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Sociologia, Problemas e Práticas

versão impressa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.80 Lisboa jan. 2016

https://doi.org/10.7458/SPP2015806009 

ARTIGO ORIGINAL

Culturas de resistência e média alternativos: os fanzines punk portugueses

Resistance culture and alternative media: the Portuguese punk fanzines

Cultures de resistance et médias alternatifs : les fanzines punk portugais

Culturas de resistencia y medios de comunicación alternativos: los fanzines punk portugueses

 

Paula Guerra* e Pedro Quintela**

* Professora da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e investigadora do Instituto de Sociologia da Universidade do Porto (IS-UP). Investigadora no Centro de Estudos Geográficos e Ordenamento do Território (CEGOT). Professora adjunta no Griffith Centre for Cultural Research (GCCR). Morada: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Via Panorâmica, s/n, 4150-564 Porto, Portugal. E-mail: pguerra@letras.up.pt

** Doutorando em Sociologia na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, sendo neste âmbito investigador associado do Centro de Estudos Sociais da mesma universidade. Morada: Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Av. Dias da Silva, 165, 3004-512 Coimbra, Portugal. E-mail: pedroquintela@ces.uc.pt

 

RESUMO

Embora a produção de fanzines anteceda o surgimento do punk, a verdade é que foi com ele que os fanzines se tornaram relevantes enquanto espaços de liberdade de pensamento e criação, bem como enquanto alternativa aos meios de comunicação convencionais. Desde a década de 1970 o universo dos fanzines expandiu-se, não só temática e estilisticamente, como também se alargou a sua cobertura territorial e se ampliaram os suportes comunicacionais utilizados na sua produção e difusão. Neste artigo, propõe-se uma abordagem que vai para além da realidade anglo-saxónica e pretende olhar para fanzines como “comunidades” fundadas em torno de um objeto cultural, na produção de textos, fotos e outros materiais a respeito da cena punk em Portugal, desde 1978 até à atualidade. A partir de um grande conjunto de fanzines punk portugueses analisam-se as formas de produção, o design e tipografia, os principais temas focados, os canais de distribuição, as bandas, cenas e estilos de vida abrangidos. Os fanzines são aqui entendidos como média alternativos da modernidade tardia, capazes de revelar o movimento punk e o ethos DIY associado a ele. Procura-se entender qual foi e é ainda a sua relevância no contexto da cena punk portuguesa. Finalmente, procura-se identificar alguns padrões de evolução e mudança.

Palavras-chave cultura punk, fanzines, do-it-yourself (DIY), média alternativos, cenas punk.

 

ABSTRACT

Although fanzines existed before punk appeared, the truth is that they only became important alternative spaces to conventional media when they devoted themselves to the punk genre, in a kind of materialisation of the DIY ethos. Since the 1970’s this universe has expanded, not only thematically and stylistically, but also in terms of both geographic coverage and the types of communicational support used to produce and disseminate fanzines. This article takes an approach that goes beyond the Anglo-Saxon reality and seeks to look at fanzines as “communities” founded around a cultural object, and at the production of texts, photos and other materials about the punk scene in Portugal from 1978 to the present day.

Keywords punk culture, fanzines, do-it-yourself, alternative media, punk scenes.

 

RÉSUMÉ

Bien que la production de fanzines précède l’apparition du punk, c’est grâce à lui que les fanzines sont devenus importants en tant qu’espaces d’alternative aux médias conventionnels, en matérialisant l’ethos du DIY. Depuis les années 1970, leur univers s’est élargi, en ce qui concerne non seulement les thèmes abordés et le style, mais aussi leur couverture territoriale, en augmentant les supports communicationnels utilisés pour leur production et leur diffusion. Cet article propose une approche qui va au-delà de la réalité anglo-saxonne, pour voir dans les fanzines des “ communautés ” fondées autour d’un objet culturel, sur la production de textes, de photos et d’autres matériels concernant la scène punk au Portugal depuis 1978 jusqu’à nos jours.

Mots-clés culture punk, fanzines, do-it-yourself, médias alternatifs, scènes punk.

 

RESUMEN

Aunque la producción de fanzines anteceda el surgimiento del punk, la verdad es que fue con él que los fanzines se volvieron relevantes como espacios alternativos a los medios de comunicación convencionales, materializando  el ethos DIY. Desde la década de 1970, su universo se expandió no sólo temática y estilísticamente  sino también se extendió su cobertura territorial y se ampliaron los soportes comunicacionales utilizados en su producción y difusión. En este artículo se propone un abordaje que va más allá de la realidad anglosajona y pretende mirar  a las fanzines como “comunidades” fundadas en torno de un objeto cultural, en la producción de textos, fotos y otros materiales  relacionados a la movida punk en Portugal desde 1978 hasta la actualidad.

Palabras-clave punk, fanzines, do-it-yourself, medios de comunicación alternativos, movidas punk.

 

Expressão, partilha e afetos: uma introdução

As razões para ter o fanzine foram as mesmas que me levaram a interessar pela cultura punk e por ter uma banda punk. No fundo expressar, dar um grito de revolta escrito, desenhado, que ficasse registado. Um grito de revolta contra tudo e contra todos, fundamentalmente isso. [Fernando,[1] Lisboa, 54 anos, professor universi- tário].

Esta afirmação de Fernando, um dos protagonistas iniciais do punk e dos fanzines punk portugueses, coloca bem a tónica deste texto: abordar a importância dos fanzines na emergência e consolidação da cena punk portuguesa desde finais dos anos 70 até à atualidade, demonstrando a sua proliferação, o seu mapeamento, as suas linhas temáticas e gráficas. Começando pela sua definição, cumpre-nos esclarecer que os fanzines são “objetos caseiros”, produzidos de forma artesanal, individual ou coletivamente, e que têm, em geral, uma circulação limitada. Os primeiros fanzines surgem nas décadas de 1920-30 e estavam associados a fãs de ficção científica; posteriormente, já durante as décadas de 1950-60, tornam-se crescentemente populares os fanzines de banda desenha e música (Triggs, 2010: 15-19; Atton, 2002: 55-56).[2] Contudo, a produção, distribuição e consumo de fanzines ganhou relevância global com a emergência do fenómeno do punk no Reino Unido e nos EUA, durante os anos de 1970-80, assumindo-se como um espaço de liberdade de pensamento e criação do-it-yourself (DIY), e de alternativa aos média convencionais (cf. Triggs, 2006 e 2010).[3]

Existe uma inelutável ligação dos fanzines com a visibilidade da cena punk, mas não podemos confundir ambas as questões. Atton (2006) contesta a ideia de que o fanzine se assume essencialmente um produto subcultural; indo para além da especificidade do fanzine punk britânico, este investigador abre espaço à análise de toda uma diversidade de média alternativos. Mesmo a própria abordagem de Hebdige (1979) foi, em última instância, a de que os fanzines punk procuraram criar um espaço alternativo de expressão face aos média tradicionais que tendiam a deturpar ou a dar uma visão negativa do punk (cf. Savage, 1991). Essa característica é, aliás, comum aos fanzines que antecederam os fanzines punk. Talvez por isso, Rui, um dos punk que entrevistámos, refira o seguinte:

E nesse caso também é a mesma coisa que a filosofia do punk, ou seja, do pouco queremos fazer bastante e fazes por ti mesmo. Isto é uma corrente também bastante individual. Social ao nível da aprendizagem e das influências, individual ao nível de atuação. E, por exemplo, a aprendizagem aqui sempre o foi a nível de afinidade: com eles juntamo-nos e fazemos música, com eles juntamo-nos e fazemos crítica, com eles juntamo-nos e fazemos fanzines. [Rui, residente no Porto, 45 anos, ensino superior e empregado de uma loja de discos]

Na perspetiva de Atton, um fanzine emerge por três razões principais: (1) como espaço de expressão e de discussão para os fãs de um género musical (banda ou artista) que não têm espaço ou são esquecidos pela imprensa musical tradicional; (2) serve para fortalecer um género musical (banda, artista) underground cujo alcance é muito limitado; e, finalmente, (3) permite aos fãs de um estilo musical de nicho manter a sua ligação e entusiasmo (Atton, 2006). Em todos estes casos, o objetivo é criar uma comunidade de interesse e de gosto — o fanzine assume-se, assim, como uma espécie de antecessor low tech das atuais redes sociais (Farias, 2011) — e isso não se confina ao universo punk.

