos vários da experiência do espaço-tempo carceral por parte das reclusas e no modo como ela é mediada pelo corpo e os sentidos –, como tornou essa socialidade translocal, diluindo a fronteira entre o interior e o exterior. A prisão e o pequeno número de bairros onde passou a constituir-se o grosso das fileiras de detidos passaram a estar permanentemente entrelaçados nesta trama, e era nesta zona desta conjugação que a minha investigação teria de situar-se agora. Isso implicou redefinir de alto a baixo as minhas linhas de investigação.

Mais do que isso, fez com que este já não fosse propriamente um “estudo prisional”, ou que o fosse apenas em parte. Era necessário descentrar-me da prisão como instituição, em parte porque o seu perímetro espacial já não configurava como antes a vida prisional. A prisão permanecia a unidade de observação, mas deixara de ser a unidade privilegiada de análise. No passado (i.e. nos anos 1980) uma tal abordagem era relativamente adequada ao universo que estudava e a minha primeira investigação podia ser facilmente arrumada no domínio dos estudos prisionais, não só pela sua problemática, mas sobretudo porque era aí que se situavam o corpus bibliográfico e os quadros comparativos mais pertinentes para compreender a realidade que então estudava.

Dez anos depois (i.e. a investigação que conduzi no final dos anos 1990), salvo algumas exceções e abordagens sobretudo de tipo macroestrutural (e.g. Austin e Irwin 1993; Jacobs 1977; Wacquant 1999), não encontrava neste campo de estudos praticamente auxílio algum para perceber as transformações com que me deparava. No passado as fronteiras materiais da prisão, às quais correspondiam também fortes fronteiras simbólicas, delimitavam um quadro de vida específico, dotado de uma relativa autonomia, e um quadro de relações sociais próprio, mesmo se os elementos para a sua leitura não estavam inteiramente contidos intramuros. Ter em conta a especificidade e relativa autonomia deste quadro de vida não implicava considerá-lo um isolato, apesar da sua óbvia delimitação no espaço físico, nem uma unidade social ou o lugar de uma cultura, cujo conteúdo restaria ao antropólogo formular – como sucedia com algumas abordagens funcionalistas em que terreno e objeto quase se confundiam. Mas as implicações destas fronteiras na definição desse universo eram de facto profundas nos anos 1980, como em qualquer quadro prisional clássico.

Estas implicações não seriam as mesmas uma década depois. Era preciso abrir a análise ao exterior, uma vez que os bairros de onde provinham as reclusas passaram a ser constitutivos da vida prisional. Mais do que um mero elemento de contextualização, o mundo exterior deveria ser colocado em continuidade analítica com o mundo intramuros. Em vez de um estudo prisional, tratava-se agora de um tricot a duas agulhas: o bairro e a prisão. E se a análise dos bairros se tinha tornado indispensável para compreender a prisão, a prisão permitia, por sua vez, entrever certas propriedades comuns a estes bairros, e que seria difícil identificar a partir de um outro ponto de observação. Sendo assim, a prisão permitia também identificar a natureza de alguns processos em ação no exterior.

 

Interrogar uma mudança

Esta transformação no terreno parecia ela própria ressoar com algumas transformações na antropologia, nomeadamente a passagem de um enfoque em sistemas para um enfoque em processos e na ação, condizente com a ideia de que o locus e a lógica da cultura não estão dados de antemão nem de uma vez por todas, tecendo-se em vez disso na prática e nos contextos de interação – sem ignorar, ao mesmo tempo, as estruturas de poder mais vastas em que estão imersos. Esta deslocação de ênfase acompanhou-se também de conceitos com potencialidades metodológicas mais adaptadas a este enfoque teórico, como o conceito de rede social (Barnes 1990; Boissevain 1974), que assenta justamente em indivíduos e interações. São o âmbito, as características e os fins destas interações que definem os limites mais ou menos amplos dos sistemas sociais, limites esses que não são portanto absolutos, mas relativos a uma cena social ou a um conjunto de atividades. Além de permitir dar conta das práticas e da textura da socialidade de grupos e unidades sociais que não são permanentes nem dados à partida, a noção de rede é também um utensílio descritivo apropriado para a investigação, tanto em cenas sociais de pequena como de larga escala; tanto de fluxos transnacionais (Hannerz 1997) como de comunidades a-locais ou sem centro de gravidade, como é o caso das comunidades virtuais na Internet (Miller e Slater 2001). E, vendo-o a posteriori no caso em análise, permitia não só um movimento através de diferentes escalas, como quebrar a ilusória barreira analítica traçada pelos muros físicos de uma instituição prisional.

