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Sociologia, Problemas e Práticas

versão impressa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.83 Lisboa jan. 2017

https://doi.org/10.7458/SPP2017839971 

ARTIGO ORIGINAL

Onde pára a classe média? Breves notas sobre o conceito e a realidade portuguesa

Where has the middle class gone? Brief notes on the concept and the Portuguese reality

Où se situe la classe moyenne? Brèves notes sur le concept et la réalité portugaise

¿Dónde anda la clase media? Breves notas sobre el concepto y la realidad portuguesa

 

Elísio Estanque*

* Professor da Faculdade de Economia e investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Av. Dias da Silva, 165, 3004-512 Coimbra, Portugal. E-mail: elisio.estanque@gmail.com

 

RESUMO

O presente texto centra-se no conceito de classe média e suas implicações sociopolíticas. Tratando-se de um tema que desde há cerca de duzentos anos tem alimentado sucessivas polémicas no campo académico, esta abordagem procura “desconstruir” alguns dos lugares-comuns que ao longo dos tempos envolveram esta categoria, designadamente a conotação com apatia política, individualismo e adesão acrítica ao statu quo “burguês”. O autor recorre a exemplos retirados do recente ciclo de rebeliões sociais induzidas pela crise económica e as políticas de austeridade — em especial os protestos que ocorreram na Europa do Sul e no Brasil —, procurando explorar a hipótese de que o potencial radicalismo e a força transformadora desses movimentos se devem não a um sentido “vanguardista” ou identidade “proletária”, mas antes a uma “pulsão de classe média” que deriva justamente dos valores e estilos de vida incorporados — mas não consolidados — por estes segmentos; ou seja, o descontentamento da classe média (tanto dos setores ascendentes como dos setores em declínio) é resultado de expectativas, ambições e desejos de ascensão social que o atual sistema económico e a classe dirigente “prometeram”, mas que não conseguiram satisfazer, pelo contrário, vendo-se agora ameaçados de empobrecimento. O possível ressurgimento da conflitualidade, seja ela de caráter progressista ou nacionalista e conservadora, passará seguramente pelo protagonismo destas categorias, marcadas pela instabilidade e precariedade do emprego e do modelo social com que um dia sonharam.

Palavras-chave: classe média, movimentos sociais, ação coletiva.

 

ABSTRACT

The present text focuses on the concept of middle class and its sociopolitical implications. Inasmuch as this is a topic that has been fuelling successive arguments in the academic field for some two hundred years, the author’s approach seeks to “deconstruct” some of the commonplaces that have involved this category over the years — particularly the connotation with political apathy, individualism and uncritical adherence to the “bourgeois” status quo. He takes examples from the recent cycle of social rebellions generated by the economic crisis and austerity policies — especially the protests that took place in Southern Europe and Brazil — to explore the hypothesis that the potential radicalism and transforming force of these movements are due not to a sense of “vanguardism” or “proletarian” identity, but rather to a “middle class initiative” derived precisely from the values and lifestyles incorporated — but not consolidated — by these segments. To put it another way, the discontent of the middle class (both the sectors that are moving upwards and those that are in decline) is a result of expectations, ambitions and desires to climb the social ladder, which the current economic system and governing class “promised”, but were unable to fulfil, with the middle class now threatened with impoverishment instead. The possible resurgence of conflict, be it either progressive or nationalist and conservative in nature, will certainly entail a prominent role on the part of these categories, marked as they are by instability, job precarity and the social model they once dreamed of.

Keywords: middle class, social movements, collective action.

 

RÉSUMÉ

Ce texte est centré sur le concept de classe moyenne et ses implications sociopolitiques, un thème qui n’a cessé d’alimenter diverses polémiques dans le champ académique, depuis près de deux cents ans. Cette approche tente de “ déconstruire ” certains des lieux communs associés à cette catégorie au long des temps, notamment sa connotation avec l’apathie politique, l’individualisme et l’adhésion acritique au statu quo “bourgeois”. L’auteur s’appuie sur des exemples tirés du cycle récent de rébellions sociales suscitées par la crise économique et les politiques d’austérité — en particulier les protestations qui se sont multipliées en Europe du Sud et au Brésil —, afin d’explorer l’hypothèse selon laquelle le radicalisme potentiel et la force transformatrice de ces mouvements sont dus non pas à un élan “ avant-gardiste ” ou à une identité “ prolétarienne ”,  mais plutôt à une “ pulsion de classe moyenne” qui dérive justement des valeurs et des styles de vie assimilés — mais non consolidés — par ces segments. Autrement dit, le mécontentement de la classe moyenne (tant des secteurs ascendants que des secteurs en déclin) est le résultat des attentes, des ambitions et des désirs d’ascension sociale que le système économique actuel et la classe dirigeante “ ont promis ” mais n’ont pas réussi à satisfaire. Au contraire, ils se voient aujourd’hui menacés d’appauvrissement. La réapparition possible de la conflictualité, qu’elle soit progressiste ou nationaliste et conservatrice, passera assurément par l’intervention de ces catégories, marquées par l’instabilité et la précarité de l’emploi et du modèle social dont ils ont rêvé un jour.

Mots-clé: classe moyenne, mouvements sociaux, action collective.

 

RESUMEN

El presente texto se centra en el concepto de clase media y sus implicaciones sociopolíticas. Tratándose de un tema que desde hace cerca de doscientos años ha alimentado sucesivas polémicas en el campo académico, este abordaje procura “deconstruir” algunos de los lugares comunes que a lo largo de los tiempos envolvieron esta categoría, a saber, la connotación con apatía política, individualismo y adhesión acrítica al statu quo “burgués”. El autor recurre a ejemplos extraídos del reciente ciclo de rebeliones sociales inducidas por la crisis económica y las políticas de austeridad — en especial las protestas que ocurrieron en Europa del Sur y en Brasil —, procurando explorar la hipótesis de que el potencial radicalismo y fuerza transformadora de esos movimientos no se deben a un sentido “vanguardista” o identidad “proletaria”, sino a una “pulsión de clase media” que deriva justamente de los valores y estilos de vida incorporados — pero no consolidados — por estos segmentos; o sea, el descontento de la clase media (tanto los sectores ascendentes como los sectores en declive) es resultado de expectativas, ambiciones y deseos de ascensión social que el actual sistema económico y la clase dirigente “prometieron”, pero que no consiguieron satisfacer, por el contrario, viéndose ahora amenazados por el empobrecimiento. El posible resurgimiento del conflicto, sea este de carácter progresista o nacionalista y conservador, pasará seguramente por el protagonismo de estas categorías, marcadas por la inestabilidad y precariedad del empleo y del modelo social con que un día soñaron.

