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Sociologia, Problemas e Práticas

Print version ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.89 Lisboa Jan. 2019

https://doi.org/10.7458/SPP2019899399 

ARTIGO ORIGINAL

O papel dos códigos de ética na administração do setor da saúde em Portugal: a visão dos dirigentes

Codes of ethics role in the administration of the Portuguese health sector: the leaders vision

Le rôle des codes d’éthique dans l’administration de la santé au Portugal: le point de vue des dirigeants

El papel de los códigos de ética en la administración del sector de la salud en Portugal: la visión de los líderes

 

Pedro Miguel Alves Ribeiro Correia*, Ivone Carla de Matos e Dias Ferreira** e João Abreu de Faria Bilhim***

* Professor e vice-presidente do Centro de Administração e Políticas Públicas, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), Universidade de Lisboa (ULisboa), Centro de Administração e Políticas Públicas (CAPP) — ISCSP-ULisboa. E-mail: pcorreia@iscsp.ulisboa.pt

** Doutoranda, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), Universidade de Lisboa (ULisboa). E-mail: ivonediasferreira@gmail.com

*** Professor, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), Universidade de Lisboa (ULisboa); Centro de Administração e Políticas Públicas (CAPP) — ISCSP-ULisboa. E-mail: bilhim@iscsp.ulisboa.pt

 

RESUMO

As mudanças e reformas da administração pública e, em particular, da administração da saúde, criaram um conjunto de desafios aos dirigentes, nos quais se inclui a criação e implementação de códigos de ética, fator gerador de tensões no seio das instituições. Este artigo descreve a visão dos dirigentes superiores do setor público da saúde, em Portugal, relativamente ao tema da gestão da ética. A investigação teve lugar no final de 2015 e envolveu entrevistas aprofundadas a 11 dirigentes, bem como a análise do enquadramento legal relativo ao tema. Foram empregues técnicas de análise de conteúdo para estudar as narrativas recolhidas. As visões expressas pelos dirigentes colocam em evidência quatro tópicos relativos aos códigos de ética: a sua importância nas instituições do setor da saúde; a sua elaboração e revisão; a sua divulgação e conhecimento; e o seu papel no ambiente organizacional.

Palavras-chave: administração da saúde, códigos de ética, dirigentes, políticas, Portugal.

 

ABSTRACT

Changes and reforms in public administration and, in particular, in health administration, created a number of challenges for leaders, which include the creation and implementation of codes of ethics, a factor that generates tensions within institutions. This article describes the vision on the subject of ethics management, held by senior managers in the public health sector in Portugal. The research was conducted in late 2015 and included in-depth interviews with 11 leaders as well as the analysis of the legal framework of this subject. Content analysis techniques were used to study the collected narratives. The views expressed by the leaders highlight four topics relating to codes of ethics: their importance in health institutions; their preparation and review; their dissemination and knowledge; and their role in the organizational environment.

Keywords: health administration, ethics codes, leaders, policies, Portugal.

 

RÉSUMÉ

Les changements et les réformes de l’administration publique, en particulier dans le secteur de la santé, ont lancé des défis aux dirigeants, parmi lesquels l’élaboration et la mise en place de codes d’éthique, qui sont venus créer des tensions au sein des établissements. Cet article décrit le point de vue des dirigeants du secteur public de la santé au Portugal, concernant la gestion de l’éthique. La recherche s’est déroulée à la fin de l’année 2015 et a impliqué des entretiens approfondis avec 11 dirigeants, ainsi que l’analyse du cadre légal applicable à ce thème, en utilisant des techniques d’analyse de contenu pour étudier les propos recueillis. Les points de vue exprimés par ces dirigeants font ressortir quatre points concernant les codes d’éthique: leur importance au sein des établissements du secteur de la santé; leur élaboration et leur révision; leur diffusion et leur connaissance; et leur rôle dans l’environnement organisationnel.

Mots-clés: administration de la santé, codes d’éthique, dirigeants, politiques, Portugal.

 

RESUMEN

Los cambios y las reformas de la administración pública y, en particular, de la administración de la salud, crearon una serie de desafíos para los líderes, en el que incluye la creación y aplicación de códigos de ética, factor generador de tensiones dentro de las instituciones. En este artículo se describe la visión de los altos directivos en el sector de la salud pública en Portugal, sobre el tema de la gestión de la ética. La investigación se llevó a cabo a finales de 2015 e incluyó entrevistas en profundidad con 11 líderes, así como el análisis del encuadramiento legal en la materia. Se emplearon técnicas de análisis de contenido para estudiar los relatos recogidos. Las opiniones expresadas por los líderes ponen en evidencia cuatro temas relativos a los códigos de ética: su importancia en las instituciones del sector salud; su preparación y revisión; su difusión y conocimiento; y su papel en el ambiente organizacional.

Palabras-clave: administración de la salud, códigos de ética, líderes, políticas, Portugal.

 

Introdução

Na gestão da administração pública, a necessidade de se evoluir do modelo conceptual dos habituais 3Es (economia, eficiência e eficácia) para um contexto inovador, com a efetiva inclusão do E da ética, como tem vindo a propor a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), passa pelo reconhecimento de que é indispensável criar todas as condições para que a mesma seja bem compreendida, agindo em conformidade com o que é o normal funcionamento de um estado de direito, através de um sistemático controlo democrático para que se possa, efetivamente, falar numa “nova” ou “reestruturada” administração pública, capaz de ganhar a confiança dos cidadãos (OECD, 2000).

