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Sociologia, Problemas e Práticas

versión impresa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.84 Lisboa mayo 2017

https://doi.org/10.7458/SPP2017845033 

ARTIGO ORIGINAL

Posicionamento político e articulação discursiva: o caso do discurso europeu do Partido Comunista Português

Political positioning and discursive articulation: the case of the European discourse of the Portuguese Communist Party

Positionnement politique et articulation discursive: le cas du discours européen du Parti Communiste Portugais

Posicionamiento político y articulación discursiva: el caso del discurso europeo del Partido Comunista Portugués

 

Luísa Godinho*

* Doutorada em Ciências Económicas e Sociais pela Université de Genève, Suíça, e docente na Universidade Autónoma de Lisboa, Lisboa, Portugal. E-mail: lgodinho@autonoma.pt

 

RESUMO

O presente artigo consiste numa análise diacrónica computacional do discurso europeu do Partido Comunista Português (PCP), demonstrando de que modo o processo de articulação discursiva participou na construção do posicionamento do partido, particularmente no contexto concorrencial inaugurado, em Portugal, após a revolução de 1974.

Palavras-chave: Partido Comunista Português, integração europeia, posicionamento político, análise do discurso.

 

ABSTRACT

The article consists on a diachronic computational analysis of the European discourse of the Portuguese Communist Party. It demonstrates how the process of discoursive articulation has allowed the party to define its political positioning throughout time, particularly in the competitive context initiated in Portugal after the 1974 revolution.

Keywords: Portuguese Communist Party, European integration, political positioning, discourse analysis.

 

RÉSUMÉ

Cet article est une analyse diachronique computationnelle du discours européen du  Parti communiste portugais (PCP), démontrant de quelle façon le processus d’articulation discursive a participé à la construction du positionnement du parti, en particulier dans le contexte concurrentiel inauguré au Portugal après la Révolution de 1974.

Mots-clés: Parti Communiste Portugais, intégration européenne, positionnement politique, analyse du discours.

 

RESUMEN

El presente artículo consiste en un análisis diacrónico computacional del discurso europeo del Partido Comunista Portugués (PCP), demostrando de qué modo el proceso de articulación discursiva participó en la construcción del posicionamiento del partido, particularmente en el contexto competitivo inaugurado, en Portugal, después de la revolución de 1974.

Palabras-clave: Partido Comunista Portugués, integración europea, posicionamiento político, análisis del discurso.

 

A implementação da democracia em Portugal aportou novas dinâmicas à vida pública portuguesa, entre as quais a competição política, que passou a integrar a reflexão estratégica dos partidos, determinando não apenas o posicionamento destes no espaço político (Hotelling, 1929; Downs, 1965 [1957]), bem como a sua ação enquanto agentes sistémicos centrais (Strom, 1990; Bartolini, 1999, 2000; Wright, 2008).

Na base desta nova dinâmica concorrencial encontrava-se a arquitetura do igualmente novo regime democrático, que tivera, logo em 1976, instituído os termos constitucionais de um sistema multipartidário, garantindo a inclusão e a participação de todas as forças políticas organizadas e fornecendo uma estrutura plural para o regime recentemente nascido (Canotilho e Moreira, 1993; Cruz, 1998).

O Partido Comunista Português, a mais antiga estrutura partidária em Portugal entre as atuais, nascido em 1921 e detentor de uma longa história de luta contra a ditadura que governara o país entre 1926 e 1974 (Pereira, 1981, 1993, 1998; Madeira, 1996), não constituiu exceção à então nova realidade da concorrência partidária, embora, no seu caso, esta tivesse sido acompanhada de um conjunto de novos desafios.

Cinquenta e três anos após um percurso solitário de disseminação do marxismo-leninismo no extremo oeste da Península Ibérica, o PCP confrontava-se, no dealbar do regime democrático, com um sério dilema político: por um lado, enfrentando concorrência, era forçado a negociar com os outros partidos políticos e a participar na competição eleitoral; por outro lado, aspirava manter o seu legado ideológico num tempo em que a social-democracia recebia um crescente apoio eleitoral e o marxismo-leninismo conhecia uma derrota gradual um pouco por toda a Europa, incluindo em Portugal (Childs, 1980; Gaspar, 1985; Rato, 1987; Bull e Heywood, 1994; Glaser e Walker, 2007).

Compreender de que modo este duplo desafio foi encarado e resolvido constitui uma questão por responder pelas ciências sociais, pelo que a presente investigação será uma tentativa de o fazer. O objetivo será identificar os processos discursivos que permitiram ao partido definir o seu posicionamento político ao longo do tempo, tentando equilibrar a necessidade de se aproximar do eleitorado com a de evitar incoerência ideológica.

De modo a participar na competição política, o PCP teria de garantir a comunicação com os outros agentes em presença no espaço político português, e esta comunicação, por sua vez, teria de ser estabelecida na base de um código de fala comum que garantisse não apenas a compreensão do que era dito como também a partilha de uma identidade que construísse um sentimento de pertença entre estes agentes (Griffin, 2008; Miller, 2004; Philipsen, 1997; Philipsen et al., 2012).

Nesta pesquisa, a questão da integração do PCP na democracia portuguesa será abordada em perspetiva discursiva e o partido concebido como um produtor de linguagem determinado a integrar a esfera política através da criação de um código de fala que simultaneamente preserve um certo grau de identidade ideológica, estabeleça o diálogo com os seus competidores e permita maximizar os resultados eleitorais.

