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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica v.12 n.1 Lisboa maio 2008

 

Nélia Dias

La Mesure des Sens: Les Anthropologues et le Corps Humain au XIXéme siècle

Paris, Aubier, 2004, 357 páginas.

 

O estudo de Nélia Dias, que pretendo aqui apresentar, sendo um trabalho lucidamente empírico, coloca-nos perante um problema teórico que me parece de extrema dificuldade e para o qual as respostas são quase sempre lacunares e insuficientes. De algum modo, este problema está subjacente a uma parte importante do pensamento social e político desde Thomas Hobbes, pelo menos. Trata-se de pensar as recursividades e analogias de natureza epistémica e política entre o corpo individual e o corpo colectivo. Ou, de outro modo, de que forma é que o conhecimento e práticas dos lugares do corpo se traduzem politicamente. Assim, não é por acaso que este transporte faz de Thomas Hobbes o “primeiro sociobiólogo”, como reclama o filósofo cognitivista e darwiniano Daniel Dennett em Darwin’s Dangerous Idea (1995: 453). Porque em Thomas Hobbes há um apelo a uma teoria naturalista acerca da moral e, concomitantemente, uma translação de sentido político que faz de uma sociedade o resultado de tal declinação naturalista. Esta pretensão é certamente um dos aspectos mais insistentes da modernidade: uma vontade política que assume que conhecer é poder ou, ainda, que aquilo que é – essa ordem factual em que se abastece o mundo e que cumpre a um estilo de pensamento e suas extensões exumar – regulará imperiosamente o deve, isto é, o modo de gerir indivíduos e colectivos de indivíduos. Tudo isto faz supor que a relação entre conhecimento e regulação é inegociável e que devemos deixar os modos de regulação da pólis nas mãos dos especialistas, dos sacerdotes do templo, isto é, dos sábios ou, se quisermos, de um certo tipo de sábios: os cientistas. São eles que sabem o que é, logo é através deles que devemos regular o que deve ser no plano ético-moral e no plano político.

Não resisto aqui a citar Thomas ­Hobbes e o seu Leviathan no original: “Reason is the pace; Encrease of Science, the way; and the Benefit of man-kind, the end” (1981 [1651], Parte I, cap. 5, pp. 21-22).

É tendo em conta esta tendência moderna que não nos abandonou ainda e que certamente não nos irá abandonar tão cedo (apesar dos seus acentos trágicos que a história do século XX, em particular, denuncia de forma impiedosamente ímpar), que o livro de Nélia Dias deverá ser lido, porque a investigadora mostra-nos um dos modos em que isto se desdobrou num determinado contexto cultural e científico do século XIX: a França da segunda metade desse século. Mostra-nos também como esta pulsão moderna não admitiria a ambiguidade da sua consagração metafórica – esse enlace analógico e impreciso entre corpo individual e corpo político – e que toda a ambiguidade teria de ser expurgada do sistema através de uma estratégia rigorosamente localizadora e especificadora. Como?

O livro é uma análise sincrónica de um domínio discursivo específico. Trata-se de mostrar como a segunda metade do século XIX assistiu a um denodado exame dos órgãos dos sentidos em que se impunha fundamentalmente realizar uma topobiologia dos sentidos. Estamos perante uma espacialização e hierarquização no corpo de uma ordem sensorial. Como explicita Nélia Dias, o exame dos sentidos e da hierarquia em que se fundam articula-se discursivamente com uma matriz de oposições politicamente significativas que demonstram, justamente, a recursividade entre corpo individual e corpo colectivo. Assim, a partição entre hemisférios esquerdo e direito do cérebro desdobrava-se numa assimetria de faculdades e atribuições: razão/instinto, cor azul/cor vermelha, homem/animal, civilizado/primitivo, homem/mulher. Dir-se-ia que estamos perante um episódio clássico em que a topobiologia faz supor ou traduz todo um conjunto de aproximações analógicas entre diversos domínios que vão da classificação sensorial à taxonomia racial e à estratificação social. O livro de Nélia Dias demonstra-nos a extrema capilaridade entre discursos científicos e políticos numa certa concepção de modernidade que, à partida, parece reclamar a autonomia de tais esferas. Daí que, metodologicamente, o universo de domínios discursivos relevantes seja vastíssimo: antropologia, fisiologia, psicologia, filosofia, medicina e literatura assumem aqui uma importância decisiva na produção do argumento. Mais uma vez estamos perante uma leitura impressiva da ­hibridez fundamental da modernidade. Algo que aproxima Nélia Dias de Bruno Latour (1997 [1991]) e, de modo muito específico (dado o alcance da sua análise e a natureza dos materiais em que tal análise se abastece), de Anne Harrington (1987).

