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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica v.10 n.1 Lisboa maio 2006

 

JOSÉ MACHADO PAIS, JOAQUIM PAIS DE BRITO E MÁRIO VIEIRA DE CARVALHO (COORDS.)

SONORIDADES LUSO-AFRO-BRASILEIRAS

Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2005

 

Resultado de um esforço de escuta transdisciplinar que passou pela cooperação entre diferentes e diversas instituições, o volume Sonoridades Luso-Afro-Brasileiras é uma obra polifónica interpretada por vinte executantes convidados a participar no colóquio internacional com o título homónimo organizado pelo ICS em 2003. Na Introdução ao livro, José Machado Pais desvela ao leitor alguns dos episódios que estiveram na origem desta iniciativa, que contou com a colaboração de instituições como o Chapitô, o Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (CESEM) e o Museu de Etnologia. O referido colóquio “teve um principal objectivo: o de promover a produção de novos conhecimentos sobre os entrecruzamentos e redes de influências musicais no espaço luso-afro-brasileiro” (p. 17).

Machado Pais introduz as várias contribuições de uma forma que muito ajuda o leitor a situar e a seleccionar leituras em função dos seus interesses e curiosidade. O leitor é convidado a empreender uma viagem no tempo e no espaço que o próprio alinhamento dos artigos procura, embora só até certo ponto, respeitar. Temporalmente esta viagem começa em Abril de 1500, data a que somos conduzidos por Régis Duprat, que faz uma análise das representações e descrições das sonoridades na Carta de Pêro Vaz de Caminha e reflecte sobre o papel dos Jesuítas na efectivação do “sincretismo etno-musical ” que a “condição colonizadora exigirᔠ(p. 34). No final do volume, a viagem termina com a apresentação de uma ferramenta informática desenvolvida no CESEM, que permite a investigação em rede por parte de cientistas e especialistas interessados nos estudos musicais situados dentro do “espaço lusófono” (p. 337). Esta derradeira contribuição de Mário Vieira de Carvalho revela-se afinal um falso cais de chegada, já que, como é sublinhado na introdução, “abre um enorme portão à investigação das auto-estradas da informação que se encontram disponíveis na Internet” (p. 26).

Há poucas marcas editoriais na organização dos capítulos. A organização sequencial das contribuições tende ora a agrupar estudos sobre um mesmo contexto — como no conjunto inicial de textos sobre o Brasil ou na série de três contribuições sobre a cultura e as práticas musicais caipiras — ora a reunir investigações pela filiação disciplinar dos seus autores — como no caso das quatro contribuições da área da antropologia apresentadas sequencialmente na parte final do volume. A pluralidade disciplinar, de pontos de vista, de escalas de análise e de metodologias torna bastante complexa a tarefa de situar com a devida amplitude todos os contributos que a obra inclui. Aqui ficam algumas notas de leitura que, por razões de espaço, não abrangem todos os artigos.

O Brasil é o território mais ouvido, percorrido e analisado ao longo do livro: dez das dezanove contribuições dizem respeito ao país das danças da umbigada e do samba; a “cultura caipira”, em particular, com a sua linguagem, práticas musicais e instrumentos (a viola caipira) constitui um núcleo importante, com três artigos. Os primeiros capítulos do livro transportam o leitor para o período colonial e pré-colonial brasileiro: à já referida contribuição de Régis Duprat (“Sonoridades Luso-Brasileiras na Carta de Caminha: A Visão do Paraíso e o Triunfo do Inferno”) segue-se uma série de três estudos sobre a vida e a obra de três compositores. Rubens Ricciardi traça uma biografia do compositor de Minas Gerais Florêncio José Ferreira Coutinho (ca. 1749-1819) e faz uma análise da sua composição Sexta-Feira Maior. Diósnio Machado Neto faz uma análise do esquema harmónico da Ladainha de Nossa Senhora do compositor Faustino Xavier do Prado (1708-1800), cuja biografia é também exposta. António Jorge Marques analisa o esquecimento e perda a que parece ter sido votada a obra do importante compositor português Marcos Portugal (1762-1830), que viajou para o Brasil em 1811 para se juntar à corte por exigência de D. João e acabou por aí permanecer até à sua morte, não acompanhando o regresso da corte a Portugal. O autor interroga as razões que terão levado o rei no exílio a chamar o seu compositor favorito, bem como as que terão levado Marcos a permanecer em terras do Brasil após 1822. Estes contributos de musicologia histórica ajudam a perceber as influências e os “tráficos culturais” estabelecidos entre os dois lados do atlântico no domínio da música erudita, e de modo especial da música sacra, ao longo deste período (há um volume inteiramente dedicado a este assunto — A Música no Brasil Colonial, coordenado por Rui Vieira Nery, publicado pela Fundação Calouste Gulbenkian em 2001).