No entanto, os fanzines e a sua produção associada ao punk deram um contributo indelével para a expansão das cenas musicais, para a sua documentação, para a sua visibilidade e para a fidelização da pertença (Thompson, 2004; Silva e Guerra, 2015). E mais do que isso: a associação do fanzine ao punk ocasionou a visibilidade do fanzine enquanto meio de comunicação (Grimes e Wall, 2014). Com Dannus, podemos concluir que “narrando com regularidade a cena punk e encorajando os seus leitores a ‘fazerem parte’, os fanzines contribuíram inteiramente para o desenvolvimento e dinâmica do movimento” (Dannus, 2013: 24). A “explosão” de fanzines punk foi, aliás, uma das principais responsáveis pelo incremento dos média alternativos: imprensa local, rádios livres, televisões “piratas” (Hein, 2006). Efetivamente, desde cedo, os fanzines assumiram-se como uma parte muito importante da construção das cenas punk — a par das bandas, dos discos, dos concertos —, contribuindo ativamente para a criação e consolidação de um determinado sentido de comunidade (Guerra, 2015; Triggs, 2006) e existência de símbolos de pertença (Force, 2005). Este conceito de comunidade radica na importância do significado da música no quotidiano, por intermédio do seu papel como âncora simbólica para o sentimento de pertença a um grupo e matriz de representação do sentido comum da experiência comunitária (Bennett, 2004; Lewis, 1992; Frith, 1981). As palavras de um dos nossos entrevistados, Luís, vão justamente nesse sentido:

Tenho que te dizer que eu estive bem mais envolvido não com o facto de fazer música ou produzir música, mas com produzir outros métodos de cultura, ou seja, produção de fanzines, contacto com bandas, edição e organização de concertos. [Luís, residente em Lisboa, 36 anos, frequência do ensino secundário e atualmente jornalista]

Como refere Pine (2006), os fanzines são formas materiais de representação simbólica, e é assim que entenderemos os fanzines punk portugueses, objeto da nossa atenção neste artigo. São objetos construídos de um modo voluntário, que permitem aos indivíduos que participam no processo (de edição e de distribuição) afirmarem a sua existência social, integrarem (sub)culturas, tribos[4] ou cenas musicais e participarem culturalmente; simultaneamente, os fanzines materializam-se num movimento local marcadamente juvenil de dinamização de uma cena underground, facilitando a divulgação de discos, de bandas, de concertos e de histórias. São um elemento fundamental de concretização de gostos, de afinidades, de pertenças sociais, políticas, ideológicas, culturais, estilos de vida e musicais (cf. Grimes e Wall, 2014). Neste sentido, será adequado perspetivar o fanzine dentro do modelo colaborativo do art world de Becker (1984), pois estes artefactos desenvolvem-se num quadro relacional de concretização de gostos, de afinidades, de saberes, de pertenças sociais, políticas, ideológicas, culturais, estilos de vida e musicais.

À semelhança de outras dimensões do movimento punk, a componente gráfica dos fanzines desempenha um papel tão ou mais importante do que os textos escritos. É, na verdade, muito frequente as componentes escritas e visuais dos fanzines estarem tão profundamente misturadas que se torna praticamente impossível analisar separadamente cada um destes dois elementos. Em analogia com as capas de discos e demotapes punk, ou mesmo da própria estética visual das bandas, encontramos em muitos fanzines uma orientação gráfica declaradamente DIY,[5] assente numa mistura de técnicas de cut-and-paste, recorte, desenho/ilustração, textos escritos à mão e datilografados, manipulação de fotografias, etc. Fanzines como o Panache (1980), Sniffin’ Clue (1977) e a Ripped & Tom (1978), pioneiros na altura em que o movimento punk estava a surgir em Inglaterra (segunda metade da década de 1970), contribuíram decisivamente para criar um verdadeiro “cânone” — tanto em termos gráficos, como em termos de conteúdo editorial — que se globalizou e que está ainda presente em muitos dos fanzines punk atualmente produzidos (Quintela et al., 2014).

Como Duncombe (1997) mostrou, os pensamentos e a ética pessoal ocupam um lugar central neste tipo de publicações independentes autoeditadas. As páginas dos fanzines espelham frequentemente a ideologia dos seus autores, patente no seu posicionamento político-social ou no apoio a determinadas causas. Vemos também manifestações de um determinado gosto ou estética, visível, por exemplo, nas entrevistas realizadas com determinadas bandas ou nas recensões críticas de discos e demotapes, de concertos, de filmes, de livros ou mesmo de outros fanzines. Em alguns fanzines encontramos artigos com conteúdos muito pessoais, por vezes com um cariz introspetivo e até íntimo. Os fanzines são, em suma, suportes comunicacionais riquíssimos, nos quais encontramos extensa informação que nos permite compreender um pouco melhor, em cada momento histórico e em cada contexto sociocultural e territorial específico, como se foi desenvolvendo o movimento punk: como emergiu, quais os protagonistas e locais de referência (bandas, editoras, squatters, centros sociais, bares e salas de concertos, lojas de discos e roupas), redes de contactos internacionais, etc. Como bem alerta Dannus, os fanzines evoluem com o tempo e com a própria sedimentação e configuração de cenas punk particulares: “o seu número começou a aumentar em 1977 e, apesar do punk-rock se ter misturado lentamente com a cultura mainstream, os fanzines tentaram cada vez mais definir e refletir acerca do futuro da cultura punk”.[6] (Dannus, 2013: 25).

A abordagem dos fanzines punk portugueses que nos propomos realizar, situa-se no arco temporal entre 1978 e 2013. Em termos de entradas por título, o nosso corpus de análise totaliza 93 fanzines diferentes (N títulos), que se desdobram por 177 edições (N edições). Complementarmente, introduzimos elementos das cerca de 200 entrevistas em profundidade aos atores-chave que, ao longo de décadas, integraram, de múltiplas formas, a “cena” punk em Portugal, a quem questionámos acerca da relevância dos fanzines, quer ao nível da produção, quer ao nível do consumo. Procuramos perceber, assim, qual o impacto dos fanzines no punk português e a sua expressão nessa cena punk.[7] Relembremos as palavras de Miguel, outro dos nossos entrevistados:

Os fanzines tinham tudo a ver com a maneira como nós olhávamos para o mundo e que tipo de influências é que nós tínhamos. Como não havia Internet, nós escrevíamos bastante, o mundo ainda se devia bastante aos correios, que entretanto é uma coisa que hoje em dia não se faz. [Miguel, 39 anos, atualmente é residente num país asiático, onde trabalha como tradutor]

