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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica v.13 n.2 Lisboa nov. 2009

 

Quem tem medo de mal-assombro?[1]

Flávia Pires

 

Este artigo etnográfico tem como objeto analisar o que são os mal-assombros do ponto de vista dos adultos e das crianças na pequena cidade de Catingueira, semi-árido da Paraíba (Brasil). Além disso, pretendo analisar como o conceito de mal-assombro transforma-se ao longo dos anos, discorrendo sobre o processo que parece culminar com a cristianização das crianças pari passu a cristianização dos mal-assombros. Investigo em que idade o medo de mal-assombro é mais evidente para, entre outras questões, discutir como o sistema de parentesco está intrinsecamente ligado à ontologia dos mal-assombros.

Palavras-Chave: mal-assombro, criança, religião, Cristianismo.

 

Who’s afraid of ghosts?

This ethnographic paper analyses the belief in ghosts from the children’s and adults’ point of view in the village of Catingueira, Northeastern semi-arid region of Brazil, focusing on how this concept changes over time. It explores the process of becoming an adult, involving the Christianization both of children and of the ideas concerning ghosts (mal-assombros). In addition, it questions who fears such ghosts the most, suggesting the hypothesis of a close relationship between the kinship system and the ontology of the “mal-assombros”.

Keywords: ghosts, children, religion, Christianism.

 

Este artigo é resultado de uma pesquisa de campo de quase catorze meses (2000-2005) que culminou com a redação da minha tese de doutorado. O trabalho de campo foi realizado na cidade de Catingueira – localizada no semi-árido nordestino, no estado da Paraíba, no Brasil. A cidade conta com uma população de aproximadamente 5000 habitantes, distribuídos entre as zonas rural e urbana. Naquela cidade a religiosidade sempre se mostrou um tema pungente, cujas conexões extrapolam a esfera do “religioso”. Minha dissertação de mestrado (Pires 2003), por exemplo, trata da Festa de São Sebastião, padroeiro da cidade, momento no qual a cidade recebe turistas e se reinventa em tradições e efervescência social sob as bênçãos do santo e da Igreja Católica. Como os chamados “crentes”[2] e espíritas kardecistas estão presentes nesta festa religiosa, a princípio católica, é um dos desdobramentos da dissertação (Pires 2004; 2005). No entanto, na tese de doutorado, trabalhei com crianças dos três aos treze anos de idade, adultos e idosos, na tentativa de compor um quadro, tão completo quanto possível, sobre o entendimento e a experiência religiosa naquela comunidade. Ao fazê-lo, deparou-se-me a existência de seres chamados “mal-assombros” que podem ser, em alguma medida, intitulados de religiosos, uma vez que mantêm relações privilegiadas com o chamado “outro mundo”, o mundo após a morte. Em poucas palavras, para os adultos e os idosos estes mal-assombros são almas de pessoas falecidas. Para as crianças, por sua vez, os mal-assombros são uma larga gama de seres e acontecimentos. É interessante notar que o medo dos mal-assombros, altamente enfatizado pelos adultos e idosos, não o é pelas crianças. O medo do mal-assombro e seus desdobramentos é o tema deste texto.

Antes de começar, gostaria de tecer alguns comentários metodológicos que, embora rápidos, se fazem essenciais. Durante o trabalho de campo, as crianças eram incentivadas a desenhar e escrever sobre temas livres e sobre temas -propostos pela pesquisadora. Foi feito um exercício metodológico com crianças de três a treze anos de idade com dois temas específicos (“O mal-assombro” e “A minha religião”) nas duas escolas da cidade. Foram colhidos pelo menos vinte desenhos e redações de cada uma dessas idades em relação a cada um destes temas. Neste artigo trataremos, primordialmente, dos trezentos e catorze desenhos e redações produzidos sob o título “O mal-assombro”. Após a interpretação dos mesmos pela criança, os materiais de pesquisa foram classificados pela pesquisadora, que, depois de analisá-los comparativamente, construiu alguns gráficos como os que são usados neste artigo (mais detalhes metodológicos podem ser encontrados em Pires 2007a; 2008).

 

SOBRE A DEFINIÇÃO DO MAL-ASSOMBRO

Para discutir os mal-assombros é preciso, primeiramente, defini-los. Para um indivíduo adulto, mal-assombro, em poucas palavras, é a alma de uma pessoa que faleceu e que, por algum motivo, estabelece contato com os vivos. Grande parte dos mal-assombros são almas que não encontraram seu rumo depois da morte. Algumas foram vítimas de mortes trágicas e, dado o caráter imprevisto do seu falecimento, ainda não tiveram tempo para se acostumarem com a sua nova condição. Estão perdidas no mundo dos mortos. Neste caso, as almas estão em situação de risco, pois são consideradas presas fáceis para o Cão.[3] O mal pode facilmente apoderar-se delas e fazê-las suas companheiras de artimanhas. Embora as almas com tendência para a maldade sejam as primeiras a ser recrutadas pelo Maligno para agirem como mal-assombro, almas boas também podem ser usadas pelo Mal como mal-assombro, principalmente quando se encontram perdidas. Suas ações têm conseqüências nefastas, mas elas não têm controle sobre as mesmas porque ignoram como se relacionar de maneira saudável com os vivos. Reconhece-se que este tipo de alma está em sofrimento. Para ajudá-las, os vivos devem parar de chorar pelos mortos para que eles possam seguir seu caminho e, ao mesmo tempo, oferecer-lhes missas, velas e orações, prática observada por católicos e espíritas.[4]

O que parece estar em jogo é um processo de diabolização ou divinização dos mal-assombros – que segue padrões diferentes se compararmos cada ramo do cristianismo presente na cidade. Para os crentes, indubitavelmente, os malassombros são obra do Diabo. Se a alma de um familiar falecido lhe aparece, o crente deve duvidar da aparição. Se a alma pede qualquer favor, o crente não lhe deve obedecer. Para o crente, a aparição de uma alma é um demônio transfigurado naquela pessoa querida, com o objetivo de fazer crer aos seus familiares que é ela mesma, para enganá-los, para persuadi-los a fazer o que a alma pede, ou seja, obedecer ao Demônio. É interessante notar que, dentre os pedidos das almas, os mais comuns são missas e “rezas” – curiosamente, práticas católicas. O fato das almas pedirem tais oferendas é uma prova de que a aparição não é do bem, porque tais práticas “não são de Deus”, diriam eles. Esta interpretação baseia-se ainda na refutação da possibilidade da vinda da alma de um morto à Terra: segundo os evangélicos da Assembléia de Deus sediada em Catingueira com os quais conversei, uma pessoa que morre fica dormindo, esperando o julgamento final. Isto prova que a alma do familiar em aparição não é o próprio, porque este deveria estar dormindo, mas, sim, o Diabo – que usa aquela aparência física para fins obscuros. Além disso, muitos crentes apóiam-se na parábola bíblica do livro de Lucas, capítulo 16, versículos 19 a 31, para contraporem-se à possibilidade de visitas do além-túmulo. Na parábola, o mau rico, depois de morto, pede ao Pai Abraão que mande Lázaro avisar aos seus irmãos dos males do Inferno, enquanto eles ainda estão vivos; Pai Abraão recusa o pedido, dizendo que os que estão vivos têm os profetas para os orientarem. Com isso, segundo os crentes, fica provado que os mortos não podem se comunicar com os vivos.[5]

