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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica vol.16 no.1 Lisboa fev. 2012

 

Renato Miguel do Carmo e José Alberto Simões (orgs.), A Produção das Mobilidades: Redes, Espacialidades e Trajectos. Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2009, 272 páginas, ISBN: 978-972-671-250-3.

 

Rita d’Ávila Cachado

CIES-IUL, Portugal, ritacachado@gmail.com

 

A perceção da rapidez, dos fluxos, do movimento nas suas múltiplas formas tem conduzido os investigadores em ciências sociais a deterem-se no conceito de mobilidade. Nascido da história urbana e da história das tecnologias associadas aos transportes, desenvolvido no seio das reflexões sobre migrações, o estatuto alcançado pela mobilidade no último decénio permitiu-lhe ser distendido para analisar temas aparentemente díspares, como acontece no livro A Produção dasMobilidades: Redes, Espacialidades e Trajectos. O livro em revista nasceu do encontro dos autores num painel do VI Congresso Português de Sociologia, mas os organizadores da coletânea não estão apenas preocupados com a publicação das atas. Mais do que pretender uma revisão do conceito, esta é uma coletânea dedicada à compreensão dos modos de produção das mobilidades. Se na introdução ao livro os organizadores parecem procurar um sentido de unidade entre as componentes, o exercício de recensear esta obra é antes buscar o sentido específico da mobilidade em cada um dos capítulos.

Tim Cresswell abre a edição, defendendo que “a não novidade das mobilidades é importante porque nos ajuda a resistir ao sabor da tecnofilia e ao gosto pelo agora que marca qualquer campo com o prefixo ‘novo’ ” (p. 36). Juntamente com Vincent Kaufmann e John Urry noutros registos e desde o início dos anos 2000, Tim ­Cresswell é um dos autores que instala a discussão sobre a produção das mobilidades (cf. 2001, “The production of mobilities”, New Formations, 43: 11-25) e é, por isso, um excelente arauto desta obra coletiva.

“Do espaço abstrato compósito: refletindo sobre as tensões entre mobilidades e espacialidades”, de Renato do Carmo, é um texto que investe na necessidade de ultrapassar categorias binárias, através da análise das tensões entre mobilidades e espacialidades, dinâmicas e assimetrias, despolitização / politização, fazendo com que mobilidade se aproxime de dinâmica cultural. De facto, a mobilidade enquanto conceito tem muito a ganhar se, à sua história marcada pelo urbanismo e pelo cruza­mento recente com a mobilidade social, juntarmos a dinâmica cultural, uma vez que só uma formulação conjuntural permite expor realidades diversas como as apresentadas no restante volume.

Segue-se o texto de Frédéric Vidal, “A mobilidade residencial como objeto da ­história urbana…”, com inestimável ­preocupação metodológica, abordando uma ­vertente rara mas promissora da ­mobilidade. Vidal defende que as mobilidades urbanas valem mais pela lição de método que podem oferecer do que pelos resultados em si (cf. ­Bernard LePetit e Denise Pumain (orgs.), 1993, Temporalités Urbaines, Paris, Anthropos) e revê o conceito de bairro para poder analisar a estabilidade residencial, aludindo à insuficiência dos métodos quantitativos para estudar bairros.

Em “Redes, Internet e hip-hop: redefinindo o espaço dos fluxos”, de José Alberto Simões, a mobilidade emerge como resultado de pesquisa, embora a forma como o convoca surja como uma adaptação da análise sobre a globalização e o seu par dicotómico, a localização. Simões defende que no hip-hop atual, apesar da desterritorialização provocada pela Internet, continua a haver localização deste fenómeno. A seguir, “Movimentos da imagem no graffiti: das ruas da cidade para os circuitos digitais”, de Ricardo Campos, questiona “o que terá o graffiti a ver com a ideia de mobilidade?” (p. 92). O texto indica que a mobilidade do graffiti está na sua função de comunicar e difundir estilos, e instaura a imagem de “fugacidade” como o que o percorre. Interessante é a análise do efeito de fixação conseguido pela fotografia registada na Internet, aqui como “dispositivo de empowerment”; neste sentido, a ligação com a mobilidade prender-se-á com a mobilidade social.

O livro prossegue com o turismo. Maria João Cordeiro é autora de “Em busca de um ‘tempo parado’…”, onde avalia como a mobilidade pode ser questionada ao estudar fenómenos turísticos atuais, sem cair na tentação da viagem como equivalente a mobilidade per se. Aprendemos sobre o imaginário do outro, neste caso turistas alemães, que procuram na realidade portuguesa uma cultura e costumes supostamente parados no tempo. Tal como no capítulo anterior, é a fixação o fulcro da análise. A presença destes sinais na análise das mobilidades faz reconhecer a utilidade de interpretações recentes que consideram tão importante a imobilidade como a mobilidade.