Poder-se-ia então ter dado o caso de esta minha mudança de enfoque (da prisão para a interface prisão-bairro) refletir estas mudanças de ênfase na teoria antropológica? A ser assim, levanta-se a questão de as tendências e os elementos centrais que passei a discernir se encontrarem eventualmente já presentes aquando da investigação anterior, mas sem que eu me tivesse apercebido deles. Por outras palavras, poderiam bem ter-me escapado em razão de escolhas teóricas e metodológicas que, ao orientar o olhar numa direção, também podem afastá-lo de outra. Neste sentido, a historicidade da etnografia é já não dupla, mas tripla: quer dizer, é relativa ao contexto etnografado, ao/à etnógrafo/a e suas relações intersubjetivas no terreno, e, por fim, ao contexto da teoria, ao Zeitgeist teórico incorporado num percurso intelectual.

Creio contudo não ter sido esse o caso, e que a minha mudança de enfoque foi gerada principalmente por uma mudança no terreno. As redes de interconhecimento que estiveram na sua base limitavam-se, nos anos 1980, às reclusas que se designavam a si próprias por ciganas e apenas emergiriam como fenómeno generalizado nos anos 1990. Ou seja, estas transformações foram a causa, não um efeito dessa mudança de enfoque, e a saliência da noção de rede nesta segunda investigação deveu-se menos a uma espécie de aggiornamento conceptual do que à emergência de um novo fenómeno sociológico.

Resta então examinar a conjuntura intersubjetiva, a relação entre o/a etnógrafo/a e os seus interlocutores. Também aqui houve que perceber por que razão a minha relação com as reclusas foi bastante diferente nos dois momentos. E também aqui me apercebi que, se assim era, tal devia-se sobretudo ao facto de em ambos os momentos ela própria estar incorporada nas lógicas sociais e identitárias locais – lógicas essas, porém, bem diferentes entre si. Daí que essa relação entre mim e as minhas interlocutoras integrasse o objeto de estudo e tivesse contribuído para esclarecê-lo. Foi de resto neste sentido que vários etnógrafos se “objetivaram”, utilizando a sua presença como revelador ou como método (e.g. Althabe 1990; Sélim 1989). Se na minha primeira estadia o que me intrigava a princípio eram a facilidade e a rapidez com que a minha relação com as reclusas se estabelecia – frequentemente, aliás, por iniciativa destas –, na segunda investigação as minhas tentativas de aproximação deparavam com uma relutância inesperada.

Comecei por atribuir essa dificuldade ao afastamento estrutural que entretanto se tinha produzido entre nós, sobretudo por via da pauperização acentuada e da relegação abrupta da generalidade das reclusas para a base do espaço social de classe. Mas é evidente que este afastamento pouco poderia explicar. Em primeiro lugar, porque a distância social e cultural entre os/as etnógrafos/as e os seus interlocutores nunca foi em si impedimento à comunicação entre uns e outros. Basta olhar para a história da antropologia. Em segundo lugar, porque a distância intersubjetiva não decorre linearmente da distância estrutural. Por exemplo, o fosso social que se cavara entre mim e as reclusas era muitas vezes curto-circuitado a um outro nível, pela noção de que, colocada nos seus contextos sociais de vida, eu teria podido, como elas, desembocar na prisão. Dez anos antes, este tipo de identificação com as presas não era senão muito pontual. Na investigação de terreno seguinte, os seus delitos pareciam-me ligados muito mais diretamente à sua profunda marginalização, tendo-se com toda a evidência reduzido para elas o espaço onde as escolhas se jogam e decidem.

Na verdade, a rápida proximidade que as reclusas estabeleceram comigo no meu primeiro trabalho de campo traduzia a distância existente entre elas e inscrevia-se precisamente nessa estratégia de distanciação. A proximidade em relação a mim permitia-lhes esconjurar a identidade desviante de que a reclusão era signo – uma identidade que recusavam para si mas que projetavam nas correclusas – e recuperar a pertença a uma ordem “legítima”, em que não haviam deixado de se rever. Quer dizer que a minha exterioridade ao universo recluso era então uma vantagem.

Dez anos depois tornava-se um obstáculo, pois o que estava em causa era bem diferente. A profunda marginalização anteprisional que afetava agora estas mulheres, a sua exclusão coletiva tanto estrutural como simbólica, da qual a reclusão já não é senão um dos momentos, tornou a prisão um palco algo irrelevante para este jogo de demarcação. O vasto entrançado de parentes, amigos e vizinhos trouxe consigo proximidade, intimidade, segredos. Criou, em suma, silêncio (ver Rabinow 1977 a este propósito) e uma ordem privada que eu já não podia penetrar da mesma maneira; e criou também, pela primeira vez, a convicção de uma “comunidade”, à qual eu chegava agora como uma intrusa. Por isso, mais do que por razões imputáveis a mim própria ou ao meu percurso, as minhas dificuldades pareciam decorrer em boa parte das novas características do objeto.