Uma vez que são ainda escassos os estudos académicos realizados em Portugal sobre este tema (Pais e Blass, 2004; Gomes, 2013; Lemos, 2011) um dos nossos principais objetivos foi justamente o de proceder a uma recolha sistemática de uma multiplicidade de elementos empíricos que se encontram relacionados com o universo do punk em Portugal, ao longo das últimas três décadas (Quintela et al., 2014; Guerra e Quintela, 2014). Deste modo, temos vindo, ao longo dos últimos dois anos, a realizar entrevistas com vários elementos-chave que estão ou estiveram ligados às cenas punk em Portugal em diferentes períodos históricos; proceder à observação participante em eventos punk; e, finalmente, a recolher e catalogar diversos materiais ligados às cenas punk/hardcore, incluindo registos sonoros, cartazes, flyers, fanzines, etc.[8]

 

“Estado de sítio”: um mapeamento dos fanzines punk portugueses

Nesta secção do artigo, apresenta-se um exercício preliminar de mapeamento dos 93 fanzines que atualmente constituem o nosso corpus analítico, avançando com uma leitura entrecruzada das temáticas focadas pelos diversos fanzines e das técnicas e abordagens gráficas seguidas, com a análise dos períodos históricos em que estes vários fanzines foram sendo produzidos. Uma primeira nota torna-se fundamental: partindo de uma existência residual nos anos 70, os fanzines punk portugueses assumem uma presença importante e constante ao longo das décadas seguintes (quadro 1). É particularmente importante o aparecimento de fanzines na década de 1980, o que corresponde a um período de maior presença do punk em Portugal, atestado pelo incremento do número de bandas e atores mobilizados em torno delas. Esta persistência em títulos e edições é reproduzida nas duas décadas seguintes até hoje, sendo de salientar o facto de na presente década existirem 16 títulos de fanzines que editaram 41 números — note-se que nos reportarmos a um período de apenas três anos (2010-2013), indiciando uma constância de produção de fanzines que denota uma dinâmica interessante de resiliência deste formato face a outros emergentes neste período (como os e-zines).

 

 

Paralelamente, o mapeamento dos fanzines (figura 1) possibilitou um entendimento da sua distribuição geográfica. Percebemos, assim, que os fanzines punk estão vinculados sobretudo à área metropolitana de Lisboa que, como sabemos, constitui o principal polo em termos de desenvolvimento económico, cultural, artístico e musical do país. As duas cidades principais, Lisboa e Porto, são sempre mencionadas, bem como as respetivas áreas metropolitanas (incluindo Loures, Oeiras, Cascais, Almada, Seixal, Barreiro ou Espinho). De seguida, surgem as cidades de média dimensão localizadas no Litoral, em áreas mais densamente povoadas, tais como Viana do Castelo, Braga, Aveiro, Coimbra, Leiria, Setúbal e Faro. Depois disso, pequenas e médias cidades do interior, como Viseu, Guarda, Covilhã e Castelo Branco. E, finalmente, pequenas cidades localizadas junto ao Litoral, como Barcelos, Caldas da Rainha, Torres Vedras, Lagos e Loulé.

 

 

Os fanzines punk não têm sido objeto de um estudo detalhado (Borges, 2009). Efetivamente, a sua abordagem oscila, no essencial, entre dois polos: os fanzines são referidos ou citados em análises acerca do punk, não estando contudo no núcleo das suas manifestações identitárias; ou os fanzines são abordados pelo seu aspeto meramente gráfico.[9] Aqui, partimos da utilização do conceito de cena punk (Schmidt, 2006) que reflete uma maior complexidade e reticularidade de atores, de contextos, de artefactos envolvidos na produção, divulgação e consumo de fanzines. Tal como temos vindo a defender em outras ocasiões (Guerra, 2013a e 2013b; Bennett, 2004; Bennett e Peterson, 2004; Guerra e Silva, 2015), o conceito de cenas musicais reporta-se uma rede de pessoas (músicos, promotores, fãs, editores), objetos (fanzines, discos, posters, flyers, roupas), dispositivos (festivais, concertos, instrumentos, CDs, vinis, cassetes) e vários espaços (salas de concerto, bares centros sociais, squats, associações recreativas e de moradores, casas de juventude, lojas de riscos e de roupa). O conceito de cena punk permite, assim, explicar e compreender os fanzines num contexto societal específico (cf. Schmidt, 2006). É essa a principal ilação que podemos retirar do mapeamento, por década, dos fanzines punk portugueses. Outrossim, podemos ainda reencontrar aqui Hebdige (1979), autor que advoga que cada subcultura representa um momento especial de resposta a circunstâncias, modos de vida e culturas também elas específicas, portanto contextos sócio-históricos particulares (cf. Fouce, 2004; Silva e Guerra, 2015; Guerra, 2013b, 2014, 2015).[10] Deste modo, a leitura do mapeamento da produção de fanzines, por décadas, que apresentamos de seguida, considera-os parte integrante e atores fundamentais da cena punk em Portugal.

Finais dos anos 70: os pioneiros dos fanzines punk em Portugal

É no final da década de 1970 que podemos encontrar os pioneiros dos fanzines punk em Portugal, que surgem nessa época na zona de Lisboa. É o caso, nomeadamente, do Desordem Total, fanzine editado por Nuno Esterco, Luís Bosta e Pedro Merda, com seis números publicados entre 1978 e 1979, e do Estado de Sítio, editado por Paulo Borges — que também era membro dos Minas e Armadilhas, banda punk pioneira em Portugal —, que publicou pelo menos seis números do fanzine ao longo do ano de 1978. Em ambos os casos, os editores assumiram uma orientação estética DIY, assente numa mistura de técnicas de cut-and-paste, recorte, desenho/ilustração, textos escritos à mão e datilografados, manipulação de fotografias, o que, como vimos antes, é perfeitamente coerente com a generalidade dos fanzines punk ingleses e norte-americanos deste período. Numa época em que o movimento punk em Portugal estava ainda num estádio de desenvolvimento embrionário, encontramos nestes primeiros fanzines essencialmente um espaço de comentário sarcástico acerca da realidade político-social nacional e internacional. São também frequentes referências a bandas punk anglo-saxónicas, essencialmente através de fotos dos elementos de bandas, nem sempre identificadas (Quintela et al., 2014; Guerra e Quintela, 2014). Merece especial atenção, nesta altura pioneira da emergência de movimentações punk em Portugal, a loja Mundo da Banda Desenhada (MDB) que funcionou em Lisboa entre 1977 e 1987. Para além de ser um ponto de venda de revistas de culto, publicações underground e fanzines de autores nacionais, assumiu-se também como um local de encontro de uma comunidade punk, alternativa e boémia numa Lisboa que estava ainda bem longe de ser soprada pelos ventos do cosmopolitismo. É por demais elucidativo o editorial e contracapa do fanzine Leitmotiv, editado por esse coletivo, em 1980, em que se afirma a vontade de “fazer para quem gostasse de ver sem nunca ter percebido que queria.” (Leimotiv, 1980)

Anos 80: um primeiro boom de fanzines punk em Portugal

Acompanhando o desenvolvimento das cenas punk no nosso país, assiste-se durante os anos 80 a uma certa proliferação de fanzines, mantendo-se ainda nesta fase uma certa concentração nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto. Este período cronológico será bem apelidado se lhe chamarmos: os anos 80, o primeiro boom de fanzines punk em Portugal. Neste período, podem identificar-se fanzines punk relevantes como o Subversão (1982), o Subúrbios (1985), o Tosse Convulsa (1985), O Cadáver Esquisito (1986), o Lixo Anarquista (1986-87), o Suicídio Coletivo (1987), o Anarkozine (1987), o Post Scriptum (1987-88), o Morte à Censura (1988) ou o Culto Urbano (1988-89), entre outros. Embora se mantenha presente uma dimensão fundamental de crítica político-social, a dimensão musical ganha uma clara relevância a partir deste período, evidenciando-se a importância dos fanzines enquanto espaço de divulgação de bandas, quer nacionais, quer internacionais. Os fanzines começam, assim, a integrar a cena musical punk portuguesa, a par das bandas, das edições, dos concertos, dos bares e de outros espaços (Guerra, 2014). Os testemunhos dos nossos entrevistados revelam isso mesmo:

Os fanzines tiveram muita importância. É uma coisa que tu lês e tens em casa. Tinhas os fanzines, não tinhas as bandas. [Estevão, lisboeta de 44 anos, com mestrado e ligado à investigação científica]

O que eu acho que é a força que o punk tem — e eu acho que isso é inegável — é que tu, ao estares envolvido na cena punk, ao fazeres bandas, ao fazeres fanzines, ao fazeres editoras, quando não tens ninguém que lance os teus discos, quando não tens ninguém que marque os teus concertos, tu aprendes a fazer as coisas pelas tuas mãos. [Lucas, residente em Lisboa, 42 anos, com o ensino secundário e designer]

Os artigos sobre bandas punk e hardcore (subgénero que, nestes anos, irrompe em Portugal) e também reportagens sobre algumas cenas internacionais (Austrália, EUA, Brasil, Itália, etc.) tornam-se cada vez mais frequentes, numa primeira fase recorrendo essencialmente a fontes secundárias (artigos de jornais, press-releases das bandas, etc.), mas progressivamente incorporando materiais originais, em geral através da realização de entrevistas. Do ponto de vista gráfico, os fanzines punk produzidos durante os anos 80 refletem um certo amadurecimento dos seus produtores, verificando-se em muitos casos uma apresentação formalmente mais cuidada, mas mantendo ainda assim uma grande coerência com a abordagem DIY que, desde os primórdios, sempre caracterizou a cultura punk (Quintela et al., 2014; Guerra e Quintela, 2014; Guerra e Moreira, 2014; Dale, 2010; Moore e Roberts, 2009; Laing, 2015).

Anos 90: proliferação, dispersão e diversificação

Analisando o conjunto de fanzines punk editados durante a década de 1990 torna-se evidente o aprofundamento de algumas das tendências identificadas na década anterior. Contudo, os fanzines publicados durante estes anos são definitivamente marcados por uma dinâmica de proliferação, dispersão e diversificação. Assiste-se, em primeiro lugar, a uma diversificação dos subgéneros punk abordados, que se reflete num protagonismo crescentemente atribuído ao crust e ao hardcore straight-edge, por exemplo, mas também numa maior abertura à incorporação de outras estéticas underground (não só géneros musicais como o hip hop, o reggae-dub ou determinados subgéneros de música eletrónica são abordados, como também se abordam questões relacionadas com o skate).

A análise das várias bandas e editoras abordadas em fanzines deste período permite-nos compreender algumas redes de relação entre as cenas punk internacionais. Numa primeira análise, ainda muito superficial, destaca-se uma estreita relação entre bandas portuguesas e cenas punk/hardcore no Brasil e em Espanha, evidenciada numa circulação regular de discos, bandas e fanzines entre os três países já bem estabelecida. Por exemplo, encontramos em alguns fanzines deste período referências a bandas portuguesas que se encontram em tour no Brasil, em Espanha e na Alemanha. Simultaneamente, adquirem importância nas páginas dos fanzines punk portugueses desta época questões ético-políticas relacionadas com a ideologia anarquista-libertária, direitos das mulheres, vegetarianismo/veganismo, direitos dos animais, homofobia, consumo de drogas, entre outras.

O advento do computador pessoal em Portugal que, no decurso da década, vai adquirir uma relevância crescente, revela-se bastante marcante do ponto de vista gráfico. Efetivamente, constata-se que muitos fanzines produzidos durante este período denotam um maior apuro técnico, afastando-se de um certo purismo estético do cut-and-paste que marcou as primeiras etapas do punk, em Portugal e no estrangeiro. Neste período destacam-se, entre outros, fanzines como o Mutante (1992), o Grito de Revolta (1992), o Crack (1992, 1993 e 1995), o Vontade de Ferro (1994), o Animal Abuser (1995), o Golpe Baixo (1996), o Global Riot (1996), o Insubmissão (1997), o Kannabizine (1997), o First Step (1998), o Out of Step (1996-98), o Hope (1998), o Bakuzine (1998), o Se o “voto é a arma do povo”… (1998), o Zona Autónoma Provisória (1999), o Convicção (1999), o Rebeldia (1999), o Spirit of Youth (1999).

Os anos 2000: apuro e aprofundamento

Ao longo dos últimos 13 anos a produção, distribuição e consumo de fanzines punk portuguesas não abrandou. A partir da década de 2000 assistimos, assim, a um apuro e aprofundamento destas dinâmicas. Entre outros fanzines editados neste período, podem referir-se os seguintes: Inhumanus (2000), San Bao (2000), Sisterly (2000), Vontade de Ferro (2001), Opinion (2001), Wake up and Live (2001), Two Sides (2001), Suburbano (2002), Acção Directa (2004), X.cute (2005), Crise Social (2005), Porque Nada se Constrói Sozinho (2006), Backfire (2007), Grita! (2007), Comedores de Cadáveres (2008), Not Just Words (2007-09), A Culpa é da Humanidade (2008-2012), Alambique (2007-2013), O Alfinete (2011-2013), Kaos Urbano (2007, 2010-11), Apupópapa (2010), Núcleo Duro (2012), The Juice (2012), Prego (2013), Möndo Brutal (2011-2013), Jubiladxs (2012), City Lights (2011), Humble: Skate Zine (2011-12), Overpower Overcome (2009 e 2012), Deflagra (2008, 2011-13), Karapaça (2013).

Embora o início da primeira década de 2000 seja definitivamente caracterizado pelo surgimento de diversos fóruns, blogues e e-zines ligados às várias cenas punk que, à semelhança de outros contextos, têm procurado aproveitar as potencialidades da Internet (nas suas diversas plataformas), para uma rápida, fácil e barata divulgação de bandas, discos e acontecimentos relevantes dentro das cenas punk nacionais (concertos, festas, lançamento de discos, etc.), a verdade é que os tradicionais fanzines, publicados em formato papel e distribuídos em circuitos underground, continuam a evidenciar uma forte resiliência (quadro 1). Esta é uma tendência que, embora contenha especificidades próprias associadas ao universo do punk, se insere numa lógica mais abrangente de valorização do retro, do analógico, do vintage e de uma certa memória estética e ética associada a determinadas manifestações culturais (Bennett, 2009; Reynolds, 2011; Roberts, 2014; Lipovetsky e Serroy, 2014: 283-287). De facto, e embora assumindo moldes diversos dos do passado, os fanzines “tradicionais” — publicados em papel — continuam hoje a assumir-se como um espaço poderoso de afirmação de um certo espírito do-it-yourself inspirado na cultura punk, integrando, de um modo singular, conteúdos de texto e imagem para os quais continua a não haver espaço noutros média. Existe, designadamente, uma forte linha de abordagem nos textos dos fanzines que se prende com a rejeição dos cânones da indústria musical mainstream, privilegiando um ethos do DIY (Grimes e Wall, 2014) que apela à urgência de se fazer a própria música parando de consumir o que é imposto de fora (cf. Duncombe, 1997; Sabin e Triggs, 2000).

