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Sociologia, Problemas e Práticas

versión impresa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.89 Lisboa ene. 2019

https://doi.org/10.7458/SPP2019898973 

ARTIGO ORIGINAL

Trabalhadores/as do sexo e ação coletiva: iniciativas no contexto português

Sex workers and collective action: initiatives in the Portuguese context

Travailleurs du sexe et action collective: initiatives dans le context portugais

Los trabajadores del sexo y la acción colectiva: las iniciativas en el contexto portugués

 

Marta Graça

* Investigadora, Centro de Investigação Didática e Tecnologia na Formação de Formadores (CIDTFF), Departamento de Educação e Psicologia, Universidade de Aveiro. E-mail: msgraca@yahoo.com

 

RESUMO

Os movimentos de trabalhadores/as do sexo (TS) são bastante expressivos a nível internacional. Neste artigo, procuramos refletir sobre a (im)possibilidade atual de consolidação de dinâmicas de ação coletiva de TS, em Portugal. Começamos por contextualizar a emergência dos movimentos a nível mundial e da ação coletiva em Portugal. Seguidamente, a partir do projeto de investigação-ação participativa que desenvolvemos, retratamos as dificuldades em transformar subjetividades em ação coletiva. Concluímos que, apesar de encetadas várias iniciativas de mobilização, é ainda necessário reunir condições para a consolidação de um movimento organizado.

Palavras-chave: trabalho sexual, ação coletiva, movimentos sociais.

 

ABSTRACT

The sex workers’ rights movement is very significant at international level. In this paper, we present a reflection about the current (im)possibility of collective action, in Portugal. Firstly, we contextualize the emergence of the worldwide movement and attempts of collective action, in Portugal. Secondly, we describe the difficulties encountered in a participatory action research in transforming subjectivities to collective action. We conclude that despite some collective action efforts, the mobilization of resources is still needed for an organized movement’s consolidation.

Keywords: sex work, collective action, social movements.

 

RÉSUMÉ

Les mouvements des travailleurs du sexe (TS) sont très importants à l’échelle internationale. Dans cet article, nous réfléchissons sur la (im)possible consolidation dynamique actuelle de l’action collective de TS, au Portugal. Nous commençons par contextualiser l’émergence de mouvements à travers le monde et l’action collective au Portugal. Puis, en partant du projet de recherche-action participative que nous avons développé, nous décrivons les difficultés dans la transformation des subjectivités en action collective. Nous concluons que, malgré des efforts d’action collective, la mobilisation des ressources est toujours nécessaire pour la consolidation d’un mouvement organisé.

Mots-clés: travail sexuel, action collective, mouvements sociaux.

 

RESUMEN

Los movimientos de los trabajadores del sexo (TS) son muy significativos a nivel internacional. En este artículo, tratamos de reflexionar sobre la (im)posibilidad de consolidación dinámica actual de la acción colectiva de TS en Portugal. Comenzamos por contextualizar el surgimiento de movimientos en todo el mundo y la acción colectiva en Portugal. Luego, a partir del proyecto de investigación-acción participativa que desarrollamos, describimos las dificultades en la transformación de las subjetividades en la acción colectiva. Llegamos a la conclusión de que, a pesar de algunos esfuerzos de acción colectiva, la movilización de recursos es necesaria para la consolidación de un movimiento organizado.

Palabras clave: trabajo sexual, la acción colectiva, los movimientos sociales.

 

Introdução

O trabalho sexual, onde se inclui a prostituição, é um tema repleto de significados e sentidos, assim como de controvérsia, tanto no campo da investigação científica, como a nível dos discursos e das práticas sociais. No cerne do debate estão sobretudo duas posições — a que defende a prostituição enquanto trabalho e a que a considera uma atividade a erradicar.

Atualmente, em Portugal, o trabalho sexual, definido como a compra e venda de serviços sexuais, performances ou produtos, entre adultos e com o seu consentimento (Oliveira, 2011), não é considerado ilegal (apenas o lenocínio é criminalizado), no entanto o julgamento moral que pende sobre os seus atores traduz-se em preconceito e em estigma que, por sua vez, acarretam repercussões negativas para o bem-estar das pessoas que exercem a atividade (Weitzer, 2009; Oliveira 2011; Ross et al., 2011; Lazarus et al., 2012). O estigma é ainda apontado como um forte inibidor da mobilização para a ação coletiva de trabalhadores/as do sexo (TS) (Mathieu, 2003; Lopez-Embury e Sanders, 2011) que, compreensivelmente, preferem a clandestinidade à punição social.

Apesar da discriminação sentida e independentemente dos diversos modelos legais adotados, os movimentos de TS em defesa de direitos humanos, sexuais e laborais são bastante expressivos, quer nas sociedades ocidentais, quer nas sociedades ditas de Terceiro Mundo. Esses movimentos representam uma “ação coletiva que coloca em causa um modo de dominação social generalizada” (Touraine, 2006: 18), implicando um conflito social e moral, reivindicações e a contestação do statu quo.

De acordo com Kempadoo (1998), os movimentos que surgiram na América do Norte e na Europa Ocidental encontram-se bem documentados, inclusivamente através de escritos na primeira pessoa, como são exemplo as coletâneas de Delacoste e Alexander (1998) ou de Nagle (1997). O mesmo não acontece relativamente ao movimento de TS em países considerados de Terceiro Mundo ou não ocidentais, em que parece existir uma falta de reconhecimento, e quando surge na literatura é de forma enviesada. A autora chama a atenção para a forte mobilização que existe nestes países e argumenta que, independentemente do coletivo, os/as TS, como atores individuais ou em grupos informais, sempre lutaram contra o estigma e discriminação, as leis abusivas, as injustiças sociais e políticas, independentemente de pertencerem aos países do hemisfério norte ou sul (Kempadoo, 1998).