Coloca-se a hipótese segundo a qual a construção do código de fala do PCP foi facilitada pelo processo de articulação discursiva, aquele tendo sido criado e recriado ao longo da história de modo a garantir a conversação (Oakeshott, 1962) do partido com os outros agentes políticos e, ao mesmo tempo, a salvaguarda de uma certa coerência ideológica.

De modo a testar esta hipótese, propomos desenvolver uma análise diacrónica do discurso do PCP, tentando identificar os processos linguísticos que permitiram o estabelecimento dessa articulação discursiva. Dado o impacto estrutural que o processo de integração europeia teve na sociedade portuguesa (Teixeira e Pinto, 2007, 2012), o foco será o discurso europeu do partido. 1964, o ano do primeiro texto do PCP sobre o projeto europeu, será o ponto de partida; 2008, o ano em que a análise se iniciou, o derradeiro.

 

Quadro teórico

Em perspetiva teórica, o problema em estudo ancora-se em três distintos campos científicos: o domínio da competição política, os estudos da ideologia e a análise do discurso.

O tema da competição política constitui uma área tradicional da ciência política, que aborda questões como a do posicionamento político, o problema aqui em estudo; entre os estudos da ideologia, identificamos a abordagem cultural e a sua perspetiva socioeconómica da ideologia; a teoria do discurso, por seu lado, fornece uma perspetiva sociolinguística do papel do discurso na sociedade. Nos parágrafos seguintes, estas três teorias serão desenvolvidas e a sua adequação ao problema em estudo explicada.

A abordagem da política como um fenómeno concorrencial, apresentada na obra de Anthony Downs An Economic Theory of Democracy (1965 [1957]), na esteira do legado de Harold Hotelling (1921), centra-se na dinâmica relacional que tem lugar, nos sistemas democráticos, entre os partidos políticos e o eleitorado. Segundo Downs, os sistemas democráticos seguem a mesma lógica do mercado livre, os partidos procurando uma localização ótima no espaço político, a qual, segundo a axiomática de Downs, corresponde ao ponto que garante existirem tantos eleitores à esquerda como à direita do partido (teorema do eleitor mediano).

A dinâmica descrita por Downs pode ser identificada na democracia portuguesa e inevitavelmente afeta o PCP que, consoante cada contexto eleitoral, ambiciona maximizar o número de votos, manter os obtidos na eleição anterior ou apenas garantir presença nas instituições políticas nacionais. No caso deste partido, a aproximação ao eleitor mediano não foi, no entanto, maximizada por razões ideológicas, já que poderia cair em incoerência e perda de identidade. O seu desafio consistiu, antes, em simultaneamente preservar a sua base eleitoral e aproximar-se de novos eleitores, salvaguardando a herança ideológica.

A conceção downsiana de deslocação dos agentes políticos no interior de um espaço simbólico constitui uma riquíssima metáfora para a explicação da dinâmica que tem lugar nos sistemas democráticos. Nesta pesquisa, tendo em conta a perspetiva discursiva seguida, defende-se que a deslocação dos partidos no espaço político se realiza através da palavra, a linguagem consistindo na interface entre o partido e os eleitores, o instrumento regulador do seu posicionamento ideológico. O texto constitui, portanto, o objeto central da luta política, na base do qual se realiza a deliberação e se estabelece o contrato social entre governantes e governados.

No caso do PCP, objeto do presente estudo, o posicionamento partidário deverá ser entendido na especificidade do contexto sociopolítico português, os dados existentes sobre o autoposicionamento ideológico-partidário dos portugueses (Bacalhau, 1994; Freire, 2004, 2005) constituindo um importante indicador de análise. A este propósito, os estudos apontam para um crescimento do alinhamento ideológico dos cidadãos, fenómeno que se revela inversamente proporcional ao apoio social dos partidos políticos (figura 1). “Ou seja, enquanto a identificação dos cidadãos com os partidos políticos decresce quase sempre […] as percentagens de indivíduos que se autoposicionam na escala esquerda-direita aumentam (Portugal, Espanha, Dinamarca e Bélgica) ou mantêm-se estáveis (Grã-Bretanha, Holanda e Grécia) […]” (Freire, 2005: 26).

 

 

No caso português, esta consolidação do alinhamento ideológico em detrimento do partidário sofreu oscilações significativas entre 1976 e 2002. Na década de 1970, mais de 50% dos cidadãos identificavam-se com o centro ideológico, os restantes inquiridos distribuindo-se maioritariamente à esquerda (28%) e à direita (21%) (figura 2).

 

 

Dez anos depois, esta distribuição alterou-se com a deslocação dos simpatizantes do centro político, até então claramente maioritários, para a direita, que passa a ser a escolha de 31% dos inquiridos, subindo dez pontos percentuais, a identificação com a esquerda mantendo-se nos valores da década anterior. Entre 1990 e 2002, verifica-se uma inflexão na anterior tendência de reforço da identificação ideológica com a direita, que diminui 4%, tendência desta vez explicada pela subida da identificação com o centro, que cresce 6%, a esquerda mantendo-se estável nos 28%.

Do que precede se conclui pela relativa estabilidade, em Portugal, da identificação social com o campo ideológico da esquerda, fenómeno que contrasta com a instabilidade da identificação com os setores de centro e direita, cujos alinhamentos oscilam consoante a conjuntura histórica em presença. Um outro contraste assinalável relativamente à permanência do alinhamento dos portugueses à esquerda é o seu comportamento eleitoral dentro deste espaço político, que revelou oscilações particularmente notórias entre 1975 e 2002, sendo de particular relevância para a presente análise a diminuição abrupta do número de votos no PCP (ver figura 4).

