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Sociologia, Problemas e Práticas

versión impresa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.89 Lisboa ene. 2019

https://doi.org/10.7458/SPP2019899489 

ARTIGO ORIGINAL

Investigação sobre desigualdades sociais de saúde em Portugal: breve panorama a partir de uma revisão da literatura

Investigating social inequalities in health in Portugal: brief overview based on a review of the literature

Recherche sur les inégalités sociales de la santé au Portugal: bref panorama à partir d’une révision de la littérature

Investigación sobre desigualdades sociales de salud en Portugal: breve panorama a partir de una revisión de la literatura

 

Sara Luísa Leite Conceição*

* Doutoranda em Sociologia, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto, Portugal. E-mail: sara.luisa.conceicao@hotmail.com

 

RESUMO

O aumento global da esperança média de vida e a melhoria dos indicadores de saúde da população mundial não traduzem uma redução das desigualdades sociais de saúde, nacionais ou internacionais. No artigo que aqui se apresenta procurámos identificar e rever os estudos mais representativos da investigação feita em Portugal nas últimas quatro décadas sobre desigualdades sociais de saúde, a partir de indicadores de pertença socioeconómica. Tecem-se algumas considerações sobre a necessária consolidação deste campo de investigação.

Palavras-chave: desigualdades sociais de saúde, indicadores de pertença socioeconómica, mortalidade diferencial, morbilidade diferencial.

 

ABSTRACT

The overall increasing of average life expectancy and the improvement of health indicators on the world’s population does not reflect a social health inequalities decrease, on national and international contexts. In this article we sought to identify and review the Portuguese most representative studies of the last four decades on social health inequalities, based on indicators of socioeconomic position. It also presents some considerations about the crucial consolidation of this research field.

Keywords: social health inequalities, indicators of socioeconomic position, differential mortality, differential morbidity.

 

RÉSUMÉ

L’augmentation globale de l’espérance de vie et l’amélioration des indicateurs de santé de la population mondiale ne reflètent pas une réduction des inégalités sociales de santé, tant sur le plan national qu’international. Le présent article passe en revue les études les plus représentatives de la recherche réalisée au Portugal tout au long des quarante dernières années sur le thème des inégalités sociales de santé, et ce à partir d’indicateurs de position sociale. Sont également présentées quelques considérations sur la consolidation nécessaire dans ce champ de recherche.

Mots-clés: inégalités sociales de santé, indicateurs de position sociale, mortalité différentielle, morbidité différentielle.

 

RESUMEN

El aumento global de la esperanza media de vida y la mejora de los indicadores de salud de la población mundial no se reflejan en una reducción de las desigualdades sociales de salud, nacionales o internacionales. En el artículo que aquí se presenta procuramos identificar y rever los estudios más representativos de la investigación realizada en Portugal en las últimas cuatro décadas sobre desigualdades sociales de salud, a partir de indicadores de pertenencia socioeconómica. Se plantean algunas consideraciones sobre la consolidación necesaria de este campo de investigación.

Palabras-clave: desigualdades sociales de salud, indicadores de pertenencia socioeconómica, mortalidad diferencial, morbilidad diferencial.

 

You can’t divorce your history from your body. It’s in there, biologically. (Nancy Krieger, 2008)

 

O aumento global da esperança média de vida e a melhoria dos indicadores do estado de saúde da população mundial observados desde o final da Segunda Guerra Mundial poderiam, se não iludir a persistência de desigualdades sociais de saúde, sugerir que elas estariam em regressão. No entanto, estas desigualdades, que desde o final do século XIX tinham vindo a ser documentadas, não só perduram como, em múltiplos contextos, se intensificaram (ver Danet, 2010; Wickham et al., 2016).

À escala internacional, a sua persistência é relativamente evidente e dificilmente contestável. A título de exemplo, podemos mencionar o fosso entre a esperança média de vida à nascença no Japão — 84 anos — e na Serra Leoa — 46 anos. Se estes dois países são frequentemente citados, por ocuparem as posições extremas nas tabelas internacionais, outros dados há que permitem uma melhor avaliação da intensificação destas desigualdades. Assim, observar-se-á, por exemplo, que no bloco formado pela Europa Ocidental houve uma progressão constante da esperança média de vida à nascença, enquanto noutras zonas do mundo se assistiu não só a uma estagnação dos valores destes indicadores como, em algumas circunstâncias, à sua regressão. É o caso da situação no Lesoto, onde, entre 1990 e 2013, a esperança média de vida à nascença diminuiu 11 anos, ou ainda na Suazilândia, no Zimbabué e no Botsuana, onde diminuiu, respetivamente, 8 anos, 3 anos e 1 ano (WHO, 2015).

No interior dos países, no entanto, as desigualdades sociais de saúde constituem frequentemente um “ponto cego do espaço social” (Fassin, 1997: 8), confortado por uma crença amplamente partilhada de uma “irredutível disparidade dos seres, biologicamente inscrita”, que “ressurge regularmente no espaço público, por ocasião de descobertas em genética que associam estruturas moleculares e comportamentos humanos” (Fassin, 2000: 14).