Em Portugal, não obstante a constituição da Rede sobre o Trabalho Sexual (RTS) e os trabalhos de alguns autores (Ribeiro et al., 2007; Oliveira, 2011) no processo de dar voz às/aos TS e na desconstrução de binómios, a participação destes sujeitos em projetos de investigação, debates sociais e políticos é ainda incipiente, pelo que, apesar de algumas tentativas de mobilização (ver Lopes e Oliveira, 2006; Oliveira e Mota, 2013), não podemos afirmar que exista um movimento formal ou organizado de TS.

Neste artigo, composto por duas partes, procuramos refletir sobre a (im)possibilidade atual de consolidação de dinâmicas de ação coletiva de TS, em Portugal. Na primeira parte, contextualizamos brevemente a emergência dos movimentos de TS no mundo e as iniciativas de mobilização em Portugal, tendo em conta os aspetos facilitadores e os constrangimentos à ação coletiva de uma categoria social usualmente excluída do debate social, legislativo e científico. Na segunda, tomamos como referência o projeto de investigação-ação participativa (IAP), que desenvolvemos de setembro de 2012 a junho de 2015, através de três ciclos de planificação-ação-reflexão com TS de rua e uma equipa de outreach,[1] em Coimbra, envolvendo 28 participantes formais (19 mulheres TS, oito profissionais de outreach e uma facilitadora), para retratar as dificuldades em transformar subjetividades e entendimento comum em ação coletiva. Este projeto de IAP consistiu no desenvolvimento de uma proposta socioeducativa centrada nos direitos e necessidades das/os participantes, através da promoção da participação e da coconstrução conjunta e colaborativa. A IAP, inserida no paradigma sociocrítico, mais do que uma abordagem metodológica, constitui em si mesma um processo educativo de consciencialização (desenvolvimento crítico do entendimento sobre a realidade), de empoderamento e de mobilização para a ação, visando a participação na esfera pública de uma categoria social estigmatizada. As reflexões presentes neste artigo correspondem a uma parte dos resultados, enquanto que o processo e outros resultados não serão explorados neste documento.

Para esta reflexão, combinamos aspetos de abordagens teóricas dos movimentos sociais, como a mobilização de recursos (Oberschall, 1973, 1993; McCarthy e Zald, 1977; Chazel, 1995) e a construção de significados partilhados e identidades (Melucci, 1989; Castells, 2003). Apesar de os autores não reunirem consenso sobre as definições de ação coletiva e de movimento social, consideramos que ambos os conceitos são sinónimos. Entendemos por ação coletiva o produto de interações, perceções e expetativas mútuas (Oberschall, 1993), e movimento social como uma forma de ação coletiva, isto é, “um empreendimento coletivo de protesto e de contestação que visa impor mudanças, de importância variável, na estrutura social e/ou política, através do recurso frequente, mas não necessariamente exclusivo, a meios não institucionalizados” (Chazel, 1995: 266). Trata-se, portanto, de um sistema de ação que liga orientações e significados plurais (Melucci, 1989) e se assume como uma categoria de natureza histórica e situacional, que se encontra associada a ciclos culturais, sociais e políticos (Touraine, 1984, 2006). Ao longo do texto, referimo-nos à prostituição como uma forma de trabalho sexual e utilizamos as duas designações indistintamente.

 

Movimentos de trabalhadores/as do sexo: contextos, obstáculos e elementos facilitadores

Apesar de a luta organizada contra a opressão e o estigma não ser um facto recente na história da prostituição (Lopez-Embury e Sanders, 2011), podemos afirmar que os movimentos de TS em defesa dos direitos humanos e por melhores condições de trabalho datam de 1973 (West, 2000), altura em que o termo trabalhador/a do sexo é incluindo no léxico relativo à atividade, e Margo St. James, feminista pró-trabalho sexual e ex-prostituta, funda a COYOTE (Call Off Your Old Tired Ethics), em São Francisco. Entre os objetivos da COYOTE constam a descriminalização do trabalho sexual desempenhado por adultos de forma voluntária e consentida, a sensibilização da comunidade para as situações de abuso e problemas inerentes ao estatuto legal, combate ao estigma e defesa do reconhecimento da prostituição enquanto atividade laboral (Lopez-Embury e Sanders, 2011). Este coletivo serviu de mote à proliferação de organizações pró-trabalho sexual noutras cidades dos EUA, mas não só. Na Europa, em 1975, França foi palco de uma série de greves de prostitutas e de ocupação de diversas igrejas, que contou com o apoio da comunidade. Estas reivindicações surgiram na sequência de assassinatos de prostitutas, da insegurança sentida, da repressão policial e do abuso de poder, culminando com a criação do Coletivo Francês de Prostitutas (Mathieu, 2003; Lopez-Embury e Sanders, 2011). A partir de então, outras associações/coletivos foram surgindo um pouco por todo o globo, tais como, o Coletivo Inglês de Prostitutas (Inglaterra); a Hetaira (Espanha); a HYDRA (Alemanha); a SWEAT (África do Sul); a Rede Brasileira de Prostitutas, que inclui diversas organizações brasileiras de TS; entre muitas outras. Como resultado desta dinâmica ativista, em 1985, teve lugar, em Amesterdão, o primeiro congresso mundial de prostitutas, do qual emergiu o Comité Internacional para os Direitos das Prostitutas e foi elaborada a Carta Mundial dos Direitos das Prostitutas (Pheterson, 1989). No ano seguinte, decorreu o segundo congresso em Bruxelas, que incluiu preocupações relativas à problemática do VIH/SIDA.

