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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica v.10 n.1 Lisboa maio 2006

 

MARIA CARDEIRA DA SILVA (ORG.)

OUTROS TRÓPICOS. NOVOS DESTINOS TURÍSTICOS. NOVOS TERRENOS DA ANTROPOLOGIA

Lisboa, Livros Horizonte, 2004.

 

Este não é um livro de viagens, apesar de repleto de lugares daqui e dalhures, nem sobre uma disciplina, embora a problematize em permanência. Outros Trópicos pode ser lido como uma espécie de breviário das relações entre duas matérias. Turismo e antropologia são pares ao longo das suas 180 páginas. Maria Cardeira da Silva, coordenadora da edição, anuncia-o na primeira linha: “[e]ste é um livro acerca do turismo e da antropologia” (p. 7).

O volume, que colige algumas das comunicações do painel Turismo, Mobilidades e Consumo de Lugares do congresso Novos Terrenos da Antropologia, decorrido em 1999, às quais se somam outros textos resultantes de encontros nos corredores da academia, possibilita uma imagem, ao mesmo tempo, retratual e panorâmica, das interacções — que geram, muitas vezes, efeitos de contraste, homologia e, até certo ponto, ampliação — entre os dois tópicos. Fá-lo, sem subtrair complexidade, numa dúzia de textos curtos, gizados rés ao lugar, espaço da coexistência de experiências turísticas e etnográficas. Porque nele, a relação proposta só equivocamente poderá ser binária, uma vez que convoca pelo menos três protagonistas: etnógrafo, turista e sociedade receptora.

Se o título Outros Trópicos metaforiza genericamente a actual proliferação de heterotopias (cf. Michel Foucault, “Des Espaces Autres” em Daniel Defert e François Ewald (orgs.), Michel Foucault, Dits et Écrits, 1954-1988 [Tome IV: 1980- -1988], 1994 : 752-762) — conceito aqui utilizado no sentido literal e abrangente, sobrepondo-se ao de espaços de alteridade —, a florescência do seu mercado, a animação dos tráfegos que sincronicamente as exploram e potenciam, o subtítulo Novos Destinos Turísticos, Novos Terrenos da Antropologia equaciona dinâmicas e justaposições in situ que diversamente os doze capítulos recobrem.

À medida que se avança no volume, experimenta-se a matriz multiforme e mesclada do turismo (de pendor variavelmente étnico, patrimonial, recreativo, excursionista, sexual, terapêutico, natural, gastronómico, ou misto, combinando vários destes elementos) passível de uma analysis situs etnográfica, aqui menos interessada na viagem que nos encontros (e processos socais deles resultantes) que ocorrem nos locais receptores de turistas. Não que se esqueçam os trânsitos — e.g., chegam a e partem de Alte (Loulé, Algarve) autocarros com turistas americanos de terceira idade (p. 24) como chegam aos e partem dos Caminhos de Pedra (Rio Grande do Sul, Brasil) ônibus do Rio de Janeiro e de São Paulo com turistas indiferenciados (p. 125) — tão-pouco os próprios transeuntes — e.g., Mohammed Berriane sociografa o perfil dos veraneantes marroquinos (p. 55) —, mas o que o olhar antropológico visa apreender são, sobretudo, os princípios estruturantes e os mecanismos de construção (compreendendo movimentos de desconstrução e reconstrução) identitária dos lugares de consumo turístico. Leia-se Maria Cardeira da Silva no texto que abre e apresenta a antologia: “[o] que para mim é estimulante no turismo, é tomar os seus terrenos como campos laboratoriais estrategicamente interessantes para a antropologia onde ela deve, e pode, afirmar a sua especificidade, recorrendo, justamente, a uma delimitação artificial de um lugar (que não é empreendido por ela: os “lugares turísticos”) e que pode explorar com um know how específico de atribuição de voz ao local e de enquadramento mais vasto no seu quadro de produção social” (p. 11).