Concorrem para isto vários elementos. O mais complexo de todos eles será o facto de a saúde ser um “fenómeno fundamentalmente multidimensional” (Trannoy, 2009: 20) e de, por isso, ser virtualmente impossível a delimitação de fronteiras exatas entre causas biológicas e sociais, impossibilidade que contribui fortemente para a perenização de representações amplamente partilhadas que naturalizam a saúde e a doença e iludem os processos sociais inscritos nos corpos (Fassin, 2005), e que foram, nas últimas décadas, confortadas pelo “ ‘regresso em força’ da hereditariedade […] sob a forma da ‘predisposição genética’” (Berlivet, 2010: 40).

As desigualdades sociais de saúde podem ser definidas como disparidades no estado de saúde de indivíduos, observadas de forma sistemática e ligadas a critérios de diferenciação social (Aïach, 1996; Whitehead e Dahlgren, 2007). Elas manifestam-se através de um padrão estável e duradouro, segundo o qual a saúde dos indivíduos melhora à medida que nos aproximamos do topo da hierarquia social. Ainda que este “gradiente social” (Marmot, 2004) não seja perfeitamente linear (Krieger, 2014), ele indica que a saúde das pessoas é afetada de forma direta, sistemática e persistente pela sua posição no espaço social. As desigualdades sociais de saúde são, portanto, não só fruto de agenciamentos sociais, como profundamente injustas (Witehead e Dahlgren, 2007), especialmente se considerarmos que o estado de saúde diferencial dos diversos grupos sociais hierarquizados começa a construir-se ainda na vida intrauterina.[1] Neste sentido, os padrões de saúde e doença das populações apresentam-se como expressão encorporada das suas condições sociais de existência (Krieger, 2014).[2]

No plano internacional, o interesse pelas desigualdades sociais de saúde aumentou consideravelmente nas últimas décadas. No entanto, uma parte muito significativa da investigação está hoje mais orientada para o estudo das suas causas que para a sua medição (Devaux et al., 2008; Marmot, 2005) ou para a observação das diferenças e disparidades que se manifestam a jusante das doenças (Aïach, 2000).

Na análise que aqui levamos a cabo procuramos dar conta dos estudos mais relevantes que sobre as desigualdades sociais de saúde se desenvolveram em Portugal nas últimas quatro décadas. Interessavam-nos particularmente aqueles que tinham por objetivo a quantificação ou a qualificação destas desigualdades ou o estudo, quantitativo e/ou qualitativo, dos impactos diferenciais das doenças, pelo que não foram aqui consideradas as investigações centradas na análise dos mecanismos dos determinantes sociais de saúde.[3] Procedeu-se para tal a uma revisão sistemática da literatura, identificada a partir dos principais catálogos e bases de dados nacionais, assim como da base de dados internacional EBSCO. As principais palavras-chave utilizadas para esta consulta foram: desigualdades sociais de saúde, desigualdades em saúde, iniquidade em saúde, mortalidade diferencial, morbilidade diferencial. Quando as pesquisas foram realizadas em inglês, acresceu-se-lhes sempre a palavra-chave Portugal. Esta revisão inclui assim trabalhos oriundos não só da sociologia e de outras ciências sociais, mas também da medicina/epidemiologia. Por razões de ordem metodológica, não foi, salvo raríssimas exceções, considerada a chamada literatura cinzenta, ainda que estejamos cientes de que nela se encontra frequentemente o que de mais atual há na investigação.

Considerando, como já referido, que as desigualdades sociais de saúde se expressam num continuum (Marmot, 2006), o seu estudo só dificilmente poderia fazer-se através de um enquadramento teórico dicotómico de tipo inclusão-exclusão, requerendo antes uma análise em termos de desigualdade social, no sentido em que esta remete para o conjunto da estrutura social, “composta por classes e por categorias socioprofissionais, eventualmente por castas e por etnias, hierarquizadas tanto do ponto de vista da riqueza como do do saber e do poder” (Aïach, 1996: 9). Assim, privilegiaram-se aqui os estudos realizados a partir de indicadores de pertença socioeconómica. Não pretendíamos, através da definição destes critérios, negar a importância dos efeitos específicos que é possível observar através de outros indicadores, como o género ou a nacionalidade. No entanto, eles tendem a operar dentro dos “limites” das pertenças de classe, como evidenciam os estudos que realizam uma triangulação desses indicadores. As conceções subjacentes à determinação destes critérios, não partem do princípio, como afirmam Costa et al. (2000: 10), “que todas as facetas relevantes da realidade social sejam redutíveis às relações de classe ou necessariamente delas decorram, muito menos de maneira direta e linear, sem mediações”, no entanto, isto não significa também “que as condições de existência das pessoas tenham deixado de ser condicionadas por relações assimétricas de poderes e por distribuições diferenciadas de recursos e oportunidades” (ibidem).