O VIH/SIDA, apesar de se apresentar como uma pandemia com consequências nefastas a nível da ampliação da discriminação e da estigmatização dos/as TS, assumiu um papel crucial na aproximação de sujeitos empenhados numa luta comum e no reforço dos/as TS enquanto educadores/as, acabando por funcionar como um catalisador para a organização de coletivos. A Durbar, na Índia, é um dos exemplos. Esta organização, formada em 1995, surgiu na sequência do Sonagachi — um projeto de prevenção de infeções sexualmente transmissíveis (IST), focado na educação pelos pares. Os/as participantes deste projeto perceberam que para vencer o VIH tinham de resolver outras dificuldades, como a exploração; o estigma, que ergue barreiras no acesso a serviços; e as leis que remetem a atividade para o crime. É considerada a maior organização de TS no mundo e reconhecida internacionalmente como um modelo de boas práticas de prevenção e educação, no âmbito do combate ao VIH/SIDA, da promoção do empoderamento e dos direitos dos/as TS (Swendeman et al., 2009).

Vinte anos após o primeiro congresso, foi assinada a declaração dos direitos dos/as TS na Europa, por 120 TS e 80 aliados, onde se incluem ativistas e TS portuguesas, presentes na Conferência Europeia sobre o Trabalho Sexual, Direitos Humanos, Trabalho e Migração, que decorreu em outubro de 2005, em Bruxelas (International Committee on the Rights of Sex Workers in Europe (ICRSE, 2005). Nesta conferência, os/as participantes adotaram ainda o guarda-chuva vermelho, usado pela primeira vez em 2001, como símbolo dos direitos de TS e contra a discriminação.

Os movimentos de TS são considerados um avanço expressivo, na medida em que pela primeira vez os sujeitos se encontram organizados politicamente e exprimem as suas opiniões no debate público sobre a prostituição (Mathieu, 2003). Estes movimentos impulsionaram ainda a organização em torno de sindicatos, simbolizando uma mudança na luta, que deixa de centrar-se exclusivamente nos direitos civis e humanos, para se bater pelos direitos económicos e laborais (Gall, 2007). Salientamos que o primeiro sindicato de TS no Reino Unido (IUSW — International Union of Sex Workers), fundado em 2000, foi impulsionado por Ana Lopes (2006), portuguesa, investigadora, ativista e ex-TS (operadora de linhas telefónicas eróticas e dançarina de striptease). Este projeto surgiu a partir de uma IAP, na qual se verificou a inexistência de direitos laborais na indústria do sexo e a ausência de representação sindical oficialmente reconhecida.

Vários autores (Weitzer, 1991; Mathieu, 2003; Gall, 2007) reconhecem que a entrada na esfera pública de grupos estigmatizados enfrenta diversos obstáculos, o que fragiliza os movimentos de TS. A partir da análise de cinco movimentos de TS, na Europa Ocidental e EUA, Mathieu (2003) identifica uma série de obstáculos à mobilização, destacando entre eles, o contexto legal, a falta de estrutura e de organização do mundo da prostituição em si, as características da população, com poucas competências para a ação coletiva, pouca formação académica e/ou profissional, condições precárias de vida e o estigma. Estas condições impedem que os/as TS consigam definir a sua situação em termos políticos e, consequentemente, de reconhecerem vantagens em recorrer a esse meio para defender os seus interesses.

Apresentando uma perspetiva mais cética, O’Connell-Davidson (1998) afirma que a ação coletiva de TS detém uma capacidade limitada de produzir mudanças efetivas e é problemática devido às contradições inerentes às relações de poder e género entre atores envolvidos no comércio do sexo. Para a autora, o sexo comercial assenta em desigualdades estruturais e diferenças de poder, tendo em conta as categorias usualmente discriminatórias de género, classe e raça, pelo que o trabalho sexual será sempre estigmatizado.

Os discursos abolicionistas são em larga medida responsáveis pela mediatização da ideia da prostituição como opressão com base no género, anulando a posição afirmativa de capacidade de agência que os movimentos de TS representam.

Contrariamente, a emergência do discurso da prostituição como uma forma de trabalho permitiu desafiar estereótipos e afirmar a capacidade de as pessoas conferirem sentido e significado às suas vivências, bem como incitou a discussão de reformas legislativas que, em alguns casos, operaram mudanças efetivas. Por exemplo, a COYOTE obteve sucesso na eliminação de uma ação policial, em São Francisco, que determinava que os/as TS deveriam ser detidos/as, sob quarentena, até a obtenção dos resultados do teste a IST (Weitzer, 1991); ou ainda, o Coletivo de Prostitutas da Nova Zelândia, fundado em 1987, que, com o apoio de políticos e outros aliados, impulsionou a mudança legal, descriminalizando e legalizando o trabalho sexual, em 2003. Este coletivo continua a ter um papel preponderante no âmbito da promoção e da educação para a saúde, participando de forma ativa na tomada de decisão e revisão de políticas relativas à prevenção do VIH/SIDA, às condições de trabalho, à proteção contra a violência e aos direitos legais.