 

 

 

Na análise do posicionamento discursivo de um partido marxista-leninista como o PCP, as abordagens espacial e identitária, acima descritas, não garantem a compreensão plena do problema, já que o partido é fortemente condicionado pela ideologia, não podendo alterar o seu posicionamento em total liberdade. Uma perspetiva cultural torna-se, por conseguinte, necessária.

A abordagem cultural da ideologia segue a teoria weberiana dos conflitos culturais (Weber, 1964, 1978), segundo a qual as ideologias representam ideias da vida política e social que se tornam cativas do pensamento dos partidos, determinando as posições políticas destes. Esta abordagem inspirou a teoria macro-histórica da formação dos partidos de Rokkan e Lipset (1967), segundo a qual a ideologia constitui a tradução dos interesses socioeconómicos na esfera política. Mais recentemente, Van Dijk propôs uma revisão desta perspetiva cultural, definindo a ideologia como “as crenças fundadoras que estão na base das representações partilhadas de grupos sociais específicos […], mais especificamente como os princípios axiomáticos dessas representações” (2006).

O PCP constitui a expressão do confronto teórico apresentado acima, por um lado herdeiro do marxismo-leninismo (dimensão explicada pela corrente cultural da competição política) e, por outro, tendo de posicionar-se no espaço político português e maximizar os seus resultados eleitorais (dimensão explicada pela corrente económica da competição política). O partido debate-se, por isso, com o dilema de simultaneamente ter de responder à necessidade de manutenção identitária e à pressão da vontade do eleitorado, uma estratégia de resolução tendo forçosamente de ser encontrada.

Em perspetiva teórica, esta estratégia de resolução pode ser identificada no campo de estudo do discurso, particularmente na teoria de Laclau e Mouffe, que fornece uma abordagem sistémica ao problema da coabitação de diferentes significados nas sociedades contemporâneas.

A teoria de Laclau e Mouffe confronta diretamente a questão de uma política do sentido. Para os autores, as sociedades contemporâneas constituem espaços de indecisão a que falta um “centro fundacional ou um significado transcendental” (1985: 80). Esta lacuna, dizem os autores, abre espaço para a afirmação de um conjunto de distintos significados e distintas formas de articulação e competição entre estes significados. É aquilo que designam por “indecidibilidade estrutural da sociedade” (Laclau, 1996: 53).

Esta indecidibilidade estrutural pode ser demonstrada através da aplicação de um método particular de desconstrução, centrado no texto, e que segue os postulados de Derrida (1967). Na esteira deste autor, Laclau e Mouffe entendem a compreensão do texto como o resultado de um duplo exercício: uma primeira leitura que capta a visão dominante presente no texto e uma segunda que permite a compreensão do que é excluído, negligenciado e reprimido (1985: 111). É a segunda leitura, acreditam os autores, que clarifica a primeira, trazendo para a luz tudo o que se encontra excluído. Trata-se, portanto, de uma análise textual que visa a desconstrução do significado aparente do texto, previamente construída, o que pressupõe que todo o texto consiste numa dinâmica, sendo construído e desconstruído, composto e decomposto.

Laclau e Mouffe desenvolvem ainda uma abordagem sistémica do discurso que se reveste de particular utilidade para a compreensão da problemática em estudo, ao considerar a sociedade um conjunto de discursos concorrenciais. Esta competição discursiva gera inevitavelmente o domínio de um desses discursos, o que é possível graças à prática daquilo que os autores designam por articulação, ou seja, “uma prática que estabelece uma relação entre elementos, criando uma hipótese de identidade” — e, em particular, pela chamada articulação hegemónica (1985: 105). O processo é implementado do seguinte modo: os atores discursivos selecionam uma determinada forma de articulação e o efeito desta seleção é a restrição, a repressão e a negação de outras formas de articulação, que se tornam discursos marginais.

Esta teoria fornece um enquadramento adequado para o problema aqui em estudo: um partido político, neste caso o PCP, produz um determinado discurso que compete com outros discursos existentes no espaço político. Esta competição discursiva coloca todos os discursos em relação, forçando-os a desenvolver uma negociação linguística que acaba por criar a repressão de algumas expressões, a aceitação de outras e a reformulação de elementos linguísticos que deixam de ser utilizados na sua antiga formulação. Estes três procedimentos — repressão, aceitação e reformulação — compõem o processo de articulação discursiva e, no caso do PCP, podem talvez explicar a participação do partido no diálogo político que se encetou, em Portugal, após o estabelecimento do regime democrático.

Esta pesquisa propõe-se analisar o processo de articulação no discurso do PCP, identificando as expressões introduzidas, reprimidas e reformuladas entre 1964 e 2008. Será desenvolvida uma análise textual e, num segundo momento, os resultados serão interpretados à luz do contexto histórico português.

 

Metodologia e análise

O processo de articulação discursiva seguido pelo PCP será estudado através de uma análise de corpus e de um conjunto de procedimentos que serão descritos nos parágrafos seguintes.

Construção do corpus

A seleção dos textos que comporão o corpus constitui uma etapa decisiva em análise do discurso, pelo que os critérios seguidos neste processo serão apresentados de seguida. Seguindo as recomendações de Bauer e Aarts (2000), foram seguidos, em particular, os critérios temático, cronológico e da fonte.