Dotados de grande ressonância de vozes locais e supralocais, os textos fazem coabitar elementos estatísticos e projecções numéricas — e.g., taxa de crescimento anual do turismo segundo a Organização Mundial do Turismo (p. 34) —, quadros normativos de governança internacional — e.g., Declaração de Berlim sobre “Biodiversidade e Turismo” (p. 35) —, relatos de viajantes — e.g., Vivendo Volando: um Uomo, gli Affari, le Donne, il Sesso, de Claudio Mattioli Ross (pp. 108-109) —, depoimentos de autóctones — e.g., António Carneiro, presidente da Associação de Melhoramentos, Festas e Feiras de Podence (Macedo de Cavaleiros, Trás-os-Montes) (pp. 144 e 147) —, sendo irredutíveis e insubordinados a uma única perspectiva.

Esmiuçadas pela microscopia antropológica, as modalidades turísticas adquirem a sua máxima variabilidade: ora encontros comensais em Alte (pp. 24-26), ora visitações museológicas em Mértola (Alentejo) (p. 39), ora excursos entre Ntoko Wu Nsiala (Cabinda, Angola) e o Rio Ditsi (pp. 45-49), ora deslocações e estadas balneares dos núcleos familiares marroquinos (pp. 54-68), ora passeios populares no espaço público à beira da represa de Nova Ponte (Minas Gerais, Brasil) (pp. 73-77), ora visitas aos salões de massagem (p. 106) e a sessões de peep-shows (p. 107) e tours sexuais em Pattaya, resort perto de Banguecoque (Tailândia) (p. 106), ou nos bordéis de Ocho Ríos (Jamaica) e Acapulco (México) (p. 108) ou nos prostíbulos de Fortaleza (Ceará, Brasil) (p. 109), ora digressões entre o património arquitectónico reabilitado e “italianizado” dos Caminhos de Pedra (pp. 125-126) e de Serafina Correia (Rio Grande do Sul, Brasil) (pp. 131-133), ora fruição duma expressão performativa da cultura popular de Podence, os caretos (pp. 140-149), ora usufruto sazonal de casas de férias por estrangeiros e “alfacinhas” no perímetro contíguo mas exterior à aldeia de Santa Margarida da Serra (Grândola, Alentejo) (p. 157) e hospedagem permanente de estrangeiros nos montes vizinhos (pp. 157-159), ora internamento terapêutico e tratamento termal (p.162), ora jornada monumental e natural em Sintra e prova gastronómica de queijadas (pp. 172-178).

Para a compreensão destes e doutros casos, manuseiam-se instrumentos analíticos nada marmóreos e invariáveis, antes dialógicos e processuais, como os de “encenação turística do local” de Dean MacCannell (p. 21), “etnicidade reconstruída” de Mike Robinson (p. 36), “ficção da identidade” de Marc Augé (p. 127) e “culturas híbridas” de Néstor Canclini (p. 143), abatendo valia compreensiva a concepções avulsas (como cultura) ou contrárias (como tradição versus modernidade, localização versus globalização, dentro versus fora, hospedeiro versus visitante, autenticidade versus encenação, integridade versus contaminação).

Serão desiguais os capítulos (contribuindo para isso inclusive a edição sem conversão ortográfica dos textos originalmente escritos em português do Brasil), sem arrumação sensível na colectânea, mas juntos dão bem a medida da diversidade de perspectivas em presença no subcampo disciplinar da antropologia do turismo e suas interfaces com outras problemáticas sociais, desde (talvez as mais comuns) as da cultura, das identidades, das classes sociais, do género até (talvez as mais exóticas) às das políticas de desenvolvimento local, do empowerment e da participação pública. Nisto reside a unidade subterrânea da obra.

Remato, dizendo que alguns dos eixos temáticos se encontram notavelmente ilustrados pela colectânea de fotografias (da autoria de Maria Cardeira da Silva) na capa e contra-capa do livro. Não são de somenos, uma vez que a visualidade amplia a percepção da sociodiversidade do fenómeno turístico e, desta forma, auxilia sobremaneira a leitura do livro.

 

 

Ana Gonçalves

ISCTE

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