Ora, estes exemplos denotam a capacidade de os movimentos de TS operarem mudanças a nível de condições estruturais, muito embora o seu potencial para transformações culturais possa encontrar-se algo limitado. Retomemos o caso neozelandês, a partir do Prostitution Reform Act, o trabalho sexual foi reconhecido como qualquer outra ocupação, permitindo o acesso a emprego legal, a direitos de saúde e de segurança ocupacional mas, no entanto, revelou-se insuficiente no combate ao estigma da prostituta (Abel, 2010). A persistência do estigma indica que possivelmente seja necessária uma ação coletiva concertada a diversos níveis e com outras implicações, em que a educação e sensibilização da sociedade civil poderá assumir um papel fundamental.

West (2000), por seu turno, sublinha que o sucesso ou a falha dos movimentos devem ser entendidos por referência à complexidade em campo, com os diversos atores nas políticas de prostituição e a cultura política alargada. É ainda importante compreender que os movimentos sociais são cíclicos e associados a conjunturas políticas, culturais e económicas, também elas em permanente mutação, pelo que o enfraquecimento ou perecimento dos movimentos é justificável. Apesar de poderem assumir, em algumas circunstâncias, um caráter efémero e frágil, assentam na solidariedade e desenvolvem novos laços que transformam a atualidade democrática das sociedades (Frank e Fuentes, 1989). No caso dos movimentos dos/as TS, abriu-se um campo de possibilidades para pensar o ator como sujeito social capaz de dar sentido à sua ação (Touraine, 1984). Mais ainda, permitiu de facto mudanças legais, retomando o caso paradigmático da Nova Zelândia.

 

Iniciativas de ação coletiva: o caso português

Em Portugal, não obstante a constituição da RTS em 2011, não podemos afirmar que exista um movimento de TS. Esta rede, embora inclua TS, é fundamentalmente composta por aliados (profissionais das instituições que desenvolvem trabalho junto dos/as TS, investigadores e ativistas), pelo que o envolvimento de TS continua a ser limitado e pouco se conhece sobre os discursos que vão produzindo. Desde a sua constituição ao presente, a RTS têm empreendido esforços no sentido de combater o estigma associado ao trabalho sexual, bem como intercedido junto do poder político para enquadrar legalmente a atividade, com vista à proteção laboral, social e familiar dos/as TS, reconhecendo que, neste processo, enquanto estratégia feminista fundamental, é essencial trazer as vozes das TS para o debate (Pinto, Nogueira e Tavares, 2010).

Usualmente excluídos/as do debate legislativo e da linha da frente das reivindicações por melhores condições laborais e existenciais, os/as TS em Portugal encontram, de acordo com Lopes e Oliveira (2006), diversas barreiras à formação de um movimento que promova os seus direitos, tais como: (1) o enquadramento legal, bem como a sua evolução histórica e o discurso tendencialmente abolicionista de vários quadrantes políticos e sociais; este discurso mediatizou-se associando a prostituição à violência contra as mulheres; (2) a falta de tradição de movimentos sociais, associada ao contexto de ditadura fascista; (3) a existência de uma sociedade providência forte que compensa as fragilidades do estado providência (Santos, 1992); de acordo com as autoras, os grupos minoritários, onde se incluem os/as TS, podem sentir que a falta de garantia de direitos é compensada pelos esforços da sociedade providência, pelo que não necessitam de reivindicar ou insurgir-se contra políticas governamentais; (4) o não reconhecimento do trabalho sexual como trabalho por parte de uniões de trabalhadores, como a União Geral de Trabalhadores (UGT) e Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP); e (5) a fragilidade do movimento feminista e do aparecimento tardio do movimento LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transexuais/transgénero). Note-se que os movimentos de emancipação da mulher foram alvo de censura até 1974 e a homossexualidade foi descriminalizada apenas em 1982.

Estes aspetos encontram-se ainda associados à forte influência da igreja católica, como instituição patriarcal de repressão e controlo, e também aos discursos hegemónicos sobre a normatividade. A ideia prevalecente da relação heterossexual, monogâmica, em que a sexualidade é vivida em contexto do matrimónio para fins reprodutivos e de constituição de família, subsistiu quase até ao final do século XX. Portanto, todas as outras formas de vivência sexual, onde se inclui a prostituição e práticas não heterossexuais, foram sendo, em diferentes graus e contextos, alvo de discriminação.

De acordo com Aboim (2013), os anos 80 e 90 foram épocas marcantes, com várias mudanças, responsáveis pela transformação da forma como a sexualidade é vivenciada atualmente e pela atenuação do duplo padrão sexual. Entre os acontecimentos, a autora destaca: (1) o papel do movimento feminista e LGBT pela democratização do prazer sexual e pelo reconhecimento da cidadania das mulheres e de pessoas não heterossexuais; (2) a evolução do conhecimento médico e científico sobre a sexualidade; e (3) a aquisição de direitos reprodutivos. Estas manifestações permitiram a emergência da pluralidade a nível da cidadania sexual (orientação sexual e identidade de género), cabendo ao movimento LGBT um papel essencial na desconstrução de binómios e normatividades.

A nível microssociológico outros elementos interferem com a ação coletiva, designadamente as características dos/as TS (e.g. baixas competências sociais, estigma, sentimentos de ambivalência referente ao trabalho sexual) e a organização em torno da atividade (e.g. falta de coesão interna e de identidade profissional) (Ribeiro et al., 2007; Oliveira, 2011).