Só assim, e desenvolvendo instrumentos e modelos que ajudem a implementar uma ética organizacional e comportamental, ou mesmo analisando empiricamente os que já estão a ser desenvolvidos e estudando o impacto do seu uso como ferramentas de trabalho, percorrendo caminhos que possam provar que a melhoria do desempenho global da administração pública é potenciada e induzida pela qualidade ética das decisões tomadas, as quais, por sua vez, têm que ser também suportadas por uma política global e integrada para a sua efetivação, poderá começar o processo de interiorização e enraizamento do quarto E no dia a dia das instituições da administração pública (Bilhim, Pinto e Soares, 2015).

Foi no seio da Saúde que surgiu a necessidade de se criar o primeiro código de ética profissional. Escrito por Hipócrates, cerca de 400 anos aC, considerava que a medicina devia abandonar a relação com as práticas religiosas e converter-se numa ciência experimental. O termo ética tendo sido abordado e estudado sob diferentes ângulos, geradores ora de consensos, ora de polémicas, também abarca definições diversas e se enquadra em muitas áreas. Umas associam-no à moral, enquanto outras a conceitos filosóficos ou políticos que o afastam desta. O termo ética deriva do grego ethos, entendido como o caráter ou modo de ser de uma pessoa. Numa definição simples a ética pode ser entendida como um conjunto de valores e princípios que norteiam a conduta humana em sociedade. No entanto a ética não pode nem deve ser confundida com a lei, porque embora a lei tenha muitas vezes, como base, os princípios éticos, pode ser construída sem incluir referências éticas.

Entre a ética e a administração pública existe, segundo James Svara, uma relação instável porque, sendo inseparáveis em abstrato, estão, muitas vezes, separadas na prática, e essa separação pode levar ao descrédito dos gestores, bem como resultar em prejuízos, quer para os governantes quer para os governados (Svara, 2011).

Na atualidade existe um percetível crescimento de produção de literatura científica no âmbito da ética e dos valores na administração pública e, mais ainda, um interesse crescente no desenvolvimento de mecanismos ou metodologias que possam servir para avaliar e quantificar algumas das medidas já implementadas e que vão no sentido de se construir uma política ética efetiva na administração pública.

A Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 2003 (Protocolo de Mérida), constituída por 71 artigos divididos por oito capítulos (UN, 2004), foi ratificada por Portugal, através do Decreto do Presidente da República N.º 97/2007, de 21 de setembro (Portugal, 2007a). Ali se pode ler que (artigo 8.º do n.º 2 do capítulo I):

Cada Estado Parte deverá, em especial, esforçar-se no sentido de aplicar, no quadro dos seus próprios sistemas institucionais e jurídicos, códigos ou normas de conduta para o correto, digno e adequado desempenho de funções públicas. (Portugal, 2007a: 6719)

Essa política ética e a sua construção, também através dos códigos de conduta ética, são fundamentais em Portugal, sobretudo porque a administração pública portuguesa se tem vindo a confrontar, desde a década de 70 do século passado, com o desmoronamento do modelo weberiano, apoiado numa estrutura organizacional piramidal, hierarquizada e orientada para o cumprimento de normas, processos e procedimentos executados de forma mecanicista. Sendo agora forçada a lidar com, e a responder à descentralização, à desregulação e à privatização de uma grande quantidade de atividades que anteriormente eram diretamente realizadas pelo estado, assistindo à desagregação das grandes instituições burocráticas em novas estruturas, autónomas e descentralizadas, e com a necessidade de desenvolver a sua atividade mais agilmente mas também com maior liberdade de decisão, a que corresponde mais responsabilidade, a administração pública portuguesa, encontra-se órfã de um poder estritamente hierarquizado.

À procura de si mesma, a administração pública portuguesa, tal como a maioria das suas congéneres europeias, deixou-se envolver pelo New Public Management, uma doutrina que se baseia “num conjunto de pretensas boas práticas e preceitos que os governos têm assimilado no seu discurso e na sua ação” (Carvalho, 2013). O New Public Management, pode definir-se como um conjunto de instrumentos de governação aplicados para atingir maiores níveis de eficiência, através de uma avaliação do desempenho assente na quantificação, recorrendo à contratualização, em substituição das relações clássicas de hierarquia, e introduzindo mesmo metodologias incentivadoras da competição no fornecimento de bens e serviços (Hood, 1991; Pollitt, 2002; Osborne e McLaughlin, 2002), mas tentando assegurar uma maior equidade face aos diferentes interesses em presença, reforçar as relações de confiança com os stakeholders e colocar no centro das preocupações o cidadão, criando mecanismos de escuta ativa e intervenção do mesmo em todos os assuntos da res publica que diretamente lhe digam respeito.