Analisaram-se assim dezoito estudos, cinco oriundos da área científica sociologia (Ferreira e Silva, 2007; CRPG/ISCTE, 2007; Vintém, 2008a e 2008b; Antunes, 2011) quatro da economia (Giraldes e Ribeiro, 1995; Giraldes, 1996; Pereira, 1998; Veiga, 2005); um da geografia (Santana, 2002); um da medicina/epidemiologia (Perdigão et al., 2009); um das ciências do desporto (Sardinha et al., 2012) e seis resultantes de colaborações interdisciplinares, quatro delas entre a geografia e a medicina/epidemiologia (Machado et al., 2007; Harding et al., 2008; Williamson et al., 2009; Nogueira et al., 2014); um entre a geografia e a economia (Ferreira e Santana, 2003); e um entre a economia e a medicina/epidemiologia (Ribeiro, Furtado e Pereira, 2013). Deve notar-se que quatro dos seis estudos conduzidos por equipas pluridisciplinares contam com a participação da professora Paula Santana (Harding et al., 2008; Williamson et al., 2009; Machado et al., 2007; Ferreira e Santana, 2003), que se tem destacado na investigação que em Portugal se faz em Geografia da Saúde.

A análise da pertença institucional dos autores permite verificar que a totalidade dos estudos oriundos da área científica sociologia se concentrou no ISCTE — Instituto Universitário de Lisboa, e no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL); e os da área científica economia na Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP-UNL), com exceção do trabalho de Paula Veiga, pertencente ao Departamento de Economia da Universidade do Minho. Os trabalhos realizados por equipas pluridisciplinares resultam em dois casos de colaborações internacionais (Universidade de Coimbra, Medical Research Council, Social and Public Health Sciences Unit de Glasgow e Queen’s University de Belfast); um terceiro decorre de uma colaboração entre a Universidade de Coimbra e o Departamento de Pediatria do Hospital Fernando Fonseca, na Amadora; um quarto de uma colaboração intrauniversitária (Universidade de Coimbra) e um último de uma colaboração entre a ENSP-UNL e o Serviço de Cardiologia do Hospital de Santa Maria, em Lisboa.

A Revista Portuguesa de Saúde Pública publicou três dos dezoito estudos analisados, tendo, dos quinze restantes, nove sido divulgados em nove periódicos diferentes (nacionais e internacionais) e dois como working papers; um foi editado pela entidade que encomendara o estudo e um como capítulo de uma monografia; um apareceu como comunicação a um congresso e um outro como resultado de uma tese de doutoramento, como indicado no quadro 1.[4]

 

 

Como afirma Chenu (2000), a análise das desigualdades sociais de saúde mobiliza uma definição explícita ou implícita da estrutura social, referindo-se uma definição explícita “a uma teoria sociológica, geralmente formulada em termos de estratificação social ou de classes sociais”, enquanto uma definição implícita “privilegia empiricamente tal ou tal nomenclatura estatística — frequentemente uma nomenclatura de posições ‘socioprofissionais’ ou de ‘status socioeconómico’, por vezes também de indicadores” como sejam o tipo de habitação ou o nível de vida (ibidem: 93-94). Apesar da relativa pluralidade de origens disciplinares, todos os autores, com exceção de Antunes (2011) e Vintém (2008a e 2008b), mobilizam nos estudos aqui analisados uma definição implícita da estrutura social.

Neste quadro, o “nível de escolaridade” foi o indicador mais utilizado para a aferição da pertença socioeconómica, tendo sido empregue em seis dos dezoito estudos e pelo menos uma vez por todas as áreas disciplinares com exceção da sociologia. O “grupo socioprofissional” foi, por seu lado, utilizado em cinco casos, três pela área científica sociologia, um pela economia e um por uma equipa pluridisciplinar composta por investigadores oriundos da geografia e da medicina/epidemiologia. O “rendimento” foi utilizado três vezes, em dois casos por autores provenientes da área científica economia e, num terceiro, por um grupo de trabalho pluridisciplinar maioritariamente composto por autores desta mesma área. De forma isolada, foram ainda utilizadas a “situação perante o emprego” (geografia) e a “classe profissional — manual/não manual” (equipas pluridisciplinares). Por fim, Antunes (sociologia) fez uso de uma tipologia classificatória de lugares de classe (ACM).

No plano teórico, a análise e contagem das referências bibliográficas permite perceber a centralidade dos marcos provenientes das disciplinas de origem dos investigadores, verificando-se apenas uma tímida partilha de referências autorais entre as áreas científicas economia, geografia e sociologia (são exemplo os trabalhos de Mackenbach, Macintyre, Towsend, Van Doorslaer ou ainda de Whitehead). Sem surpresa, Pereira, Santana e Giraldes ocupam lugar de destaque entre as referências portuguesas, embora os seus trabalhos pareçam ser mobilizados com maior facilidade pelos investigadores que com eles partilham a disciplina de origem. Deve notar-se ainda que apenas os autores da área científica sociologia referenciam contributos da escola francesa para o estudo das desigualdades sociais de saúde (Aïach, Chenu, Fassin, Ravaud).

Por fim, importa realçar que nenhum dos trabalhos apresentados propõe uma modelização das desigualdades sociais de saúde, sendo antes todos eles de natureza descritiva.

 

Desigualdades sociais de saúde em Portugal

Mortalidade

À semelhança do que acontece noutros países, em Portugal o estudo das desigualdades sociais de saúde tem sido fortemente marcado pela utilização de indicadores de mortalidade. Com efeito, a morte é “considerada como o termo de um processo no qual intervêm todos os elementos da vida social e psíquica que se inscreveram no corpo” (Aïach, 2000: 86), apresentando “a vantagem de se reportar a um facto inequívoco e que exige, normalmente, uma declaração oficial validada pelo médico, permitindo, assim, estandardizar a causa de morte e estabelecer comparações nacionais e internacionais dos dados” (Cabral, Silva e Mendes, 2002: 34).