Estes fatores, por si sós, não parecem ser preditivos da inibição da ação coletiva dos/as TS, mas a conjugação destes aspetos permite-nos enquadrar de forma plausível a ausência de um movimento organizado de TS em Portugal, sem prejuízo de várias tentativas de formação do coletivo, que consideramos serem sementes para a criação de um movimento de autoria, conforme elencados por Lopes e Oliveira (2006), e às quais acrescentamos a promoção de atividades para assinalar o 17 de Dezembro (Dia Internacional contra a Violência na Indústria do Sexo) e o 1.º de Maio — Dia do Trabalhador; a realização de um vídeo que aborda o direito à maternidade (cf. Oliveira e Mota, 2012); o documentário Das 9 às 5 — Trabalho Sexual é Trabalho; as campanhas de sensibilização “Trabalho Sexual é Trabalho” e “Direitos Iguais”; e o Flash Mob pelos direitos dos TS. No contexto atual, o rosto mais mediático na luta pelos direitos dos TS é o de Alexandra Lourenço, que se define como uma amante profissional, e tem comparecido em diversos eventos públicos.

Destacamos, por fim, o projeto de investigação-ação desenvolvido no âmbito de um programa de educação pelos pares (ver Oliveira e Mota, 2012). Este projeto lançou as bases da mobilização de TS para a participação na marcha comemorativa do 1.º de Maio. Deste mesmo projeto resultou ainda a participação num seminário e em aulas, onde as/os TS partilharam com académicos e outros a sua experiência enquanto TS e mediadores; e a vontade de formar um coletivo para reivindicação e defesa de direitos. Neste processo encontraram diversos entraves associados a divergências e conflitos interpessoais que bloquearam a constituição de um coletivo, mas que foram posteriormente ultrapassadas (Oliveira e Mota, 2013). Este trabalho permitiu criar as condições necessárias à capacitação comunitária, ativismo e militância, através de ações que incrementaram o sentimento de pertença e identidade, e contribuiu ainda para o envolvimento e participação dos/as TS em assuntos que lhes dizem respeito. Todavia, não foi suficiente para que se concretizasse um movimento coletivo que tivesse persistido temporalmente, em muito devido à perda de contacto, à falta de coesão e de pertença ao grupo, aspetos estes impulsionados pelo facto dos/as TS residirem em diferentes zonas do país. Em jeito de conclusão, Oliveira e Mota (2013) defendem a importância da continuidade de apoio a iniciativas conjuntas, por parte das organizações de proximidade envolvidas nestes processos de capacitação comunitária e ativismo.

Apesar das iniciativas mencionadas (desconhecemos a existência de outras), a participação dos/as TS é ainda pouco expressiva, e as atividades ocorrem sobretudo de forma pontual e localizadas em Lisboa e no Porto. Portanto, reforçamos o que temos vindo a afirmar: não existe um movimento social organizado de TS em Portugal, mas sim tentativas de mobilização que, perante o atual contexto social, ainda não reuniu as condições favoráveis para se estabelecer como tal. Estas ações representam, no entanto, um grande passo na conquista de espaço para a participação na esfera pública de um grupo historicamente oprimido, excluído e discriminado, que luta por direitos e reconhecimento.

Podemos ainda avançar que é possível constituir uma rede de aliados que genuinamente se preocupem com os direitos dos/as TS, na medida em que os movimentos sociais que estão conetados a outros grupos ou redes tendem a crescer de forma mais rápida e a angariar mais membros do que os que se encontram estruturalmente isolados e fechados (Snow, Zurcher e Ekland-Olson, 1980). Atualmente, os aliados fazem parte de grupos distintos, como os profissionais de saúde e sociais, que desenvolvem trabalho de proximidade junto de TS, investigadores e elementos do movimento LGBT. Esta aliança é fundamental, na medida em que tem permitido criar espaços de confiança para a participação dos/as TS na defesa dos seus interesses.

Para Mathieu (2003), os aliados assumem um papel que é ao mesmo tempo crucial e ambíguo. Crucial porque, sendo as/os TS uma categoria desprovida de alguns recursos políticos necessários para gerar ação coletiva, encontram noutras categorias pertencentes a setores privilegiados os recursos em falta, como é o caso das feministas, com ampla tradição e experiência de protesto, capazes de apoiar os/as TS na organização de um movimento. Ambíguo na medida em que a dependência destes aliados é um dos fatores de fragilidade. Como as feministas não encontram consenso sobre a forma como interpretam o trabalho sexual, os próprios atores TS podem encontrar dificuldade na constituição de alianças, correndo o risco de outros tomarem as suas vozes. Por isto, o estabelecimento de alianças deverá ser cauteloso, para que em momento algum substitua os atores implicados e para não obstaculizar a sua ação individual/coletiva, permitindo o nascimento de um movimento a partir de dentro, das necessidades e vontades das pessoas diretamente envolvidas na prática.

A partir da contextualização internacional dos movimentos de TS podemos inferir que a sua emergência se encontra associada a ameaças reais, como a repressão ou a inação policial, injustiças diversas, crimes dirigidos a TS, ou o VIH/SIDA, pelo que a opressão parece contribuir em grande medida para a união dos sujeitos em torno da defesa de assuntos comuns. A ação coletiva pode assumir um caráter mais informal, como a ocupação da igreja em Lyon, ou um cariz organizacional (McCarthy e Zald, 1977), como a COYOTE, para implementar objetivos coletivos. Podemos ainda distinguir duas linhas de ação, associadas a diferentes teorias: (1) centrada nos direitos laborais, que se encontra mais próxima dos conflitos de classe, marxista; (2) centradas na identidade (muito embora associada à componente profissional) que assenta numa dinâmica diferenciada e parece aproximar-se da categoria dos novos movimentos sociais, ou do denominado movimento cultural, que implica um conflito de ordem simbólica — relacionada com a utilização social da informação e do conhecimento (Touraine, 2006).