Esse incentivo à competição entre serviços públicos, procurado através de uma cada vez maior satisfação dos utentes/clientes, o que se traduziria, acreditava-se, numa maior procura, levando a que o estado tivesse que dar mais vantagens orçamentais às instituições mais procuradas, poderia vir a ser mais uma forma de implementação de desigualdades, pois os resultados obtidos poderiam servir como forma de pressão para a obtenção de mais vantagens. Estas possíveis pressões deveriam ser travadas através de comportamentos éticos obrigatórios em serviços que pretendem ser dedicados aos cidadãos.

E quando falamos em ética, devemos preocupar-nos em criar um ambiente propício à reflexão sobre os valores e padrões de conduta. Uma abordagem ética requer, também, uma apreciação objetiva da realidade como ela é, e das razões de sua atual configuração (Savater, 1994).

De acordo com a Carta Deontológica do Serviço Público, para que todos estes objetivos sejam concretizados é fundamental que os trabalhadores em funções públicas “[…] sejam permanentemente inspirados pelos valores éticos do serviço público, uma vez que não basta ‘fazer’; importa também ‘quem’ faz e o ‘modo’ como se faz” (Portugal, 1993: 1272).

A questão que se coloca é, pois, a de saber se percorrendo o caminho acima descrito se conseguirá determinar qual a preponderância que a ética pode e deve ter (ou já tem) nas organizações, para que seja, de facto, integrada no grupo dos Es, que assim passará de três a quatro.

Um importante ponto de partida para o aprofundamento destas questões passa por conhecer a visão dos dirigentes máximos das organizações públicas relativamente à problemática da ética, uma vez que, em última análise, serão esses mesmos dirigentes os responsáveis pela sua desejável implementação e gestão. Por outro lado, o setor da saúde em Portugal (reconhecidamente apontado, a nível internacional, como um bom exemplo), pela sua importância social, pela particular sensibilidade às questões éticas, pelo risco de corrupção especialmente potenciado pelos elevados montantes financeiros que movimenta e pela complexidade da gestão de vastas equipas de recursos humanos muito diferenciados e corporativistas, afigura-se como o setor ideal para começar um estudo sistemático sobre estes tópicos. Assim, este artigo apresenta e analisa a visão de 11 dirigentes de topo da administração da saúde em Portugal, sobre os códigos de ética existentes nas instituições que dirigem.

 

Súmula sobre os códigos de ética na administração pública portuguesa

Em Portugal, foi em 1993 que o XII Governo Constitucional (1991-1995) publicou, no Diário da República de 17 de março desse ano, pela primeira vez, uma Carta Deontológica do Serviço Público, que integrava um conjunto de regras e princípios (Portugal, 1993). A publicação é consequente com o programa do referido governo, que deu particular relevância à modernização da administração pública e à implementação de valores éticos na conduta dos seus profissionais, inscrevendo no ponto 5, parte I desse mesmo programa: “Serão difundidos valores fundamentais da função pública designadamente sobre a ética e deontologia de serviço público, tendo em vista assegurar rigor e profissionalismo.” (Portugal, 1992: 25)

Na supracitada Carta Deontológica do Serviço Público também é referido:

A capacidade de resposta desta nova Administração assenta, em larga medida, nos seus funcionários e agentes, agindo livre e responsavelmente na organização a que pertencem e em articulação e colaboração crescentemente próxima com o corpo social de que fazem parte (Portugal, 1993: 1272).

Como tal, pode também afirmar-se que:

[…] o primado da hierarquia como mecanismo de controlo, assente na submissão dos elementos organizacionais a regras e a ordens enquadradas legalmente, foi suplantado por ideais de empowerment […] adotando-se modelos participativos de gestão e de políticas públicas (Carvalho, 2008).

Essa primeira carta deontológica considerava um conjunto de valores fundamentais (serviço público, legalidade, neutralidade, responsabilidade, competência e integridade), e tipificava três áreas de deveres pelos quais os funcionários teriam que se reger: deveres para com os cidadãos, deveres para com a administração e deveres para com os órgãos de soberania, órgãos de governo próprio das regiões autónomas e órgãos das autarquias locais (Portugal, 1993).

Era assim dado um primeiro sinal da necessidade de refletir e infletir comportamentos, sobretudo porque se acentuavam os sinais de uma mudança de paradigma da economia, mudança essa que se iniciara nos anos 70 do século passado e em que se baseou o programa de ação que ficou conhecido como “Consenso de Washington” (Bilhim, 2014b). Do “Consenso de Washington” prevalece uma ideia fundamental de que esse programa de ação se resume e se limita à procura de uma “administração que trabalhe melhor e gaste menos” (Frederickson, 1997).

Em 1997 o poder político retoma o assunto. Não para aprofundar, melhorar ou avaliar a implementação da Carta Deontológica do Serviço Público, em vigor desde março de 1993, mas para revogar a Resolução do Conselho de Ministros que a legitimara, acrescentando que, apesar de:

[…] discutida e consensuada com as associações sindicais subscritoras do acordo um texto designado Carta ética — Dez princípios éticos da Administração Pública […] entende o Governo que não deve aprovar o referido documento, mas dele tomar conhecimento como órgão superior da Administração Pública (Portugal, 1997: 1316).

Assim, desde 27 de fevereiro de 1997 que a administração pública portuguesa, na qual se inclui a parte pública do setor da saúde, não tem um documento orientador de comportamentos éticos, estando até em incumprimento de uma obrigação internacional do estado português que, desde 2007, ratificou (Portugal, 2007a) a já mencionada Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (UN, 2004).