O critério temático foi seguido de acordo com a classificação proposta por estes autores: corpus generalista e especializado. Um corpus generalista tende a adequar-se melhor a pesquisas que colocam um vasto conjunto de temas, e um corpus especializado àquelas centradas num único tema. Para o estudo do discurso europeu do PCP, será construído um corpus especializado composto de textos do partido sobre a União Europeia.

O segundo critério seguido foi o da proveniência dos materiais, tendo havido particular atenção em garantir a maior homogeneidade possível. Tendo em conta o tema em análise, os textos selecionados continham referências ao projeto europeu e, sempre que possível, seriam escolhidos textos provenientes de uma única fonte. Os textos de imprensa foram deliberadamente excluídos devido à especificidade metodológica que requerem na sua análise, nomeadamente o estudo do impacto de variáveis como o jornalista e a estrutura organizacional no texto produzido bem como os condicionamentos técnicos, políticos, económicos e institucionais em presença.

De entre as fontes disponíveis, duas ofereciam abundância e adequação de materiais — o Diário da Assembleia da República (DAR) e o jornal O Militante — tendo, por esses motivos, sido as selecionadas. A escolha destas fontes permitiu evitar os problemas levantados pelos textos de média, garantindo a construção de um corpus composto por textos emitidos diretamente por membros do PCP e livre de outras restrições que não as impostas pela linha editorial, no caso do periódico partidário, e pelo regulamento em vigor, no caso dos diários do parlamento.

Outro critério seguido na composição do corpus foi o cronológico, tendo sido selecionados textos produzidos por comunistas portugueses e que cobrem, tanto quanto possível, o período em estudo ou, no caso de falta de materiais disponíveis, a maior parte dos anos.

A fonte parlamentar e o periódico partidário apresentavam a limitação de não cobrir a totalidade do período em análise. No caso do DAR, este apenas permitia o estudo do discurso do PCP após 1975, já que o partido passou a ter representação na Assembleia da República portuguesa com as eleições para a Assembleia Constituinte, ocorridas nesse ano. No caso do jornal O Militante, esta fonte apresentava dois problemas: por um lado, apesar de os seus exemplares datarem do período da ditadura, sob a designação de O Militante Clandestino, o formato em que se encontravam disponibilizados não permitia o tratamento textual, impedindo-os de serem alvo de análise computacional; por outro, no que se refere ao período da democracia, encontrava-se indisponível o conjunto de exemplares relativo ao período entre 1976 e 1996.

De modo a colmatar estas lacunas, buscaram-se fontes alternativas de textos, tendo-se optado por livros com compilações de discursos de militantes comunistas publicados durante as décadas em falta e que versassem sobre o tema da construção europeia.

Uma atenção particular foi votada à diacronia dos materiais selecionados, tendo-se procurado textos produzidos desde 1968 até ao ano de 2008, de modo a cobrir as várias fases da história da relação de Portugal com o projeto europeu. Neste sentido, pesquisaram-se no motor de busca do DAR as palavras-chave “CEE”, “Europa” e “União Europeia” e, uma vez identificados os ficheiros pelo software, estes foram copiados para documentos passíveis de serem analisados computacionalmente. No caso do jornal O Militante, cuja coleção é de acesso livre através da world wide web, realizou-se uma leitura exaustiva dos índices de todos os exemplares e identificaram-se todos os textos relativos ao tema da construção europeia, tendo estes sido alvo dos mesmos processos de reprodução e organização seguidos no caso dos textos do DAR. Relativamente aos livros com discursos de comunistas portugueses, identificaram-se os excertos neles contidos sobre o projeto europeu, tendo também estes sido transcritos para documentos à parte.

Finalmente, todos os textos selecionados das três fontes foram compilados, cronologicamente, organizados e numerados, de modo a permitir a construção de uma base de dados eficazmente gerível durante o processo de análise que se seguiria.

Análise do corpus

Nesta secção propomo-nos analisar o vocabulário utilizado pelo PCP, definindo como objetivos identificar o processo de articulação linguística que possa ter ocorrido entre 1964 e 2008 e compreender em que medida esta articulação linguística pode permitir inferir a existência de uma mudança no posicionamento do partido.

A análise centrar-se-á no conjunto de textos reunidos mediante os critérios anteriormente apresentados, o corpus em estudo. Tendo em conta o objetivo de identificação das eventuais fases de evolução que o texto possa ter sofrido, dividiremos o corpus em segmentos de textos correspondentes a intervalos de cinco anos, o que permitirá a análise de vários subperíodos. Os subgrupos de textos corresponderão aos seguintes períodos: 1964-1968, 1969-1973, 1974-1978, 1979-1983, 1984-1988, 1989-1993, 1994-1998, 1999-2003, 2004-2008.

Num segundo momento, procedeu-se à criação de categorias de análise que permitirão estudar o vocabulário utilizado pelo partido. Tendo em conta o que foi previamente exposto acerca da situação conflitual em que o PCP se encontra — buscando uma solução discursiva que simultaneamente garanta a preservação ideológica e o crescimento eleitoral, a primeira apelando à conservação e a segunda à mudança identitária — duas categorias foram criadas: a categoria “vocabulário tradicional” e a categoria “novo vocabulário”, ambas codificadas por um conjunto de indicadores que constituirão as unidades de análise.

A codificação será realizada tendo em conta a ideologia do partido — o marxismo-leninismo — e obedecerá a um conjunto de procedimentos que detalharemos em seguida.