Quando as almas não têm outro objetivo senão assombrar, reconhece-se imediatamente, segundo todas as religiões em questão, o seu pacto com o Demônio. Isso ocorre, por exemplo, quando uma pessoa tem pesadelos -perturbadores e visões ameaçadoras ou quando, sem outros motivos aparentes, torna-se agressiva, doente, cai em depressão, ou, ainda, quando em sua vida tudo parece dar errado, mesmo quando ela está levando uma vida de acordo com o padrão socialmente aceitável. Em uma entrevista, uma fiel da Assembléia de Deus, de quarenta anos de idade, casada, mãe de três filhos, referiu-se ao fato como uma tentativa do Demônio de fazê-la cair em depressão:

Entrevistada: Uma vez tinha uma festa aí ao lado do coreto. Se fosse uma pessoa humana andando dentro de casa você num ouvia. Uma pessoa humana andando… num ouvia não. Eu tava naquele sono, quando a pessoa quer abrir o olho e não consegue. Aí eu ouvi aquele arrastado pro meu lado, aquele arrastado, pro meu lado, eu digo: “Oxente!”

F: E tinha festa no coreto?

Entrevistada: Era um barulho dentro de casa, se uma pessoa fosse andando dentro de casa você não conseguia ouvir uma pessoa pisando dentro de casa. Inclusive, o arrastado, se você vê, o arrastado era P. Mas porque ele [o Diabo] se aproveitou que eu estava muito assim… eu cuidei muito dela [quando P estava para morrer], eu fiquei muito assim… a gente sempre fica, né, com… Mas o jeito que ele veio foi pra me assustar, o jeito que ele veio. Pra eu me impressionar que eu tava vendo P. E depois eu caí numa depressão, num é? E ele, aproveitar! E ele, achar uma brechinha, aí ele entra mesmo. Aquele arrastado atrás. Eu naquele sono assim, eu queria abrir o olho e não conseguia. Aí ela foi chegando perto de mim assim, me deu um assopro tão grande no meu ouvido! Naquele sono assim eu disse: “Oxente, P! Já veio pra gente fazer caminhada?” Mas isso era bem doze horas da noite. Ela deu aquele assopro no meu ouvido, eu me assustei.

F: E ela já tinha morrido?

Entrevistada: Já. Aí eu olhei assim e não vi nada. “Oxente, o que foi isso?” Eu disse: “Tá repreendido, tá repreendido, Satanás”. Aí eu me levantei, fui na cozinha, tomei água, só foi me deitar, eu adormeci. Só foi repreender… você tá pensando que eu tenho medo? Meu Deus é poderoso e não me deixa temer.

Para os católicos e os espíritas, por sua vez, o mal-assombro pode ser realmente a alma de uma pessoa falecida – muitas vezes, um parente. Neste caso, a alma do parente morto interfere – para o bem ou para o mal – na vida cotidiana da família que permanece viva. Quando uma alma interfere positivamente no dia-a-dia dos vivos, reconhece-se que ela já se encontrou no mundo dos mortos. Sua ação, neste caso, é intencional. Os mal-assombros podem ser obra de Deus quando, por exemplo, uma alma aparece em sonho para indicar o lugar onde enterrou uma botija de ouro. Entende-se que Deus permitiu que ela viesse em sonho, uma vez que a botija enterrada pode impedir que o seu dono entre no céu, atormentado com o desperdiço da fortuna de toda a sua vida. Deus, na sua infinita bondade, concede que a alma venha à Terra fazer o que deveria ter feito em vida: dar a alguém o dinheiro que, de outra maneira, ficaria para sempre perdido. Assim, neste caso, a alma que aparece em sonho é um enviado de Deus, que trará o bem para quem sonha com ela (ficará rico se seguir seu conselho) e, ao mesmo tempo, para ela própria (livrar-se-á do que a impede de entrar no reino dos céus). Também se entende como uma permissão divina se a alma de uma pessoa querida aparece para dar uma notícia. Há relatos de pessoas que tomam conhecimento da morte de um familiar próximo através da alma deste, que vem lhe avisar. Muitas vezes, a alma não avisa sobre a sua morte, mas apenas profere palavras de conforto, a fim de preparar seu ente querido para a triste notícia que está por vir. O vidente, sem entender o que se passa, indaga o familiar morto quanto à sua repentina aparição, sem dar-se conta de que se trata apenas da sua alma. Uma mulher me contou que a alma da sua mãe veio lhe avisar da sua morte (da mãe). Era bem de manhãzinha e, quando ela foi lá ao fundo do “muro” (quintal) “buscar não sei o quê”, viu a sua mãe sentada em um tamboretinho. Ela se espantou e disse: “Oxê mãinha, tão cedo a senhora aqui na minha casa! Por onde foi que a senhora entrou que eu não vi?” Outra pessoa contou-me que chegou até a oferecer comida para a alma – que, por sua vez, não aceitou, dizendo que estava com pressa e não podia demorar-se muito. Muitas vezes, o vidente só se dá conta da morte do familiar quando chega a notícia do seu falecimento por outras vias. Há, também, outras almas que aparecem para dar conselhos aos vivos ou trazer conforto em situações difíceis. Além disso, se há algo pendente que impeça aquela alma de purificar-se o necessário para entrar no reino dos céus – por exemplo, uma mágoa não resolvida –, Deus pode permitir que ela venha à Terra a fim de resolver a questão. Em um momento de necessidade, uma alma também pode ajudar a um vivo, espiritualmente (dando um conselho ou sugestão) ou mesmo materialmente. Pode acontecer também Deus permitir que a alma venha à Terra somente para consolar a sua família querida, assegurando que se encontra em um bom lugar. Para os católicos e espíritas, em todos esses casos as almas são associadas ao bem.

Parece-me que a aparição dos mal-assombros pode ser pensada como uma concessão divina em benefício dos vivos ou dos mortos pelos católicos e espíritas. Mas, para os crentes, diferentemente, não há alma que venha fazer o bem, porque todas elas são enviadas pelo Demônio. Mesmo que ela venha anunciando uma boa notícia, o bem vai reverter-se em mal posteriormente. Por exemplo, no caso de uma botija de ouro, a riqueza vai ser amaldiçoada, trará discórdia na família, será causa de brigas e desentendimentos.[6]

Há, ainda, almas que vêm buscar auxílio indireto entre os vivos. Por não conhecerem outro caminho senão aquele, elas acabam tomando o caminho da casa onde moravam em vida. Neste caso, elas são comumente vistas executando tarefas cotidianas, como se ainda vivessem naquela casa – por exemplo, tomando café no seu lugar preferido à mesa ou cosendo à sua máquina de costura. Muitas vezes as almas não têm interesse em assombrar. Apenas querem viver ali, como viviam no passado. O problema é que não tarda que algum vivo as perceba de alguma maneira. Veja-se o relato escrito por um adolescente de catorze anos de idade (FFF.14.M):[7]

Um certo dia minha vó me contou que ela estava vindo do Rio para Catingueira e que na metade da viagem ela passou pensando em fantasma. Ao chegar de viagem ela foi se deitar para descansar e passou parte do sono sonhando com fantasmas. Às três horas ela se levanta e diz: “ainda bem que foi um sonho”. Quando ela ouve o chamado “Zumira, Zumira”! Era a voz do falecido marido. Um ano depois se levantou para fazer café quando terminou, foi buscar a caneca e quando voltou viu com seus próprios olhos o seu marido falecido tomando café. Na hora ela desmaiou […].