Em 2009 o presidente do Conselho de Prevenção da Corrupção, Guilherme de Oliveira Martins, anunciou a preparação de um “código deontológico” a que ficariam sujeitos os funcionários públicos. Com muitas críticas e várias diligências, nos XVIII e XIX governos, também sobre este tema, o Provedor de Justiça lembrou à Assembleia da República, em 2012, o “compromisso” que o estado português assumira em 2007 (Portugal, 2007a), com as Nações Unidas (UN, 2004). Na sequência das diligências do provedor é divulgada a informação de que o Ministério da Justiça se encontrava a preparar um Código de Conduta Ética para a Administração Pública. A sua aprovação chegou a estar prevista em Conselho de Ministros, mas tal não aconteceu e afigura-se ter sido entendimento político considerar suficiente a integração dessa matéria no novo Código do Procedimento Administrativo (Portugal, 2015).

Apesar desta situação, o Ministério da Saúde criou e publicou os princípios orientadores para Códigos de Conduta Ética dos Serviços e Organismos do Ministério da Saúde, enquanto resposta à necessidade de existência de:

[…] mecanismos de acompanhamento e de gestão de conflitos de interesses, devidamente publicitados, de fundamental importância nas relações entre os cidadãos e as entidades públicas e imprescindível para uma cultura de integridade e transparência no âmbito da gestão pública (Portugal, 2014: 11).

Neste documento também se refere, como um dos elementos justificativos da iniciativa, o Relatório Final do Grupo Técnico para a Reforma Hospitalar, onde foi apresentado um conjunto de medidas tendentes a introduzir melhorias ao nível da governação e do desempenho dos profissionais em serviço nos hospitais, do qual se destaca a medida XX:

Aprovar o Código de Ética dos Hospitais EPE com os objetivos de divulgar os valores da missão prosseguidos, reforçar as relações de confiança com os stakeholders e clarificar as regras de conduta que gestores, dirigentes, demais responsáveis e colaboradores devem observar nas suas relações recíprocas e com terceiros (Ministério da Saúde de Portugal, 2011: 15).

Tendo sido publicado em Diário da República de 21 de julho de 2014, o Despacho N.º 9456-C/2014 (Portugal, 2014) contava, à data da realização deste artigo, com 18 meses de vigência. Este ponto torna ainda mais relevante, em termos académicos, não só o estudo do papel exercido pelo Despacho N.º 9456-C/2014 (Portugal, 2014) na implementação ou revisão de códigos de ética, mas também do seu papel enquanto elemento de incentivo à reflexão, construção e implementação de uma política ética, efetiva, na administração da saúde em Portugal.

 

Metodologia

Para analisar, qualificar a importância que os dirigentes das instituições da saúde, em Portugal, atribuem à ética e aos códigos de ética, bem como para clarificar a forma como os mesmos foram elaborados, implementados e avaliados, tentando posicioná-los no contexto da cultura organizacional de cada uma das instituições, foram realizadas 11 entrevistas semiestruturadas a dirigentes/líderes de instituições da administração pública portuguesa, na área da saúde. Entre estes 11 dirigentes encontram-se seis presidentes, um diretor do Serviço de Humanização do maior hospital da região Norte de Portugal e que é, ainda, presidente da Comissão de Ética do mesmo hospital e da Faculdade de Medicina ali integrada, um vogal da Comissão de Ética de uma ARS (Administração Regional da Saúde), instituição que agrega todos os serviços de Saúde da região Centro de Portugal, um vogal do Conselho de Administração de um hospital privado e dois vogais dos Conselho de Administração e Conselho Diretivo de instituições públicas de saúde. As entrevistas, realizadas no mês de dezembro de 2015, foram feitas a dez dirigentes do género masculino e um do género feminino e tiveram a duração média de uma hora e meia, cada. As instituições encabeçadas por estes dirigentes são de cariz nacional (quatro), regional (quatro) e local (três). Foi tido o cuidado de incluir pelo menos uma instituição de cada uma das cinco regiões NUTS II do território continental português. As instituições cujos dirigentes foram entrevistados são: uma entidade reguladora, seis institutos públicos, com e sem autonomia financeira, três entidades públicas empresariais e uma entidade privada mas com protocolos e contratualização com a administração pública no setor da saúde.

As entrevistas realizadas fazem parte de um conjunto que serve de base a um estudo sobre as perceções dos profissionais de saúde sobre ética e serviço público.

Tomou-se como referência, para a construção das entrevistas semiestruturadas, o Enquadramento de Princípios Orientadores para o Código de Conduta Ética dos Serviços e Organismos do Ministério da Saúde, de julho de 2014, que define o código de conduta ética como:

[…] um instrumento de visão e missão das entidades, concretizando padrões de atuação que expressem os valores e cultura organizacionais, fomentando a confiança por parte de todos os intervenientes e interessados na atividade da entidade, aumentando a qualidade da gestão, permitindo reforçar o sentido de missão, contribuindo para a interiorização dos valores éticos (Portugal, 2014: 11).