Num primeiro momento, o objetivo será a compilação de duas listas de palavras: uma que reflita o pensamento tradicional do PCP, composta por unidades lexicais provenientes do Manifesto Comunista, obra inaugural do pensamento marxista; e outra que reflita a especificidade do ideário comunista em Portugal, tendo em conta nomeadamente o contexto histórico em que este se desenvolveu, lista esta composta de vocábulos provenientes de obras comunistas portuguesas.

Os significantes provenientes da obra inaugural de Karl Marx comporão o que designaremos discurso comunista tradicional e a sua identificação seguiu os seguintes procedimentos: o texto do Manifesto Comunista foi inserido no software MaxQda, seguido pelo corpus em análise. Utilizando o software, foram em seguida identificados os substantivos e os verbos comuns aos dois documentos. Estes significantes comuns passaram a compor a lista de vocábulos tradicionais apresentada abaixo.

Esta lista de palavras permite o estudo da utilização do vocabulário comunista tradicional, mas revela-se insuficiente para compreender o discurso do PCP, já que não reflete a especificidade do contexto histórico português. Torna-se, por isso, necessário incluir o vocabulário alusivo à história recente de Portugal, nomeadamente o relativo a acontecimentos tão decisivos como a revolução de 1974 e a adesão à CEE.

A identificação deste segmento de palavras foi conseguida através da utilização do programa MaxQda e da prossecução de um conjunto de procedimentos: num primeiro momento, a totalidade do corpus foi inserida no software e as ocorrências de todas as palavras identificadas. De entre a lista de palavras apresentada foi então selecionado um grupo de vocábulos diretamente relacionados com a história portuguesa. O resultado é o que se apresenta no quadro 1.

 

 

A lista final, refletindo o quadro ideológico do partido e o contexto histórico em presença, compõe-se de 40 vocábulos e seria expandida por derivação destes, o que permitiria a deteção de cada conceito em todas as suas formas lexicais.

Tomemos o exemplo da palavra “capital”. De modo a compreender a evolução deste vocábulo no discurso comunista, pesquisaremos todas as suas derivações, tais como “capitalismo”, “capitalista”, em número e, sempre que aplicável, em género.

O procedimento foi executado para todas as palavras em análise, tendo-se obtido, no final da codificação, uma expansão da lista vocabular. Esta expansão permitiu um alargamento considerável da base de pesquisa, daí conferindo maior validade aos resultados e permitindo uma compreensão mais rigorosa do comportamento deste discurso ao longo do tempo, detetando eventuais tendências de permanência e transformação lexical.

Nesta fase da pesquisa, o objetivo consiste na identificação do número de ocorrências lexicais de ambos os tipos de vocabulário, assim como, num segundo momento, da relação existente entre estes, nomeadamente: os casos em que um léxico substitui o outro; os casos em que ambos os léxicos coexistem; os casos em que palavras sejam introduzidas pela primeira vez, denotando inovação lexical; os casos em que palavras tenham desaparecido. A deteção destes fenómenos lexicais no corpus permitirá a deteção das dinâmicas linguísticas ocorridas ao longo do tempo bem como a compreensão da estratégia discursiva seguida pelo PCP.

A pesquisa foi implementada através de análise computacional, tendo sido seguidas seis etapas fundamentais:

Gravação do texto no formato Rich Text, o que permitiria a deteção de qualquer tipo de caráter no texto. Inserção no software do corpus correspondente a cada subperíodo de análise. Inserção de todas as palavras-chave, os indicadores. Cálculo da frequência de cada palavra. Desambiguação. As ocorrências apresentadas pelo software não podem ser consideradas válidas, já que se desconhece o contexto em que as palavras foram usadas. Por exemplo, as 120 ocorrências da palavra “condição” não garantem que todas se refiram às condições negociadas entre Portugal e União Europeia, podendo muitas respeitar às “condições” do trabalho parlamentar ou a outro tema não relevante para o presente estudo. Torna-se, por isso, necessário confirmar que as ocorrências contabilizadas respeitam de facto às condições negociadas com as instituições europeias, tarefa que foi desenvolvida com o auxílio do software, que permite o acesso direto à frase onde a palavra foi identificada e deteção do contexto semântico relevante para o presente estudo. Composição da lista de ocorrências final.

O procedimento apresentado foi replicado para todos os períodos de análise, permitindo a criação de um quadro com todas as ocorrências lexicais para todos os subperíodos de análise. Estas ocorrências foram posteriormente transformadas em frequências, de modo a permitir a comparação de resultados, e interpretadas de acordo com o objetivo central de compreender o comportamento do discurso do PCP entre 1964 e 2008. Os resultados desta análise encontram-se representados nos quadros 2 e 3 e na figura 3.

 

 

 

O processo de articulação no discurso do PCP: repressão, aceitação e reformulação vocabulares

O vocabulário reprimido

De entre o léxico analisado, as palavras “mais-valia” e “Salazar” foram as mais cedo omitidas, desaparecendo do discurso comunista logo após o estabelecimento da democracia em Portugal. A palavra “Salazar” passou de uma frequência de 20,5 antes da revolução de 1974 para zero, embora este facto possa talvez ser mais explicado pela morte do presidente do conselho, em 1970, do que pela falta de crítica à política de Marcelo Caetano, que lhe sucedeu. Uma vez estabelecida a democracia, o nome do antigo presidente do conselho não mais surge no corpus, exceto em algumas frequências muito residuais de ocorrência irregular. Quanto à expressão “mais-valia”, segue o mesmo trajeto da anterior, passando de uma frequência de 37,5, antes de 1974, para zero, no período posterior.

