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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica v.10 n.1 Lisboa maio 2006

 

MARIE-ELISABETH HANDMAN E JANINE MOSSUZ-LAVAU (DIRS.)

LA PROSTITUTION À PARIS

Paris, Éditions de La Martinière, 2005.

 

Dirigido pela antropóloga Marie-Elisabeth Handman e pela politóloga Janine Mossuz-Lavau, este livro é um trabalho de grande fôlego sobre um campo social controverso. Marcado por uma grande abertura teórica e política, em contra-corrente às teses abolicionistas e proibicionistas hoje dominantes na Europa e nos Estados Unidos, proporciona ao leitor uma análise compreensiva da prostituição, nos seus mais diversos modos de existência, e dos actores sociais nela envolvidos. O livro está relacionado com uma pesquisa solicitada pelo município de Paris ao Centre National de la Recherche Scientifique em 2002. Respondendo afirmativamente a este interesse por parte do poder político autárquico, a equipa de investigadores de diferentes áreas disciplinares, com destaque para a antropologia social, a sociologia e a ciência política, levou a cabo um longo trabalho de campo nos anos de 2002 a 2004, que deu origem a um texto com mais de quatro centenas de páginas dividido em três partes: (i) o contexto da actividade prostitucional (geográfica, jurídica, política e social), com textos de Handman, Emmanuel Redoutey, Catherine Deschamps e Johannne Vernier; (ii) a apresentação e reflexão sobre os testemunhos dos que vivem do comércio do sexo, com textos de Mossuz-Lavau, Maria Teixeira, Nasima Moujoud, Fiammetta Venner e Dolores Pourette; (iii) a discussão das questões que foram colocadas pelo trabalho de campo, nomeadamente as que se prendem com os clientes, com as violências presentes neste meio social, com a relação entre sexualidade e prostituição, com os estrangeiros que frequentam os trottoirs franceses, com textos de Moussuz-Lavau, Pourette, François Gil, Nasima Moujoud e Teixeira.

Como referem Handman e Mossuz-Lavau (p. 13), o objectivo era estudar a prostituição na sua realidade quotidiana, através dos seus protagonistas, prostituto(a)s e clientes. Como se poderá constatar, mesmo os menos familiarizados com o método etnográfico, também utilizado pelas correntes weberiana e interaccionista na sociologia, foi graças a ele que Handman, Mossuz-Lavau e restantes autores foram capazes de proporcionar ao leitor uma visão “de dentro”, simultaneamente densa e minuciosa, deste intrincado e multifacetado campo social. Este poder da etnografia é precisamente destacado por Françoise Zonabend (La Presqu’île au Nucléaire, 1989), quando lembra as possibilidades da observação participante no escrutínio das emoções, do imaginário e doutros aspectos de que a vida quotidiana também é feita e que normalmente escapam à inquirição dita objectiva. Esta estratégia metodológica, especialmente visível nas entrevistas realizadas e no modo como foram utilizadas na segunda parte do livro — “Les prostitués, femmes, hommes et transgenres, par eux-mêmes” —, facilitou, assim, aos autores e, por seu intermédio, a nós, os leitores, uma aproximação àquilo que Pierre Bourdieu (“Comprendre” em La Misère du Monde, 1993: 1388-1447), na esteira de Max Weber [Economía y Sociedad: Esbozo de Sociología Comprensiva, 1993 (1922)], nos propõe: colocarmo-nos, em pensamento, no lugar dos outros observados. Mas não só. Como aconteceu connosco (ver Manuela Ribeiro et al., Prostituição Feminina em Regiões de Fronteira: Actores, Estruturas e Processos, 2005; e Manuela Ribeiro et al., Prostituição Abrigada em Clubes: Práticas, Riscos e Saúde, 2005), o trabalho de campo etnográfico permite a quem o coloca em prática interrogar os seus próprios pressupostos, pontos de vista e quadros teóricos. Ou seja, rasgar uma brecha intelectual através da qual se acede a novos olhares e posições teóricas e políticas. Como justamente salientam Handman e Mossuz-Lavau (p. 15), a imersão no campo da prostituição em Paris tornou difícil a sua aquiescência face a algumas posições de censura formuladas nomeadamente por certos políticos e algumas feministas que, não raro, jamais procuraram ouvir os actores sociais envolvidos no sexo mercantil.