Palabras-clave: clase media, movimientos sociales, acción colectiva.

 

Introdução

O presente texto centra-se na chamada classe média e procura contribuir para o atual debate em torno de um tema que desde há cerca de duzentos anos tem alimentado sucessivas polémicas no campo académico. Como ponto prévio à discussão sobre a classe média importa situar a questão no âmbito mais geral das teorias das classes e da estratificação social. Tratando-se de uma temática estruturante da própria sociologia enquanto ciência — e que a tem acompanhado desde a sua origem —, a perspetiva que aqui se privilegia procura situar-se na interceção entre a teoria social e a mudança histórica.

Como sabemos, a sociologia é filha de um tempo particularmente conturbado, quer no plano internacional, nos tempos da Revolução Industrial, quer, no caso da sociologia portuguesa, perante a intensa agitação e conflitualidade social que lhe serviu de berço no período do 25 de Abril de 1974. Temporalidades e momentos históricos sem dúvida muito distintos mas, em ambos os casos, foram tempos de grandes ruturas sociais em que os conceitos aqui sob escrutínio — classes sociais e classe média — estiveram no centro do debate público e da controvérsia teórica no espaço académico.

A noção de classe média foi, portanto, um conceito particularmente contestado e muitos questionaram a sua utilidade como conceito sociológico. Mas o referido termo nunca deixou de estar presente na linguagem corrente e instalou-se definitivamente no campo académico. Ainda que fosse por essa simples razão, dir-se-ia que já não podemos ignorá-la. Por um lado, como diria Pierre Bourdieu, a própria nomeação, a “classe no papel”, não é indiferente à construção prática de similitudes e demarcações estruturadas pela classe objetiva (Bourdieu, 1989). Por outro lado, passou a época em que a repulsa face a esta categoria era justificada por razões ideológicas.

Para além de recusar qualquer visão essencialista, a opção aqui foi a de ensaiar um percurso pela problemática da classe média, mesmo assumindo o risco de não conseguir sair do seu “labirinto” teórico. Quer devido à enorme heterogeneidade e à segmentação interna desta categoria, quer porque o interesse da reflexão que ela possa suscitar se prende mais com os efeitos discursivos e sociopolíticos da sua invocação do que com a substância (ou “a coisa em si”).

Do ponto de vista sociológico é tão importante uma abordagem que identifique, por hipótese, uma sólida e ampla classe média na sociedade X, como pensar o significado do que poderíamos designar “paraísos artificiais” da classe média, isto é, as consequências do discurso da meritocracia e da igualdade de oportunidades, tantas vezes associado a esta condição. Conforme procurei argumentar num texto de 2003, intitulado “O efeito classe média” (Estanque, 2003), ficções e realidade constituem duas facetas do mesmo fenómeno, pelo menos no que respeita aos efeitos político-ideológicos de uma “narrativa” (apologética ou crítica) da classe média. Digamos que são precisamente as repetidas controvérsias — teóricas, ideológicas e políticas — em volta desta temática, principalmente desde meados do século passado, que justificam a presente reflexão à luz do recente ciclo de lutas sociais e no contexto do capitalismo global do século XXI.

O presente artigo desdobra-se, assim, em torno dos seguintes tópicos: (i) uma reflexão sobre a natureza ambígua do conceito, questionando a discrepância entre o nome e a “coisa”; (ii) uma breve contextualização da sociedade portuguesa neste início do século XXI; (iii) uma nota sobre a questão identitária e a natureza ambivalente da classe média; e por fim, (iv) uma breve discussão centrada no recente ciclo de movimentos sociais (com exemplos de Portugal e do Brasil, sobretudo), onde procuro apontar a presença de dinâmicas da classe média.

 

A “classe média”: o nome e a “coisa”

Como se sabe, a consistência sociológica da noção de “classe média” foi repetidamente questionada. Mas talvez uma forma de contornar as velhas elucubrações abstratas seja considerar uma definição simples: “a classe média corresponde aos estratos sociais intermédios, isto é, aqueles que se situam acima da base da pirâmide da estratificação e abaixo dos estratos do topo”. Se quisermos reportar-nos ao conceito marxista de relações sociais de produção, dir-se-á que a classe média de que aqui nos ocupamos não possuiu a propriedade dos meios de produção (é assalariada) e não controla os grandes recursos de poder ou posições de status monopolizados pelas elites.

Todavia, mais do que ficarmos presos a uma “rigorosa” definição conceptual, importa assumir que se trata de um fenómeno que — não sendo novo — requer hoje um novo olhar sociológico, e sobretudo requer novos estudos menos marcados pelo viés ideológico (marxista ou funcionalista). Gorän Therborn, depois de muitos estudos sobre classes sociais, marxismo e socialismo, propõe-nos hoje uma conceção tão simples como esta: “basicamente, a ‘classe média’ refere-se aos não-ricos e não-pobres, sem a necessidade de outras características sociais além do consumismo, embora por vezes uma orientação cultural e política esteja incluída” (Therborn, 2013: 178). Trata-se, pois, de um agregado de categorias sociais extremamente heterogéneo e instável que não se ajusta a um conceito estrito de “classe” (semelhante ao que durante séculos identificou o operariado como “classe operária”).