A análise dos dados recolhidos seguiu as técnicas típicas de análise de conteúdo, incluindo a descodificação estrutural de cada entrevista e a procura e análise por temas transversais a todas as entrevistas (Bardin, 2009), entre os quais se destacam as tensões resultantes da elaboração e de eventuais revisões periódicas dos códigos de ética.

 

Resultados e discussão

Dos 11 dirigentes entrevistados, apenas três (pouco mais de um quarto) afirmaram conhecer, ou ter lido, o documento enquadrador do Ministério da Saúde (Portugal, 2014) que serviu de ponto de partida a este trabalho, tentando perceber qual o interesse e cuidado dos dirigentes da administração pública portuguesa em conhecer e cumprir, ou fazer cumprir, todas as orientações emanadas do poder político. Apenas um deles afirmou que o código de ética da sua instituição tinha sido criado na sequência da publicação do referido documento e, por isso mesmo, tinha sido aprovado apenas em 2015. Outro dirigente referiu que o código de ética da sua instituição tinha sido revisto “[…] em parte na sequência deste documento”.

Sobre o documento enquadrador um dos entrevistados referiu que:

[…] eu não sou favorável a que o estado intervenha de uma maneira normativa e transversal em relação à ética. O estado deve ter uma preocupação fundamental em relação à lei e ao cumprimento da lei, à prevenção de situações como a corrupção. Em relação a áreas como a ética devemos ter um cuidado especial para não cairmos em zonas de retórica ou demagogia, em que se faz um diploma para que as consciências fiquem mais tranquilas [transcrição dos autores].

Tendo por base estas declarações, podemos afirmar que existe divórcio entre a grande quantidade de legislação publicada e aquela que é, em profundidade, implementada e seguida.

Sobre a importância dos códigos de ética nas instituições do setor da saúde

Os 11 dirigentes foram unânimes em classificar como “importante” ou “muito importante” a existência de um código de ética na sua instituição. A este respeito, refere um entrevistado:

Antes desta diretriz já tínhamos um código de ética. Fomos mesmo dos primeiros a implementar um documento deste tipo porque achamos que é muito importante ter um ambiente de qualidade e essa não é só clínica. Tem vertentes organizacionais e vertentes relacionadas com comportamentos. As coisas têm que estar transparentes e para estarem transparentes devem estar escritas, acessíveis para as pessoas lerem, verem e não se desculparem pelo desconhecimento. É preferível fazer depois o tratamento das exceções. O código de ética faz parte de uma melhor organização da empresa [transcrição dos autores].

No mesmo sentido, um outro dirigente apresenta a seguinte perspetiva:

O código é uma norma que tem que influenciar todos para que possamos todos viver e conviver de forma feliz e saudável e, ao mesmo tempo, correta e sem haver atropelos de parte a parte, seja com os dirigentes, seja com os trabalhadores, para que todos saibamos o que deve ser feito e para que não entremos em contradições ou em situações menos claras alegando que não temos conhecimento do documento [transcrição dos autores].

Ilustrativa da perspetiva unânime dos dirigentes entrevistados é também a visão de um dirigente de uma instituição da saúde do Norte do país:

Os códigos de ética são referenciais absolutamente fundamentais e são fundamentais porque colocam os profissionais num patamar de exigência para com os outros, sobretudo outros na situação de doentes, e fazem perceber a cada um, para além do poder que tem, que lhe advém da sua qualidade científica ou da sua posição na hierarquia, como é que deve agir e reagir para com alguém particularmente vulnerável e fraco [transcrição dos autores].

No entanto também encontramos menção de que, apesar de o código de ética ser importante, a organização poder funcionar bem sem este. Estas afirmações, minoritárias, surgem sobretudo entre os dirigentes de instituições que ou não têm código de ética ou reconhecem que o código de ética existente precisa de ser revisto.

Note-se ainda que todos os dirigentes em cujas instituições existem códigos de ética afirmaram que os mesmos refletem também a missão, a visão e os valores da mesma. A este respeito, refere um dos entrevistados, de uma forma que reflete adequadamente a posição comum:

Tem que estar em consonância, senão não fazia sentido. A missão e os valores têm que ser traduzidos quer no código de ética quer no nosso plano de prevenção da corrupção e infrações conexas. Tudo isto tem que fazer sentido de uma forma integradora.

As afirmações acima descritas revelam alguma incoerência de atuação pois, se neste ponto existe uma quase unanimidade em reconhecer a importância dos códigos de ética e a assunção de que os mesmos refletem a missão, a visão e os valores da maioria das instituições em análise, quando abordamos a sua implementação também existe uma quase unanimidade em reconhecer que os mesmos não estão e nunca foram cuidadosa e profundamente implementados. Poder-se-á concluir que o conceito de ética na administração pública não é colocado em prática? Que consequências daí poderão advir para a administração pública e, mais concretamente, para o SNS (Serviço Nacional de Saúde)?