Em termos temáticos, por um lado, mantém-se a tendência observada na década anterior para haver uma certa diversificação dos subgéneros musicais punk abordados, bem como uma crescente abertura à incorporação de outras estéticas underground, não só musicais mas também a fotografia, o cinema, a banda desenhada e ilustração. Ao contrário do que sucedida na década anterior, muitas das reportagens sobre bandas punk/hardcore centram-se em bandas “históricas” da cena portuguesa, por vezes apresentando um olhar quase nostálgico (como evidenciam claramente algumas entrevistas a membros de bandas emblemáticas dos anos 90, como os X-Acto ou os New Winds, por exemplo). Esta parece-nos ser uma mudança importante, na medida em que é reveladora de um crescente interesse dos protagonistas atuais por construírem um olhar acerca do passado da “cena” — que raramente encontramos em décadas anteriores. É igualmente notória a reduzida atenção dada a bandas internacionais: na década de 2000, os fanzines tornam-se essencialmente espaços dedicados ao contexto português, o que parece evidenciar uma relativa mudança de orientação editorial em muitas destas publicações, possivelmente justificada pelo advento da Internet (que, como é sabido, adquire uma massificação em Portugal na viragem para o século XXI), facilitando o acesso e o conhecimento de cenas, fanzines, editoras e bandas punk internacionais (Quintela et al., 2014).

Por outro lado, nos últimos anos, adquiriram uma crescente importância nos fanzines punk portuguesas diversas questões relacionadas com a esfera ético-política, em sentido amplo. Embora se mantenha uma forte tendência para a maioria dos fanzines abordarem, simultaneamente, aspetos de natureza ideológica, política e ética e questões relacionadas com o universo musical punk/hardcore — tendência que, conforme vimos, prevalece desde os anos 80 — a verdade é surgem nos últimos anos alguns fanzines particularmente orientados para a reflexão e crítica político-social de pendor ideológico libertário/ anarquista. Relativamente à dimensão política, é interessante notar que, ao contrário do que parece estar a acontecer em artigos mais relacionados com música e cenas punk locais, nestes casos ainda existe uma combinação de dimensões claramente internacionais com outras que se encontram fortemente enraizadas na realidade local (Guerra e Quintela, 2014). Assim, encontramos textos que, por um lado, abordam aspetos genericamente relacionados com a natureza opressiva da sociedade capitalista, sem uma ligação específica a um território ou comunidade particular (como, por exemplo, a exploração, o capitalismo, o desenvolvimento, etc.); mas, por outro lado, também existem uma série de crónicas de opinião, entrevistas e reportagens em que se abordam preocupações específicas, ligadas a um contexto local bem definido. Em suma, e tal como nos refere um dos nossos entrevistados:

Os fanzines que editei, as questões gráficas, fui eu que aprendi aquilo tudo: aprendi a trabalhar com [softwares como o] Photoshop, CorelDraw, InDesign por mim mesmo. Mas hoje em dia, acho que já nem sequer tem a ver só com uma ética punk, está disseminado numa cultura. Hoje em dia qualquer pessoa pode ter um blogue, um website, pode ter uma editora, pode ter isto, pode ter aquilo. Pode editar livros. As coisas estão muito mais facilitadas do que antigamente. Antigamente notava-se mais realmente a especificidade do do-it-yourself no punk. Acho que hoje está muito mais espalhado a nível da sociedade em geral. Mas acho que o que permite, falando de coisas práticas, é todo o outlook para a vida, é toda uma visão como as coisas podem ser feitas, sem dúvida! [Fernando, 38 anos, a viver em Londres, onde trabalha como professor]

 

“Há que violentar o sistema”: temas, textos e palavras

Existe um reconhecimento de que nos fanzines a linguagem transmitida é uma mensagem de “resistência”, pois são representados como sendo “lugares” de oposição ao mainstream cultural, político e societal: os fanzines são, assim, lugares de ação cultural e política de oposição (Triggs, 2006; Cogan, 2010; Ramírez Sánchez, 2012; Guerra, 2013b). George McKay refere que o punk deve ser considerado um momento de resistência cultural face ao “sistema”. A sustentação do punk numa cultura DIY assenta, assim, na defesa de um ativismo que equivale a uma ação de luta, à contestação do status quo (cf. McKay, 1998).

“Tudo começa com o nome”: os títulos dos fanzines

Se analisarmos os títulos dos 93 fanzines presentes na nossa base de dados (quadro 2), podemos constatar, em primeiro lugar, a importância do sentido de crítica face à sociedade e de posicionamento antissistema de 23% dos fanzines. Este sentimento omnipresente de denúncia do mal social, de estar contra a sociedade e suas instituições, de desesperança, é de facto um dos lemas fundamentais do punk e traduz-se no nosso caso nos seguintes exemplos: A Culpa É da Humanidade, Alternativa, Anarkozine, Dissidentes do Projeto Estatal, Rebeldia, Crise Social, Desordem Urbana, Global Riot, Insubmissão, entre outros. Se juntarmos a este caso os 10% de títulos onde está presente a ideia de DIY, de autodeterminação (Be Yourself, Convicção, D.I.Y. or DIE! Faz Tu Mesmo ou Morre!, Not Just Words, Porque Nada se Constrói Sozinho, Vontade de Ferro), consolidamos a perspetiva de que ser punk é resistir fazendo e agindo por iniciativa própria (DIY) (cf. Hein, 2012). Assim, a atratividade do punk como forma de expressão pessoal e política reside na oferta de recursos para uma agência e um empowerment via desalienação, um ethos DIY e uma disposição anti-status quo; ou, como defendeu David Byrne: “O punk não era um estilo musical, ou pelo menos não devia ter sido… era mais uma espécie de atitude ‘fá-lo tu mesmo — qualquer um consegue fazê-lo’ (‘do-it-yourself — anyone can do it’). Se só consegues tocar duas notas de guitarra, descobre uma maneira de fazer uma música a partir disso” (cit. em Bennett, 2001: 60).

 

 

Thompson considera que o “punk em todas as suas manifestações, e especialmente nas suas formas de maior oposição como o anarcopunk e o crust, nunca assume o seu lugar enquanto mercadoria mas um lugar de mediação com desconfiança e ceticismo.” (Thompson, 2004: 135). Por isso, o punk é resistência e isso está muito bem expresso nos títulos dos fanzines punk portugueses. Não deixa de ser importante a presença, em segundo lugar, da ideia de contaminação (com 17% dos títulos), no sentido em que os nomes dos fanzines incorporam e assumem coisas negativas presentes na sociedade, num efeito de contaminação face aos males desta. Alguns exemplos: Comedores de Cadáveres, Esporradela Social, Lixo Anarquista, Cadáver Esquisito, Cancro Social, Tosse Convulsa, Ressaca Viciosa. Revolta mas também liberdade e procura de autonomia é o terceiro posicionamento que decorre dos títulos dos fanzines em análise (14%) — Grito, Grito de Revolta, Overpower Overcome, Wake up and Live, Zona Autónoma Provisória, são alguns dos exemplos. A irrisão está presente em 10% dos títulos e aponta para um uso irónico de palavras, transmutando-lhe o sentido convencional, como demonstram os seguintes títulos: Bakuzine, Campo de Concentração, Confidências do Exílio, Alfinete. Finalmente, a ideia de coletivo, de grupo, de um todo unido (Culto Urbano, Sisterly, Spirit of Youth, Suicídio Coletivo) só está presente em 8% dos títulos, assim como a ideia de destruição, com 5%, ou a ideia de pertença à música, com uns meros 4%. Não nos esqueçamos que estamos a falar de títulos, da marca mais visível e imediata do fanzine — e aqui a mensagem de resistência e de crítica à sociedade parece ser a pedra de toque.