Mesmo aceitando que as democracias liberais se baseiam em sistemas económicos concorrenciais, onde a meritocracia favorece a mobilidade social, importa resgatar de Max Weber a importância decisiva das desigualdades de poder (uma dimensão que, como sabemos foi descartada pela escola estrutural-funcionalista). Com base nessa premissa, poderemos então considerar as seguintes funções atribuídas à “classe média”:[1] (i) uma função de almofada, porque quanto mais volumosa for a classe média menor é a propensão para o conflito estrutural; (ii) uma função de referência, porque foi ela que tornou credível a possibilidade de mobilidade ascendente e a ideia de meritocracia; e (iii) uma função de mudança social, porque a classe média deu sentido ao projeto progressista e de desenvolvimento associado à modernidade (e que a social-democracia europeia procurou levar a cabo).

Por outro lado, considerando o campo marxista, é sabido que não atribuiu especial atenção à classe média, desprezando completamente o seu significado político. Karl Marx referiu-se aos pequenos agricultores como um conjunto desagregado e sem capacidade para agir enquanto classe. Daí nasceu a jocosa expressão do “saco de batatas” com que brindou a incapacidade do campesinato francês de promover uma consciência de classe: “existe entre os pequenos camponeses apenas uma ligação local e em que a similitude de seus interesses não cria organização política, nessa exata medida não constituem uma classe” (Marx, 1969: 115). Além disso, as chamadas classes de transição, a que se referia na obra A Luta de Classes em França (1848-1850), eram vistas como o principal suporte dos interesses da classe dominante, dispostas a procurar o conforto, tentando abastecer-se no mesmo “balcão” (leia-se o estado capitalista) onde a burguesia tratava dos seus negócios. Noutros momentos, porém, considerava-as como frações e segmentos em transição do período manufatureiro para o capitalismo industrial e destinadas a integrar o proletariado. Seja como for, o certo é que foi a luta conduzida pela classe operária e o movimento sindical desde o século XIX que, decididamente, abriu caminho às democracias avançadas da Europa e, dessa forma, fez florescer os estratos sociais intermédios. Ao longo da segunda metade do século passado sucederam-se os debates em torno da temática da estrutura e do significado político das classes sociais. Mas mesmo as discussões abstratas no campo marxista não deixaram de reconhecer — mesmo que implicitamente — a importância de dimensões próximas do weberianismo ou que lhes fizeram significativas “concessões”, o que de resto ajudou inequivocamente ao seu enriquecimento. Giddens, Poulantzas, Touraine ou Erik Wright foram alguns dos protagonistas nessa controvérsia, a qual não deixou de se refletir entre a sociologia portuguesa.[2]

Dito isto, vale a pena sublinhar — como princípio epistemológico — a necessidade de evitar tanto o viés empiricista como o registo teoricista e abstrato. Há quem defenda que é preferível uma boa e detalhada descrição do que uma teoria mal fundamentada. Pessoalmente, partilho a formulação de um autor que para mim se tornou uma referência, quando na sua habitual ironia afirmou que: “o marxismo e a etnografia podem de facto ser aliados, ainda que um tanto ou quanto desencontrados. Com bastante frequência, o marxismo costuma-se refugiar nas nuvens enquanto a etnografia fica afundada na terra” (Burawoy, 2014: 27). Ironias à parte, considero fundamental encontrar o ponto de equilíbrio entre esses dois registos.

Historicamente convém recordar como fatores estruturantes da classe média no Ocidente, quer o papel do empreendedorismo e da iniciativa privada (sobretudo nos EUA) quer a emergência do estado providência, sobretudo na Europa do pós-guerra. Com efeito, as camadas sociais aqui em análise não se confundem com a classe média proprietária abordada pelo autor de Da Democracia na América, isto é, aqueles que se encontram “tão afastados da opulência como da miséria […], [mas] estando ainda muito próximos da pobreza, veem de perto os seus rigores, pelo que atribuem aos seus bens um preço imenso […] a ideia de ceder a menor parte deles é-lhes insuportável e consideram a sua perda como a última das infelicidades” (Tocqueville, 1988: 272). Aproximam-se mais daquilo que C. Wright Mills, numa linha diferente, embora igualmente focada nos EUA, diagnosticou quanto aos white collars, pondo em evidência a diferença entre a “velha” e a “nova” classe média, caracterizando esta última pela sua dependência da “máquina social”, quer dizer, do aparelho burocrático. A ocupação típica do white colar, refere Mills, não é o trabalho produtivo, mas sim essa atividade social “que organiza e coordena as pessoas que fazem as coisas”, segundo as suas palavras. O crescimento do funcionalismo seria, assim, um corolário da estagnação do antigo empreendedor “livre” americano, a sua versão “menor”, por assim dizer. “Num mundo povoado por forças feias e poderosas, o homem do colarinho branco é prontamente identificado como possuidor de todas as supostas virtudes da pequena criatura. Ele pode estar na parte de baixo do mundo social, mas ele está, ao mesmo tempo, grato por ser de classe média” (Mills, 1951: xii).

Contrariando a perspetiva de uma classe média americana obcecada pelo sonho do Eldorado, a “nova” classe média europeia floresceu à sombra do projeto social-democrata, em especial após 1945. Com o crescimento económico e a afirmação do fordismo, os modernos mecanismos de “diálogo” e concertação — a par da luta reivindicativa — conjugados com a inovação técnica e a expansão da máquina administrativa, estimularam as novas profissões e o sentido “corporativista” da classe média, num contexto de “regulação” e institucionalização do conflito, que, segundo Dahrendorf, funcionou como força preventiva da luta de classes. O papel do estado e o “compromisso” entre capital e trabalho foram, sem dúvida, decisivos na reconfiguração da classe trabalhadora no seu conjunto. Mas o referido compromisso beneficiou ainda de outras condicionantes, tais como os efeitos “colaterais” da “guerra fria”, que estimulou estilos de vida “prósperos” e modelos de consumo marcados pelo individualismo, a aceitação do statu quo, etc.