Em que ficamos, pois, quanto à historicidade da etnografia, à seletividade e contingência que envolve o triângulo etnógrafo/a-terreno-teoria? Os regressos ao terreno dão-nos os parâmetros e as dimensões dessa contingência, sobretudo quando redundam em conclusões opostas, como foi o caso das duas investigações que conduzi na mesma prisão. A discrepância de conclusões atravessava vários âmbitos da vida prisional, desde o corpo e a sensorialidade até às representações do tempo, passando pelas sociabilidades e pelas noções que regem o quotidiano. Todos eles apresentavam aspetos novos e contrastantes. Como encarar este contraste? Dever-se-ia ao facto de eu ter tido a ocasião de assistir ao fim de um ciclo e ao início de um outro? Ou seria que – para retomar a questão que coloquei atrás – tais aspetos se encontravam já presentes na realidade anterior, não me tendo eu apercebido deles? É que uma investigação etnográfica é conduzida não apenas numa conjuntura interpessoal específica e num dado panorama teórico, mas também num momento do ciclo de vida do investigador e numa etapa da sua maturação intelectual e analítica.

 

Pode uma etnografia ser longitudinal? Do rigor e cumulatividade etnográficos

Pude porém constatar que uma franja minoritária de reclusas reeditava, nos anos 1990, as mesmas representações, práticas e socialidade que dez anos antes eram salientes na maioria da população prisional. Este grupo reduzido de reclusas, que entretanto substituíra as do passado, correspondia de muito perto às descrições e análises que eu construíra para a maioria da população reclusa naquela prisão nos anos 1980. O regresso ao terreno produziu assim de maneira imprevista um efeito de controlo retrospetivo da primeira investigação. Mas ao mesmo tempo permitia também aferir a fiabilidade e robustez da segunda. Pode dizer-se que produziu uma espécie de triangulação no tempo, fazendo com que as duas etnografias, por contrastantes que fossem, se validassem mutuamente. Isto é, afinal as lentes – pessoais, teóricas, relacionais – que eu usara em ambas as investigações não tinham mudado substancialmente. Só assim teria sido possível discernir, em primeiro lugar, permanência através da mudança, num registo diacrónico comparando dois momentos; e, em segundo lugar, semelhança na diferença, bem como diferença na semelhança, num registo sincrónico comparando diferentes padrões num mesmo momento. A saliência de uma e de outra tinha-se invertido de maneira muito pronunciada, mas essa alteração foi relativamente alheia às lentes utilizadas. Resultava sobretudo, isso sim, de transformações na realidade observada (decorrentes de dinâmicas internas e forças externas), transformações essas exteriores ao meu percurso pessoal, teórico e intersubjetivo.

Do que expus retiraria, pois, duas conclusões relacionadas entre si. A primeira é que os aspetos de contingência e intersubjetividade envolvendo etnógrafo/a e etnografados/as – e aos quais os antropólogos deram grande atenção nos anos mais “reflexivistas” das décadas de 1980 e 1990 – não votam necessariamente a um esforço vão qualquer exercício de controlo dos parâmetros de uma etnografia, nem esvaziam de antemão a tentativa de aferir a fiabilidade dessa etnografia num registo mais “realista”. Indo mais longe, a natureza triplamente situada da investigação etnográfica tão-pouco condena cada pesquisa de terreno a limitar-se a pontuar momentos avulsos de um processo histórico, nem deve coartar tentativas de maior fôlego na captação etnográfica da longa duração. Pelo contrário, não só não obriga a renunciar a toda e qualquer ambição cumulativa no conhecimento desse processo histórico, como as revisitações etnográficas de um terreno podem contribuir para conjugar com mais rigor o passado e o presente de modo a melhor captar a mudança – e a permanência.

Em segundo lugar, e para que tal ocorra, é de concluir que o modelo longitudinal clássico não é sempre a opção mais rigorosa para dar conta etnograficamente da historicidade de um contexto. Uma investigação realiza-se sempre numa dada conjuntura (Pina-Cabral 2000). Mudando a conjuntura, uma nova investigação terá provavelmente de formular novas questões, em vez de limitar-se a alimentar as mesmas questões com novos dados ao longo do tempo. A prosseguir no rumo traçado de início, o risco é, paradoxalmente, o de distorcer a historicidade que se procura captar precisamente através de uma revisitação do terreno. Revisitação não equivale, pois, a replicação. É precisamente a ausência de rigidez da abordagem etnográfica que se pode revelar a mais adequada para captar o sentido das transformações. Por muito que se traga uma questão prévia e teoricamente sustentada para o terreno, a fim de não sucumbir a um empirismo ilusório, as linhas de uma investigação etnográfica só acabam por se definir verdadeiramente – sabemo-lo bem – não antes, mas depois da chegada ao terreno e em função deste. Seria por isso algo contraditório com a natureza desta abordagem que essas linhas de pesquisa adquirissem em seguida uma qualquer qualidade de necessidade e se tornassem linhas prospetivas a impor à partida a uma investigação que revisite esse terreno. As mudanças, tal como em geral a vida das pessoas, não cuidam de produzir-se seguindo as linhas de pesquisa fixadas pelo/a etnógrafo/a.

 

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[1]       As investigações a que se refere este texto foram financiadas, por ordem cronológica, pelo Centro de Estudos Judiciários (projeto “Do desvio à instituição total”) e pela Wenner-Gren Foundation for Anthropological Research (Gr. 6099). Recupero aqui alguns extratos publicados em Cunha (2002).

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