Muitas vezes, no intuito de se divertir à custa do medo que provocam nos vivos, algumas almas gostam de fazer barulhos, chamar as pessoas pelo nome ou mover as coisas de lugar. Este tipo de mal-assombro peralta é geralmente reconhecido como a alma de uma criança que faleceu crescida o bastante para não poder ser considerada um “anjinho” (nenê que vem a falecer) e, ao mesmo tempo, pequena o bastante para não poder ser corrompida pelo mal.[8] No caso em que um parente morto esteja inoportunamente freqüentando a sua casa, os vivos devem, geralmente, rezar por ele, acender velas, mandar celebrar missas,[9] visitar e cuidar do seu túmulo, ou deixar de pensar excessivamente nele. Em casos mais extremos, pode-se pedir ao padre, pastor ou presidente do centro espírita que vá àquela casa a fim de benzê-la ou fazer uma oração. Em casos extremos, pode-se também recorrer ao exorcismo, possibilidade, no entanto, remota, que parece não ter precedentes na cidade. É interessante constatar que algumas pessoas pedem a Deus a oportunidade de encontrar-se com -determinadas almas. Neste caso, ter a visão de uma alma querida é tido como uma concessão divina que segue as regras do merecimento pessoal e a respeito da qual a pessoa não pode fazer muito, a não ser seguir sendo uma pessoa boa e aguardar resignadamente a vontade de Deus. Ver uma alma fatalmente tornase assunto para a vida toda, principalmente se a alma faz parte da família. A visão é, muitas vezes, ressignificada com o passar dos anos, fazendo parte do rol de estórias dignas de se contar às próximas gerações.

Quando desenhados pelas crianças, os mal-assombros são freqüentemente representados com alguma característica humana. Note-se que todos os malassombros desenhados pelas crianças têm pelo menos os olhos – sendo que a maioria tem, além dos olhos, a boca. Muitos outros têm o rosto humano completo, inclusive o nariz. Outros também têm os membros superiores e inferiores. Alguns têm as mãos, que usam para segurar armas contra os vivos ou para assustar, e há um detalhe nos desenhos que me chamou a atenção: muitos mal-assombros têm umbigos. Ademais, alguns mal-assombros são desenhados exatamente como seres humanos, com a mesma forma corporal de quando eram vivos (figura 1), sem falar que aos próprios mal-assombros são imputadas características que os personificam: são alegres, amigos, malvados, “prezepeiros” (travessos), horripilantes, feios…[10]

Figura 1 – O mal-assombro-alma desenhado por uma menina de oito anos de idade.

 

Muito recorrentemente os mal-assombros “aparecem” aos vivos através dos sonhos e dos sentidos, principalmente a visão. Os mal-assombros se dão a ver principalmente em três lugares: 1) no cemitério, onde há as mais altas taxas de aparição de mal-assombro[11] constatadas na pesquisa; 2) na natureza, em lugares ermos, afastados das cidades, como os sítios e as florestas/matas (é comum os fantasmas serem desenhados “indo para a cidade”, “assombrando a cidade”, “invadindo a cidade”); 3) nas casas mal-assombradas, que podem ser divididas em (a) casas velhas abandonadas, algumas vezes afastadas das cidades e (b) casas onde moram os vivos. Os mal-assombros podem fazer parte da família que ali habita ou habitava – mas isso não acontece necessariamente.

Os vivos e os mortos parecem estabelecer entre si uma relação ambígua. Em parte, os mal-assombros poderiam ser pensados como o “outro” dos vivos. Eles habitam preferencialmente a natureza (por oposição à cidade) e quando querem assustar vão para as cidades, onde moram as pessoas. Além de habitar os sítios ou a natureza, eles habitam os cemitérios. Da mesma forma, são quase sempre feios e algumas vezes têm características animalescas que os distinguem dos humanos vivos. Mas, por outro lado, os malassombros são representados como próximos dos vivos ou seus “iguais”. Curiosamente, mesmo que “horríveis”, todos os mal-assombros têm traços humanos. Da mesma forma, uma outra moradia preferencial dos mal-assombros é, além dos campos e do cemitério, a casa. Estas casas podem ser abandonadas, mas também podem ser casas onde moram os vivos. É preciso mencionar que essas são populares em todos os temas de desenho propostos durante o trabalho de campo, e também nos desenhos livres. Contudo, o elevado número de casas não se explica apenas pelo fato de que são simples de desenhar, sendo um dos primeiros desenhos que se aprende a fazer. Ao contrário, aposto que as casas desenhadas podem ser analisadas como parte importante da ontologia dos assombramentos, enfatizando o papel do parentesco. É interessante constatar que, recorrentemente, essas almas aparecem nas cozinhas das casas. A cozinha é considerada, como afirmei alhures (Pires 2007a: 42), um dos ambientes mais íntimos e intrinsecamente “familiares” de uma residência. Não é sem motivo que a cozinha está localizada em direção oposta à sala, como o cômodo mais distante da rua.[12]

Destarte, os mal-assombros têm agência humana: eles comem, dormem, conversam, vivem entre si em famílias de mal-assombros. Existem estórias de mal-assombros nas quais o marido morto, ciumento, vem tomar satisfações do novo companheiro da viúva. Ao mesmo tempo, ouvi estórias de almas de esposas que ajudaram o marido viúvo a encontrar uma nova parceira para a vida conjugal. Isso parece sugerir uma relação entre os mal-assombros e os laços de parentesco. No desenho de D.9.M (figura 2) vemos desenhado “Gasparzinho e seus filhos” passeando pela noite. Keesing (1982: 40) parece concordar comigo quando afirma a relação próxima entre os desejos dos vivos e dos mortos no caso dos kwaio: “Ancestors, as spirits, value what humans value in life”.[13] Poderíamos, então, indagar-nos até que ponto a morte cessa a humanidade ou apenas a transforma, sendo os mal-assombros, assim, reconhecidamente tão humanos quanto os vivos. Entretanto, se os vivos reconhecessem humanidade aos mortos, nenhuma destas visões seria alardeada como anormal, coisa de outro mundo, medonha. Para os vivos, os mortos são os outros; ao contrário, para os mortos, os vivos são seus iguais. Para os mortos, a linha que os separa dos vivos é tênue, uma vez que todos os vivos serão mortos e que eles há pouco ainda eram vivos; no entanto, para os vivos, a morte é um mistério, o grande “outro”.[14] A sugestão é a de que, através dos mal-assombros, os catingueirenses parecem elaborar uma etiqueta que regula os modos de relação e formas de organizar os espaços dos vivos e dos mortos.

Figura 2 – O mal-assombro e seus filhos desenhado por um menino de nove anos de idade.