Neste âmbito, o primeiro grande estudo é o que, em 1995, Giraldes e Ribeiro apresentam num documento da Associação Portuguesa de Economia da Saúde — “Desigualdades socioeconómicas na mortalidade em Portugal, no período 1980/82-1990/92”.[5] A partir dos dados dos recenseamentos de 1981 e de 1991, as autoras analisam a distribuição social da mortalidade e a sua evolução em Portugal ”para todas as causas, por grandes grupos de doenças, por principais causas de morte individualizadas e para ambos os sexos” (1996: 110). O estudo permite não só identificar uma desigual repartição dos padrões de mortalidade pelos grupos ocupacionais, mas também perceber que, dentro destes, o gradiente social de prevalência de doenças e de sobrevivência difere entre homens e mulheres.

Naqueles vinte anos, os “especialistas das profissões científicas, técnicas, liberais e similares” e os “quadros superiores da administração pública e privada” ocuparam as melhores posições relativas nas taxas de mortalidade padronizadas (TMP) e isto tanto entre os homens como entre as mulheres. No extremo oposto, os piores resultados observaram-se, no caso dos homens, entre os “agricultores, criadores de animais e trabalhadores florestais, pescadores e caçadores” e, no caso das mulheres, no grupo dos “operários e trabalhadores não agrícolas e condutores de engenhos e transportes” em 1980-82, e na categoria dos “empregados de escritório” em 1990-92. Entre os homens, a situação do grupo “operários e trabalhadores não agrícolas e condutores de engenhos e transportes” melhorou em relação a algumas causas de morte, tendo-se, a título de exemplo, registado uma diminuição de cerca de 40% das taxas de mortalidade padronizadas por tumor maligno do aparelho digestivo.

Entre as mulheres, destaca-se o facto de aquelas do grupo “agricultores, criadores de animais e trabalhadores florestais, pescadores e caçadores” serem as que, nos dois períodos, registaram a melhor situação relativa de morte por neoplasmas e a segunda melhor por doenças cardiovasculares. Da mesma forma, as mulheres do grupo “operários e trabalhadores não agrícolas e condutores de engenhos e transportes” apresentaram em 1990-92 uma TMP global cinco vezes inferior àquela de 1980-82, dado este que evidencia uma melhoria significativa da sua situação relativa.

Em 2007, em “Diferenças sociais na morte”, Ferreira e Silva (2007) analisam a evolução dos óbitos entre 1981 e 2001 na população ativa portuguesa através da relação entre a profissão e a causa de morte.

O estudo constata neste período uma diminuição do número de mortes entre a população ativa, por razões ligadas à “contração etária da população que se encontra empregada” (ibidem: 75), e uma “especialização socioprofissional” do padrão das causas de morte — “os indivíduos com estatuto socioprofissional mais elevado […] morrem mais tardiamente e sobretudo de doenças do aparelho circulatório e de tumores malignos […] enquanto os trabalhadores manuais, especializados e não especializados, tendem a morrer mais cedo, muito devido a lesões traumáticas e a envenenamentos que ocorrem em idades mais jovens” (ibidem: 80). Da mesma forma, dá-se conta de uma juvenilização da morte, intimamente ligada à estrutura social — quanto mais próximo do fundo da hierarquia social mais cedo se morre. Assim, em 1981, “até à idade dos 44 anos faleceram cerca de um quarto dos trabalhadores manuais especializados e não especializados” (ibidem: 77), contra 13,2% dos “proprietários, dirigentes e profissionais liberais”, tendência que se mantinha em 2001. Quando comparados os dois extremos da escala social, em 2001, a sobrevida dos grupos mais ricos era de quase sete anos em relação aos grupos mais pobres.

No período em questão, a distribuição relativa do número de óbitos pelas diferentes categorias profissionais sofreu alterações significativas, ligadas principalmente ao crescimento do setor terciário e à diminuição das atividades agrícolas e industriais. Assim, o número relativo de óbitos triplicou nas categorias profissionais dos “quadros médios e superiores” (de 4,6% em 1981 para 12,2% em 2001) e dos “trabalhadores manuais não especializados” (de 2,4% em 1981 para 7,3% em 2001), e diminuiu significativamente na categoria dos “trabalhadores manuais especializados” (de 71,9% em 1981 para 53,6% em 2001). Da mesma forma, o número de mortes entre as mulheres mais do que duplicou (de 6% em 1981 para 13,7% em 2001), assistindo-se a uma “feminização da morte em todas as ocupações socioprofissionais à exceção dos trabalhadores manuais especializados” (ibidem: 77).

Os resultados obtidos nestes dois estudos são secundados pelo trabalho de Ricardo Antunes (2010, 2011) que, recorrendo a dados oriundos dos processos clínicos de óbitos ocorridos em dois hospitais públicos (Lisboa e Alentejo), apura igualmente a existência de um gradiente social de saúde indissociável da pertença de classe. Importa realçar que, se os dois estudos anteriores consideraram os óbitos ocorridos apenas na população ativa, este engloba todas as faixas etárias, sendo por isso mais abrangente, já que contempla também o conjunto populacional onde se observam mais mortes (³ 65 anos). Interessante é ainda o facto de o autor cruzar neste estudo a pertença de classe com a pertença geográfica, concluindo que, dentro da mesma classe social, as populações que vivem em cidades de pequenas dimensões tendem a registar taxas de sobrevida importantes e que essa sobrevida é superior nas classes de menores recursos.