Sobre a elaboração, o caráter prático e a revisão do código de ética

Nas entrevistas realizadas foram também colocadas questões que incidiram sobre o caráter prático e as características dos códigos de ética, bem como acerca da possibilidade de revisão dos mesmos, caso algo o justificasse. Em concreto, procurou-se averiguar se os códigos de ética tinham sido trabalhados por uma só pessoa ou várias, por um ou mais departamentos e se os colaboradores tinham sido ouvidos relativamente à temática. As respostas a estas questões afiguram-se como pertinentes, no sentido em que podem ajudar a compreender se a evolução do processo de construção dos códigos de ética em cada uma das instituições terá servido para uma primeira abordagem ao tema e para uma sensibilização de um número alargado de colaboradores. Uma tal abordagem possibilitaria, desde o primeiro momento, a divulgação quer do próprio código, quer do interesse da liderança no tema, em consonância com o determinado pelo despacho legislativo em análise (Portugal, 2014).

Em relação às questões colocadas neste ponto, o quadro 1 resume as respostas dadas por todos os dirigentes.

 

 

 

A análise do quadro 1 revela que os códigos de ética das instituições da saúde, globalmente, na sua elaboração, não contam com inputs dos trabalhadores, pelo que não foram seguidas, nem mesmo no único código elaborado depois do Despacho n.º 9456-C/2014, as orientações vindas do gabinete do ministro da Saúde, segundo as quais deve…

[…] procurar-se a máxima participação dos profissionais na fixação dos seus termos […] O Código de Conduta Ética deve espelhar a imagem da entidade e, para isso, o seu processo de elaboração deve contar com a participação dos colaboradores de cada entidade, tendo em conta os diversos grupos profissionais (Portugal, 2014: 12).

Por outro lado, no quadro 1 também é possível observar facilmente que a maioria dos dirigentes consultados considera o curto ou médio prazo como horizonte temporal razoável para proceder à revisão dos respetivos códigos de ética.

Como podem então referir, estes dirigentes, a importância deste mecanismo de atuação e de controlo de comportamentos, se o mesmo foi trabalhado apenas por grupos muito restritos e a sua divulgação foi muito deficitária? O facto de todos eles estarem publicados no sítio da instituição ou na sua intranet não é condição sine qua non para que sejam do conhecimento e praticados, no dia a dia, pelos profissionais a que os mesmos dizem respeito.

Sobre a divulgação e o conhecimento do código de ética

Tal como atrás se tinha já referido e em linha com os autores que defendem que os códigos de ética são meramente textos e que a sua importância depende da sua utilização (Bilhim, 2014a), facilmente se depreende que a forma como os mesmos são divulgados e implementados é fundamental para que a sua utilização seja de tal forma prática e habitual (isto é, interiorizada ou enraizada culturalmente) que possa trazer resultados efetivos no que respeita à mudança de comportamentos. Parece ser também esse o entendimento do legislador quando determina: “O Código de Conduta Ética deve ser amplamente divulgado e disponibilizado no respetivo sítio da intranet e internet das entidades bem como divulgado via correio eletrónico junto dos colaboradores” (Portugal, 2014: 12). No ponto seguinte do mesmo documento é referida a necessidade da criação de um endereço de correio eletrónico próprio para que os colaboradores possam colocar dúvidas ou apresentar sugestões, sempre salvaguardando o anonimato.

Todos os entrevistados confirmaram que os códigos de ética das suas instituições estão publicados quer na intranet, quer na internet. Quanto ao envio do mesmo através de endereço eletrónico, apenas um dos dirigentes fez referência ao facto, explicando que tal foi feito tendo em conta as orientações do Despacho N.º 9456-C/2014 (Portugal, 2014). Contudo, nenhuma das instituições lideradas pelos dirigentes que serviram de base a esta pesquisa tem um endereço eletrónico para onde os trabalhadores possam colocar dúvidas ou apresentar sugestões, conforme é sugerido.

As 11 instituições, na sua maioria, entregam uma série de documentos e, por vezes, mesmo um manual de boas-vindas aos novos colaboradores. São várias as referências à entrega do código de ética aos colaboradores nessas circunstâncias. Mas não existe nenhum mecanismo de acompanhamento da integração dos novos profissionais com o objetivo de perceber se os mesmos se deixam envolver pela cultura organizacional onde se incluem as orientações éticas.

Dignas de nota, pela sua raridade, são as afirmações do presidente do Conselho de Administração de um hospital com estatuto de entidade pública empresarial (EPE), segundo as quais este leva “muito a sério” a divulgação ou o refreshing de alguns temas relevantes, e que instituiu o “lembrete”:

Há muitas coisas, assuntos, temas variados que têm lembretes. Eu faço muitos lembretes sobre a responsabilidade de transmissão de informação, sobre sigilo profissional e sobre o código de ética também, claro. É um dos temas que eu, de tempos a tempos, lembro que existe e que deve ser relido ou consultado. A iniciativa é minha, os lembretes saem do Conselho de Administração, mas por vezes até trabalho sugestões que os colegas e todos os profissionais me vão dando. Sem falar deste ou daquele assunto em particular, abordo os temas que surgem mais vezes nas reclamações porque o controlo das reclamações também está comigo [transcrição dos autores].