O leitor é confrontado, desde as primeiras páginas, com elementos etnográficos e argumentos que nos permitem descobrir a profunda humanidade de todos os que estão envolvidos no comércio do sexo. De origens e trajectos de vida muito diversificados, estamos perante seres humanos que lutam todos os dias pela vida e pela felicidade, manobrando em seu proveito os recursos, muito desiguais, de que dispõem para aumentarem os seus rendimentos e melhorar a sua posição social. Para os trazer até nós, o livro leva-nos não só aos terrenos já habituais como aos mais invulgares e inesperados: a prostituição nos foyers de alojamento dos trabalhadores emigrantes em Paris, na maioria praticada por mulheres magrebinas; a prostituição nos bares dos bairros pobres; a prostituição através da Internet; a prostituição masculina, nomeadamente para mulheres heterossexuais; a prostituição de rua, realizada em lugares bem conhecidos, como os bosques de Bolonha e de Vincennes. Apesar das enormes diferenças em termos de actores e práticas, estes espaços têm de ser examinados no quadro daquilo que Radoutey (p. 87) designa por globalização do comércio do sexo. Tal permite compreender, por exemplo, os conflitos que opõem as “tradicionais”, quase sempre mulheres mais velhas de nacionalidade francesa, às jovens provenientes do leste da Europa e do continente africano, em torno dos preços cobrados pelos serviços prestados. Como salientam Mossuz-Lavau e Teixeira (pp. 189-192), a venda de prazer sexual a baixo preço, por parte das mulheres estrangeiras, perturbou as relações sociais entre as prostitutas, degradando os seus laços de solidariedade. Sem que isso, note-se, tenha impedido a organização de acções colectivas de protesto contra medidas políticas que consideram lesivas dos seus interesses. É o caso da luta contra a Lei para a Segurança Interior (LSI), mais conhecida por lei Sarkozy, aprovada em Março de 2003. Como justamente refere Vernier (pp. 121-124), ao permitir a perseguição de qualquer pessoa que se prostitui na via pública a LSI coloca a França numa posição de facto proibicionista. Os protestos das profissionais do sexo e das suas associações representativas (pp. 91-119) não deixam de exprimir, assim, uma certa e parcial coesão que releva da partilha de interesses e de práticas de vida comuns, capaz de superar as origens, as motivações e os trajectos muito variados dos que vivem deste tipo de actividade e, não menos importante, o estigma que sobre eles recai.

A grande diversidade de práticas de sexo mercantil, bem como de pessoas envolvidas, como escreve Pourette (p. 263), permite levar o debate sobre a prostituição para fora dos campos estritos do género ou da moral, abrindo-o nomeadamente ao campo do trabalho e do comércio, como faz Bourdieu (A Dominação Masculina, 1999). Aqui há que realçar o contributo de Gil (p. 348) quando, numa das passagens mais interessantes do seu capítulo sobre sexualidade e prostituição, critica a ideia da venda do corpo, tão cara aos abolicionistas, considerando que ela constitui não só uma aberração do ponto de vista do sentido mas igualmente uma forma insidiosa de desclassificação dos indivíduos que vivem do comércio do sexo, ao desapossá-los da sua integridade física e do direito à utilização social do corpo. Por outro lado, como nós também defendemos (ver Manuela Ribeiro et al., Prostituição Feminina em Regiões de Fronteira: Actores, Estruturas e Processos, 2005), Gil (pp. 348-353) argumenta que a relação entre quem se prostitui e o cliente não se resume ao acto sexual propriamente dito, antes envolvendo palavras, olhares, gestos e, obviamente, afectos, tornando assim manifesto que o campo da prostituição é também muito complexo do ponto de vista do uso do corpo e das emoções.

O livro fecha com um longo texto conclusivo, no qual Handman e Mossuz-Lavau tomam partido e sugerem um conjunto de medidas para melhorar a situação social de todos aqueles que se dedicam ao trabalho sexual. Neste sentido, é importante sublinhar que as autoras, considerando que a questão já não é mais “acceptons-nous la prostituition?” mas sim “quelle prostitution acceptons-nous?” (p. 397), defendem que o trabalho prostitucional, desde que livremente escolhido — ainda que os constrangimentos económicos e outros, como acontece com a escolha de qualquer outra profissão, estejam presentes e não possam ser ignorados —, deve ser reconhecido como tal, não apenas pelas instâncias públicas mas também pelos próprios actores que vivem dele (p. 404). Em lugar dos discursos ora regenerador, ora censurador, uns e outros profundamente moralizantes, também presentes em outros campos sociais “exóticos” (ver Loïc Wacquant, Corpo e Alma: Notas Etnográficas de um Aprendiz de Boxe, 2002), as autoras preferiram discutir o lugar da prostituição nas sociedades contemporâneas fora dos quadros muito fechados que vêem nesta actividade uma forma severa de dominação masculina — desprezando o facto de nela estarem também homens e transgéneros como prestadores de serviços sexuais, por um lado, e mulheres consumidoras, por outro lado — e uma ausência praticamente extrema de capacidade de agência por parte das mulheres.

Trata-se, pois, de um livro interpelador e surpreendente. Sendo capaz de responder ao objectivo proposto por Handman e Mossuz-Lavau — a elucidação, ainda que parcial e inacabada, deste campo social, mal conhecido e estigmatizado — os cidadãos interessados nesta temática, sobretudo os comprometidos com uma agenda política e social emancipatória equipada também duma política inclusiva para o trabalho sexual e para os actores sociais nele envolvidos, encontrarão neste texto uma etnografia bem elaborada e uma argumentação sólida e coerente que justificarão plenamente o tempo despendido com a sua leitura.

 

 

Fernando Bessa Ribeiro

Departamento de Economia e Sociologia

Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro

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