Por razões ligadas à composição social do grupo “empresários, dirigentes e profissionais liberais”,[6] a maior diferença na longevidade registou-se entre os “profissionais técnicos e de enquadramento” e os “operários”. Assim, enquanto aqueles viviam, em média, 82,3 anos em Beja e 81,7 anos em Lisboa, estes viviam 69,8 anos em Beja e 67,9 anos em Lisboa.

Também aqui os dados apontaram a existência de desigualdades ligadas ao género. No conjunto da amostra, as mulheres viviam, em média, mais três anos que os homens, mas era entre os “operários” que os efeitos específicos do género, traduzidos na sobrevida feminina, eram mais importantes (cerca de 6,3 anos a mais que os homens). Entre os “profissionais técnicos e de enquadramento” esta diferença era, em média, de apenas 0,4 anos.

A análise revelava ainda que “para iguais causas de morte a longevidade varia de acordo com as classes sociais” (Antunes, 2010: 20). Assim, por exemplo, para a causa de morte “cancro”, o autor verificava uma sobrevida de 9,8 anos dos “profissionais técnicos e de enquadramento” em relação aos “operários” e uma sobrevida de 12,4 anos quando a causa de morte era “enfarte do miocárdio”. Da mesma forma, e ainda para a causa de morte “cancro”, os “empregados executantes” morriam, em média, 8,1 anos mais cedo que os “profissionais técnicos e de enquadramento” e 7,5 anos mais cedo se a causa de morte fosse um AVC.

A desigual longevidade face a uma mesma causa de morte já tinha merecido alguma atenção, no âmbito do estudo comparativo internacional “Health of Africans in Portugal” (Harding et al., 2008; Williamson et al., 2009). Neste quadro, Harding et al. (2008) compararam a mortalidade por doença cardiovascular de imigrantes africanos a viver em Portugal com a de portugueses, concluindo não só que estas taxas de mortalidade eram superiores entre os imigrantes africanos, mas também que as diferenças entre as classes profissionais na mortalidade eram maiores entre aqueles do que entre os portugueses.

Os resultados encontrados por Williamson et al. (2009) atestavam, também eles, a desvantagem social de saúde dos imigrantes e dentro do grupo imigrante, a desigualdade resultante da pertença socioprofissional. Assim, se no grupo dos nascidos em Portugal as doenças infeciosas eram responsáveis por 5,7% das mortes (67,6% causadas por sida e 9,7% por tuberculose), no grupo dos nascidos em África estes valores subiam para os 16,8% (79,3% por sida e 7,7% por tuberculose). Refinando a análise dos dados do grupo imigrante, os autores encontravam uma desigual distribuição desta causa de morte por classe profissional, apresentando os “trabalhadores manuais” taxas de mortalidade por sida significativamente superiores às dos “trabalhadores não manuais”.

Morbilidade

Apesar de a mortalidade ser, como acima exposto, o indicador mais utilizado para o estudo das desigualdades sociais de saúde, tem crescido o interesse pelos indicadores de morbilidade.

Importa, porém, referir que, ainda que os estudos realizados a partir destes indicadores permitam dar melhor conta do estado de saúde dos vivos, sobretudo no que respeita a doenças de fraca letalidade (Pereira, 1998), estes apresentam também algumas limitações, ligadas essencialmente à obtenção da informação para medição dos estados de morbilidade — feita sobretudo através inquéritos de morbilidade ou da análise de fontes médicas. Se no primeiro caso a informação é condicionada pela memória das pessoas e pela sua perceção das afeções, também ela socialmente diferenciada (Boltanski, 1971), no segundo é importante observar que a notação das doenças nos processos clínicos, realizada pelos profissionais de saúde, ainda que pouco estudada, não é social nem sociologicamente neutra, mas tributária tanto dos processos e das técnicas de observação como da relação social complexa que se estabelece entre os profissionais de saúde e os pacientes (Boltanski, 1971; Antunes, 2010).

Em Portugal, o primeiro estudo realizado a partir de indicadores de morbilidade parece pertencer também a Giraldes (1996). Partindo dos dados do Inquérito Nacional de Saúde (INS) de 1987, a autora analisou as alterações do estado de saúde por grupos etários, sexo e escolaridade, concluindo que o peso do gradiente “idade” no estado de saúde variava em função do grau de escolaridade dos sujeitos. Assim, quanto menor a escolaridade, mais cedo se referiam alterações ao estado de saúde, facto que tinha maior peso entre os homens. Da mesma forma, a influência do fator “nível de escolaridade” na declaração de morbilidade realizada pelo próprio parecia acentuar-se a partir dos 55 anos.

Os resultados obtidos em 2003 por Ferreira e Santana apontavam, também eles, nesta direção. Partindo da análise de 2500 entrevistas, os autores encontraram uma relação significativa entre o estado de saúde percebido e o nível de escolaridade, numa tendência em que, quanto mais baixas as qualificações escolares, pior o estado de saúde percebido. Nesta amostra, porém, e ao contrário do que sucedia no estudo de Giraldes, o impacto da variável “escolaridade” era superior entre as mulheres.