Saindo do domínio mais especializado do estudo biográfico, mas mantendo-se no mesmo registo da investigação histórica no domínio musicológico, as contribuições de Maria Alice Volpe (“Representações Musicais do IV Centenário do Descobrimento do Brasil”) e Salloma Salomão Jovino da Silva (“Marimbas de Debret: Presença Musical Africana na Iconografia Musical Oitocentista”) interrogam, a partir de diferentes perspectivas, o estatuto da música e das sonoridades enquanto formas de representação cultural. Os dilemas sobre as escolhas das obras e dos géneros musicais que deveriam integrar as comemorações do IV Centenário do Descobrimento do Brasil são o tema do texto de Maria Alice Volpe. A análise das obras encomendadas e programadas no âmbito das comemorações dão a perceber como a música e os géneros musicais veiculam narrativas e representações (divergentes) da identidade nacional brasileira “que se articulam no bojo de uma nova era política brasileira instalada pelo regime republicano” (p. 98). Salloma Salomão parte de um corpus de iconografia brasileira oitocentista e interroga essas imagens, destacando nelas as representações das manifestações musicais africanas. Fazendo uma análise reflexiva e crítica sobre o material iconográfico em que se apoia, o autor chama a atenção para as relações étnicas no Brasil colonial, que se escondem por detrás das imagens (e dos discursos) sobre o negro no Brasil esclavagista, frequentemente representado a tocar ou a transportar uma marimba. Esta estratégia de desocultação, como se depreende no final no texto, articula-se com a intenção política de repensar as representações culturais da cultura africana no Brasil (pós-colonial) contemporâneo (cf. p. 132).

Elisabeth Travassos (“Por uma Cartografia Ampliada das Danças da Umbigada”) faz uma acutilante reflexão em torno desta dança, centrando-se, de modo particular, na desconstrução do discurso sexualizado e racializado que domina grande parte das observações e interpretações sobre esta prática. A autora chama a atenção para as dificuldades e incapacidades que o olhar erotizante sobre a umbigada tem para dar conta dos seus múltiplos sentidos e apropriações num arco temporal e geográfico alargado. É um contributo onde se cruzam a investigação histórica, etnomusicológica e antropológica, num exercício de desocultação e desessencialização desta dança afro-brasileira (vejam-se particularmente as pp. 228-229) e onde, de forma quase solitária no conjunto do volume, se levantam questões teóricas relativas aos pressupostos culturalistas e difusionistas de muitos estudos etnomusicais: “(...) as idéias de permanência e continuidade de traços culturais passaram a despertar suspeita entre antropólogos, cuja atenção se desviou para estruturas, teias de significados, sistemas cognitivos, ethos e visões do mundo. As vertentes teóricas cristalizadas em torno desses conceitos desautorizaram a idéia de reconstituir deslocamentos no espaço de determinadas formas culturais. Efectivamente, não é essa busca que me interessa, e sim o mapeamento dos contextos em que a umbigada e outras (supostas) pantominas sexuais foram incorporadas às narrativas científicas e históricas sobre as relações entre África, Europa e Brasil, sobre os negros no continente americano, sobre música e dança brasileiras” (p. 234). Estas observações podem ser lidas como um contraponto a algumas contribuições mais marcadas por aqueles pressupostos culturalistas e difusionistas, como é o caso (mais evidente) do artigo de António Germano Lima “O Landu: do Brasil à Ilha da Boavista, ou Símbolo de um Diálogo de Culturas”.