Alguns estudos centrados no fenómeno da “mobilidade social” durante os “trinta anos dourados” revelaram que um dos efeitos perversos dos fluxos de subida-descida nas atitudes políticas era o facto de os que subiram adotarem regra geral as orientações dos grupos de chegada, enquanto os que desciam tendiam a encarar esse declínio como transitório e a atribuir a si próprios — e não tanto ao sistema económico dominante — as responsabilidades pela descida, reinvestindo logo a seguir nos seus descendentes, capitais educacionais e expectativas que lhes facilitavam a recuperação do anterior status (Parkin, 1978). Isto pode ajudar a perceber melhor o declínio do sindicalismo operário. Enquanto o operariado se afirmou como “vanguarda”, as franjas da classe média em luta pela “usurpação” (Parkin, 1979) deixaram-se guiar por projetos progressistas, mas a implosão dos blue collars e a burocratização do sindicalismo culminou, no Maio de 1968, numa rutura entre a nova crítica estética (do movimento estudantil) e a velha crítica social (do movimento sindical), o que terá afetado significativamente o avanço dos movimentos emancipatórios (Boltanski e Chiapello, 2009). À medida que a ação coletiva do operariado e a velha luta de classes se foram esbatendo, boa parte dos descendentes dos blue collars foi engrossando essas novas categorias profissionais, “acomodando-se” assim à ordem capitalista.

Em parte como resultado da iniciativa individual e da “meritocracia”, mas sobretudo devido ao impacto da mudança estrutural dinamizada pela economia e a ação do estado, tais mudanças tornaram-se as principais alavancas da mobilidade social e do crescimento das novas profissões qualificadas que engrossaram o funcionalismo do setor público. Mas, apesar de estigmatizadas pelo discurso marxista da época, por serem expressão dos “vícios burgueses” da sociedade de consumo, estas camadas — em especial os filhos do baby boom do pós-guerra — foram as que mais se filiaram nos sindicatos, as que mais integraram os novos movimentos sociais e as que mais conferiram solidez e coesão social às democracias ocidentais. De resto, já desde o século XIX que o próprio movimento operário havia sido liderado em boa medida pela chamada “aristocracia operária” — ou seja, pela primeira geração de onde germinou a “classe média” assalariada (Giddens, 1975; Touraine, Wieviorka e Dubet, 1984; Lockwood, 1989; Regini, 1994).

É inegável que os novos setores assalariados, os que foram crescendo à sombra do estado social, do aumento da modernização técnica e da burocracia nas empresas, forneceram uma base social extraordinariamente importante para a reprodução do capitalismo. Porém, enquanto as teorias da reprodução, sob influência marxista (Bertaux, Bourdieu), realçavam sobretudo o caráter estrutural e a capacidade de cooptação da ordem burguesa, a escola britânica neoweberiana (Dahrendorf, Giddens, Goldthorpe, Erikson, Marshal, Parkin, Devine, etc.) mostrava com base em dados empíricos que a recomposição das classes sociais na segunda metade do século XX resultou simultaneamente dos fluxos de mobilidade e do conflito social.

Isto significa que o fenómeno da mobilidade e da “meritocracia” não pode compreender-se sem termos presente a variável “poder”. É esse o sentido da clássica formulação de um conhecido weberiano: “mesmo aqueles poucos que chegam ao topo pelo seu mérito passam a querer tudo o resto, não apenas poder e dinheiro, mas também a oportunidade de decidir quem entra e quem fica de fora” (Dahrendorf, 2005). A mobilidade social e a mudança estrutural do sistema revestiam-se assim de um significado sociológico mais consistente nestas abordagens, já que elas não descuraram a crítica à lógica discricionária e às assimetrias de poder e de status, demarcando-se do pensamento funcionalista e em particular do discurso laudatório do marketing do consumo e da meritocracia. Insere-se aí o conceito de Erikson e Goldhorpe (1992) sobre a “classe de serviço”, ou seja, a ideia de que, mais do que ao talento e ao mérito, as condições de conforto de que beneficiaram estas categorias devem-se principalmente ao “serviço” que prestam às elites na sua função de “zona-tampão”. Dito de outra maneira, esses “movimentos de curto alcance” — para cima e para baixo — contribuíram para atenuar a conflitualidade porque conferiram credibilidade à retórica da meritocracia e da “igualdade de oportunidades” (Savage et al., 2013). Porém, o papel dos novos estratos socioprofissionais não decorre apenas da sua iniciativa individual em períodos de estabilidade económica e paz social, mas também — e em particular os segmentos juvenis e estudantis — do seu envolvimento direto em contextos de conflitualidade e luta coletiva, como, por exemplo, os fortes movimentos sociais dos anos 60, associados a um “radicalismo de classe média” (Parkin, 1968; Fraser, 2013).

 

Tendências globais no século XXI e o contexto português

Thomas Piketty, na sua obra O Capital no Século XXI, procurou mostrar a perversidade do capitalismo global neste início de milénio, argumentando que a desigualdade na distribuição da riqueza resulta da dissociação estrutural entre crescimento económico e acumulação privada de capital, tendência que o capitalismo financeiro da atualidade agravou drasticamente. “A desigualdade entre riqueza (r) e produção (g) implica que os patrimónios provenientes do passado se recapitalizam mais rapidamente que o ritmo de progressão da produção e dos salários. […] O empreendedor tende inevitavelmente a transformar-se num rentista, e a dominar cada vez mais fortemente aqueles que apenas possuem o seu trabalho. Uma vez reconstituído, o capital reproduz-se sozinho, mais depressa do que cresce a produção. O passado devora o futuro.” (Piketty, 2014: 882). Nessa mesma linha se inscreve o argumento de Wolfgang Streeck, quando sugere que o “consenso” do período da “guerra fria” derivou na verdade de uma espécie de “economia do medo” em que a aparente aliança entre democracia e capitalismo assentou num receio recíproco: o receio (da parte do capital) de que a propriedade privada viesse a ser abolida por maiorias parlamentares de esquerda; e o receio (da parte do trabalho) de que os capitalistas financiassem o regresso a regimes autoritários em defesa dos seus privilégios (Streeck, 2014: 40).

