SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número78El impacto de PISA en Portugal a través de mediaModos de explicación índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Indicadores

Links relacionados

  • No hay articulos similaresSimilares en SciELO

Compartir


Sociologia, Problemas e Práticas

versión impresa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.78 Lisboa mayo 2015

https://doi.org/10.7458/SPP2015783796 

ARTIGO ORIGINAL

Políticas culturais locais: contributos para um modelo de análise

Local cultural politics: contributions to an analytical model

Politiques culturelles locales: contributions à un modèle d’analyse

Políticas culturales locales: contribuciones para un modelo de análisis

 

Augusto Santos Silva*, Elisa Pérez Babo ** e Paula Guerra ***

* Professor da Faculdade de Economia e investigador do Instituto de Sociologia da Universidade do Porto, Rua Dr. Roberto Frias, 4200-464 Porto, Portugal. E-mail: asilva@fep.up.pt

** Administradora da Quartenaire Portugal, Rua Tomás Ribeiro, 412 — 2.º, 4450-295 Matosinhos, Portugal. E-mail: elisab@quaternaire.pt

*** Professora da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e investigadora do Instituto de Sociologia da Universidade do Porto, Via Panorâmica, s/n, 4150-564 Porto, Portugal. E-mail: mariadeguerra@gmail.com

 

RESUMO

O objetivo do artigo é propor um modelo de análise das políticas culturais locais adaptado à realidade portuguesa. Parte da ideia de que uma combinação das perspetivas da sociologia e da economia (assim como a consideração do contributo da geografia) constitui o melhor enquadramento para tal análise. E procura contribuir para o aprofundamento dos estudos empíricos, através do desenho de um modelo que possa ser sistematicamente aplicado, com as especificações requeridas caso a caso. Este modelo também poderá ser útil para o desenvolvimento das políticas públicas para a cultura, na medida em que oferece um quadro para a interpretação do processo de tomada de decisão, da aplicação prática e dos resultados obtidos com essas políticas.

Palavras-chave políticas locais, cultura, desenvolvimento.

 

ABSTRACT

The article suggests a framework for the analysis of local cultural policies. Its basic assumption is the idea that the articulation of the sociological and the economic approaches — geographically enriched — provides the best perspective and method for research. The article considers the scientific knowledge that is being accumulated, in Portugal, on cultural policies. It can be conceived of, and used, as a methodological development, oriented towards future research. Its aim is to offer a roadmap, to be specified and adapted to each case, both to the academic studies and to political institutions and agents.

Keywords local policies, culture, development.

 

RÉSUMÉ

On essaie de construire un modèle d’analyse sur les politiques culturelles locales. Le principe organisateur de ce modèle c’est l’idée que la combinaison du regard sociologique et du regard économique (et aussi la contribution de la géographie) constitue l’approche la plus productive. La base de notre travail est fournie par l’ensemble des études déjà disponibles sur la réalité portugaise. Sur cette base, on veut faire une proposition méthodologique, capable d’orienter, d’une part, la recherche académique sur les politiques publiques culturelles; mais aussi, d’autre part, la participation de chercheurs dans le processus de formation, réalisation et évaluation de ces politiques.

Mots-clés politique locale, culture, développement.

 

RESUMEN

El objetivo de este artículo es proponer un modelo de análisis de las políticas culturales locales adaptado a la realidad portuguesa. Parte de la idea de que una combinación de las perspectivas de la sociología y  de la economía (así como la contribución de la geografía) constituye el mejor marco para tal análisis. Y procura contribuir para profundizar los estudios empíricos, a través del diseño de un modelo que pueda ser sistemáticamente aplicado, con las especificaciones requeridas caso a caso. Este modelo también podrá ser útil para el desarrollo de las políticas públicas para la cultura, en la medida en que ofrece un marco para la interpretación del proceso de toma de decisión, de la aplicación práctica y de los resultados obtenidos con esas políticas.

Palabras-clave políticas locales, cultura, desarrollo.