 

CRISTIANIZAÇÃO DAS CRIANÇAS E DOS MAL-ASSOMBROS

Até o momento, concentramo-nos especialmente no ponto de vista adulto para entender os mal-assombros; gostaria, agora, de discutir um pouco a perspectiva infantil. As crianças concebem um leque muito mais variado de mal-assombros comparativamente aos adultos. Para as crianças, o Vampiro, a Bruxa, o Homem do Saco, o Papa-Figo, a Rasga-Mortalha, a Maria Fulozinha[15] e outros seres são mal-assombros. Além destes, podemos referir ainda o Gasparzinho (o Fantasminha Camarada), a Cabeça, diversos personagens da TV, como a Bruxa Keka, os robôs, o Supapo, e ainda acontecimentos inexplicáveis, como uma zoada estranha, um vulto, uma bandeira branca, um pano branco, um peso na garupa da bicicleta, um clarão, uma sombra fria, uma gargalhada, a TV mudando de canal e volume, uma tocha de fogo, um assovio, uma voz estranha, uma réstia na parede, uma mão branca cheia de pêlos, sem falar no Bicho Papão, no Lobisomem, na Mulher de Branco, no Espírito de Luz, no Zumbi, na Cuca, no Esqueleto, na Mula sem Cabeça, no Diabo, na Morte e nos animais, encantados ou não, como aranha caranguejeira, morcego, barata, cobra, jacaré, cobra de cinco cabeças, a já mencionada rasga-mortalha, o Carneiro de Ouro ou a Gia Encantada do Olho d’Água. Por último, mal-assombro para uma criança também pode ser uma casa, um castelo, a casa da bruxa e até mesmo um pé de juá ou de oiticica. Como escreveu um menino de onze anos de idade em uma redação sobre mal-assombro, “O malassombro é uma coisa que envolve muitas coisas, fantasmas, bruxas, vampiros, etc.” (JPF.11.M).

Os adultos descartam a possibilidade da existência de quase todos os malassom-bros acima citados e riem daqueles que acreditam nestas coisas, que eles consideram absurdas e infantis. Para os adultos, esses seres são estórias para fazer medo às crianças. Segundo eles, apenas os mal-assombros-almas parecem ser passíveis de existência. Na entrevista citada anteriormente, o tom da conversa era respeitoso e sério enquanto conversávamos sobre as almas dos mortos e a possibilidade de assombramentos. Mas quando perguntei sobre a Maria Fulozinha e outros seres como o Vampiro e o Zumbi, a entrevistada assumiu um tom jocoso. Ela ria das minhas perguntas, refutava os fenômenos a eles relacionados e negava insistentemente qualquer possibilidade de realidade àqueles seres. De modo geral, essa é a atitude dos adultos quando o tema da conversa são os mal-assombros – digo, os mal-assombros que não sejam as almas dos mortos. Para os adultos, apenas as almas são de verdade. Quanto aos outros mal-assombros, a entrevistada afirma: “Isso não existe! Eu acho que isso é tudo pra fazer medo às crianças”.[16] Observa-se, do ponto de vista do indivíduo, que, com o passar dos anos, aquilo que poderia ser considerado um mal-assombro vai se restringindo. O que parece ocorrer é a redução do número das entidades plausíveis como mal-assombros. Ou seja, à medida que a criança cresce, os mal-assombros vão sendo reduzidos às almas dos mortos. Todos aqueles mal-assombros que faziam sentido quando se era criança são destituídos do imaginário adulto. Mas é essencial notar que os mal-assombros nunca deixam de existir.[17]

Assim, em se tratando dos mal-assombros, o processo de tornar-se adulto implica tornar religiosos elementos antes tidos como ordinários: explicar, segundo a religião, por exemplo, acontecimentos inexplicáveis – como a existência de mal-assombros. Os adultos lançam mão de explicações religiosas para entender o aparecimento dos mal-assombros – o que as crianças não fazem. Que tipo de explicação religiosa é essa? Os adultos explicam os mal-assombros através dos seguintes factores: 1) a sobrevida da alma após a morte do corpo, 2) a conceitualização do mal e do bem; 3) as figuras de Deus e do Diabo.

Uma das hipóteses deste trabalho é que, com o passar dos anos, as crianças cristianizam os próprios mal-assombros através da restrição dos mesmos às almas dos mortos. Nos desenhos produzidos, vimos que, até por volta dos sete anos de idade, mal-assombro não é necessariamente alma ou fantasma. Por volta desta idade, a criança ainda não parece dialogar com o conceito de alma versus corpo. Em um desenho de uma criança com nove anos de idade, observamos uma alma saindo de um corpo defunto quando colocado dentro da sua catacumba, donde parece possível afirmar a diferenciação da alma e do corpo, segundo esta criança (R.9.M.19). A idéia da existência da alma e da sua sobrevida após a morte do corpo é um conceito que leva algum tempo a ser assimilado – assim como os conceitos de bem e mal, Demônio e Deus.[18] Interessante notar que o Diabo foi desenhado como mal-assombro pelas crianças, mas apenas a partir dos dez anos de idade. Os adultos associam os mal-assombros ao mal ou ao bem, como agentes do Demônio ou de Deus. Para fazer essas associações, é necessário obviamente reconhecer Deus e o Demônio, bem como os princípios do bem e do mal com eles relacionados. O bem e o mal, Deus e o Demônio, fazem parte do espírito cristão que predomina no universo religioso de -Catingueira. Desta forma, é necessário introjetar o espírito cristão para se esquecer todos os outros mal-assombros infantis, restringir os mal-assombros às almas e associá-las ao Demônio ou a Deus. Em Catingueira, nenhuma pessoa “falha” ao restringir os mal-assombros às entidades religiosas cristãs quando se torna um adulto. Nesse sentido, o processo de tornar-se adulto parece implicar a cristianização, na medida em que os mal-assombros, antes entidades não religiosas, passam a ser definidas em relação a conceitos cristãos.

Em se tratando dos mal-assombros, este seria o limiar entre as crianças e os adultos: as primeiras tornam-se adultas no momento em que passam a cristianizar os mal-assombros. A cristianização dos mal-assombros coincide com a constatação de que os outros mal-assombros (citados anteriormente) não são de fato reais e, por isso, não apresentam perigo. Eles são reconhecidos como estória inventada pelos adultos para assustar as crianças, seres cuja existência só pode ser afirmada na mente fantasiosa das crianças – diriam os adultos. Somente as crianças, porque são inocentes − isto é, não conhecem o mal −, acreditam nesse tipo de mal-assombro, como o Esqueleto. Para acreditar que ele existe e atua no mundo dos vivos é necessário não ter ainda bem distinto o que é o mal e o que é o bem. É necessário, em outras palavras, ainda não ser cristão. Além disso, pensam os adultos, para acreditar, por exemplo, na Bruxa Keka, é preciso não ser capaz de distinguir entre fantasia e realidade. A indistinção entre os mundos da realidade e da imaginação é característica atribuída pelos adultos às crianças, em Catingueira.[19]

A primeira conclusão que podemos aventar é que o processo de crescimento parece não culminar em secularismo. As crianças são consideradas adultas quando deixam de acreditar em certos mal-assombros como a Cuca e o Lobisomem e passam a restringir o mundo dos mal-assombros apenas às almas. Para que ocorra esta mudança é preciso que a cristianização da própria criança já esteja em andamento. Ao mesmo tempo, quando os mal-assombros são restritos às almas, eles também são cristianizados, porque passam a ser concebidos como enviados do Demônio ou de Deus – ou como o próprio Demônio. Nos dois casos em que os mal-assombros são associados às entidades, o processo aparentemente culmina com a cristianização dos mal-assombros – seja para o bem, seja para o mal. Na idade adulta, o que pode ser reconhecível como malassombro passa a restringir-se às almas dos mortos, que não são reconhecidas senão com referência à moral cristã.

