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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica vol.16 no.1 Lisboa fev. 2012

 

D. Ann Herring e Alan C. Swedlund (orgs.), Plagues and Epidemics: Infected Spaces, Past and Present. Oxford e Nova Iorque, Berg, 2010, 417 páginas, ISBN: 978-184-788-547-0.

 

Mónica Saavedra

CRIA-IUL, Portugal, maamsaa@gmail.com

 

Epidemias e pestes são o fio condutor das reflexões que compõem este trabalho coletivo, resultado do encontro realizado em Tucson, Arizona (EUA), em setembro de 2007, entre antropólogos e outros investigadores que trabalham sobre questões sociais da saúde. Trata-se de um conjunto de artigos sobre doenças tão diferentes como a gripe de 1918, a gripe aviária, o kuru (um tipo de encefalopatia), o VIH-SIDA, a febre-amarela, a malária, o dengue, e em lugares tão diversos como o Brasil, os EUA, ­Gibraltar, o México, a Papua Nova Guiné, a Nova Zelândia, o Vietname, etc. Este conjunto de materiais problematiza a articulação entre as escalas internacional, nacional e local na abordagem às epidemias, revelando a fragmentação e desigualdade subjacentes à “globalização da ecologia das doenças”. Não apresenta, no entanto, casos do continente africano, terreno de vários trabalhos das ciências sociais sobre medicina e saúde, nomeadamente sobre VIH-SIDA, alguns com uma abordagem transdisciplinar. Esta ausência é, de resto, reconhecida no capítulo introdutório; contudo, é explicada pela intenção de reunir em Tucson propostas inovadoras de abordagem às epidemias e não trabalhos específicos representativos de doenças ou áreas geográficas. Interroga­mo-nos se não existem trabalhos inovadores sobre o contexto africano…

Epidemias e doenças infeciosas surgem como uma temática candente para as “angústias epidemiológicas” do século XXI, ante a publicitação de infeções emergentes e reemergentes, bactérias resistentes, vírus lentos, pandemias iminentes. Este livro pretende tornar visíveis os desafios que se colocam à abordagem antropológica num ambiente de ameaças globais, contribuindo para o debate da relação da antropologia com a epidemiologia e a saúde pública, no contexto das políticas internacionais de saúde. Enfatiza ainda a pertinência de uma perspetiva abrangente sobre as epidemias, sugerindo a importância da antropologia no afinamento de estratégias de intervenção em saúde pública que integrem as ações desenvolvidas pelas comunidades, a partir das suas perceções e conceções sobre as doenças.

A diversidade de casos históricos e etnográficos sustenta a intenção manifesta desta coletânea de constituir uma contracorrente à “balcanização do pensamento académico e às divisões na antropologia” (p. 2). Sem terem sido produzidos em articulação uns com os outros ou em diálogo comparativo conjunto, constituem um todo coerente, mostrando as possibilidades de convergência de abordagens e metodologias diversas.

Esta colectânea defende a cooperação entre os diversos ramos da antropologia e constitui um exemplo da sua importância para uma “perspetiva alargada da humanidade” (p. 2), num mundo de especializações que, por vezes, não dão conta da multiplicidade e da diversidade. Mostra ainda a possibilidade de a antropologia se reinventar, repensando instrumentos analíticos e metodologias de acordo com os desafios que se lhe colocam no terreno e apresentando-se com um potencial de intervenção, nomeadamente através do trabalho etnográfico.

Este trabalho conjunto reflete sobre a complexidade das epidemias e das pestes, enfatizando a multiplicidade de significados (com os seus ecos do passado e dinâmicas históricas) que lhes são atribuídos pelos atores envolvidos, nomeadamente aqueles que decorrem de experiências pessoais e localizadas dos indivíduos e das comunidades. Transversal ao conjunto dos trabalhos é também a crítica à tendência para abordar as epidemias como acontecimentos únicos e demarcados no espaço e no tempo; uma espécie de “acidentes epidemiológicos”. Realçam, em alternativa, a importância de compreendê-las como fenómenos múltiplos e confluentes, com repercussões no futuro dos indivíduos e das comunidades que afetam. O enquadramento e a contextualização das doenças enquanto fenómenos social, política, económica e historicamente determinados são noções chave neste livro. Esta perspetiva surge quase como uma epistemologia, na medida em que condiciona as questões colocadas na abordagem aos problemas da saúde e o que se considera relevante para a compreensão das questões epidemiológicas.