Textos, pretextos e ações: os conteúdos dos fanzines

De forma complementar, a análise das temáticas presentes nos conteúdos dos fanzines e suas diversas secções apresenta dados muito relevantes (quadro 3). Em primeiro lugar, a afinidade e a sociabilidade musical detêm o maior número de ocorrências, demonstrando a importância da música na constituição e funcionamento de uma cena punk particular através da (i) referência a bandas, (ii) da defesa de uma cena musical punk portuguesa, (iii) da divulgação de fanzines, rádios e programas, espaços e concertos, (iv) da apologia da cena punk/hardcore/skinhead portuguesa, (v) da divulgação de discos, editoras e distribuidoras, de (vi) críticas às cenas punk/hardcore portuguesas ou ainda de (vii) críticas de concertos, discos, livros. No plano dos conteúdos, ao contrário do que acontecia nos títulos dos fanzines, vemos assim uma focagem na música, na sua celebração quotidiana e na sua proclamação como alimento da cena punk portuguesa. É comummente aceite, no estudo das culturas populares, a relevância da fidelidade proximal aos discursos dos seus elementos, assim como o reconhecimento da mutabilidade do punk e da sua não apropriação hegemónica. Esta defesa de uma “ordem do discurso” foi bem fundamentada por Matula (2007: 25), quando advogou que o “espaço de oposição punk” era criado fundamentalmente através da própria produção musical e da construção ideológica de uma narrativa presente nos fanzines e nas letras das canções.

 

 

Na mesma ordem de razões de apologia de uma análise dos discursos, o punk, como referem vários teóricos, foi uma cultura construída através de um processo de assemblagem, um processo que agregou elementos da cultura de elite e da cultura popular e que, como refere Adams (2008: 3-4), acabou por “indiscutivelmente coloc[ar] num local privilegiado as mesmas instituições que procurava destruir.” Por conseguinte, o punk pode ser estudado através da análise das narrativas presentes nos fanzines enquanto colagem de sentimentos, pertenças, vínculos, afetividades e razões face a uma cena musical (cf. Atton, 2006, 2010). O fanzine tem um papel central em estabelecer e desenvolver discursos acerca de escutar (listening), onde argumentos acerca de música são ensaiados, e onde fãs organizam as suas experiências musicais. Como refere Atton, nos estudos de música popular “o género musical é visto como a expressão de um interesse coletivo ou de um ponto de vista de uma comunidade” (2010: 523).

Particularizando a nossa análise no fanzine Cadáver Esquisito (Guerra e Quintela, 2014), que se tornou “célebre” apesar de ter apenas dois números editados, em 1986, podemos dizer que existia uma intenção declarada de agitar a cidade do Porto (e não só), dando a conhecer projetos e iniciativas punk nacionais e internacionais, fomentando que novos projetos de cariz semelhante surgissem em Portugal, numa época em que as movimentações punk fora de área metropolitana de Lisboa eram ainda, conforme vimos, relativamente tímidas. Estas intenções agit-prop do Cadáver Esquisito encontram-se declaradas sem quaisquer rodeios logo no editorial do primeiro número do fanzine:

 

 

Ao estar aqui pretendo criar um novo espaço para todos, punks, homossexuais, prostitutas, skins, desempregados, desiludidos, revoltados, para aqueles que sentem a sua vida agrilhoada pela miséria, apatia, desespero e exploração. Nós existimos porque esta realidade existe, porque somos marginalizados por uma sociedade que não aceita outros valores que não os da servidão, competição e poder. […] Não vou fazer aqui grandes tratados ideológicos, eu quero que ninguém faça de mim uma bíblia, ler-me nunca bastará… […] Acima de tudo o que acontece por aqui, quem e como, tentar dar a voz a inúmeras bandas desconhecidas, apoiando-as pois elas existem, a novos espaços e iniciativas (ocupações de casas, comunas, fanzines), cujo papel é importante e qual é urgente compreender e mais do que isso AGIR. Estamos aqui não para apresentar um rol de tragédias mas para dizer que podemos agir e mudar. [Cadáver Esquisito, n.º 1, janeiro/fevereiro de 1986]

A música ocupa um lugar central no Cadáver Esquisito. Nos dois números deste fanzine encontramos vários artigos com entrevistas e reportagens sobre bandas, nacionais e internacionais, ligadas ao espectro punk/hardcore (Cagalhões, Xutos e Pontapés, Cólera, Dead Kennedys, Zyklome, Virgin Prunes, entre outros) e não só (Nick Cave). De forma a estabelecer contacto com bandas do Brasil, Irlanda ou Bélgica, os correios representavam um papel crucial, permitindo o envio das questões às bandas que, posteriormente, enviavam as respostas também por correio postal. Noutros casos, os artigos eram elaborados com recurso a informação recolhida de outros fanzines e revistas de música. Existem ainda vários artigos de comentário crítico acerca da imprensa musical nacional e também sobre a cena punk em Portugal, assinalando os equívocos, fragilidades e potencialidades que importa despoletar.

 

 

Retomando a análise dos conteúdos dos fanzines, não podemos deixar de registar que a celebração e o hedonismo são o tema mais recorrente nas secções e páginas dos fanzines punk portugueses, a seguir à afinidade e sociabilidade musical. Esta celebração assenta na valorização da identidade do grupo ou comunidade musical e na vinculação de afetos e prazeres (Quintela et al., 2014). Os fanzines desenvolvem-se normalmente em torno do estabelecimento de relações sociais, isto é, como operadores de cenas e afetividades locais assentes num compromisso ou assimilação face a valores partilhados (Haenfler, 2004). Assim também foi em Portugal, na exata medida em que encerram uma sociabilidade interna, de perfil endogrupal, de um conjunto de indivíduos ligados por uma atividade não profissional e um ambiente criativo não estruturado; e uma sociabilidade externa de caráter exogrupal que se traduz na relação da publicação com uma comunidade pequena e bem definida. Aliás, o fanzine não assenta num monólogo escrito, é constituído por uma espécie de diálogo com a comunidade, ou como diz Atton “nos zines, os leitores não comunicam através deles, mas sim neles. […] O zine dá voz, comunica a experiência vivida e permite ao leitor emular as experiências dos seus pares” (Atton, 2002: 145). Para além desta intensa sociabilidade, os fanzines permitem uma congregação de estéticas e de músicas (Frith, 2002) dentro de uma abordagem coerente de gostos e de estilos de vida (Atton, 2010).

 

 

O terceiro bloco de temas presentes nos conteúdos dos fanzines analisados apela à defesa de uma alternativa (aos sistemas ou comportamentos criticados), à crítica social e à revolta — precisamente temáticas que remontam aos valores e ideais mais defendidos nos títulos. Estamos aqui perante o posicionamento de resistência frequentemente atribuído aos punks mas num contexto da sua inserção numa cena e em subcenas punk locais.[11] A cena define-se na relação entre cultura, sociedade e território e, neste contexto, os fanzines assumem um papel chave na sua dinamização, mas também na sua génese e perpetuação (Bennett, 2004; Bennett e Peterson, 2004; Guerra, 2010, 2013a, 2015; Silva e Guerra, 2015). Deste modo, os fanzines são erigidos em símbolos portadores de significados intrínsecos a determinada cena, delimitando valores, linguagens e crenças dos grupos sociais (cf. Sabin, 1999). Os fanzines possibilitam a existência de uma comunicação contra-hegemónica, que faz frente à mercantilização, à apropriação e à domesticação reinantes na sociedade. Através desta análise dos conteúdos veiculados pelos fanzines, mostramos que o punk continua a possibilitar a existência de uma comunicação contra-hegemónica, capaz de “fazer frente” à mercantilização, apropriação e domesticação proclamadas pela sociedade. São vários os meios usados nessa resistência: desde as redes sociais informais e descentralizadas da Internet e das tours, que permitem o fluxo de discos, fanzines, bandas, ideias e estilos; passando pelas gravadoras e lojas independentes; até à ética DIY e às bandas que gravam e lançam músicas por conta própria; e até à existência de fanzines. A vivência do punk ensina que a divisão entre cooptação e contra-hegemonia é muitas vezes um espaço obscuro repleto de contradições, mas a música e as sociabilidades que propicia são a arena fundamental dessa resistência.