Esta relação foi ainda encontrada por Paula Veiga (2005), que, a partir dos dados do INS de 1998/99, identificou as variáveis “atividade ocupacional” e “nível de escolaridade” como aquelas que maior impacto tinham na definição das desigualdades de saúde percebida. Neste quadro, os grupos com maiores rendimentos referiam o melhor estado de saúde, enquanto as pessoas desempregadas mencionavam um fraco estado de saúde, significativamente inferior ao daquelas que trabalhavam a tempo inteiro e ao dos estudantes.

Também a análise feita por Vintém em “Inquéritos Nacionais de Saúde: auto-percepção do estado de saúde” (2008a) encontrava entre as pessoas com menos de quatro anos de escolaridade a maior tendência para classificar o seu estado de saúde como “mau” ou “muito mau”, e isto apesar da alteração que este padrão sofreu ao longo dos dez anos em análise (60% em 1995/96 classificavam a sua saúde como “má” ou “muito má”, contra 15% em 2005/2006). Neste período verificou-se igualmente uma diminuição do peso das pessoas com níveis de escolaridade mais baixos entre os que consideravam a sua saúde como “muito boa” e “um aumento da percentagem nos homens com níveis de escolaridade superiores, isto é, com 7 a 12 anos de escolaridade […] e 13 e mais anos” (ibidem: 9).

Todos estes dados parecem concordar para que se afirme que, em Portugal, fracos níveis de escolaridade se combinam com pior estado de saúde percebido.

Neste quadro, importa ainda referir o estudo de Vintém sobre “Desigualdades de género e sociais na saúde e na doença em Portugal” (2008b), contributo significativo para a compreensão da articulação entre indicadores de classe social, género e perceções de saúde e doença. Analisando os dados do Inquérito Social Europeu — 2004, o autor verificava a “existência de discrepâncias na maneira como cada categoria social autoavalia o seu estado de saúde, como se qualifica o sentimento de bem-estar, em que medida se utilizam os cuidados de saúde através do recurso a consultas médicas” (ibidem: 11). A título de exemplo, só 18,2% dos “assalariados agrícolas e das pescas” consideravam a sua saúde como “boa” ou “muito boa”, contra 46,4% dos “operários” e dos “profissionais técnicos e de enquadramento”; da mesma forma, 40% dos “assalariados agrícolas e das pescas” tinham ido ao médico seis ou mais vezes nos doze meses que antecederam o estudo, contra apenas 17,8% dos “operários” e 15,7% dos “profissionais técnicos e de enquadramento”. Os dados sugeriam assim que as categorias sociais que enfrentam condições de vida mais difíceis apresentam mais episódios de doença, “com repercussões na maneira como se avalia o próprio estado de saúde, como se afirma o sentimento de bem-estar e como se evidencia uma maior necessidade de recurso ao saber médico para resolver esses problemas de saúde” (ibidem: 11).

Já em 2002 Santana tinha dado conta da importância da situação perante o emprego na definição da saúde percebida. Assim, 25,7% dos desempregados de longa duração que integravam a amostra afirmavam sofrer de problemas de saúde mental, 94,4% consideravam a sua saúde “inferior a boa”, e 29,4% julgavam que ela se tinha mesmo degradado no decorrer do último ano.

Mais recentemente, em 2012, Luís B. Sardinha et al. publicam “Prevalence of overweight, obesity, and abdominal obesity in a representative sample of portuguese adults”. A partir do estudo de uma amostra representativa de 9447 indivíduos, os autores verificam que o risco de sobrepeso, de obesidade e de obesidade abdominal aumenta significativamente à medida que diminui o grau de escolaridade das pessoas. Assim, em 2005-2006, 45,5% dos homens que declaravam ter seis ou menos anos de escolaridade apresentavam sobrepeso, contra 35,6% e 38,3% daqueles que tinham, respetivamente, frequentado ou concluído o ensino secundário ou superior. No caso das mulheres, as diferenças eram mais vincadas, com 38,7% destas com seis ou menos anos de escolaridade a apresentarem sobrepeso, contra 21,6% e 19,1% das que tinham, respetivamente, frequentado ou concluído o ensino secundário ou superior. Este exemplo é tanto mais interessante porquanto ele permite aferir a não linearidade do gradiente social de saúde e os efeitos específicos do género que operam na construção e vigilância do corpo.

Por fim, não poderíamos deixar de referir os resultados da análise feita em Elementos de Caracterização das Pessoas com Deficiências e Incapacidades em Portugal (CRPG/ISCTE, 2007). Com efeito, e apesar de não ter como objetivo o estudo das desigualdades sociais de saúde associadas às situações de deficiência, esta análise revela que as posições sociais de menores recursos concentram a maioria das pessoas classificadas com “deficiências e incapacidades”.