Nos últimos tempos paira no ar um risco real de entropia geral do sistema económico. Não por acaso, a noção de “capitalismo” e a teoria marxista voltaram a ocupar lugar de destaque nos debates académicos e na esfera pública. A esse propósito recordo o alerta de Nancy Fraser de que “o capitalismo só pode sobreviver se não for completamente capitalista” (Fraser, 2014: 50). Nesse sentido — acrescenta a mesma autora — é possível e necessário proceder a uma “des-ortodoxização” de velhas linguagens e “clichês” do marxismo para prosseguir novos caminhos analíticos: “Marx olhou por detrás da esfera das trocas para o interior da casa escondida da produção a fim de descobrir os segredos do capitalismo [e nós] devemos perseguir a produção das condições de possibilidade para lá dessa esfera, em zonas ainda mais encobertas” (Fraser, 2014: 57).[3]

Como resultado desse processo, vem-se assistindo a uma drástica redução de custos salariais, com a ajuda das novas tecnologias de informação e comunicação, da ideologia consumista, da flexibilidade das relações de trabalho e do aumento do desemprego. As consequências sociais são conhecidas: novas formas de trabalho degradante e desumanizado a substituírem o emprego digno, ao mesmo tempo que assistimos ao desmoronar de direitos democráticos fundamentais, fazendo lembrar o velho mercantilismo selvagem do século XIX. E naturalmente que essa realidade atinge não apenas os trabalhadores subalternos e os setores mais vulneráveis mas também os segmentos laborais até há pouco mais protegidos (Antunes, 2013; Harvey, 2014; Burawoy, 2014; Santos, 2003 e 2004).

Há muito que se conhece o crescente desajustamento entre produtividade e salários. Na economia mais influente do mundo, os EUA, desde meados da década de 1970 que esse diferencial vem aumentando. Os ganhos da economia financeira subiram exponencialmente em relação ao sistema produtivo, e essa tornou-se uma tendência comum nos países da OCDE, ao mesmo tempo que a concentração da riqueza económica no topo continua a agravar-se até aos dias de hoje (Faux, 2006; Piketty, 2014). Os mecanismos de transferência de riqueza ampliaram os processos de reestruturação produtiva e criaram novas articulações internacionais do capital, segundo um sistema complexo em que o funcionamento em rede se conjuga com assimetrias de poder entre os blocos que disputam a hegemonia mundial. O próprio FMI, ao analisar o modo como tem evoluído a distribuição do rendimento e os seus efeitos no crescimento económico, admite que as desigualdades no mundo se agudizaram significativamente. E acrescentava que “quanto maiores são as desigualdades menor é o crescimento”, segundo uma lógica que — conforme o relatório divulgado em 15/06/2015 — está diretamente associada à “crescente flexibilidade dos mercados de trabalho”.[4] É justamente neste enquadramento que a classe média tem vindo a ser “espremida” nos países desenvolvidos, perante o rápido declínio dos seus rendimentos salariais (IMF, 2015: 13-14; Beck, 2007).

A atual tendência de estagnação económica, o aumento do poder das oligarquias que dominam o sistema financeiro, o atrofiamento da esfera pública democrática, o problema da corrupção no seio das instituições e a instabilidade do sistema mundial apontam justamente no sentido de que a crise atual tem um caráter estrutural e sistémico. De resto, os vários desdobramentos dessa crise sistémica, seja no continente sul-americano, seja na Rússia ou no continente asiático — como refere Ulrich Beck na sua última obra (Sociedade de Risco Mundial)[5] —, transcendem o sistema financeiro e atingem “sobretudo as classes médias”. Os choques sociais e perigos políticos que daí derivam dão origem ao acicatar de radicalismos e fanatismos de diversos tipos, muitas vezes transformando as minorias (imigrantes, refugiados, grupos étnicos ou religiosos) nos bodes expiatórios da crise e nos alvos principais da violência. É por isso que, conclui o mesmo autor, a melhor resposta para fazer face a esta “lei férrea da globalização do mercado livre”, não é a opção pelo regresso ao protecionismo (como alguns estados pretendem) mas sim a necessidade de uma nova politização da economia de mercado global. Ou seja, para uma inversão da política neoliberal, importa substituir a economização da política por uma repolitização da economia (Beck, 2015: 364).

Para além dos impactos mais gerais destas tendências sobre a economia e a sociedade, as classes médias — sobretudo as dos países em crise na Europa do Sul, como Portugal — viram a sua estabilidade profissional, as suas expectativas e os seus modos de vida, profundamente abalados. Numa sociedade em transformação rápida, como foi a sociedade portuguesa desde os anos 80, a recomposição de classes caminhou sempre de par com os processos de readaptação identitária e subjetiva, nos quais os elementos de ficção adquiriam um significado particular, inclusive criando nos setores qualificados do setor privado e do funcionalismo público uma sensação ascensional, em parte ilusória, ou como lhe chamou João Ferreira de Almeida, um efeito de escada rolante, em que esta “desce enquanto as famílias vão subindo os degraus”, criando uma mobilidade “apenas aparente” (Almeida, 1986: 86). Todavia, os efeitos ficcionados da mudança estrutural não iludem as alterações substantivas que ocorrem no terreno socioeconómico.

Considerando a linha de pobreza oficialmente definida (com base nos 60% do salário médio), a percentagem de portugueses em risco de pobreza (que tinha evoluído positivamente na primeira década deste século) intensificou-se nos últimos anos, situando-se nos 18% em 2009 e nos 19,5% em 2013, mantendo-se esse mesmo valor em 2015 (relatório do INE de 30/01/2015), mas agravado no setor feminino e no caso dos menores de 18 anos (cuja taxa de pobreza atingia nesse ano os 25,6%). Segundo o critério económico proposto por Ursula Dallinger (2011), a situação da classe média enquadra-se no intervalo entre 75% e 150% do rendimento mediano. Com base nesse indicador, teríamos nesse segmento de rendimento 51,4% dos portugueses.