O decréscimo da utilização do vocabulário tradicional comunista foi uma constante desde a revolução de 1974, as frequências médias lexicais (FML) caindo de 24,4, durante o período entre 1969 e 1973, para 19,8, entre 1974 e 1978, 8,7 entre 1979 e 1983 e, após a adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia, em 1986, para 5,3.

Esta tendência de repressão vocabular mantém-se após a adesão de Portugal à CEE, embora com uma intensidade menor do que a do período anterior. As FML do vocabulário tradicional diminuíram quatro pontos entre os quinquénios de 1984-88 e 1989-93, mantendo essa tendência de decréscimo nos quinquénios seguintes: passam de 2,8 no período entre 1994 e 1998 para 2,6 no período seguinte, compreendido entre 1999 e 2003, e, embora aumentem um ponto no quinquénio de 2004-2008, este valor não constitui uma inflexão significativa na tendência seguida no longo prazo.

De entre o fenómeno de repressão no discurso do PCP, a palavra “burguês”, que desaparece do corpus após 1984, constitui um caso particularmente interessante. Para o marxismo, o burguês simboliza um tipo social desprezível, a classe dominante do sistema capitalista que os comunistas ambicionam destruir de modo a implementar uma nova sociedade em que o domínio do homem sobre o homem não mais tenha lugar. A burguesia constitui a classe oposta ao proletariado, o poder advém-lhe da posse dos meios de produção, das rendas de propriedade ou dos juros provenientes do capital financeiro, devendo ser destruída de modo a permitir a instauração da sociedade comunista. Na literatura marxista tradicional, o burguês é igualmente conotado com um estilo de vida consumista e repudiável.

A utilização da palavra “burguês”, durante um tempo em que o capitalismo vigora na base do funcionamento de um mercado livre dependente do consumo, em que diminuíram consideravelmente as barreiras sociais ao empreendedorismo e em que a mobilidade social tende a aumentar, surge como historicamente desadequada. Nas sociedades com estas características, em que Portugal se inclui, os trabalhadores não raro tornam-se eles próprios empregadores que contratam o trabalho de outros trabalhadores, o sistema assim se reproduzindo de forma mais aberta e dinâmica.

Neste contexto, os comunistas que desejem propor-se a eleições e maximizar o número de votos não podem mais insurgir-se contra a burguesia, sob pena de atacarem largos setores da sociedade e, por conseguinte, excluírem-se do sistema. Talvez por isso, e apesar da permanência no discurso até 1984, a palavra “burguês” acaba por sucumbir ao anacronismo e desaparece do corpus.

A chegada do período seguinte e dos importantes acontecimentos históricos que tiveram lugar, entre os quais a queda do regime comunista no Leste europeu, de 1989 a 1991, constituíram um marco na história e no discurso do PCP. O já residual léxico tradicional comunista, que conhecera um decréscimo acentuado desde o final da ditadura, enfrentou o seu momento final, várias palavras acabando mesmo por desaparecer do corpus. As frequências da palavra “Abril”, para o PCP sinónimo de “revolução”, decrescem de 9,4, em 1988, para 0,4, em 1993, embora revelem um ligeiro aumento nas décadas seguintes que, no entanto, não parece significativo; “capital” cai de 15,7 para 1,5 durante o mesmo período; “classe” passa de 3,7 para 0,4; “ditadura” de 1 para 0; “direita” de 6,7 para 0,6; “ideologia” de 2,3 para 0,4; “imperialismo” de 9,4 para 0; “monopólio” de 8,7 para 0; “proletariado” de 1 para 0; “revolução” de 7 para 0,2 e, finalmente, “socialismo” diminui de uma frequência de 5,4 para 0.

A queda do Muro de Berlim, em 1989, e o fim da URSS dois anos mais tarde, evidenciaram o malogro dos regimes comunistas, levando os partidos comunistas, um pouco por toda a Europa, a uma dura autorreflexão. No caso do PCP, esta autorreflexão produziu um discurso de justificação expresso no XIII Congresso Extraordinário do partido, que teve lugar logo em 1990. O partido admitiu a necessidade de uma profunda análise do regime soviético e, pela primeira vez, teceu-lhe críticas abertamente. A partir desse ano, um corte com o passado tornou-se imperativo por parte do partido e uma nova linguagem corporizou-o. O discurso comunista até aí prevalecente é inundado de novas palavras provenientes de outros léxicos, as palavras tradicionais comunistas que sobreviveram ao processo de transformação passando a apresentar frequências residuais.