Emblema sonoro por excelência do Brasil, “o samba (...) surge sob o signo do dinheiro, da tecnologia e do mercado, no começo da formação de uma sociedade urbano industrial e de uma incipiente indústria cultural que começa a se constituir com a gravação de discos e, a partir de 1923, com o desenvolvimento da rádio” (p. 292). Partindo desta hipótese, Ruben Oliven (“O Imaginário na Música Popular Brasileira”) desenvolve uma análise de conteúdo de um conjunto de letras de sambas dos anos 30 e 40, mostrando como os temas do “trabalho, mulheres e dinheiro” constituem preocupações centrais expressas pelos sambistas num período que se estende até aos anos 50, época em que “a urbanização aumentou, a industrialização ganhou ímpeto, começando a se disseminar o trabalho assalariado” (p. 292). Uma interessante análise que mostra como uma prática musical pode funcionar como revelador de processos amplos de transformação e mudança social num contexto onde as indústrias culturais, hoje pilares importantes da economia brasileira, deram início a um processo acentuado de mercantilização de determinadas práticas musicais. Como é visível noutras contribuições, os meios de comunicação de massa (cinema, rádio e televisão), a indústria discográfica e de espectáculos introduzirão importantes transformações nas formas de produção, distribuição e consumo de certos géneros musicais. É assim que João Soeiro de Carvalho (“Makwayela: Um Enunciado Sonoro da Experiência Social no Sul de Moçambique”) traça as influências que os espectáculos de origem norte-americana conhecidos como minstrels e as coreografias de Fred Astair e Ginger Rogers tiveram em certos géneros musicais e coreográficos da África do Sul e do Sul de Moçambique (ver pp. 146-147). Descrevendo um processo inverso, José Ramos Tinhorão surpreende e documenta a entrada da “dança do rasga” (baseada num ritmo executado com um instrumento — o canzá — usado pelos negros em Portugal no século XIX) no “repertório” de cantores-actores do género cómico do teatro musicado (...) passando a figurar como números de “apresentação individual” (p. 266) e a ser objecto de edições discográficas nos inícios do século em Portugal e no Brasil.

Neste complexo jogo de entrecruzamentos e redes de influências musicais, é o leitor a ser surpreendido com a contribuição de Ruy Llera Blanes (“Em Nome da Interdenominacionalidade — Ligações Transnacionais e Novas Práticas Musicais entre os ciganos evangélicos portugueses”) através do surgimento de um “mediador inesperado: o cigano” (p.372). Ao estudar o papel da criação e consumo da música no contexto da prática religiosa evangélica cigana (um movimento transnacional com implantação em Portugal e ligações ao Brasil e aos EUA), o autor chama a atenção para a existência de um “tráfego cultural e musical não hegemónico” especialmente activo dentro do espaço luso-brasileiro, que contraria os “clichés” acerca da “autenticidade” e “ausências de interferências externas na música cigana” (p.374).

Enquanto que as sonoridades escutadas por Blanes nas igrejas evangélicas da periferia norte de Lisboa permanecem largamente invisíveis e fora dos circuitos comerciais oficiais, os rappers que Teresa Fradique acompanhou, embora associados também às margens da cidade, são produtores de um discurso sonoro que tem visibilidade pública e entrou no main stream cultural português. Com o título “Escalas de Prática e de Representação: A Música Rap Enquanto Projecto de Imaginação Espacial” esta contribuição explora os efeitos de conhecimento (questão do foro epistemológico) que resultam da variação de escala de análise enquanto estratégia de construção (política) do terreno (questão do foro metodológico).

Num registo que privilegia a análise discursiva, mas, simultaneamente, propõe uma interpretação para o estranhamento que o fado é susceptível de induzir nos ouvintes, Joaquim Pais de Brito (“A Escuta e as Ressonâncias da Alteridade”) ausculta as “ressonâncias da alteridade” na história dos discursos sobre a canção nacional, a começar pelas especulações acerca da sua origem. Uma linha de continuidade parece ligar as reflexões deste autor a propósito do fado com as de Elisabete Travassos a propósito da umbigada ou ainda as de Salloma Salomão, a saber, a preocupação de situar e desocultar o que nestas práticas discursivas é sobretudo resultado do olhar, da época e das intenções com que são produzidas. No final do texto surge uma frase/hipótese que em grande medida resume as preocupações latentes em todo o volume: “a música será uma das matérias que mais subvertem e redesenham as incertas fronteiras das identidades” (p. 333).

Algumas considerações finais: enquanto que disciplinas como a musicologia ou a etnomusicologia, por dever de ofício, mantiveram sempre os ouvidos bem abertos, a maioria das ciências sociais parece ter optado por mantê-los fechados, relegando o papel da música e, mais latamente, das sonoridades, para uma posição marginal, residual, ou pouco importante enquanto variável de análise (veja-se a este respeito o texto de Carlos Fortuna “Paisagens Sonoras/Sonoridades e Ambientes Sociais Urbanos” publicado em 1999 na sua obra Identidades, Percursos, Paisagens Culturais. Oeiras, Celta). Todavia, há sinais de que a surdez que tradicionalmente afectou as ciências sociais parece estar a melhorar a olhos vistos. Esta obra é disso testemunho. (Não posso ainda deixar de registar que um volume como este muito ganharia em ser acompanhado por um registo sonoro — um CD — que transportasse o leitor ao universo das sonoridades aqui analisadas).

 

Filipe Reis

ISCTE

CEAS

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