 

 

É claro que os critérios podem variar e produzir resultados muito díspares quanto à dimensão da classe média e à sua natureza. Recorrendo à tipologia de classes usada pelas equipas do ISCTE-IUL, podemos desde logo observar o crescimento de categorias como os “profissionais técnicos e de enquadramento” (PTE) e os “empregados executantes” (EE), pelas quais se distribui o grosso dos segmentos potencialmente inseridos numa “classe média” mais ampla. Só estas duas categorias somavam, em 2011, 54,9% do conjunto da população ativa portuguesa, além de evidenciarem um progressivo crescimento ao longo das últimas cinco décadas, ao contrário dos operários industriais e principalmente dos assalariados agrícolas, que viram o seu peso significativamente reduzido no mesmo período (Cantante, 2013).[6]

Alguns dos problemas mais recentes que atingem diretamente a classe média portuguesa (bem como a grega, espanhola, italiana, francesa, etc.) são hoje realidades conhecidas de todos: associado ao aumento da pobreza, o agravamento das desigualdades, o sobre-endividamento das famílias, o fenómeno da “pobreza envergonhada”, o bloqueio das carreiras profissionais, os cortes salariais e nas pensões de reforma, a generalização do trabalho precário, o disparar do desemprego, etc., etc. Todo este conjunto de medidas brutais, introduzidas no nosso país no período de intervenção da Troika, foi particularmente violento para com estes setores; os mesmos que até há pouco serviram de principal suporte à coesão social do país. E isso, como não podia deixar de ser, está a “proletarizar” amplas camadas da classe média, além de lhes impor uma trajetória regressiva e em declínio face ao passado recente (Estanque, 2012).

 

Paradoxos e desafios teóricos em torno da “classe média”

Como antes assinalei, o fenómeno da classe média carece, na atualidade, de um novo olhar sociológico; o que não significa ignorar as antigas discussões. Pelo menos desde a década de 1960 que os dois grandes paradigmas teóricos se confrontaram com profundos processos de segmentação social, quer da classe trabalhadora manual quer da “classe média” (as categorias que Erik Wright cunhou como os “lugares contraditórios de classe”). Tratou-se de facto de uma metamorfose e recomposição que atingiu toda a estrutura das classes, em sintonia com as tendências demográficas, a concentração urbana e a mudança estrutural dos mercados de trabalho. Prendem-se com isso algumas propostas de reconfiguração da “pirâmide” da estratificação, por vezes vistas sob formas geométricas bem mais complexas, onde os contrastes e as oposições entre “localizações” de classe se tornaram mais vincados, inclusive no seio dos assalariados que integram os estratos intermédios.

Ezequiel Adamovsky considerou recentemente que o valor heurístico da noção de classe média depende da demonstração empírica de três fatores: 1.º) um determinado conjunto de pessoas tem algo em comum que as unifica apesar das suas diferenças; 2.º) que o que elas compartilham as distingue de outros agrupamentos sociais reconhecidos como classes; e 3.º) que essa situação de classe seja conceptualizada pela sociedade como uma posição intermédia entre uma posição superior e outra inferior (Adamovsky, 2013: 48). Ora, o que parece haver em comum entre grupos tão distintos funda-se mais na negação do que na aposta num horizonte ou numa estratégia propositiva. Por outras palavras, se essa “união” não decorre da “consciência”, muito menos pode decorrer do fator “identitário”, ele mesmo um indicador de efeitos voláteis e de incidência muito esporádica.

As segmentações no seio da classe média são evidentes, quer nos indicadores de status e condições materiais, quer nas subjetividades e representações. A educação, o rendimento, o capital relacional e o património (o volume e o modo como essas espécies de capitais se combinam entre si) serão certamente fatores de estruturação de expectativas e ação coletiva. O mesmo se pode dizer das trajetórias ascendentes ou descendentes, como há várias décadas notou José Carlos Ferreira de Almeida (1970). Mas não existem determinismos lineares nesta matéria, além do mais porque os impulsos da ação coletiva não são estritamente racionais ou de natureza materialista, antes obedecem muitas vezes a “pulsões” subconscientes e a lutas pelo reconhecimento (Honneth, 2011 [1992]; Laclau, 2011; Estanque, 2014).

Um inquérito realizado em Inglaterra por uma equipa de cientistas sociais de referência (o BBC’s Great British Class Survey, de Mike Savage e Fiona Devine, entre outros) utilizou uma tipologia multidimensional, incluindo aspetos económicos, elementos simbólicos e formas de reprodução social e de distinção cultural,[7] mostrando a segmentação da classe média inglesa em pelo menos cinco camadas distintas: (1) a classe média estabelecida (alto capital económico, elevado status e com contactos intelectuais e da cultura emergente); (2) a classe média técnica (alto capital económico e muitas referências sociais, mas poucos contactos intelectuais indicados); (3) os novos trabalhadores abastados (capital económico moderado, score médio de referências sociais, moderados contactos intelectuais mas boa rede de capital cultural emergente); e por fim (4) os trabalhadores emergentes dos serviços (capital económico moderadamente baixo mas com razoável rendimento familiar, contactos sociais moderados, bons contactos com capital cultural emergente mas escassos contactos intelectuais).[8]

Não é claro neste estudo em que condições tais segmentos podem, ou não, potenciar novas linhas de conflitualidade com expressão política. Se os antagonismos de base económica continuam a impulsionar muitos dos recentes descontentamentos e movimentos sociais, é provável que as lógicas identitárias e as subjetividades políticas se exprimam de modo diferenciado consoante a carência de recursos económicos se conjugue com a presença de recursos educacionais/culturais ou com a sua ausência (Bourdieu, 1989; Burawoy, 2010).