Apesar de todos os mecanismos a que a legislação faz referência e de outros que poderiam ter sido implementados, em campanhas próprias, de sensibilização para o comportamento que os cidadãos integrados na Administração Pública devem ter, de uma forma geral a maioria dos entrevistados afirmou que o código de ética não é conhecido por grande parte dos trabalhadores e que muitos dirigentes intermédios também podem ser incluídos neste grupo. Uma das ferramentas que os dirigentes dizem utilizar para medir o grau de conhecimento ou desconhecimento da conduta ética que os trabalhadores demonstram é a análise das reclamações de utentes ou de outros elementos que interagem com a instituição. Alguns lamentaram a mudança legislativa que fez com que as reclamações estejam agora a ser tratadas pela Entidade Reguladora da Saúde para quem todos os gabinetes do utente ou do cidadão das instituições da saúde (e até as próprias Administrações Regionais de Saúde) devem encaminhar as reclamações. Assim, os dirigentes alegam ficar ainda com menor possibilidade de aferir as formas de comportamento dos seus profissionais, uma vez que não têm o controlo do assunto que serve de base à reclamação nem ficam a par da evolução dos casos e das consequentes respostas aos mesmos.

Sobre a visão para o código de ética no ambiente de trabalho da organização

Todos os entrevistados afirmaram que o código de ética é importante para a manutenção de um ambiente de trabalho com qualidade na área comportamental e de comunicação interpessoal. Os dirigentes dizem-no de diferentes formas, abordando aspetos diversos da atitude comportamental:

[O código de ética] é fundamental. Nesses aspetos que referiu e também na diminuição da litigância. Se cumprirmos as orientações emanadas do código de ética haverá, naturalmente, melhor ambiente. Não temos prepotências, mas sim gestão de conflitos.

Uma visão ainda mais intensa sobre a influência dos códigos de ética no ambiente organizacional é expressa por outro dos entrevistados:

[…] o código de ética atravessa toda a nossa vida. Mesmo individualmente nós sentimo-nos melhor com as pessoas que partilham dos mesmos valores, enfim dos mesmos códigos de ética que nós. Ora o código de ética é fundamental para estabelecer o espírito de corpo, para estabelecer o espírito de pertença. Temos que ter um código de ética para ter a noção de que pertencemos a este ou àquele grupo [transcrição dos autores].

Já para o dirigente de um grande hospital com estatuto de entidade pública empresarial a reflexão deve ser feita de um outro ângulo, dado que:

O ambiente de trabalho tem hoje imensos constrangimentos. As relações de trabalho são muito complexas e quando olhamos para elas […] os códigos de ética podem fazer despertar em cada um de nós reações que têm a ver com a impossibilidade de eu, enquanto pessoa, aceitar qualquer agressão à minha dignidade. Esta consciência de que eu sou digno como pessoa, exatamente no mesmo patamar que qualquer outro, permite-me perceber a exigência que eu tenho, pessoal, de respeitar o outro, mas exigir que o outro também respeite a minha dignidade, esteja ele em que grau hierárquico estiver. Isto pode criar algumas tensões, mas é também clarificador da responsabilidade de cada um perante cada outro.

Pelo exposto, pode concluir-se que os dirigentes têm plena consciência da importância da existência de um código de ética em vigor nas instituições que lideram, enquanto promotor de melhorias ao nível dos comportamentos organizacionais, preconizadas por algumas correntes da teoria organizacional (Bilhim, 2013), mas que não investem na sua implementação.

 

Considerações finais

Este artigo reflete sobre a importância e o papel dos códigos de ética no dia a dia das instituições públicas da saúde, em Portugal. O setor público da saúde afigura-se como um ponto de partida privilegiado para a análise deste tema, uma vez que o comportamento ético na saúde tem relevância adicional pelo facto de o doente, que é maioritariamente o utente para quem se trabalha neste setor, se encontrar, pela própria condição, em situação de fragilidade adicional e, por isso mesmo, particularmente sensível a atitudes pouco éticas.

Foram entrevistados 11 dirigentes superiores, de ambos géneros, que encabeçavam, à data do estudo, instituições de saúde de cariz nacional, regional e local, situadas em todas as regiões do território continental português. Quatro temas foram enfatizados neste estudo: a importância dos códigos de ética nas instituições do setor da saúde; a elaboração e a revisão dos códigos de ética; a divulgação e o conhecimento desses códigos; e a visão para o código de ética no ambiente de trabalho da organização. Para além de realçar as tensões existentes ao nível da gestão da ética no setor da saúde em Portugal, a análise das narrativas permite concluir que, para um número maioritário de entrevistados, o estudo em questão constituiu o primeiro exercício estruturado de reflexão sobre o seu papel na divulgação dos conteúdos dos códigos de ética.

Os resultados constituem uma importante fonte de informação para a melhoria da gestão da ética e de assuntos conexos, não só no setor da saúde, mas no setor público em geral. É relevante, e de certa forma esclarecedora do ambiente organizacional que, na atualidade, se vive nas instituições da administração pública da saúde, a conclusão de que, apesar do reconhecimento unânime da importância dos códigos de ética, a maioria dos dirigentes também assume não ter sido suficientemente persistente, criativo ou dedicado na prossecução de uma melhor implantação e de um maior enraizamento cultural dos princípios constantes nos códigos de ética junto dos trabalhadores que têm à sua responsabilidade. Deste modo, gera-se uma tensão entre o que se deseja que os códigos de ética sejam e o que eles são na realidade, até porque estes dirigentes reconhecem que existem riscos éticos diários, desde a corrupção, passando pela falta de cuidado com a manutenção do património de cada instituição ou pelo descuido para com o sigilo profissional, amplamente reconhecido com um aspeto crítico e determinante no setor da saúde.