 

QUEM TEM MEDO DE MAL-ASSOMBRO?

Para o adulto, como vimos até agora, até mesmo o mal-assombro enviado por Deus assombra – com a diferença que esse assombramento não deve perdurar. Quando um mal-assombro é enviado por Deus, ele deve assustar somente até o momento em que se apresentar e tornar explícitas as suas intenções. Depois disso, o mal-assombro pode até tornar-se uma companhia que presta auxílio e proteção. Parcialmente, o medo das almas pode ser entendido pela sua ligação com o desconhecido. Quando existe alteridade, o medo está presente, mas quando identificamos a alma mal-assombrada e, por conseqüência, os seus objetivos, o medo tende a se dissipar. No caso dos católicos, os mal-assombros podem ser associados ao bem se revelam-se almas de pessoas que foram conhecidas em vida; neste caso, serão mesmo associadas primordialmente ao bem. Se, ao contrário, não foram pessoas conhecidas, serão tendencialmente associadas ao mal. Assim, a alma de um familiar será mais facilmente assimilada a Deus que ao Diabo. Se esta alma conhecida começar inexplicavelmente a fazer maldades, ficará subentendido que ela está sob as garras do Demônio. Este é quem a induz a tomar certas atitudes inapropriadas. Estar submetido ao Demônio sugere estar em apuros, procurando ajuda. Nestas condições, a ação maléfica que a alma venha a cometer não é considerada intencional. Ao contrário de fugir da companhia dessa alma, seus familiares vão tentar se comunicar mais eficazmente com a mesma, a fim de ajudá-la – por exemplo, recorrendo ao centro espírita. Dessa forma, o medo parece ser sempre a primeira reação frente à aparição de um mal-assombro. Mas esse medo pode ser convertido em cumplicidade se a alma vem a revelar-se uma pessoa conhecida, com boas intenções ou em apuros.[20]

A partir dos desenhos, das conversas e das entrevistas, percebi que o temor é o modo de relação que se estabelece entre os vivos e os mal-assombros. Alguns sentem-se atraídos pelos mal-assombros, mas o número dos que os temem é incomparavelmente maior. Porém, observa-se outras atitudes em relação ao mal-assombro, como no desenho de CM.9.F, no qual o fantasma se espanta com a mulher que pretendia assustar: com o medo, seus cabelos ficaram em pé, assustando até mesmo o mal-assombro. No desenho de FF.7.M, o mal-assombro é nomeado com o apelido de um dos colegas da sala, servindo de diversão para toda a classe. Entretanto, o temor vai apresentar-se de maneira diferente em cada classe de idade, sendo um dos elementos mais destacados (num âmbito de três a vinte e dois anos de idade)[21] nos desenhos e redações sobre os malassom-bros.

Desde o momento em que o conceito de mal-assombro é formado, ele é tido como algo a se temer. Mas as crianças pequenas, menores de sete anos de idade, temem os mal-assombros segundo uma lógica própria, que difere da dos adultos e das crianças maiores. As crianças assustam-se com os mal-assombros, mas não poderiam afirmar que eles são o mal ou uma armadilha dele. O medo não vem do fato do pacto do mal-assombro com o Maligno. Para a criança, o mal-assombro assombra – e isso é ruim. As crianças pequenas não demandam razões para temer os mal-assombros, diferentemente dos adultos. Temem porque temem, porque o mal-assombro é terrível – e não porque o mal-assombro vem do Demônio. Para o adulto, ele é um afiliado do mal e, por isso, assombra. Aqui o processo em jogo é que as crianças primeiro aprendem a temer para depois aprenderem por qual motivo devem temer.

Para as crianças, por outro lado, os mal-assombros não dizem respeito à religião e, portanto, não podem ser explicados em relação a conceitos religiosos. Mal-assombro e religião não são, em absoluto, dois assuntos cambiáveis, de acordo com as meninas e os meninos de Catingueira. Observe que o número de crianças que incluiu elementos religiosos no tema de desenho do mal-assombro só vai aparecer significativamente após os oito anos de idade (figura 3). Antes dessa idade, os elementos religiosos praticamente não são desenhados. Isso mostra que, para a criança pequena, mal-assombro não tem necessariamente relação com o Diabo ou com o mal – muito menos com Deus ou com o conceito de espírito que sobrevive após a morte. Enquanto para os adultos não existe mal-assombro neutro (ou ele é do mal ou é do bem), para as crianças pequenas é diferente, esta questão não se coloca. Elas não se perguntam sobre as intenções de um mal-assombro. Sua ontologia está toda definida no seu próprio nome: ele assombra. Sua ruindade está definida na sua ontologia assustadora, está toda dada em si mesmo e não pela sua relação com outro ser. Os adultos precisam de causas, mas não as crianças pequenas (sobre o processo de intelectualização da realidade vivida à medida que se cresce, veja-se Toren 1999: 94-100; e Pires 2007a: 139-147).

Figura 3 – Elementos religiosos desenhados.

 

Observando os desenhos, constatamos que, até os seis anos de idade, o temor dos mal-assombros é pouco representado nos desenhos (índice menor que 9%), ao passo que é dos dez aos treze anos de idade que o temor está mais representado. Aos sete anos de idade há uma taxa de 27% dos desenhos onde o temor está presente; aos oito anos, ela sobe para 55%; aos nove anos, 40%; aos dez anos, 72%; aos onze anos: 82%; aos doze anos, 83%; aos treze anos, 73%; aos catorze anos, 80%; aos quinze anos, 91%; entre os dezesseis e os vinte e dois anos, atinge os 100%. O temor dos mal-assombros parece ser crescente a partir dos três anos de idade, atingindo a totalidade dos desenhos dos dezesseis anos de idade em diante, mas mantendo-se alto a partir dos dez anos de idade. O pico ocorre justamente próximo da fase dos dez anos de idade – na qual observamos uma transição importante para a idade adulta em termos religiosos, como descrevi alhures (Pires 2007a: 129-184). Assim, nos desenhos, o temor dos mal-assombros só é representativo a partir dos sete anos de idade e atinge os maiores patamares acima dos quinze anos de idade, como mostra o gráfico da figura 4.

Figura 4 – O temor do mal-assombro.

 

Entretanto, estes dados podiam conduzir-nos a dois erros: primeiro, o de pensar que criança pequena não sabe o que é um mal-assombro; segundo, o de acreditar que criança pequena não teme os mal-assombros. As crianças pequenas reconhecem e temem os mal-assombros, mas de uma maneira distinta dos adultos. De modo geral, o temor dos mal-assombros é um dos temas mais ressaltados nos desenhos, o que corrobora a afirmação de que mal-assombro e gente relacionam-se através do medo – mas com a importante ressalva, em direção oposta ao esperado, de que as crianças pequenas retratam o temor dos malassom-bros com menor intensidade do que as crianças maiores ou os adultos.