Os vocabulários aceite e reformulado

Apesar da dinâmica repressiva que se operou sobre a globalidade do léxico tradicional do PCP, num primeiro momento após a revolução de 1974 e, num segundo, após a queda do comunismo no Leste europeu, um conjunto de palavras resistiu ao desaparecimento ou à presença residual no discurso. Estes vocábulos, que apresentam frequências acima de 1 e que, não raro, veem a sua presença reforçada a partir da década de 1990, constituem o grupo vocabular aceite pelo sistema político português, a sua utilização contribuindo desse modo para a aceitabilidade do partido. São eles a palavra “liberdade”, cujas frequências, apesar de demonstrarem uma tendência de decréscimo desde o início do período de análise, se revelaram sempre iguais ou superiores a 1; a palavra “esquerda”, que, apesar de uma diminuição da sua utilização após o período revolucionário, vê a sua presença reforçada no corpus com o fim da URSS, passando de 0,2 em 1993 para 0,9 no período de 1994-1998 e para 1,2 entre 2004 e 2008; a palavra “democracia”, que manteve frequências de 10,3, 7,4 e 7,9 nos períodos de 1994-1998, 1999-2003 e 2004-2008, respetivamente; a palavra “igualdade”, cujas frequências aumentam ao longo do tempo, passando de 1,4 para 2,5 e para 6,3 durante os períodos de 1994-1998, 1999-2003 e 2004-2008, respetivamente; a palavra “capital”, que consegue manter presença no discurso comunista acima de valores residuais; finalmente a palavra “comunismo” é uma outra resistente no discurso contemporâneo do PCP, não obstante a queda acentuada que se verificou a partir de 1984 e embora a maioria das suas utilizações se refira ao Partido Comunista Português (nome próprio) e aos “comunistas” (adjetivo e nome comum). A palavra “comunismo”, relativa ao regime político a implantar, é ausente do corpus após 1984, surgindo apenas uma vez em 1984 e outra em 2008, durante um debate parlamentar em que foi mencionado o fim da URSS. Respondendo a um deputado democrata-cristão, o deputado comunista Bernardino Soares afirmou que o seu partido fez uma grande confusão entre “o fim da União Soviética e o fim do comunismo”, utilizando o termo no âmbito de uma defesa argumentativa e nunca o empregando como sendo um objetivo do PCP.

A utilização da palavra “comunismo” como adjetivo ou nome próprio, e não como nome comum relativo ao regime político defendido pelo PCP, constitui um facto particularmente significativo para a presente pesquisa. Trata-se de um caso em que as palavras refletem claramente a relutância dos utilizadores em empregá-las. No caso do PCP, esta relutância reflete-se no facto de o termo jamais ser utilizado para exprimir o objetivo último do partido; este não assume mais o sonho de implementar “o comunismo”. A palavra encontrava-se por demais associada ao regime ditatorial falhado da ex-URSS, a sua utilização surgindo porventura como desaconselhável aos olhos do partido, que prefere utilizá-la na sua forma adjetivada e como nome próprio. Esta estratégia linguística procura mitigar o impacto negativo que a palavra pudesse vir a ter junto dos seus recetores, no caso o eleitorado.

A análise que precede demonstra que a linguagem tradicional comunista foi primordialmente adotada pelo PCP durante a resistência ao fascismo e no contexto da Guerra Fria, a sua utilização declinando após a instauração da democracia e a chegada de novos contextos históricos a que corresponderam novos léxicos concorrentes.

A adesão de Portugal à CEE, em 1986, iniciou uma nova fase na história do partido bem como no discurso por este empregue. Ao longo dos anos que se seguiram, as antigas referências não mais foram utilizadas pelos dirigentes comunistas, a sua presença limitando-se a valores residuais. Ao mesmo tempo, uma nova tendência linguística tem lugar no discurso do PCP, caracterizada pela utilização crescente de um novo vocabulário.

Esta nova tendência, no entanto, apresenta algumas modulações. Em alguns casos, as novas palavras, como nos casos de “coesão”, “povo”, “convergência” e “federalismo”, são introduzidas pela primeira vez no discurso do partido; noutros casos, os antigos vocábulos assumem um novo significado, como se passou com a palavra “condição”, até 1985 referindo-se maioritariamente às difíceis condições de vida dos portugueses e, após esse ano, utilizada no contexto das condições impostas pela CEE, mais tarde UE; noutros casos ainda, as palavras empregues ocasionalmente antes de 1985 reforçam a sua presença no corpus, com este reforço amplificando a presença de determinado campo semântico, que passa de periférico a dominante. Este é o caso das palavras “adesão”, que, entre 1974 e 1988, apresenta uma frequência média de 26,4, e “europeu” que, entre 1989 e 2003, vê a sua FML aumentar 29 pontos, denotando o substancial impacto discursivo do projeto europeu.

Após 1989, os dados exprimem claramente a existência de um novo discurso, a FML do conjunto do novo léxico passando de 5,3, durante o período entre 1984 e 1988, para 6,2 durante o quinquénio 1989-1993 e, de novo, de uma frequência de 7,9, entre 1999 e 2004, para 8,1 entre 2004 e 2008. Novos significantes, como “desemprego” e “imigração”, surgem pela primeira vez no discurso comunista português no início da década de 1980 para não mais desaparecerem até 2008, o término do período de análise. A primeira palavra conhecerá o pico da sua frequência durante o período de 1994-1998 (12,8) e a segunda durante 2004-2008 (2,5). A palavra “globalização”, surge no corpus durante os quinquénios de 1994-1998 e 1999-2003, embora aí revele baixas frequências de 0,2 e 0,4, respetivamente.

Esta modernização lexical coincide com alguns importantes acontecimentos históricos que tiveram lugar na Europa e que interpelaram diretamente o PCP, como foram os casos da reunificação alemã, iniciada em outubro de 1990, e, um ano depois, do desmembramento da URSS.

 

Conclusão

A análise que precede permite identificar a existência de uma estratégia de articulação no discurso do PCP durante o período em estudo, 1964-2008, décadas de intensa mudança política, económica e social em Portugal (Barreto 2000), estratégia que, no entanto, se revelou eleitoralmente ineficaz.