Nesta lógica de diversidade e multiplicidade, realça-se a importância da diversificação de metodologias na abordagem às epidemias, articulando métodos quantitativos e qualitativos. As epidemias não são redutíveis aos números das estatísticas. Compreendem escolhas pessoais, comportamentos individuais inscritos em redes sociais intrincadas, contextos históricos, culturais, económicos, políticos; mas também emoções, cruzando-se e confundindo-se com os “ciclos de vergonha e culpa, discursos estigmatizantes, isolamento dos doentes, medo do contágio e cenários de fim do mundo” (p. 4) associados às “­pestes”.

Num contexto de diversidade e desigualdade, compreendido na convergência epidemiológica global, Plagues and Epidemics coloca(-nos) diversas interrogações: quem define as epidemias e com que critérios? Como são descartadas outras explicações e como interagem modelos explicativos diversos? Quais os processos subjacentes ao estabelecimento de explicações consensuais? Nestas explicações carregadas de significados, como se cruzam instituições e organismos governamentais, globais e locais com o quotidiano dos indivíduos?

Referindo-se à problemática dos processos da definição das epidemias, bem como às experiências pessoais e comunitárias das doenças e seus condicionalismos, este livro apresenta-se como um contributo para o desenvolvimento de teorização e análise sobre a problemática das doenças infeciosas emergentes, na antropologia. Como fica dito na introdução, identifica-se, em certa medida, com as propostas da antropologia das doenças infeciosas introduzida por Marcia Inhorn e Peter Brown, no início da década de 90 do século XX, empenhada numa abordagem holista que aproveitasse os enquadramentos teóricos da antropologia em geral. Mas oferece, igualmente, vias de diálogo e comparação com trabalhos da epidemiologia e da antropologia médica anglófonas, que desenvolvem uma perspetiva crítica à epidemiologia, alguns dos quais são referidos ao longo deste livro. Contudo, este diálogo não é explicitado, deixando também de fora as propostas analíticas da epidemiologia crítica e da medicina social, avançadas por investigadores da América Latina (a contribuição de Arachu Castro, Yasmin Khawja e James Johnston, neste livro, é um exemplo concreto desta afinidade), o que levanta questões sobre os limites da “desbalcanização” proposta neste livro, ditados, entre outros fatores, pela reduzida visibilidade dos trabalhos produzidos em línguas que não o inglês, mas também sobre as tendências dominantes dentro da antropologia e o que as determina, bem como sobre divergências teóricas, potencialmente suscitadas pela epidemiologia crítica, de inspiração marxista.

A complexificação das noções de epidemia e peste encontra enquadramento conceptual nas noções de sindemia (syndemic) e ecossindemia (ecosyndemic), presentes ao longo deste livro. Trata-se de conceitos forjados na antropologia médica por Merrill Singer, cuja contribuição nesta coletânea passa por uma síntese sobre as potencialidades da sua operacionalização, referindo a sua difusão para a epidemiologia e a saúde pública (palavras de Singer, p. 25). O conceito de sindemia é, de resto, reconhecido pela epidemiologia (veja-se, por exemplo, o trabalho de Francisco Inácio Bastos, de 2006, AIDS na Terceira Década, publicado pela Fiocruz) como a súmula das sinergias entre fatores sociais, políticos, económicos, ambientais e ação humana, determinantes para a saúde das populações.

O enquadramento na antropologia médica, bem como a ênfase dada nesta coletânea às desigualdades sociais, à dimensão política e às experiências individuais e coletivas das epidemias justificaria uma articulação – ainda que crítica ou alternativa e apresentando-se como “um passo em frente” – com os conceitos de “violência estrutural” e de “sofrimento social” desenvolvidos por Paul Farmer (cujos trabalhos são mencionados neste livro), Veena Das, Arthur Kleinman e outros. Estes conceitos remetem não só para o peso das desigualdades sociais e das relações de poder na saúde dos indivíduos e das comunidades, mas também para os mecanismos de desigualdade e opressão consolidados ao longo de processos históricos seculares e incorporados no quotidiano daqueles que vivem em contextos de pobreza e privação, ­influenciando a distribuição das doenças infeciosas, bem como as respostas institucionais, comunitárias e pessoais a estas.

Plagues and Epidemics é uma coletânea coerente e aliciante, com momentos empolgantes de etnografia, que dão corpo e emoções às epidemias de hoje e de ontem, mostrando a variação caleidoscópica que compõe a nossa condição de humanos, num mundo dominado por metáforas de risco e ameaças.

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