Assim, ao contrário do que indicaria o senso comum, a cognição dos malassom-bros poderia ser considerada, em primeiro lugar, como parte do imaginário dos adultos – e não tanto das crianças. Explico-me. O bem e o mal são conceitos adultos. O mal-assombro enquanto alma é tido como um enviado de Deus ou, mais constantemente, do Demônio. Portanto, apenas os adultos poderiam de fato temer os mal-assombros, como almas enviada pelo mal ou pelo bem. Os outros mal-assombros considerados infantis são temíveis, mas as crianças mesmo sabem que eles também são de brincadeirinha. As crianças, ao contrário dos adultos, sabem inventar o mal-assombro e o próprio medo. Sabem que criaturas amedrontadoras podem ser criadas pela imaginação. As crianças brincam de temer, de criar o medo, de assustar-se, enquanto o adulto não brinca com essas coisas de Demônio. No caso dos adultos, em relação aos mal-assombros, o lugar da imaginação é restrito. Eles sabem muito bem que o mal existe e ponto final. Eles sabem que o Demônio é real e, por isso, a alma de um morto, sendo um enviado dele, amedronta tanto quanto o próprio. Não passa pela cabeça de um adulto brincar de inventar o medo. É divertido fazer os outros terem medo, mas sentir medo não é nada engraçado. O medo é coisa séria para um adulto: ele não brinca de se assustar. Os adultos inventam histórias de mal-assombro para assustar os outros – principalmente, as crianças – e muitas vezes, acabam eles mesmos assustados. A diferença em relação à criança é que ela brinca de inventar mal-assombros, ou seja, brinca de assustar-se, enquanto os adultos brincam de fazer os outros terem medo. As crianças sabem que o Supapo existe na TV, existe nas -brincadeiras, existe na imaginação. Mas a TV, a imaginação, os sonhos que se tem dormindo constituem, para a criança, parte do mundo real. As crianças sabem que podem criar um mal-assombro com o corpo do Esqueleto, o nariz da Bruxa, os olhos da Cuca e os cabelos de arame da Maria Fulozinha, com o auxílio de um lápis e uma folha de papel. Depois de criar este mal-assombro, a criança pode afirmar que ontem à noite ele correu atrás dela perto da porta do cemitério. Provavelmente, esta criança nunca andou pelos lados do cemitério à noite. Mas, para a criança, um simples desenho ou a palavra proferida faz realidade, como num passe de mágica. Para a criança pequena, o desenho não representa um mal-assombro; é o mal-assombro. Uma vez, durante o trabalho de campo, uma criança desenhou um monstro-mal-assombro dizendo-me que já o tinha visto. Perguntei onde ela tinha visto aquele mal-assombro, ao que ela respondeu que ali não existia monstro. Indaguei: “E como foi que você já viu um?” E ela respondeu: “Eu desenhei!” Outras crianças também me disseram já terem visto mal-assombros e, quando pedia para explicar melhor, elas contavamme um sonho. Não deixa de ser interessante constatar que, para o adulto, alguns sonhos também comportam níveis de realidade, como o sonho da botija ou o sonho da visita de uma alma querida.

Se esses mal-assombros são criados facilmente, eles também podem ser destruídos com a mesma facilidade. Por isso, as crianças pequenas não demonstram tanto medo dos mal-assombros, uma vez que, em relação a elas, os malassombros gozam de agência relativa. Sua agência é relativa porque é dividida com a própria criança, que tem o poder de criá-lo e destruí-lo, a bem da brincadeira e da diversão. Ao contrário, para o adulto, o mal-assombro tem agência absoluta, na medida em que é regulado por uma entidade religiosa. É esta entidade, em si mesma, a responsável pela sua aparição e pelos seus assombramentos. Aos adultos não cabe mais que “se pegar com Deus” para que eles não lhes apareçam. Se eles quiserem aparecer, não há muito mais o que se fazer a fim de evitar a “visita”. Por isso, parece ser possível afirmar que se teme mais os mal-assombros quando se é adulto, porque eles são vistos como seres com agência total – ao passo que, para as crianças, os mal-assombros dependem, em grande medida, da sua imaginação para existirem.

De toda forma, não estou afirmando que o medo que a criança cria não seja real. A imaginação infantil é capaz de criar muitos mal-assombros e, ao mesmo tempo, é capaz de destruí-los. Alternativamente, poderíamos pensar, a partir de Gregory Bateson (2000 [1972]: 271-278), que a criança estabelece uma perspectiva mais positiva em relação aos “duplos vínculos” (para uma análise do conceito de “duplo vínculo” e discurso religioso, veja-se Velho 2007). Para ela, o medo pode ser, ao mesmo tempo, inventado e real. A figura do malassombro pode ser, simultaneamente, fascinante e terrível. Percebe-se que, de maneira geral, as crianças têm uma atitude subversiva em relação a algumas antinomias da sociedade adulta. Para elas, a imaginação cria realidade, o desenho e o sonho são reais, o medo e o fascínio andam juntos. É preciso afirmar, no entanto, que o jogo de evitação e aproximação em relação aos malassombros é praticado com deleite pelas crianças. Um adolescente de quinze anos de idade escreveu ao final de uma redação sobre os mal-assombros: “Vou confessar: gostaria de ver esse monstrengo! E você?” (ELB.15.M) As crianças mais corajosas, geralmente as mais velhas, divertem-se a chamar as entidades pelo nome a fim de fazer medo às outras crianças. Brincar de fazer medo, principalmente se a noite se aproxima ou quando se está em lugares ermos, é uma das brincadeiras preferidas das crianças. Nestes ambientes, as estórias sobre os mal-assombros surgem como que naturalmente. Entretanto, no decorrer do jogo, até a criança que o começou está com medo. Esse tipo de jogo do medo ocorre também entre adultos, principalmente jovens. Como no caso dos fe(i)tiches (Latour 2002 [1996]), apesar de terem sido inventadas, as entidades exercem influência sobre aqueles que as inventaram.

Ao contrário, não passa pela cabeça do adulto inventar um Demônio. O Demônio é algo que “está lá”, tem vida própria, existe. Na visão de um adulto, ele existe em si mesmo e não depende da imaginação dos homens para agir em toda a sua potência. Em outras palavras, as crianças operam com uma variedade incrível de mal-assombros e, ao mesmo tempo, podem destruir todos eles. Os adultos, por sua vez, acreditam em apenas um tipo de mal-assombro, mas não o concebem como sua criatura, sua invenção. Para os adultos, a alma dos mortos e o Demônio têm agência independente da vontade dos humanos. É isso que os torna realmente assustadores. Em outras palavras, em relação aos mal-assombros, as crianças têm agência; já os adultos, são passivos. Desse modo, entendemos que o medo dos mal-assombros seja muito mais substancial na idade adulta e para as crianças maiores de dez anos de idade.

Os números apresentados – que mostram que o temor dos mal-assombros é mais substancial quando se é adulto – corroboram outras evidências do trabalho de campo. Tentei computar o número das crianças que afirmam terem tido contato direto com mal-assombros. Os dados são os seguintes: aos três anos, 12%; aos quatro anos, 17%; aos cinco anos, 23%; aos seis anos, 32%; aos sete anos, 50%; aos oito anos, 25%; aos nove anos, 40%; aos dez anos, 72%; aos onze anos, 93%; aos doze anos, 94%; aos treze anos, 91%. Se conferirmos os dados das pessoas acima de catorze anos de idade, o número de pessoas que tiveram contato com mal-assombro atinge a marca dos 100%. Para todas as idades pesquisadas, ter visto um mal-assombro é um dos elementos mais ressaltados, junto com o medo desses mal-assombros. É interessante notar que o medo dos mal-assombros também aumenta paralelamente ao número dos que tiveram contato com eles, à medida que a criança cresce. Quanto mais velha a criança, mais contatos com os mal-assombros são afirmados e, por sua vez, mais medo parece haver. O número de crianças que afirmam terem tido contato com os mal-assombros ultrapassa os 90% aos onze anos de idade e chega aos 100% depois dos catorze anos de idade. É interessante notar que as crianças maiores dizem terem visto mais mal-assombros que as crianças menores – ao contrário do que se poderia pensar, uma vez que às crianças menores é imputada uma imaginação mais fértil.