É ainda sobre fixação – inesperada – que nos fala André Nóvoa em “A ‘carrinha’ dos músicos em tournée…” E pergunta-se: onde está a mobilidade, mesmo em viagem, quando os atores sociais se atêm aos lugares culturalmente seguros? Cruzando-a com os conceitos de lugar, fixidez e território, Nóvoa explica a produção das (i)mobilidades entre artistas numa tournée, que de mobilidade apenas tem os quilómetros percorridos, e a carrinha surge como “cápsula que envolve e fecha os músicos dentro de uma cultura” (p. 146).

A estrada continua a ser foco de atenção em “Os profissionais das artes do espetáculo ‘na estrada’…”, de Cristina Farinha. Aqui, é de novo a mobilidade social que, associada à realização pessoal, aproxima a autora duma mobilidade centrada nas ambições dos sujeitos. Competências são cruzadas com aspirações, uma vez que aquelas “são uma exigência face à pluralidade multifacetada de oportunidades” (p. 161), fazendo eco com outras profissões com novas exigências. A maior competição na atualidade amplia a partilha de conhecimentos entre os artistas retratados. Este é um ponto de vista positivo sobre as atuais competências necessárias para a internacionalização ou, melhor, como os artistas superam as suas dificuldades. Farinha defende que “esta reflexão pode ser alargada a outros profissionais criativos e intelectuais” (p. 174), introduzindo o capítulo seguinte de Ana Delicado, “ ‘Lá fora com um pé cá dentro’: ligações dos cientistas expatriados ao sistema científico português”, que aborda a manutenção dos contactos dos investigadores transmigrantes com a terra de origem, abrindo um campo de comparação com outros transmigrantes classicamente analisados nos estudos de migrações. Interessante é a tipologia experimentada através de perfis dos cientistas em quatro clusters. Ressalta uma grande variedade, sem hipótese de homogeneização.

Através de dados sobre alguns dos jogadores de futebol mais internacionais, segue-se a análise de uma interessante analogia entre cidades globais e “clubes globais” em “Porque todos os ‘rebeldes’ falam português?…”, de Carmen Rial. A autora resgata Freyre para refletir sobre a imagem idealizada destes jogadores da América do Sul, e destaca que a Europa apresenta uma diversidade de construções retóricas de raça e origem étnica, retomando a necessidade de refletir sobre as configurações destes discursos, trazendo a mobilidade para a equação. As viagens destes jogadores realçam a mobilidade social – a viagem como deslocação geográfica e na hierarquia social (com Lévi-Strauss).

José Mapril, em “ ‘Os novos VIP’: políticas de mobilidade, emigração e nação no Bangladesh contemporâneo”, detém-se num assunto pouco abordado na área das migrações – é que às vezes são os Estados que promovem a emigração. Mapril foi atrás dessa história no Bangladesh, seguindo os discursos políticos e institucionais para analisar o contexto em causa. O objetivo é acrescentar a emigração às demais preocupações da governamentalidade, uma vez que, como neste caso, foi mesmo institucionalizada uma indústria de exportação de mão de obra, que acaba por ser o garante da desejada “modernidade” no Bangladesh e que faz destes emigrantes os novos VIP.

O último capítulo equaciona a mobilidade através da análise da fundação de uma Igreja. “Circunscrição moral: mobilidade, diáspora e configurações doutrinais na Igreja Tokoísta (Angola)”, de Ruy Blanes, leva-nos a conhecer o processo de crescimento da Igreja em causa. Este é um processo que depende da mobilidade dos seus principais representantes. Religião e migrações são aqui cruzadas com a ajuda das políticas estatais. Sem falar de poder nem de controlo, é a mobilidade no seu estatuto conceptual contemporâneo que permite cruzar dinâmicas culturais distintas.

Nesta coletânea, quando a mobilidade aparece como parte do método de pesquisa, os artigos resultam mais seguros; quando a mobilidade surge como possibilidade interpretativa, provocam uma sensação de insegurança analítica. É possível que esta situação ocorra justamente porque a mobilidade atravessa uma recomposição conceptual e porque a sua história é dificilmente abarcável seguindo apenas uma disciplina de cada vez. A mobilidade e suas dimensões, como exemplifica bem este livro, requer interdisciplinaridade.

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