Estes dados também nos remetem para Muggleton (2000: 145), quando refere que está em causa a celebração de um sentido de “individualidade partilhada” — porque a valorização da diferença não implica, nem deve implicar, uma construção de identidades e atitudes individualistas. Esta “individualidade partilhada” implica um elevado grau de comprometimento que é, no entanto, influenciado pela trajetória individual e pelo tipo de relação mais ou menos ativa que os indivíduos mantêm com o movimento. Por outro lado, está presente um sentimento de pertença permanente (quadro 3). Ainda que a atividade e o contacto com as bandas, os discos e os concertos abrandem com o avanço da idade, muitos dos nossos entrevistados afirmam ainda um “ser punk”, uma pertença a um movimento alicerçada naquilo que identificamos como o seu substrato ideológico. Ao mesmo tempo, estes indivíduos — descrentes face à política, sobretudo como participação partidária — assumem claramente posturas de resistência política. Vale a pena aqui relembrar Fouce (2004), quando este advoga a importância da posse de artefactos, como t-shirts, pins ou fanzines com vista a reforçar a identidade punk e ser reconhecido como membro integrante da comunidade punk. Os fanzines têm um papel chave na dinamização mas também na génese e perpetuação das diferentes cenas punk, tal como podemos observar no quadro 3, nos temas e descritores dos conteúdos dos fanzines.

 

Conclusões

A tónica deste texto prendeu-se com a abordagem dos fanzines na emergência e consolidação da cena punk portuguesa, desde finais dos anos 70 até à atualidade, demonstrando a sua proliferação, o seu mapeamento e as linhas temáticas e gráficas de orientação dos seus conteúdos. Este intuito é relevante a dois níveis: por um lado, porque demonstra que existe uma inelutável ligação dos fanzines com a emergência e a visibilidade da cena punk; e, por outro, porque ajuda a conhecer e a sistematizar a realidade dos fanzines punk fora da esfera tradicional anglo-saxónica. Não obstante essa perene ligação do punk aos fanzines, não reduzimos a existência destes ao punk — os fanzines existem desde inícios do século XX e são os timoneiros das publicações independentes (cf. Triggs, 2010). O fanzine corresponde à criação de uma comunidade de interesse e de gosto — o fanzine assume-se como uma espécie de antecessor artesanal das redes sociais contemporâneas (Farias, 2011) e isso não se confina ao universo punk.

Dentro desta abordagem, o nosso olhar neste artigo focou-se nos fanzines e na sua produção associada ao punk enquanto contributos indissipáveis para a expansão das cenas musicais, para a sua documentação, para a sua visibilidade e para a fidelização da pertença (Thompson, 2004). Ora, os fanzines são formas materiais de representação simbólica, e é assim que entendemos os fanzines punk portugueses. A justeza do nosso olhar, neste artigo, centrou-se na análise dos fanzines dentro do conceito de cena punk, explicando-os enquanto instrumentos de comunicação e ferramentas de pertença e enraizamento num contexto societal específico (Schmidt, 2006). É essa a principal ilação do mapeamento, por década, dos fanzines punk portugueses. Assim, partindo de uma existência residual nos anos 70, os fanzines punk portugueses assumem uma presença importante e constante ao longo das décadas seguintes. Como procurámos evidenciar, este mapeamento dos fanzines no território português possibilitou-nos a identificação de tendências da própria cena e subcenas punk portuguesas.

Efetivamente, em finais da década de 1970 consta-se a existência de pioneiros dos fanzines punk em Portugal confinados à cidade de Lisboa, tradutores de uma cena musical quase inexistente. Por seu turno, os anos 80 assistiram a uma certa proliferação deste fenómeno, no que apelidamos o primeiro boom dos fanzines punk centrados nas cidades de Lisboa e do Porto, acompanhando o desenvolvimento de uma cena punk portuguesa com bandas, edições discográficas, concertos, espaços de convívio e bares. Porventura, o espaço mais emblemático desta época foi o Rock Rendez-Vous, em Lisboa. A última década do século XX caracteriza-se por uma proliferação de edições, dispersão territorial e diversificação temática e de subgéneros musicais abordados. Assim, o seu número aumenta e ecoa pelas grandes áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, mas também se estende às zonas mais litorais do país. Nesta altura, houve também uma abertura ao hardcore e proliferaram as bandas, as editoras, as distribuidoras e os concertos nesse subgénero do punk. Os fanzines alargaram o seu espectro temático associando-se não só à política, mas às questões éticas, aos direitos das mulheres, ao vegetarianismo/ veganismo, direitos dos animais, sexismo, homofobia, uso de drogas, entre outros temas. O surgimento do computador veio refinar a precisão técnica e a rapidez de produção dos fanzines. Com a entrada nos anos 2000, assiste-se a um refinamento técnico e aprofundamento temático dos fanzines. Simultaneamente, este é também um período de resiliência do formato fanzine face ao e-zine. Os fanzines continuam a abrir-se a novas temáticas e começam a incorporar a fotografia, o cinema, o vídeo, a ilustração, os cartoons e a banda desenhada. Os fanzines assumem-se nos anos recentes como veículos das próprias memórias e nostalgias da cena punk portuguesa dos anos 80 e 90, dedicando cada vez menos espaço à cena internacional, optando por enfatizar a cena local.

A importância do fanzine na consolidação da cena punk portuguesa e a sua assunção como símbolo foram também comprovadas pela análise dos títulos dos 93 fanzines presentes na base de dados. Existe um reconhecimento de que nos fanzines a linguagem transmitida é uma mensagem de “resistência”, que decorre do facto de os fanzines serem interpretados como lugares de oposição ao mainstream cultural, político e societal. Como vimos, os títulos de muitos destes fanzines evocam uma crítica face à sociedade e assumem um posicionamento declaradamente antissistema, aderindo às ideias de DIY, de autodeterminação, de irrisão e de contaminação social.

De forma complementar, no plano dos conteúdos dos fanzines e ao contrário do que acontecia nos títulos dos fanzines, vemos uma focagem na música, na sua celebração quotidiana e na sua proclamação como mantimento da cena punk portuguesa: a afinidade e a sociabilidade musical detêm o maior número de ocorrências, demonstrando a importância da música na constituição e funcionamento de uma cena com bandas, com fanzines, rádios, espaços e concertos, com discos, editoras e distribuidoras. A cena define-se, pois, na relação entre cultura, sociedade e território, e os fanzines têm aqui um papel chave na sua dinamização mas também na sua génese e perpetuação. Os fanzines são erigidos em símbolos portadores de significados intrínsecos a determinada cena, delimitando valores, linguagens e crenças dos grupos sociais. Possibilitam ainda, por outro lado, a existência de uma comunicação contra-hegemónica, que resiste à mercantilização. Para os seus criadores, os fanzines são vistos como algo que lhes permite fazer parte de algo em que partilham uma base comum, um espírito e uma atitude DIY, um sentimento de pertença a uma comunidade, a uma cena punk particular, central na negociação identitária dos papéis, posições e lugares dos espaços relacionais do punk português; em suma, seguindo de perto Atton (2002 e 2006), o envolvimento com a produção, a organização e consumo dos fanzines conduz a práticas autorreflexivas centrais para o recorte e dinamismo de cenas punk locais.