Se pensarmos no caso dos adultos, um número muito expressivo de pessoas demonstra medo dos mal-assombros. São os adultos e, freqüentemente, os idosos, aqueles que têm mais estórias para contar sobre os mal-assombros. Esta competência lhes é reconhecida pela comunidade. Ao falar sobre as estórias dos mal-assombros, as pessoas constantemente acrescentam que “os mais velhos” são os maiores especialistas no assunto – como na redação de uma adolescente de quinze anos de idade, cujo título era “Os fantasmas”:

Eu nunca vi mas muitas pessoas dizem que já viram. Claro que eu não acredito, mas o povo mais velho conta muita história que deixa a pessoa apavorada. […] Quando falta energia fica tudo batendo, eu fico imaginando que pode ser fantasma. Eu nunca quero ver, porque não tenho coragem suficiente [MCNC.15.F].

Além disso, são “os mais velhos” que sabem como melhor proceder no caso da aparição de um mal-assombro. Uma menina de doze anos (L.12.F) uma vez indagou-me porque não ia à sua casa conversar com a sua mãe sobre os mal-assombros. Ela não entendia o motivo pelo qual eu priorizava a sua versão dos fatos, já que, na sua opinião, os seus pais entendiam muito mais do assunto do que ela própria.

Desta forma, fica claro que o mal-assombro não é assunto apenas de crianças ou dos adultos, mas é um assunto no qual toda a comunidade está implicada. Mas, como sugeri anteriormente, os mal-assombros enquanto almas dizem respeito principalmente aos adultos. Margaret Mead (1932) afirma que, entre os manu, a crença nos fantasmas era uma característica da sociedade adulta – e que as crianças não apresentavam. A antropóloga pediu às crianças que desenhassem livremente e constatou que pouquíssimas desenharam fantasmas – o que parecia ir contra a sociedade adulta, na qual os fantasmas constituíam parte significativa das conversas. Naquele contexto, ela afirmou que os fantasmas eram uma pré-condição da sociedade adulta – exatamente ao contrário da sociedade norte-americana, a qual servia como contraponto para a antropóloga. Os mal-assombros alma são, em Catingueira, um apanágio do mundo adulto, uma vez que apenas quando se compreende as antinomias Deus e Diabo, corpo e espírito, bem e mal, é possível compreender os malassombrosalma. Ou seja, só se pode entender o mal-assombro-alma quando se aproxima a idade adulta, porque só aí se dialoga plenamente com o cristianismo. Entretanto, quando não se restringem às almas, os mal-assombros também estão presentes na vida das crianças. A satisfação das crianças em participar da pesquisa mostra muito bem o quanto os malassombros as -interessam. Em Catingueira, os malassombros fazem sentido para as crianças e para os adultos, apesar de existirem diferenças importantes entre as concepções de mal-assombro de uns e de outros.[22]

 

CONCLUSÕES

Analisados todos os desenhos produzidos sob o título “O mal-assombro”, espero ter esclarecido as diferenças entre os adultos e as crianças no que diz respeito à ontologia dos mal-assombros e a sua etiqueta de relação com os vivos. Gostaria de, finalmente, mencionar a relação dos mal-assombros com o sistema de parentesco, problematizando o fato de os mal-assombros também viverem em famílias e habitarem casas. Parece-me interessante ressaltar que, entre as crianças pequenas, há uma larga heterodoxia em relação às concepções de mal-assombro. Além disso, as casas mal-assombradas praticamente não são desenhadas, predominando os tipos de mal-assombros que habitam os cemitérios e os campos – conseqüentemente, aqueles considerados mais horripilantes. Apenas quando a heterodoxia na concepção dos mal-assombros começa a desaparecer temos mal-assombros habitando as casas e mal-assombros considerados como parte da família. Parece haver uma correlação entre a dispersão dos lugares em que os mal-assombros podem aparecer e a heterodoxia nas sua concepção. Se a presença do mal-assombro vai se restringir às casas de parentes, temos um estreitamento que leva em conta – paralelamente às crenças cristãs – a natureza da etiqueta de relação que os vivos estabelecem com os “malassom-bros”, onde o parentesco parece ser um dos elementos primordiais: seres invisíveis que não estão ligados à vivência do cotidiano, passam a ser desacreditados. Os mal-assombros que habitam as casas são almas e, por isso, nunca são tão horríveis quanto os mal-assombros desenhados por crianças pequenas. Além disso, os mal-assombros, enquanto parentes falecidos que habitam a casa onde moravam com a sua família quando em vida, são significantemente menos assustadores. Isso parece sugerir que os laços de parentesco humanizam os mal-assombros, ao passo que a ausência de relação (familiar) dá lugar aos monstros e aos perversos. É possível afirmar que os mal-assombros não relacionados com os vivos por laços de parentesco tendem a ser mais assustadores que os mal-assombros reconhecidos como membros da família. A família e os laços de parentesco parecem desempenhar um papel importantíssimo na definição da ontologia dos assombramentos. Crescer em Catingueira implica em restringir o mundo dos mal-assombros de uma variedade imensa de seres e ocorrências a apenas um tipo de ser – a alma dos mortos – cuja ontologia (ser do mal ou ser do bem) vai ser compreendida, ao fim e ao cabo, pela relação de parentesco que estabeleça com o sujeito que tem a visão.

 

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[1]  Este artigo é uma reelaboração do terceiro capítulo da minha tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional – UFRJ, cujo título é Quem Tem Medo de Mal-assombro? Religião e Infância no Semi-árido Nordestino. Sem as preciosas sugestões dos professores Otávio Velho, Christina Toren, Moacir Palmeira e Luiz Fernando Dias Duarte, que acompanharam a elaboração da tese, este artigo não seria possível.

[2] “Crente” é uma denominação atualmente em desuso nas grandes cidades brasileiras, mas ainda usada nas pequenas localidades para referir-se ao praticante de religiões protestantes e neo-pentecostais.

[3] Ou também chamado de Demônio, Diabo, Maligno, Encardido, Satanás, O das Trevas, Inimigo, Medonho, Bicho. Algumas crianças relutavam em proferir estes nomes, com medo de que o referido lhes aparecesse. Quando as instigava a dizê-lo, fazendo-me de desentendida, elas muitas vezes diziam: “Aquele”, “O que anda pela noite”, “O malvado”.

[4] O conceito de mal-assombro parece conter noções vindas do espiritismo kardecista e do catolicismo, que, segundo Lewgoy (2001), contribuem para a constituição de uma “cultura brasileira”.

[5] Segundo os espíritas kardecistas, a impossibilidade de comunicação entre mortos e vivos é dada pela diferença na evolução moral de uns e outros, e não, como pensam os crentes, pela impossibilidade de comunicação entre o mundo dos vivos e o dos mortos.