É precisamente nesta dimensão que algumas perspetivas “igualitaristas” (por exemplo, Goran Therborn) chamam a atenção para o potencial da classe média na luta pela igualdade. Por isso mesmo, apesar de a dimensão laboral permanecer importante, hoje a luta pela igualdade já não depende fundamentalmente da força de trabalho manual mas dos objetivos perseguidos pelas classes médias. Todavia, importa esclarecer que o seu papel só se torna relevante na medida em que as disputas em aberto não se decidam no próprio interior da classe média, mas através de um espectro social mais vasto que inclua as lutas e movimentos populares das camadas mais desapossadas. Por outras palavras, “sem as lutas do ‘povo’, i.e., daqueles que não se veem a si próprios como acima dos pobres, a batalha crucial pela orientação das classes médias estará arruinada à partida” (Therborn, 2013: 181). O chamado precariado, por exemplo, que reúne diversas franjas de uma classe trabalhadora medianamente qualificada, predominantemente jovem e sem estabilidade económica, pode, em condições de instabilidade e de quebra brusca de mobilidade (ou de expectativas de ascensão), protagonizar ciclos de conflitualidade capazes de arrastar consigo muitos destes segmentos da classe média, como de resto tem acontecido em períodos de crise.

Deste modo, pensando nos contextos particulares onde as lutas e mobilizações sociais ganharam especial intensidade nos últimos anos, podemos interrogar-nos quanto à importância da vertente subjetiva e política da classe média. Nesse plano, fará sentido estabelecer uma divisão de campos entre uma “classe média” comprometida com os “de baixo” e uma classe média alinhada com os “de cima”? Talvez essa distinção possa ser útil, tanto mais quanto o enfoque da presente discussão se situa na confluência entre a categoria sociológica e o protagonismo político da classe média.

 

Ambivalências da classe média: identidade e ação política

Temos assistido nas primeiras décadas do século XXI a repetidas lutas sociais, mas também a narrativas exaltadas, focadas no crescimento imparável das classes médias em diversos continentes. Por um lado, a euforia dos agentes políticos e do marketing económico, que nos prometem para as economias emergentes uma espécie de “revolução redentora” das classes médias (uma redenção pelo consumo, sublinhe-se). Por outro lado, as manifestações e protestos de rua onde — de Seattle a São Paulo, de Santiago do Chile a Madrid, de Tunes a Lisboa, de Atenas a Nova Iorque, etc. — direta ou indiretamente paira no ar o espectro da “classe média” e pressente-se uma “pulsão rebelde”, onde estas categorias surgem misturadas com outras camadas populares (ou mesmo com as elites e os seus interesses).

No centro desta problemática podemos considerar o conceito de identidade. Já sabemos que sem esse elemento não é possível conceber a existência de um sujeito ou ator particular com coerência e especificidade próprias. A identidade assenta em identificações e ruturas, segundo um processo que, longe de ser estático, resulta de sucessivas formas e experiências de identificação. E no caso da identidade coletiva ela forja-se antes de mais nas lutas sociais, nas subjetividades partilhadas em experiências coletivas intensamente vividas — em especial os movimentos de resistência ou de natureza emancipatória —, como mostraram teóricos como E. P. Thompson, Charles Tilly, Axel Honneth, Ernesto Laclau ou Boaventura de Sousa Santos, entre outros. É exatamente nesse sentido que interessa colocar a tónica nos processos e na construção identitária intersubjetiva como um dos principais elementos propulsores da ação coletiva e da mobilização sociopolítica (Touraine, 1981; Tilly, 1996; Melucci, 1998; Hall, 2004; Yashar, 2007).

Como sabemos, desde Max Weber, o social é em parte uma construção reflexiva e em parte uma realidade objetiva. Sociologia e psicologia social encontram aqui um ponto de confluência, no sentido em que a construção identitária do próprio indivíduo o recoloca no ambiente social ou da comunidade: o “eu” transcende a materialidade do self, projetando-se nas próprias roupagens com que este se apresenta aos outros, implicando-o com o grupo, e é por esta via que os atores e movimentos coletivos podem estruturar-se e fortalecer-se (Aronowitz, 1992; Honneth, 2011 [1992]).

É certo que entre o “sujeito da política” e a “política do sujeito” existe uma certa ambivalência. Mas vivemos em tempos de fluidez e de hibridização, onde o cosmopolitismo se desenha sob a influência de identidades instáveis e em expansão, dos localismos globalizados aos globalismos localizados. É no movimento do localismo para o universalismo — ou do paroquialismo para o cosmopolitismo — que as lutas contra-hegemónicas e de emancipação poderão construir o seu espaço (Santos, 2003; Laclau, 2011). Ora, isso implica perspetivar as classes médias como possíveis protagonistas ativas das lutas sociais contemporâneas.

Quer os novos segmentos de trabalhadores precários, quer as vítimas de um estado social em desconstrução partilham o desejo de assegurar o que já se alcançou ou de evitar perdas ainda maiores. Ao contrário das gerações passadas, hoje, as dinâmicas de contracultura e de identidades ressentidas conjugam-se com precariedade, desemprego e negação do futuro. A forte instabilidade da juventude liga-se em primeira instância com as carências socioeconómicas mais gritantes, e assim — ao contrário do Maio de 1968 —, a crítica estética parece ir ao encontro da crítica social (Boltanski e Chiapello, 2009: 352). E perante um tal cenário o seu elemento aglutinador pode de facto ser a classe média.

O mais recente ciclo de protestos sociais a que o mundo assistiu na última década (em especial no período de 2009-2013) transporta um conjunto de lógicas e dinâmicas inovadoras, por contraste com anteriores movimentos sociais, sendo um desses traços a forte presença de lógicas e subjetividades de classe média. As rebeliões sociais que ocorreram nos últimos anos — em especial as da Europa do Sul, entre 2009 e 2012, e do Brasil, em junho de 2013 —, dado o seu caráter fluido e inorgânico, dificultam qualquer diagnóstico preciso quanto aos reportórios políticos ou ao perfil das suas lideranças (nem sempre identificáveis) (Pochmann, 2012; Estanque, 2015).