É também possível concluir que existe uma crença partilhada, entre os dirigentes superiores participantes na pesquisa, de que, se as pessoas tiverem valores já firmados, inculcados desde a infância ou a adolescência, é consideravelmente mais fácil que se interessem pelos códigos de ética, que os queiram cumprir e que exijam que outros os cumpram. Os entrevistados reconhecem ainda que existe um grande deficit de discussão sobre a ética no seio das próprias instituições, a par de um receio difuso, mas sempre presente, associado à criação de conflitos interpessoais nos casos em que algum colaborador seja interpelado por apresentar um comportamento menos ético.

Os intervenientes apontaram sugestões de melhoria, entre elas a de que a ética poderia ser potenciada através do Sistema Integrado de Gestão e Avaliação do Desempenho na Administração Pública (SIADAP) (Portugal, 2007b), através da atribuição de um maior peso aos fatores relacionados com a ética aquando da avaliação dos trabalhadores e através da obrigatoriedade da realização de pelo menos uma ação de formação, em todos os organismos do estado, sobre o comportamento ético. Outros trabalhos (Correia, 2011, 2012), que relacionam as perceções dos colaboradores face ao SIADAP com a satisfação, lealdade e envolvimento dos mesmos com as organizações onde desempenham funções, sugerem que esta é uma sugestão que poderá encontrar suporte teórico e empírico.

Também é possível concluir que existe a ideia generalizada de que as intervenções no sentido de divulgar os códigos de ética devem ser mais diretas e de que já não resultam, por regra, os panfletos coloridos ou os folhetos de design moderno, ou as obrigatórias publicações dos sítios de internet e na intranet. As visões convergem ainda no sentido de que essa divulgação terá de passar a ser feita em reuniões de serviço, com todas as classes profissionais de cada instituição, num contacto privilegiado e direto, em grupos pequenos, onde se gere alguma informalidade e onde se perceba a importância que as lideranças dão a este tema, através da forma como o abordam e incentivam a sua prática. A operacionalização dos conceitos éticos e da sua aferição assume, desta forma, um papel cada vez mais central: os inquéritos de satisfação aos utentes começam a ser encarados como possível forma de alerta para o modo como os trabalhadores da saúde estão a cumprir os seus códigos de ética; as reclamações são analisadas com cuidado crescente e idêntica finalidade; e a litigância é vista como um indicador de caráter quantitativo e qualitativo da prática de comportamentos éticos.

Por tudo isto, parece consensual que os códigos de ética podem e devem ser cada vez mais importantes. Os desafios que se colocam hoje à administração pública, como um todo, e à administração da saúde, em particular, são imensos e irrecusáveis. Os dirigentes superiores das instituições do setor da saúde, em Portugal, reconhecem que as questões éticas devem fazer parte da exigência pessoal que cada um deve ter consigo mesmo e que nas escolas e nas universidades a preparação teórica sobre este tema não deve ser descurada, sob pena de comprometer o futuro coletivo. Este reconhecimento traduziu-se numa exceção à corrente histórica portuguesa (e europeia continental) assente numa administração pública fundamentalmente normativa (Bilhim, Pinto e Soares, 2015), em que a norma jurídica prévia é condição necessária para a execução. Em 10 das 11 entrevistas realizadas foi claramente percetível que a maior parte das instituições de saúde portuguesas não esperaram pelo Despacho N.º 9456-C/2014 (Portugal, 2014) para elaborar e publicar os seus códigos de ética. Não obstante, é fundamental reconhecer que a parca divulgação de que este documento foi alvo não permitiu que se tornasse num texto orientador de mudanças vincadas no domínio dos códigos de ética na saúde.

Os autores consideram relevante replicar este estudo noutros setores de atividade, em Portugal e no setor da saúde, e noutros setores de atividade de outros países, particularmente países que partilham laços linguísticos e culturais com Portugal: Brasil, países da América Latina e países africanos de língua oficial portuguesa. Os resultados aqui apresentados podem contribuir decisivamente para a elaboração de listas de itens para uso futuro em estudos mais alargados (de natureza essencialmente quantitativa) sobre as perceções dos colaboradores das organizações acerca de temas como a ética e, em particular, sobre a elaboração e implementação de códigos de ética.

Pese embora a dimensão reduzida da amostra utilizada, as conclusões, que não possibilitam uma segura generalização dos resultados apresentados e discutidos, podem, no entanto, ser aceites como fiáveis sob o ponto de vista das culturas organizacionais na administração pública da saúde. Apesar disto, não deixamos de reconhecer a dificuldade existente na realização de entrevistas a dirigentes superiores do setor da saúde, uma vez que a seleção dos respondentes poderá originar algum tipo de enviesamento não controlável na investigação levada a cabo. Contudo, estas limitações foram parcialmente mitigadas ao incluir dirigentes de instituições distribuídas por todas as regiões do território continental português e ao incluir dirigentes de instituições de cariz diverso: nacional, regional e local.

 

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Data de receção: 21 de maio de 2016 Data de aprovação: 28 de julho de 2017

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