Na situação portuguesa, não podemos afirmar que exista um movimento social organizado, mas sim mobilização de TS para iniciativas coletivas, informais e pontuais. A mobilização — processo pelo qual um grupo assegura controlo sobre os recursos necessários à ação coletiva (Jenkins, 1983) — depende, de acordo com Oberschall (1973), de fatores estruturais situados numa dimensão vertical e horizontal, isto é, da ligação que o grupo estabelece com outros na comunidade; e da coesão interna e capacidade organizativa, que potenciam os recursos internos (financeiros, humanos, materiais) e os recursos externos (opinião pública, governo, sociedade civil). Os entraves parecem residir no facto de as/os TS não pertencerem a um grupo ou comunidade — são apenas uma população informal que partilha a mesma atividade, condições de vida e estigmatização, o que se traduz em falta de coesão interna (Mathieu, 2003); e na ausência de uma opressão suficientemente capaz de os/as mobilizar (Oliveira, 2008), associada a outros fatores a nível macro e micro que parecem limitar a mobilização dos recursos necessários à organização dos sujeitos. A um nível macro, substancialmente estrutural, incluímos os aspetos históricos, políticos e discursivos (jurídicos, religiosos, médicos e sociais) que tendem a oprimir e estigmatizar os/as TS. A um nível micro, destacamos a falta de coesão interna, a falta de identidade profissional, as baixas competências sociais e pessoais, o estigma, e os sentimentos de ambivalência referente ao trabalho sexual.

As iniciativas supramencionadas, mesmo que pontuais e informais, são relevantes, na medida em que parecem ter lançado sementes de ação coletiva, constituindo um campo de investigação enquanto um novo movimento social emergente, com potencial para disseminar na sociedade novas formas de pensar sobre estas realidades. No entanto, é ainda necessário mobilizar recursos e construir uma nova identidade, capaz de produzir sujeitos no sentido do ator social coletivo, “capaz de redefinir a sua posição em sociedade e de provocar a transformação de toda a estrutura social” (Castells, 2003: 5). A construção da identidade coletiva é, por seu turno, uma parte da atividade dos movimentos sociais. Essa identidade é negociada, definida e redefinida de forma interativa e partilhada, produto de reconhecimento emocional e racional (Melucci, 1989).

 

Subjetividades, entendimento comum e (in)ação coletiva: um caso prático de IAP com TS de rua

Nesta segunda parte, focamos o projeto de IAP para dar conta das dificuldades em mobilizar as TS para a ação coletiva. Optámos pela IAP, tendo em conta que grande parte da literatura científica se centra em estudos sobre o trabalho sexual e os seus atores, mas poucos procuram envolver os/as TS enquanto participantes ativos. Interessava-nos, portanto, que os/as participantes tivessem um papel atuante em todas as fases e ciclos da investigação, tendo presente que o ator social é simultaneamente condicionado por uma situação e participa na produção da mesma (Touraine, 1984).

Dentre as várias formas de IAP, identificamo-nos com a que se encontra associada aos movimentos sociais, educação de adultos, numa linha crítica ou emancipatória (Kemmis e McTaggart, 2005), cujos objetivos se consubstanciam em melhorar resultados (numa vertente técnica), promover a consciencialização (numa forma sobretudo prática) e apoiar os participantes no processo de se tornarem mais críticos (emancipação) (Habermas, 1971).

Estabelecemos contacto, maioritariamente pontual, com 83 pessoas que exercem prostituição de rua (81 mulheres e duas transgénero), durante o período noturno na baixa da cidade de Coimbra (zona de comércio e serviços); e diurno, em estradas nacionais (zonas rurais e industriais). O estabelecimento de relações de confiança que permitiram um trabalho colaborativo foi possível com 19 TS e oito elementos da equipa de outreach, composta por psicólogo, assistente social, enfermeiro, monitor, contabilista e estagiários (quadro 1). Os dados foram recolhidos através de entrevistas informais, observação, entrevistas semiestruturadas individuais e em grupo, gravadas e transcritas com autorização dos/as participantes, obedecendo à confidencialidade e ao anonimato.

 

 

Começámos por desenvolver uma relação de proximidade e de confiança como alicerce do trabalho colaborativo e, com base nesta, as participantes aderiram à investigação, solicitavam feedback ou pediam informação sobre o decorrer do projeto, designadamente das sessões em grupo. Assim, as atividades foram sendo participadas em diversos modos por diferentes participantes em períodos/atividades distintas, nos quais quatro participantes assumiram um papel consistente como coinvestigadoras, situando a participação num continuum da passividade, à interatividade e à mobilização (Pretty et al, 1995). Tal não significa que as outras formas de participação sejam menos importantes, pelo contrário, cada um/a participou conforme a sua disponibilidade e vontade. Podemos, no entanto, afirmar que a disponibilidade, a qualidade da relação estabelecida entre as participantes e a identificação com os problemas identificados parecem influir na adesão à participação.

Operacionalizámos pequenas mudanças nas abordagens tradicionais de pesquisa, no sentido de criar condições para que se assumissem como coinvestigadoras/es, tais como: definimos conjuntamente as áreas de maior interesse para aprofundamento através de entrevistas formais; elaborámos em conjunto os guiões de entrevista; devolvemos as transcrições aos/às entrevistados/as; reinterpretámos os resultados em sessão de grupo com os profissionais e individualmente com as TS; definimos coletivamente planos de ação; identificámos conjuntamente potencialidades e fragilidades; refletimos em grupo sobre a ação, seguindo as fases dos ciclos de IAP: planificação-ação-reflexão. Naturalmente, existem aspetos mais técnicos da investigação em que apenas a facilitadora assumiu responsabilidade como, por exemplo, o tratamento de dados ou a redação de artigos (van der Meulen, 2011).