Por outro lado, a enorme diversidade de contextos socioculturais e experiências de ativismo evidenciou a importância decisiva das redes sociais, suscitando contaminações “virais” e metamorfoseando-se em diversas formas de hibridismo cujo significado político carece ainda de estudos mais aprofundados (Castells, 2013). Vale a pena pensar o papel das redes virtuais (Facebook, Twitter, etc.) na sua relação com as espacialidades locais para compreender as novas dinâmicas de estruturação identitária e de mobilização, em especial junto da juventude. Por exemplo, no Brasil, os chamados rolezinhos, esses simulacros de “invasões” ou rebeliões que ocorreram nos shoppings de São Paulo (e noutras cidades) não deixam de constituir mensagens de irreverência marcadas pela influência dos modos de vida das classes médias urbanas que personificam o “mundo burguês” simbolizado pelas “catedrais do consumo” de luxo que, aos olhos desses jovens, funcionam como apelos à insurreição.

Além destes segmentos sociais, nas grandes manifestações de junho de 2013, confluíram setores igualmente muito variados, apesar de na sua imensa maioria serem jovens escolarizados com frequência de ensino superior (entre 70% e 80% dos manifestantes daquele mês na cidade de São Paulo possuíam ensino superior e entre 80% e 90% tinham menos de 35 anos). De acordo com inquéritos realizados no momento, as condições sociais e origens de classe congregaram gente desde a classe média-alta aos segmentos subalternos das periferias da capital paulista, embora mais de 70% tivessem uma relação laboral (embora precária) e a maioria pertencesse a famílias de baixos ou médios rendimentos. O Facebook e outras redes da internet foram os meios de difusão para mais de 80% dos manifestantes nas manifestações de junho de 2013. A própria plasticidade e o décor com que se mostram diversos subgrupos de manifestantes são significativos do seu habitus ainda relativamente indefinido na estrutura de classes: para muitos, estar na manif é tão importante como o ato de divulgar a foto no Facebook, onde se exibe o disfarce mais apropriado ou o ato “heroico” mais audacioso para enfrentar a ameaça policial, podendo ainda fornecer um fragmento de “glória” na TV (Estanque, 2014). Em suma, mesmo no calor dos protestos foi possível identificar a presença de um ethos de classe média entre os manifestantes.

 

Conclusão

Perante as novas tendências de concentração de riqueza no topo, as classes médias entraram aos poucos num ciclo de frustração e crispação. A sua presença nos movimentos de protesto revelou-se por vezes em sintonia com outros segmentos subalternos, em geral quando os dispositivos em marcha se demarcam de referenciais ideológicos: quanto mais espontâneas e “apolíticas” se apresentam as manifestações, maior tende a ser a adesão da classe média. No contexto europeu, talvez isso se prenda com a memória do seu passado de “bem-estar”.

Para concluir: É impossível saber qual o significado e o potencial político da “marca” classe média no século XXI (por assim dizer). Nem mesmo se pode prever se futuras revoltas, a ocorrerem, terão maior impacto nas periferias e regiões do hemisfério sul ou nos países ocidentais. Seja como for, e em face das tendências recentes, é provável que as alianças entre os segmentos subalternos do precariado e estes novos setores da classe média — emergentes ou em declínio, consoante as regiões do globo — venham a marcar o debate público no futuro próximo. Ou seja, se no Brasil, por exemplo, a expectativa de mobilidade ascendente está bloqueada, em Portugal — e nas periferias europeias — o descontentamento das classes médias dirige-se simultaneamente contra a elite económica e a classe política tradicional. Daí pode resultar tanto uma rebelião progressista que invista na renovação da democracia através de novas formas de politização e mobilização da sociedade civil, como o acumular de um ressentimento desorientado ou resignado que se deixe atrair por propostas fáceis de um qualquer ou mesmo de vários populismo(s) nacionalista(s) com marcas de extrema-direita.

 

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Receção: 9 de maio de 2016 Aprovação: 1 de agosto de 2016

 

Notas

[1] Porventura fará mais sentido usar a noção no plural (classes médias), mas preferi, por mera comodidade de sintaxe, referir em geral a fórmula no singular, o que não significa, obviamente, descurar o caráter plural e heterogéneo dos segmentos socioprofissionais incluídos nesta ampla categoria.

[2] Vejam-se, entre outros: Costa (1987); Estanque e Mendes (1997); Machado et al. (2003); Cabral (2003); Almeida, Machado e Costa (2006).

[3] Veja-se, num registo convergente com este: Streeck (2014); Bauman (2013); Therborn (2013); Standing (2014); ŽiŽek (2010); S. Sassen (2009).

[4] Relatório do FMI, Causes and Consequences of Income Inequality: A Global Perspetive — June 2015, disponível em: https://www.imf.org/external/pubs/ft/sdn/2015/sdn1513.pdf (última consulta em agosto de 2016).

[5] Ulrich Beck, Sociedade de Risco Mundial. Em Busca da Segurança Perdida, Lisboa, Edições 70, 2015 (1.ª edição em alemão, 2007).

[6] Por sua vez, outros critérios mais restritos — como os que consideram apenas as categorias de “quadros superiores e dirigentes” e os “profissionais técnicos e científicos” como integrando esta categoria — situam a classe média em cerca de 35% da população portuguesa e mostram uma relativa estabilidade desde a década de 1990 (Mateus, 2013: 332-335).

[7] Trata-se do maior survey aplicado às classes sociais no Reino Unido, o BBC’s Great British Class Survey, na base de uma amostra de 161.400 inquiridos. (1) o valor da propriedade habitacional; (2) a acumulação económica familiar; (3) as redes sociais; e (4) os contactos com intelectuais e com a cultura emergente, etc.

[8] Abaixo destes encontra-se (6) a classe trabalhadora tradicional (baixo capital económico mas com habitação de valor razoável, poucos contactos sociais, e fracas relações no campo cultural). Ainda, nos extremos, encontram-se: (1) a elite (no topo) e (7) o precariado (na base).

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