O PCP conseguiu manter uma presença nas instituições políticas locais e nacionais, mas o seu número de votos declinou até 2002, tendo estabilizado desde então. A figura 4 mostra que o partido conheceu um ciclo eleitoral favorável durante a década que se seguiu à revolução de 1974 mas, após a adesão de Portugal à CEE, em 1986, os resultados eleitorais do PCP caíram três pontos, mantendo esta tendência de decréscimo até ao final do período estudado: o partido obteve 12% em 1987, 9% em 1991, 8,6% em 1995, 9% em 1999, 7% em 2002, 7,5% em 2005 e 8% em 2008 (ver figura 4).

Entre 1976 e 1985, o PCP situou-se fora da curva da maioria eleitoral e, entre 1986 e 2008, o partido manteve este posicionamento, obtendo 6,9% em 2002, 7,5% em 2005 e 7,9% em 2009. Estes resultados parecem corroborar a tese do enfraquecimento das identificações partidárias na Europa na segunda metade do século XX, já aqui apresentada (Freire, 2004 e 2005), embora o caso do PCP esteja em contraciclo relativamente ao autoposicionamento dos eleitores portugueses. Os estudos apontam para uma relativa estabilidade do eleitorado português de esquerda face ao do restante espectro ideológico, verificando-se uma significativa oscilação dos eleitores do centro político para a direita. O PCP, como se viu, não beneficiou desta relativa estabilidade do seu campo ideológico, perdendo votos para os seus concorrentes.

À luz do que precede, a derrota eleitoral do PCP permite formular algumas hipóteses explicativas quanto à estratégia discursiva seguida pelo partido entre 1964 e 2008. Em primeiro lugar, as transformações lexicais introduzidas parecem ter sido percecionadas pelo eleitorado como desadequadas ou despidas de correspondência semântica, o que poderá ter levado ao desencorajamento do voto no partido; uma segunda explicação possível é que as mudanças discursivas visando uma aproximação ao eleitor mediano podem ter sido entendidas como um sinal de incoerência ideológica, gerando descredibilidade e afastando franjas eleitorais; em terceiro lugar, coloca-se ainda a hipótese de o discurso do PCP ter sido penalizado pelo efeito gatekeeper dos média (White, 1964), o que pode ter fragilizado a sua perceção social e gerado a desmobilização dos seus potenciais eleitores. Finalmente, talvez fosse impossível ao PCP escapar à dinâmica de declínio internacional do comunismo que culminou, em 1991, com o fim da URSS, o esforço discursivo do partido tendo sido inevitavelmente em vão.

Como aqui ficou demonstrado, o vocabulário utilizado pelo partido para discutir o projeto europeu foi alvo de transformações ao longo do tempo, afastando-se gradualmente das expressões tradicionais e recebendo um conjunto de novos significantes correspondentes a um novo contexto histórico, e esta tendência, parece-nos, é plena de significado.

Do ponto de vista discursivo, a identificação do léxico reprimido pelo PCP, permitiu diagnosticar a existência de um discurso comunista marginalizado, marginalização esta que se desenvolveu a par da crescente preponderância de um novo léxico surgido após a adesão de Portugal à CEE e tornado dominante após a queda do comunismo no Leste europeu. Foi a conjugação destes dois processos antagónicos de marginalização e domínio discursivos que permitiu ao PCP construir uma narrativa própria e adequada ao novo contexto discursivo do período europeu, deste modo evitando a exclusão do espaço político democrático.

Esta transformação discursiva do PCP configura a realização de um strategic maneuvering (van Eemeren) por parte do partido, estratégia discursiva que visa, no plano da chamada “pragma-dialética”, reposicioná-lo face aos seus concorrentes diretos e indiretos bem como às expetativas que sobre ele recaem por parte do eleitorado. Este reposicionamento, por sua vez, parece ir de encontro à perspetiva downsiana já aqui enunciada, que identifica a existência de uma tendência centrípeta nos sistemas democráticos, tendência esta que aqui se estudou em perspetiva discursiva.

O presente artigo permitiu igualmente compreender os processos através dos quais o referencial europeu, pela via do discurso, se introduziu em Portugal e, em particular, o modo como este penetrou o domínio político a partir de 1985, desocupando-o de outros referenciais, como o ortodoxo comunista.

Desde o ano de 2008, término do presente estudo, um novo contexto socioeconómico teve lugar em Portugal, interpelando os partidos a novas negociações discursivas. À crise económica e financeira, que levou à intervenção do Fundo Monetário Internacional e à implementação de um conjunto de políticas de austeridade, seguiu-se a subida eleitoral da Coligação Democrática Unitária, que passou de 7,6% dos votos nas eleições legislativas de 2005 para 7,86% em 2009, 7,91% em 2011 e 8,25% em 2015. Esta mesma dinâmica verificou-se nas eleições europeias, com a CDU a conseguir 9,1% em 2004, 10,7% em 2009 e 12,7% em 2014.

A subida sistemática, ainda que percentualmente diminuta, dos resultados eleitorais da CDU pode ter correspondido a uma transformação no discurso do PCP, colocando-se a hipótese de uma nova articulação discursiva ter tido lugar após 2008. Esta articulação pode de novo ter facilitado a negociação do sentido entre o PCP e os outros agentes políticos e correspondido a um novo posicionamento do partido. Finalmente, esse novo posicionamento pode constituir um dos fatores explicativos da viabilização, pela primeira vez na história democrática portuguesa, de um governo de centro-esquerda em Portugal.

É uma questão que deixamos em aberto para pesquisas futuras.

 

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Receção: 10 de setembro de 2014 Aprovação: 13 de outubro de 2016

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