Foi possível verificar que as/os participantes partilhavam várias preocupações comuns, relacionadas designadamente com a saúde (toxicodependência, associada a um maior risco de infeção pelo VIH; uso inapropriado e inconsistente do preservativo por parte de outras TS e de clientes de sexo pago) e com a segurança ocupacional — violência contra as mulheres, associada à (in)segurança do trabalho sexual. Na teoria da ação comunicativa, Habermas (1987, 1996) estabelece que, numa ação comunicativa, os sujeitos, de forma consciente e deliberada, pretendem alcançar um acordo interpessoal baseado num entendimento comum, que permite conseguir um consenso não forçado sobre o que fazer numa determinada situação em que se encontram envolvidos. A ação comunicativa é importante na medida em que abre espaços comunicativos, e consequentemente encoraja a solidariedade entre os atores envolvidos e confere legitimidade ao processo de tomada de decisão.

Neste processo, apesar de encontrarmos consenso quanto às áreas prioritárias de ação e vontade de participação individual, identificámos pouca adesão das TS às sessões de grupo para a tomada de decisões coletivas. De acordo com Snow, Zurcher e Ekland-Olson (1980), a respeito do recrutamento de sujeitos para um movimento social, o envolvimento dos participantes é influenciado pela proximidade estrutural, disponibilidade e interação afetiva com os membros do movimento. Se as duas primeiras condições se encontravam, de alguma forma, asseguradas, já as relações entre as participantes TS não se mostraram favoráveis, muito embora algumas tenham aderido à investigação por intermédio de outras. As TS atribuíram a fraca adesão à existência de relações tensas e conflituosas, fomentadas pela prática de diferentes preços, não uso do preservativo, questões territoriais e rivalidades pessoais, às quais acresce a disputa antiga entre as consumidoras de drogas e as que não consomem, tal como apontam outros estudos (McKeganey e Barnard, 1996; Porter e Bonilla, 2010; Oliveira, 2011). Muito embora manifestem a vontade de organização para defesa dos seus direitos, o tipo de relações que fomentam entre si surge como um impedimento organizativo (Ribeiro et al., 2007), tal como ilustram os excertos que transcrevemos:

Nos dias frios, costumavam fazer uma fogueira. A Susana trazia café e quando abria a padaria iam comprar pão quente. Havia mais união entre as mulheres que trabalhavam na rua. Eram muitas, mas davam-se bem. Agora isso não acontece porque praticam preços diferentes. A Mónica leva 5 euros e faz sem preservativo “ela já não tem nada a perder”. Antigamente, as novas quando chegavam iam falar com a Liliana e com a Susana, e, normalmente, era a Susana que lhes dizia para que zonas ir e quanto deviam cobrar. Ameaçava que se cobrassem menos eram expulsas, e tudo funcionava bem. As toxicodependentes começaram a aplicar outros preços e as coisas começaram a correr mal [Liliana, 53 anos, 13 de TS2, registo de diário de campo].

[…] agora ali cada uma luta por… e se puderem pôr a outra abaixo de cão […] podem fazer-se de nossas amigas e depois vão falar bué de mal ao cliente, para o cliente não sair com a gente, sair com elas [Carla, 25 anos, dois de TS, entrevista de grupo].

Ao contrário do que é muitas vezes verbalizado pelas participantes, encontrámos gestos de solidariedade, preocupação e generosidade. As TS afirmam com frequência não existirem amigas nesta atividade, mas rapidamente assumem atitudes de cooperação e companheirismo (Ribeiro et al., 2007; Oliveira, 2011). Contudo, para além de não ser suficientemente forte, a solidariedade, por si só, não gera ação, para tal são necessárias estruturas de mobilização de recursos formais (organizações civis) e informais (redes sociais) que favoreçam a organização (McCarthy e Zald, 1977).

Por outro lado, o estigma surge, mais uma vez, como inibidor de ação, podendo ser entendido como limitação à disponibilidade (Snow, Zurcher e Ekland-Olson, 1980) — ou porque as TS sentem que a sua opinião não tem valor, ou porque para tomarem a linha da frente têm de assumir a atividade e isso acarreta consequências sociais (Oberschall, 1993): problemas com a justiça, com os serviços sociais e de proteção de crianças, com familiares e amigos, etc., pelo que possivelmente após uma ponderação de custos-benefícios (McCarthy e Zald, 1977) optem pela clandestinidade.

Ninguém me deu ajuda, agora ando na proteção de menores…, querem-me tirar a miúda, e acho que é injusto, porque a miúda não está a fazer nada de mal, eu não estou a fazer nada de mal [Margarida, 42 anos, um mês de TS, entrevista individual].

[…] sentirmo-nos mal quando passamos pelas pessoas. Não sabemos o que é que elas estão a pensar, o que é que elas acham de nós, pensam que nós somos lixo [Carolina, 31 anos, dez de TS, entrevista individual].