 

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Fanzines

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Estado de Sítio (1978) (ed. Paulo Borges), n.º 1, agosto, Arquivo KISMIF, através de doação de Nuno Oliveira.

Leitmotiv (1980) (ed. Paula Ferreira), n.º 1, Arquivo KISMIF, através de doação de Paula Ferreira.

Lixo Anarquista (1986) (ed. António Jorge Nunes), n.º 4, outubro/ novembro, Arquivo KISMIF, através de doação de Fábio Couto.

LXDoismil (2000) (ed. Pedro), n.º 1, Lisboa, Arquivo KISMIF, através de doação de Francisco Dias.

O Alfinete (2011) (ed. André Nascimento/ João Paulo Cabral), n.º 1, verão, Lisboa, Arquivo KISMIF.

Panache (1980) (ed. Mick Mercer), n.º 13, Staines, Arquivo Still Unusual, disponível em: http://stillunusual.tumblr.com/post/29048124663/panache-fanzine

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Sniffin’ Glue (1977) (ed. Mark Perry), n.º 7, fevereiro, Londres, Arquivo Essential Ephemera, disponível em: http://si-site-nogsy.blogspot.pt/2012/04/sniffin-glue7-1977.html

 

Receção: 20-10-214 Aprovação: 09-06-2015

 

Notas

[1] No decurso do texto iremos recorrer a partes dos discursos de nossos entrevistados como forma de exemplificar determinadas questões. Todos os entrevistados são nomeados por um nome fictício e as partes aqui utilizadas seguem as indicações do Código Deontológico da Associação Portuguesa de Sociologia.

[2] Importa notar aqui o relativo atraso de Portugal no que toca à edição de fanzines. Com efeito, os primeiros fanzines de banda desenhada portugueses terão surgido somente no início da década de 1970, mais precisamente em 1972, ano em que é editado o fanzine pioneiro Argon; posteriormente, em 1974, é editado o Orion (Andrade et al., 1990: 135). O surgimento destes primeiros fanzines dedicados à banda desenhada deve-se, no essencial, ao caráter exíguo e muito conservador do mercado editorial português, centrado essencialmente na edição de clássicos, oferecendo assim escassas oportunidades para os jovens autores nacionais publicarem as suas obras; simultaneamente, os fanzines permitiam um acesso mais fácil a algumas novidades internacionais, num contexto em que a aquisição de livros e revistas de banda desenhada no mercado da importação era extremamente dispendiosa (cf. Andrade et al., 1990: 134-135).

[3] Segundo Teal Triggs “os fanzines adotaram o DIY, a abordagem independente que os músicos de punk tinham abraçado. Com a ascensão de bandas recém-formadas assiste-se à criação improvisada de clubes, pequenas editoras discográficas independentes e lojas de discos [...]. Da mesma forma, os fanzines ofereceram aos fãs um ‘espaço livre para o desenvolvimento de ideias e práticas’, e um espaço visual desimpedido de regras formais de design e de expectativas visuais” (Triggs, 2006: 70).

[4] Remontando a Maffesoli (1988), os post-subcultural studies, advogam a pertença dos atores sociais a uma pluralidade de tribos marcadas por uma variedade simultânea de géneros e subgéneros musicais (Bennett, 1999, 2000; Thornton, 1995) num contexto de cada vez maior complexidade—particularmente num mundo cada vez mais interligado, onde ideias, pessoas, músicas rodopiam numa escala e rapidez sem antecedentes — que se afasta da dicotomia “mainstream monolítico”—“subculturas resistentes” (Muggleton eWeinzierl, 2003: 7).

[5] Veja-se o exemplo já clássico do primeiro número do fanzine Sideburn, em1977, que integrou um esquema de três acordes de guitarra anunciando: “Isto é umacorde. Isto é outro. Este é um terceiro. Agora forma uma banda” (Sideburns, 1977: 2).

[6] Os excertos em língua inglesa foram traduzidos pelos autores deste artigo.

[7] Este artigo resulta da investigação realizada no âmbito do projeto de investigação KISMIF—“Keep it Simple, Make it Fast!”, financiado pela Fundação para a Ciência a Tecnologia (PTDC/CS-SOC/118830/2010), através do Programa Operacional COMPETE. O KISMIF está a ser desenvolvido no Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (IS-UP), em parceria com o Griffith Centre for Cultural Research (GCCR) a Universitat de Lleida (UdL), a Faculdade de Economia da Universidade do Porto (FEP), a Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCEUP), a Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC), o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES) e as Bibliotecas Municipais de Lisboa (BLx). Para além dos autores deste artigo, integram a equipa deste projeto os seguintes investigadores: Ana Oliveira, Ana Raposo, Andy Bennett, Augusto Santos Silva, Carles Feixa, Hugo Ferro, João Queirós, Luís Fernandes, Manuel Loff, Paula Abreu, Rui Telmo Gomes e Tânia Moreira. Colaboraram ainda na recolha de dados os seguintes investigadores: Filipa César, João Carlos Lima, João Matos, João Pereira, Pedro Barbosa e Sara Cuje. Mais informações em www.punk.pt

[8] É importante sublinhar que esta última tarefa, relacionada com a recolha, sistematização e análise de fanzines punk portugueses ainda se encontra em curso, pelo que ainda não é possível partilhar e discutir resultados definitivos resultantes deste trabalho. No entanto, iremos apresentar e discutir, de seguida, alguns resultados preliminares que resultam da análise dos dados que foram já recolhidos, sistematizados e analisados.

[9] Como nota Dannus: “Alguns escritos podem ser encontrados nos fanzines punk alemães, mas estranhamente os fanzines punk de Londres, o berço do punk europeu, constituíram fontes subutilizadas” (2013: 10).

[10] Hebdige (1979), tal como outros autores anglo-saxónicos ligados aos cultural studies, perspetiva as subculturas enquanto esferas de resistência cultural, onde se desafiam no plano simbólico a cultura dominante, valorizando outros tipo de expressões culturais e artísticas ligadas ao underground, ao marginal. Segundo esta abordagem do conceito de subcultura, o estilo surge como sinónimo de resistência, uma tradução física de uma guerrilha semiótica. Trata-se de uma análise estrutural, de matriz neomarxista, em que as subculturas surgem como resposta aos problemas colocados pela classe, pela raça e pelo género, entendidos histórica, económica e politicamente. Nesta leitura, o envolvimento em subculturas não é mais visto como um ato desviante, mas sim como uma forma de resistência que reflete lutas de classe mais vastas (Guerra, 2013b, 2014; Guerra e Silva, 2015; Ferreira, 2010). Note-se, contudo, que esta visão das subculturas juvenis proposta pelos cultural studies e pela chamada Escola de Birmingham tem vindo a ser amplamente criticada por diversos autores, ao longo dos últimos anos (cf. Tait, 1992, 1993; Guerra, 2010; 2013a, 2013b; Ferreira, 2010).

[11] Por exemplo, Dick Hebdige considerou que os punks ingleses transportaram para as suas roupas, as suas músicas, as suas atitudes, os seus fanzines, os seus textos, o chamado “Britain’s decline” (Hebdige, 1979: 87).

 

Agradecimentos

Agradecemos as reflexões, leitura atenta e comentários de Andy Bennett, Hugo Ferro, Marcos Farrajota e Paulo Lemos. O nosso agradecimento vai também para os sujeitos de investigação por nós abordados em situação de entrevista ou como contribuintes do www.arquivo.punk.pt.

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