Se este é o eixo maior de articulação em que o trabalho de Nélia Dias se define, paralelamente este trânsito entre a topobiologia e a representação do corpo social e político foi um projecto que solicitou todo um conjunto de estratégias e de reflexões epistemológicas que apaixonaram os especialistas da época. De outro modo, poder-se-ia dizer que esta cartografia de alguns dos veios, em que se abasteceram os discursos antropológicos oitocentistas sobre os sentidos, define também a perturbação que os atravessava: a perturbação por um certo “perspectivismo” ou consciência dele que se prende afinal com os “modos de ver” e sua radical alteridade; a perturbação face às diferenciais aquisições cognitivas que mecanismos anatomo-fisiológicos descritos como diferentes (e a diferença aqui poderia ser enunciada como do domínio do patológico ou teratológico) evidenciavam; a perturbação face à possibilidade de o conhecimento verdadeiro ser função de uma ordem sensorial que teria de ser precisada e defendida a todo o custo. Precisar e defender a epistemologia seria também, e concomitantemente, um modo de precisar e defender uma certa concepção de sociedade.

Estamos aqui perante um problema que se prende, evidentemente, com algumas das formulações de Michel Foucault. Aliás, La Mesure des Sens é uma hábil incursão em terri­tório foucauldiano. Aí, para lá da centra­lidade da noção de “discurso”, impõem-se as noções de “anotomo-política do corpo humano” e de “biopolítica das populações” que Foucault irá articular no volume metodo­lógico da sua História da Sexualidade, isto é, em A Vontade de Saber (1994 [1976]: 141-47). O conhecimento do corpo-máquina torna-se uma plataforma a partir da qual a ordem social e demográfica poderá ser cabalmente aferida. Ou seja, Nélia Dias mostra-nos não apenas as modalidades em que se desdobrava este conhecimento ou o ­conjunto de séries ­discursivas em que o mesmo se instalava, mas também a relação diagramática que estes conhecimentos ou séries estabeleciam estrategicamente uns com os outros para produzir uma configuração política – uma forma de “poder-saber” (id.: 145) – acerca do corpo-espécie e suas derivas, que era assim espacializado e articulado de acordo com definições de identidade colectiva. Veja-se, a este propósito, o que Nélia Dias escreve acerca da constituição do Estado num capítulo que destaca a biopolítica das ordens sensoriais e sua tradução estatística e cartográfica (capítulo 9 de La Mesure des Sens: pp. 263-80).

O que está aqui em causa é o trânsito entre o corpo individual e o corpo político. Que tipo de efeitos e de metáforas regem a sua constituição mútua, num mundo onde as metáforas se encontram permanentemente sob suspeita?

A identificar alguns dos fluxos metafóricos na produção do corpo político, ­desta­caria aqui o modo como Nélia Dias nos descreve as formas de representação dosistema nervoso e as suas continuidades e contiguidades com as formas de representação do sistema político.  Socorrendo-se de Hyppolite Taine, escreve a autora de La Mesure des Sens:

A analogia entre sistema nervoso e sistema político está também presente em Taine. A descrição figurada que o filósofo dá do sistema nervoso, com os seus ministérios e os seus centros locais, é à imagem de uma burocracia centralizada, composta de uma “hierarquia de funcionários”; longe de ser uma “república de iguais”, cada centro local detém uma certa autonomia, sendo dado que “o sistema de centros nervosos na medula e no encéfalo se assemelha ao sistema de poderes administrativos num Estado” (...). E adianta, a propósito de trinta e um centros espinais, que “são outras tantas prefeituras subordinadas a um ministério que assentam na medula alongada. Cada um destes centros tem o seu departamento ou território próprio; nele recebe as informações pelos seus nervos sensíveis; aí dá as ordens pelos seus nervos motores”. O primeiro ministério “ocupa toda a medula alongada, isto é o bolbo, a protuberância e talvez os começos dos pedúnculos cerebrais. (...) Há vários andares sobrepostos, repartições sensíveis de diversas espécies, repartições motoras, comunicações que ligam estas repartições entre elas e que se ligam elas próprias a superiores hierárquicos, seja para transmitirem informações, seja para receberem ordens. Segue-se em seguida e sobre a medula, o ministério supremo. (...) Além das informações que lhe transmite a medula alongada, ele recebe as instruções que trazem os dois primeiros pares de nervos cranianos, olfativos e ópticos; deste modo todas as impressões sensíveis se reúnem nestas repartições, e, além disso, através da medula alongada, envia impulsos para todos os nervos motores. Sobre ele, na cobertura cerebral, instala-se o soberano”. (...)  Encontramos em Taine todo um sistema de correspondências – o soberano/a cobertura cerebral, o primeiro ministério/a medula alongada, os departamentos e prefeituras/os centros espinais – o que não é fortuito quando conhecemos a admiração que votava à monarquia inglesa e a sua hostilidade à democracia plebiscitária(pp. 286-7).

Um dos modos de captarmos esta capilaridade entre corpo individual e corpo colectivo ou de percebermos como é que a anatomo-política do corpo humano e a biopolítica das populações se constituem mutuamente, nada melhor do que seguir o percurso das metáforas, parece querer dizer-nos Nélia Dias, numa estratégia que a aproxima de Hans Blumenberg (1997).  O corpo é não somente uma cidade, neste contexto. Ele é, e à luz do conhecimento produzido acerca do sistema nervoso, uma cidade que comunica – algo que a analogia entre o sistema nervoso e o telégrafo parece acentuar (ver pp. 288-90). A civilização faz supor assim que a cidade passou a habitar o corpo e que a transitividade controlada entre a tópica do corpo e a tópica da cidade se tornou um dos esquemas cognitivamente mais recorrentes. Se os modos de descrever e representar o corpo podem alimentar os modos de descrever e representar a cidade, e vice-versa, dir-se-ia também que é neste trânsito que emerge a acção ou, se quisermos, é dentro deste mecanismo de constituição mútua que as práticas e os modos de agir se tornam visíveis. Estou aqui a lembrar-me muito soltamente daquilo que nos diz Ian Hacking sobre isto: novos modos de representar e criar o real potenciam modos novos de agir (1994). Em suma, as represen­tações são sedutoras, eficazes e, porventura, perigosas, porque estabelecem relações insuspeitas entre elas que, em última análise, fertilizam e modulam as acções ­humanas.

 

 

Outras referências:

Blumenberg, Hans, 1997, Shipwreck with Spectator: Paradigm for a Metaphor for Existence. ­Cambridge, Massachusetts, Londres, The MIT Press.

Dennett, Daniel, 1995, Darwin’s Dangerous Idea: Evolution and the Meanings of Life. Londres, Penguin.

Foucault, Michel, 1994 [1976], História da Sexualidade I : A Vontade de Saber. Lisboa, Relógio D’Água.

Hacking, Ian, 1994, “The looping effects of human kinds”, em Dan Sperber, et al. (ed.). Causal Cognition: a Multidisciplinary Approach. Oxford, Clarendon Press, pp. 351-83.

Harrington, Anne, 1987, Medicine, Mind, and the Double Brain. Princeton, NJ, Princeton University Press.

Hobbes, Thomas, 1981 [1651], Leviathan. Londres, Penguin.

Latour, Bruno, 1997 [1991], Nous n’Avons Jamais Été Modernes: Essai d’Anthropologie Symétrique. Paris, Éditions La Découverte.

 

 

Luís Quintais

Depart.º de Antropologia / Univ. de Coimbra

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