As TS continuam a preferir manter o anonimato e a confidencialidade nas investigações, o que revela que a opressão, exclusão, discriminação e estigma associados ao trabalho sexual restringem a participação e a mudança. O estigma impede ainda a formação de um sentimento de pertença a um grupo, ou seja, remete para a ausência de uma identidade profissional. Na verdade, para muitos/as TS, a prostituição não é uma identidade, no sentido de cumprir determinadas características sociais ou psicológicas, mas sim uma forma de obter rendimento ou de trabalho (Kempadoo, 1998); e, para outros/as é uma atividade temporária (Agustín, 2007), pelo que não identificam vantagens em tomar uma atitude pró-ativa. Desta maneira, as TS não negam o que fazem, mas talvez façam uma distinção do que são, no sentido de protegerem a sua identidade deteriorada pelo estigma e pela discriminação de que são alvo. Para Mathieu (2003), o principal fator de inibição de ação reside precisamente nesta ambivalência que os/as TS sentem devido ao estigma. Trabalho sexual é trabalho, mas não encontram convicção de que se trate de uma profissão que mereça reconhecimento.

[A] prostituição é um trabalho como os outros, entendes? Mas acaba sempre por não ser um trabalho honesto, certo? Porque se fosse honesto as pessoas não chegavam aqui, não passavam, não nos chamavam putas, por isso é que nunca vai ser um trabalho honesto [Sara, 29 anos, dois de TS, entrevista individual].

O estabelecimento de consensos, bem como o sentimento de injustiça perante a criminalização moral da prostituição, que se encontra patente nos seus discursos, parecem não ser suficientes para serem entendidos no âmbito do coletivo — ou seja, para gerar ação e (re)afirmar o “nós” prostitutas. No “nós” encontra-se implícito o conceito de identidade, como “o processo de construção de significado com base num atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual(is) prevalece(m) sobre outras formas de significado” (Castells, 2003: 3).

 

É possível mover o que está parado? Ou seja, como podemos transformar o consenso e a solidariedade existente em ação coletiva

As diversas atividades de consciencialização individuais e conjuntas promovidas no sentido de identificar temas emergentes de interesse geral, estabelecer planos de ação, de avaliação e de adequação de estratégias, demostraram a pertinência de envolver os sujeitos em pesquisas que lhes dizem respeito. No entanto, mais esforços são necessários de maneira a potenciar a mobilização. Possivelmente, se as participantes pudessem ter usufruído de uma formação inicial que incluísse, à semelhança das TS que colaboraram com Boynton (2002), um treino como coinvestigadoras, com formação a nível teórico, competências pessoais e técnicas, a mobilização para ação coletiva poderia ter sido melhor sucedida. A questão da contrapartida monetária poderia também ser um incentivo, na medida em que muitas dispensaram das suas horas de trabalho para poderem colaborar com a investigação (e.g. o tempo que despenderam nas entrevistas e sessões de grupo). Assim, poderia potenciar a disponibilidade para a participação, tendo em conta que a disponibilidade é um dos fatores que explica a adesão de sujeitos a movimentos sociais (Snow, Zurcher e Ekland-Olson, 1980).

As atividades de IAP podem ter ajudado a providenciar um sentido de controlo e consciencialização, mas a transformação da subjetividade em ação coletiva é ainda necessária.

Para que a constituição de um movimento organizado de TS seja possível é, então, necessário que se opere uma transformação nas condições atuais, designadamente a nível da coesão interna e da capacidade organizativa, de maneira a potenciar a mobilização de recursos necessários à ação coletiva (Oberschall, 1973).

A nível da mobilização de recursos internos, as iniciativas referidas, centradas quer nas necessidades e vontades das TS, quer na formação e educação pelos pares, contribuíram de forma expressiva para a consciencialização e participação. É, no entanto, necessária continuidade e persistência, para que após o término das investigações não se fomentem sentimentos de fracasso e abandono. As instituições que dirigem serviços a TS, pela proximidade e continuidade, podem assumir um papel socioeducativo mais pró-ativo no apoio à mobilização, através do incentivo à participação dos/as TS em iniciativas colaborativas, no sentido da capacitação comunitária e ativismo. Para tal, devem, no nosso entender, adotar uma abordagem centrada na relação, para o desenvolvimento de confiança e para a criação de espaços seguros, isentos de julgamentos e preconceitos, que incitem a múltiplos diálogos e promovam atividades de consciencialização.

A RTS, da qual faz parte a maioria dessas instituições, tem vindo a desempenhar um papel crucial enquanto aliada para a mobilização de recursos externos. A sua atividade tem contribuido amplamente para desafiar o preconceito e estigma, bem como para desmitificar imagens estereotipadas do trabalho sexual e seus atores, junto da opinião pública e dos quadrantes políticos. Porém, é importante que as/os TS assumam a liderança desta rede dado que, para além de melhor representarem as suas reivindicações, conseguem potenciar o recrutamento através dos laços interpessoais prexistentes e emergentes (Snow, Zurcher e Ekland-Olson, 1980) com os/as colegas, e através do processo de identificação/pertença a um grupo que se implica na construção do ator social coletivo. Os elementos da RTS que não são TS deveriam, salvo solicitação expressa em contrário, assumir um papel consistente com o de “simpatizante do movimento” que, na conceção de Snow, Zurcher e Ekland-Olson (1980), compreende os indivíduos que fornecem suporte à concretização dos objetivos do movimento, mas não dedicam tempo, energia ou outros recursos.

Em síntese, os exemplos expostos em ambas as partes deste artigo mostram a possibilidade de os/as TS empreenderem ações coletivas de protesto e reivindicação. Apesar de alguns episódios de mobilização, uma mudança na capacidade de agir coletivamente é ainda premente para que um movimento organizado de TS se consolide na sociedade portuguesa.

 

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Data de receção: 14 de abril de 2016 Data de aprovação: 28 de julho de 2017

 

Notas

[1] Outreach é considerada uma estratégia de alcance de grupos considerados de difícil acesso, com o principal objetivo de estabelecer contacto com estes e providenciar o suporte adequado.

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