Morbilidade por doenças cardiovasculares

No magro estudo das desigualdades sociais de saúde que em Portugal se tem feito através de indicadores de morbilidade, tem sido notório o interesse pelas doenças cardiovasculares. Não será alheio a isto o facto de elas serem, em Portugal, a principal causa de morte (DGS, 2014). No entanto, não deixa também de ser pertinente referir que o interesse por determinados campos das desigualdades sociais de saúde pode “traduzir realidades mais complexas ligadas tanto à imagem das patologias em questão quanto à natureza dos grupos afetados [e que] as conotações simbólicas que conferem a um órgão ou a uma especialidade uma maior distinção na hierarquia do corpo e da medicina, como as considerações sociais e políticas, em parte ligadas à capacidade de mobilização das categorias afetadas para defender os seus interesses em matéria de saúde, desempenham claramente um papel, raramente discutido” (Fassin, 2000: 23).

Em 2009, a partir da análise do estudo Amalia,[7] Perdigão et al. constatam sucintamente a existência de um continuum na desigual distribuição da hipertensão arterial (fator de risco de doença cardiovascular) por nível de escolaridade — “verifica-se uma elevada prevalência nos indivíduos sem escolaridade (34,1%) e nos que têm apenas o 1.º ciclo de escolaridade (28,3%), apresentando o valor mais baixo no grupo com maior escolaridade (> 12 anos — 14%) e valores intermédios nos graus de escolaridade também intermédios” (ibidem: 19).

Em 2013, Ribeiro, Furtado e Pereira apuram também, a partir dos dados do 4.º INS, a existência de um padrão de distribuição das doenças cardiovasculares favorável aos grupos socioeconómicos com mais recursos. Estes grupos eram assim os que registavam as menores frequências de doença cardiovascular, principalmente de doença cardiovascular isquémica e de AVC. Os maiores níveis de desigualdade observaram-se em relação a esta doença: quanto mais perto do fundo da escala social, maior era a probabilidade de se ter um AVC. A concentração da maioria dos fatores de risco cardiovasculares estudados e das doenças cardiovasculares nos níveis socioeconómicos (NSE) mais baixos era ainda acompanhada por uma desigual distribuição das consultas médicas, a favor dos NSE mais elevados, indicador muito relevante de uma iniquidade na prestação de cuidados de saúde.[8]

Morbimortalidade infantil

No quadro do estudo das desigualdades que aqui analisamos, as questões da morbimortalidade infantil têm também sido objeto de algumas investigações.

Em “Inequality in infant mortality in Portugal, 1971-1991”, Pereira (1998) analisa o impacto das desigualdades socioeconómicas na mortalidade infantil. O estudo, que considera quatro componentes — mortalidade perinatal, neonatal, pós-neonatal e infantil —, averigua a existência não só de uma associação clara entre baixos rendimentos e taxas de mortalidade infantil mais elevadas, mas também de um ”claro padrão nos valores relativos dos quatro indicadores" (ibidem: 83), em que “a desigualdade é sempre maior para a mortalidade pós-neonatal e mínima para as componentes perinatal e neonatal” (ibidem: 84).

Nestes 20 anos, regista-se uma diminuição significativa da desigualdade associada ao rendimento, embora se notem “sinais de que a posição dos muito pobres não mostrou grandes melhorias” (ibidem: 90). Os dados permitem ainda verificar a quase erradicação da mortalidade próxima do nascimento, mas mostram também o recrudescimento da desigualdade na distribuição das mortes de crianças com idades até aos 12 meses, ainda que a situação não fosse, em 1991, comparável àquela que se vivia em 1970.

Em 2007, Machado et al. debruçaram-se sobre a relação existente entre a morbimortalidade infantil e o contexto físico e social, analisando a situação nos concelhos de Amadora e Sintra. Neste quadro, registavam-se desigualdades manifestas entre a população imigrante africana e os portugueses, traduzida por uma “maior mortalidade fetal e neonatal e mais patologias durante a gravidez, nomeadamente de doenças infeciosas” entre os imigrantes (ibidem: 103). Assim, por exemplo, a mortalidade perinatal registada entre os filhos dos imigrantes era de 13,1%, contra 7,1% entre os filhos dos portugueses. Da mesma forma, a prematuridade era significativamente maior entre os filhos de imigrantes (10%) que entre os filhos de portugueses (7,9%) e maior a morbilidade entre as mães imigrantes (30,6% contra 26,1%). As características das famílias estudadas elucidavam estes resultados, evidenciando-se “maior privação sociomaterial das famílias de imigrantes em comparação com o valor de menor privação apresentado pelo grupo dos portugueses” (ibidem: 114). Os indicadores de pertença socioprofissional permitiam perceber que as mães imigrantes se concentravam essencialmente no grupo dos trabalhadores manuais, sendo também entre elas mais frequentes as situações de desemprego. Igualmente relevante é ainda o facto de o estudo ter exposto a “maior privação sociomaterial das crianças que estiveram internadas, independentemente de os pais serem imigrantes ou portugueses” (ibidem: 115).

Mais recentemente, em 2014, Nogueira et al. publicam nos Cadernos de Geografia o estudo “Desigualdades sociais em saúde: o exemplo da obesidade infantil”. A partir da observação de quase 2000 crianças residentes no concelho de Coimbra e em idade escolar, os autores desvelam a existência de um “gradiente social claro e significativo” (ibidem: 136), segundo o qual a prevalência do excesso de peso e da obesidade aumenta à medida que decresce o estatuto socioprofissional da família de origem.