[6] Apesar de sonhos, visões de anjos, anúncios de profetas, serem admitidos como possibilidades positivas de relação com o “invisível” entre os crentes, o mesmo parece não poder ser dito em relação à aparição de um familiar já falecido, ou da sua alma, no contexto pesquisado.

[7] Os informantes são identificados da seguinte forma: iniciais do nome, idade, sexo. Para melhor compreender o uso dos desenhos, veja-se Pires (2008).

[8] Jean Delumeau (1996: 95), citando o etnólogo polonês L. Stomma, que trabalhou em seu país com documentos da segunda metade do século XIX, afirma que 38,6% dos casos de mortos transformados em “demônios” ou fantasmas são de crianças mortas antes do batismo. Para maiores detalhes sobre o estatuto das crianças pequenas em Catingueira, veja-se Pires (2007b).

[9] Obviamente, estas práticas se restringem aos católicos e kardecistas.

[10] Na análise dos materiais produzidos pelas crianças, considerei antropomorfos os mal-assombros desenhados segundo a forma do corpo humano ou com alguma característica humana, como cabelo, umbigo ou, por exemplo, usando chapéu. Chamo de “Gaspar” aqueles mal-assombros desenhados a la Gasparzinho, o Fantasminha Camarada, a que também poderíamos chamar de “mal-assombro-lençol”. Alguns mal-assombros são pensados na forma de animais (lobos, cavalos, coelhos, cachorros), ou apenas com características animalescas, como rabos ou orelhas avantajadas. Surgiram ainda casas malassombradas, habitadas ou não por gente, de onde, geralmente, correm as pessoas desesperadas, com medo dos mal-assombros que lá habitam ou que as assombram (os mal-assombros estão muitas vezes flutuando acima das casas e por vezes são pictografados dentro delas). Algumas vezes, os mal-assombros são desenhados com chifres ou dentes de vampiro, pelos quais escorre o sangue da última vítima indefesa do bicho perverso (note-se que o termo “bicho” é usado tanto para o Demônio quanto para os mal-assombros). Também foram desenhadas muitas catacumbas, cemitérios, defuntos e enterros. Por fim, a noite, desenhada com o auxílio da Lua e das estrelas, é o lugar preferido dos mal-assombros – que, muitas vezes, voltam para seu mundo (o outro mundo) quando a manhã vem chegando: “Amanheceu o dia e o fantasma foi embora” (LM.7.F).

[11] Neste caso, taxa de aparição de mal-assombro refere-se aos lugares onde as pessoas, segundo as diferentes idades, afirmam terem visto mal-assombros.

[12] Poderíamos sugerir também que a cozinha é o lugar por excelência da mulher, assim como o muro (quintal), enquanto a sala seria o lugar por excelência da esfera do masculino – entre outras coisas porque os produtos do roçado, cultivado geralmente pelo pai de família, ali estão colocados. Veja-se Heredia (1979: 89-97) para considerações sobre a casa na área da zona da mata pernambucana; veja-se também Bourdieu (1970) para uma análise socioantropológica da casa kabila; veja-se Da Matta (1991) para reflexões sobre a casa e a rua.

[13] Por exemplo, carne de porco e coco, alimentos utilizados nos sacrifícios em honra dos ancestrais e altamente apreciados pelos vivos (Keesing 1982).

[14] Há uma abundante, embora recente, literatura sobre os conceitos infantis sobre a vida após a morte a partir de uma perspectiva interdisciplinar da ciência cognitiva da religião (psicologia, lingüística, antropologia, biologia). Em um destes textos, Bering (2003: 246) se pergunta: “[…] what is a ghost but an invisible dead person with a mind?” Segundo o mesmo, a teoria de Pascal Boyer “[…] holds unequivocally that ghosts should be no different than living people when it comes to basic psychological functioning, at least as they are represented in human minds” (Bering 2002: 267). Boyer discorre sobre os fantasmas: “The concept [ghost] is that of a person who has counterintuitive physical properties. Unlike other persons, ghosts can go through solid objetcs like walls. But notice that apart from this ability, ghosts follow very stricly the ordinary intuitive concept of PERSON” (2001:;73).

[15] Estes mal-assombros, alguns parte da encantaria brasileira, não serão trabalhados neste artigo por falta de espaço. No entanto, sugiro a consulta de Pires (2007a: Anexo) para uma discussão e descrição dos mesmos.

[16] É interessante chamar a atenção para a diversidade de opiniões, mas é importante ressaltar como pano de fundo uma cognição comum, como explora Otávio Velho no texto «O cativeiro da Besta-Fera» (1995: 13-43).

[17] O fato não parece ser uma particularidade do campo de estudos com que trabalho. Como afirma Bering (2002: 269), “[…] counterintuitive concept categories such as those dealing with afterlife beliefs would spontaneously happen to appear in nearly all societies […]”. Neste caso, por “counterintuitive concept categories” o autor refere-se ao fato da atribuição de funções mentais mesmo depois da morte. Bering e Bjorklund lembram que adolescentes e adultos lotam os cinemas quando o tema dos filmes é espíritos ou fantasmas (2004: 218).

[18] Apesar de não trabalharem com o conceito de alma, Bering (2002; 2003), Bering e Bjorklund (2004), Harris e Giménez (2005), Astuti (2007), Astuti e Harris (2008), pesquisam como as crianças concebem a continuidade ou a cessação das atividades biológicas, psicológicas e perceptuais das pessoas após a morte a partir da perspectiva da ciência cognitiva da religião.

[19] Gostaria de fazer uma nota para deixar claro que não pressuponho nenhuma infantilidade cognitiva por parte dos adultos de Catingueira; de fato, realidade ou ficção, como ferramentas analíticas, não me parecem úteis para pensar os mal-assombros, apesar de serem conceitos trabalhados pelos nativos.

[20] Como afirmei, tudo isso não é válido no caso dos crentes porque, para estes, mesmo que a alma apresente-se sob o aspecto de uma pessoa conhecida, isso não corresponde à sua verdadeira identidade. Para os espíritas, diferentemente, as almas vêm do outro mundo para serem doutrinadas ou para transmitir ensinamentos; dessa forma, não se deve temê-las.

[21] Foram coligidos de maneira não intencional. Fiz essa parte da coleta dos dados nas escolas da cidade. Devido às altas taxas de repetência escolar, na turma de oitava série encontrei um número elevado de pessoas acima de treze anos de idade, cujos trabalhos foram úteis como termo de comparação.

[22] Existe uma vasta literatura sobre a compreensão da morte pela criança. A grande maioria destes estudos compara o entendimento infantil da morte a partir do pressuposto de que o entendimento maduro e adulto passa pela afirmação da sua irreversibilidade: isto é, um morto não pode voltar a viver. Brent e Speece (1993) indagam-se se os adultos realmente pensam assim, e mostram que o pressuposto de que eles acreditam que a morte é irreversível é falso. De fato, o resultado da pesquisa mostra que os adultos falharam em afirmar a irreversibilidade da morte com níveis mais altos que as crianças: 44% dos adultos e 69% das crianças afirmaram a irreversibilidade da morte (Brent e Speece 1993: 207).

 

Flávia Pires, Universidade Federal da Paraíba (Brazil); CER – Pierre Sanchis FAFICH/UFMG (Brazil); Centre for Child-Focused Anthropological Research (C-FAR), Brunel University (UK) ffp23279@gmail.com

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