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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica v.11 n.1 Lisboa maio 2007

 

Luís Cunha

Memória Social em Campo Maior

Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2006.

 

Esta obra, que corresponde à edição de uma tese de doutoramento em Antropologia, parte de um trabalho de campo realizado em Campo Maior entre Dezembro de 1997 e Outubro de 1998. A data de realização deste terreno deve ser retida por coincidir com um momento charneira na raia luso-espanhola. Por ter decorrido poucos anos após a abertura da fronteira, esta pesquisa implicou uma reflexão sobre o seu impacto nos processos de construção da memória e identidade colectiva, mas permitiu ainda a colecção de um conjunto significativo de testemunhos orais que viabilizaram o tratamento da memória da Guerra Civil de Espanha num capítulo autónomo. Por outro lado, este terreno situa-se num momento de detonação da produção antropológica sobre a fronteira luso-espanhola.

Memória Social em Campo Maior alicerça-se sobre uma análise dos processos de articulação entre memória, espaço e tempo potenciados pela fronteira. Dividindo-se em seis capítulos, nos primeiros três são abordadas questões metodológicas, categorias analíticas como tempo, espaço, memória e fronteira, bem como a especificidade da fronteira em Campo Maior e das culturas de fronteira. São, contudo, os capítulos seguintes que merecem relevo, uma vez que é neles que tem lugar o tratamento de espaço, tempo e memória enquanto objectos empíricos.

No capítulo 4, intitulado “Espaços, práticas e representações. A memória e a sua recomposição”, Luís Cunha procede à análise dos modos de inscrição da memória no espaço e no tempo. No espaço, através do mapeamento dos lugares de memória em Campo Maior e da sua análise enquanto signos que remetem para valores específicos ou para clivagens sociais. No que concerne ao tempo, com base nos discursos dos seus informantes, o autor distingue dois tempos: o tempo do “antes”, marcado pelo domínio de grandes proprietários rurais – com Dr. Gama à cabeça, o mais proeminente latifundiário da vila – vs o tempo do “agora”, marcado pelo poder dos industriais da torrefacção do café – emblematizado por Rui Nabeiro, que controla agora as regras de acesso ao trabalho ao empregar “mais de 50% da força produtiva do concelho” (p. 143). A sucessão destes dois “senhores da vila” consiste assim na substituição de uma elite de latifundiários por uma elite de industriais descendentes de contrabandistas, substituição esta que pode ser lida como o “desagravo dos humildes sobre os poderosos” (p. 327), e que concorre para a imagem de herói que Rui Nabeiro adquiriu nesta vila. Neste capítulo deve ser destacada a evocação do patrocinato feita pelo autor. Possivelmente não caberia no âmbito desta obra uma análise mais detalhada do patrocinato, contudo revelar-se-ia seguramente fecunda.

O capítulo 5, dedicado à memória do contrabando, não tendo a pretensão de traçar o longo itinerário desta actividade, refere alguns aspectos que se prendem com o estabelecimento, evolução e policia­mento de barreiras alfandegárias, focalizando a fronteira enquanto espaço de oportunidade para as populações que nela vivem e o contrabando como “a seiva que alimentou a relação” (p. 171) entre os vizinhos dos dois lados da raia. Desvendando as lógicas de organização desta actividade em Campo Maior, são estabelecidos dois marcos de mudança nos processos de organização desta actividade: 1) no fim da II Guerra Mundial, o café torna-se a mercadoria mais contrabandeada, uniformizam-se as práticas e assalaria-se a mão-de-obra; 2) na década de 70, o transporte ilegal de café para Espanha passa a ser feito em camiões, diminuindo assim o número de homens mplicados no contrabando.

Nesta análise da memória do contrabando em Campo Maior, são destacados pelo autor alguns aspectos que devem ser valorizados. Tanto a codificação dos modos de narrar o contrabando, que lhes imprime um carácter consensual, exacerbando as dimensões de aventura e estratégia, quanto a permanente avaliação moral do comportamento de autoridades e de contrabandistas face à ausência de avaliação moral da actividade em si, resulta, segundo o autor, do facto do contrabando ter adquirido uma “legitimidade simbólica” com a abertura das fronteiras e com o êxito da indústria de torrefacção de café gerada pelo contrabando.

Estabelecendo um paralelo entre a proposta de análise elaborada por Comas d’Argemir sobre o tabaco contrabandeado em Andorra, enquanto facto social total (Comas d’Argemir, 1999), Luís Cunha afirma: “devemos sublinhar que também em Campo Maior o café se constitui como ‘facto social total’, quer dizer, elemento articulador de várias dimensões sociais locais, desde a política à economia, entroncando nele também referenciais identitários, tão significativos na vila como o clube de futebol ou as Festas do Povo” (p. 239).

Ao contrário da consensual memória do contrabando, a memória da Guerra Civil de Espanha, tratada no 6.º e último capítulo, surge dicotomizada pela clivagem social, não sendo a sua evocação tão espontânea, uma vez que remete para um universo de silêncio e trauma. O núcleo da memória da Guerra consiste na memória sobre os refugiados que, como refere o autor “eram a própria guerra entrando no quotidiano da vila” (p. 259). Muitos destes refugiados, que começaram a chegar a Campo Maior em Agosto de 1936 na sequência dos acontecimentos de Badajoz, foram presos pelas autoridades portuguesas e concentrados na prisão da vila e nos celeiros da Federação de Produtores de Trigo. Muitos deles terão sido entregues às forças nacionalistas e executados.

À invisibilidade decorrente da situação de clandestinidade das pessoas que fugiram de Espanha por razões políticas e que conseguiram permanecer em Campo Maior escondidas em sótãos ou abrigos para animais, contrapõe-se a visibilidade de um contingente de pessoas que diariamente atravessava a fronteira em busca de alimentos. A miséria extrema destas pessoas, o grupo de Duro refugiado em Referta de Ouguela, os bombardeamentos de Badajoz, os fuzilamentos na praça de touros, a que assistiram portugueses, a violência do exército de África, a polarização ricos vs pobres, constituem alguns dos temas centrais da memória da Guerra trabalhada pelo autor.

O funcionamento da memória sobre a Guerra Civil de Espanha não constitui o tema central desta obra. O autor assume, de resto, o “carácter fragmentário” do capítulo, bem como a sua renúncia “ao desejo de uma abordagem mais profunda” (p. 254). Todavia, o tratamento de alguns dos temas acima referidos teria ganho com uma recolha mais exaustiva de testemunhos e com a consulta de outro tipo de materiais. No que concerne, por exemplo, à análise da memória sobre o grupo de Duro, adjectivado de “abusador” e “cruel”, teria sido oportuno investigar a hipótese de esta adjectivação negativa poder decorrer de processos de silenciamento e revisionismo impostos de fora (veja-se, sobre este assunto, AA.VV., 2004, O Cambedo da Raia. Solidariedade galego-portuguesa Silenciada. Asociación Amigos da República).

Defendendo que “aquilo que hoje distingue comunidades de fronteira como Campo Maior, não são já as referências culturais do presente, mas aquelas que a memória produz” (p. 319), Memória Social em Campo Maior constitui um valioso contributo para o conhecimento da fronteira luso-espanhola, provando a persistência e reafirmação da fronteira através da memória.

 

Eduarda Rovisco

Centro de Estudos de Antropologia Social (ISCTE)

Bolseira da FCT

 

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