 

Conclusão

Procurámos na análise aqui efetuada identificar os estudos mais relevantes que sobre desigualdades sociais de saúde se realizaram em Portugal nas últimas décadas, de acordo com os critérios apresentados na introdução.

No decorrer do trabalho de recenseamento das publicações, muitos foram os estudos identificados que se debruçam sobre esta temática a partir de outros indicadores. Destaca-se um número significativo de estudos realizados sobre a distribuição geográfica dos estados de saúde das populações, que permitem adivinhar as correlações existentes entre os elementos de caracterização socioeconómica daqueles territórios e os indicadores de morbimortalidade. Da mesma forma, são numerosas as análises realizadas a partir do indicador género, parecendo as desigualdades sociais de saúde entre homens e mulheres, mais particularmente as diferenças de mortalidade, largamente documentadas, muito embora as diferenças observadas entre os dois sexos tendam a “mobilizar frequentemente uma interpretação de tipo naturalista” (Antunes, 2014: 125).

De forma geral, no entanto, o tema das desigualdades sociais de saúde permanece de fraca visibilidade em Portugal. Neste quadro, regista-se uma grande lacuna de análises realizadas a partir de indicadores de pertença socioeconómica. Os poucos estudos realizados evidenciam, contudo, a persistência de desigualdades sociais de saúde importantes ligadas a questões de educação escolar, de atividade ocupacional e de classe social, a favor dos grupos mais próximos do topo da hierarquia social, facto que concorda com os resultados obtidos por estudos comparativos internacionais que apresentam o país como um daqueles que, no quadro da OCDE, maiores desigualdades sociais de saúde regista (Doorslaer e Koolman, 2004).

No contexto vivido nas últimas décadas de recomposição e agravamento das desigualdades sociais, e reafirmando, como Fassin (2000: 14), que “a determinação social das disparidades físicas está longe de ser evidente por si mesma [e que] ela deve ser incessantemente defendida publicamente, mas também argumentada cientificamente”, urge também em Portugal consolidar este campo de estudos, aprofundando e diversificando as ainda muito escassas análises baseadas em indicadores de posição social, acordando maior importância à morbilidade diferencial em diversas etapas da vida, avançando-se com investigações de natureza qualitativa que contrariem o pensamento hegemónico sobre estas desigualdades em linguagem quantitativa.

 

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Data de receção: 09 de junho de 2016 Data de aprovação: 28 de julho de 2017

 

Notas

[1] Os estudos pioneiros de Barker et al. (1986, 1989, 1993, 1995), por exemplo, estabelecem uma correlação entre a subnutrição do feto / baixo peso à nascença e o risco acrescido de vir a desenvolver, na vida adulta, doenças coronárias e outras associadas, como hipertensão arterial, diabetes ou acidentes vasculares cerebrais. Esta correlação é explicada através do modelo da programação fetal. Para uma boa revisão em português da “hipótese de Barker”, ver Seco e Matias (2009).

[2] Tal como definido por Krieger, o conceito de encorporação (embodiment) postula que “os determinantes dos padrões atuais e mutáveis da distribuição das doenças são exógenos aos corpos das pessoas e não podem ser reduzidos a características supostamente ‘inatas’, mesmo se as características e a variabilidade biológica contam. […] Nós vivemos encorporados: os ‘genes’ não interagem como ambiente exterior ao corpo, só os organismos o fazem e fazem-no intrinsecamente como membros de populações”. Como afirma a autora, estas interações não só têm consequências sobre a expressão e a regulação genética, como, in fine, transformam o próprio ambiente em que decorrem. Neste sentido, “em termos conceptuais, a encorporação sustenta deliberadamente a correção das narrativas dominantes desencorporadas e descontextualizadas dos ‘genes’, ‘comportamentos’ e mecanismos de causalidade das doenças” (Krieger, 2014: 215-222).

[3] Não poderíamos, no entanto, deixar de referir a riqueza de algumas dessas análises, como é o caso do estudo de Vasconcelos et al.(2011)sobre o impacto das fracas condições de habitação e do desconforto térmico na mortalidade.

[4] Em 1996 e em 2014, respetivamente, o trabalho de Giraldes e Ribeiro (1995) e a tese de Antunes (2011) inspirariam dois capítulos em monografias.

[5] Como anteriormente referido, este trabalho dará em 1996 origem a um capítulo da obra Desigualdades Socioeconómicas e Seu Impacte na Saúde, publicado pela Editorial Estampa (Giraldes e Ribeiro, 1996).

[6] Destacam-se as baixas qualificações escolares do grupo.

[7] O estudo Amalia —“ Drugs innovation impact in cardio and cerebrovascular diseases in Portugal” — teve como objetivo “determinar a prevalência das principais manifestações clínicas da doença cardíaca isquémica e cerebrovascular e dos fatores de risco cardiovasculares, segundo a perceção do indivíduo, e avaliar o consumo de recursos de saúde (internamentos, medicação)” (Macedo et al., 2008). O estudo inquiriu 38.000 indivíduos dos dois sexos, com idade superior aos 40 anos, aleatoriamente selecionados em sete regiões do país.

[8] Para uma análise das desigualdades registadas no acesso aos cuidados de saúde em Portugal ver, por exemplo, Giraldes (2005), Pereira (2002), Pinto (1991), Simões, Paquete e Araújo (2008).

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