 

O que sabemos sobre as políticas culturais autárquicas

O objetivo deste artigo é propor um modelo de análise das políticas culturais locais adaptado à realidade portuguesa. Parte da ideia de que uma combinação das perspetivas da sociologia e da economia constitui o melhor enquadramento para tal análise. Considera que o conjunto de estudos de que já dispomos traça uma panorâmica bastante interessante, quer do ponto de vista dos resultados, quer do ponto de vista do método. E procura contribuir para o seu aprofundamento, através do desenho de uma estratégia de investigação empírica — isto é, de um modelo de análise — que possa ser sistematicamente aplicada, com as especificações requeridas caso a caso.

O que sabemos, hoje, sobre as políticas culturais autárquicas pode ser sintetizado em umas poucas afirmações.

A primeira assinala a sua relevância. Desde os meados dos anos 1990, a despesa realizada pelo conjunto dos municípios passou a ser a principal fonte de financiamento público das atividades e serviços culturais, sobrelevando a despesa dos organismos sob tutela do governo (cf. Santos, 1998: 92-93; e Neves, 2005a). A figura 1 mostra a evolução das duas fontes. A qualidade dos dados é discutível, mas não obscurece a tendência geral: crescimento mais acentuado da despesa cultural autárquica, em comparação com a da Secretaria de Estado ou do Ministério da Cultura, nos anos de incremento orçamental; maior capacidade de resistir aos primeiros sinais de inversão da tendência, na década de 2000; e queda abrupta da despesa, após a crise de 2008, sem que isso signifique a perda da condição de fonte principal de financiamento.

 

 

Depois, às autarquias pertence a propriedade e a responsabilidade de gestão de parte considerável dos equipamentos culturais: as bibliotecas de leitura pública, os arquivos municipais, os museus municipais, e recintos para artes performativas, como teatros, cineteatros e salas de concertos, por vezes integrados em centros culturais ou centros de artes, que podem compreender também espaços para exposições temporárias e/ou permanentes. O quadro 1 condensa a informação mais recente sobre este ponto.

 

 

Finalmente, as autarquias foram ocupando um lugar crescentemente central nas estruturas e dinâmicas culturais locais, à medida que foram aumentando a importância política concedida e os recursos humanos, materiais e financeiros afetados. Embora várias investigações ponham em dúvida a dimensão e sustentabilidade daquela importância, o certo é que ela não tem termo de comparação com os primeiros tempos de implantação do poder local democrático e com o tipo de concentração das políticas nas infraestruturas físicas a que a equipa de Juan Mozziccafreddo (1990) chamou, sugestivamente, o “grau zero do poder local”. O ponto de viragem ocorreu nos meados dos anos 1980: o lançamento da primeira rede nacional de equipamentos — a Rede de Leitura Pública — e as oportunidades abertas, em termos de financiamento do investimento, pela integração de Portugal na então Comunidade Económica Europeia mudaram qualitativamente as condições de intervenção autárquica na esfera cultural. A análise estatística não chega para dar conta desta intervenção, porque parte dela se faz por vias e de formas não diretamente registáveis física e quantitativamente. Os laços entre os eleitos e as associações, coletividades e outros agentes culturais — e, num contexto fortemente presidencialista e dependente de redes relacionais, como mostrou Fernando Ruivo (2000), diretamente com cada presidente de câmara; os apoios não materiais e, entre os materiais, não imediatamente contabilizáveis, como os de natureza logística; e, mais recentemente, a reconfiguração de sistemas de governança (governance) local, de modo a incluir mais funcionalmente agentes culturais — todos são processos de valorização do papel cultural das autarquias que só a análise aprofundada caso a caso pode reconstituir e interpretar.

Maior relevância, portanto: eis a primeira afirmação sintética que se pode fazer, a propósito da evolução da relação das autarquias locais portuguesas com a cultura (cf. Gomes e Martinho, 2012). A segunda respeita ao modo predominante nessa relação; e consensualismo parece ser o nome apropriado. O que não quer dizer, evidentemente, uniformismo: por exemplo, Luísa Albuquerque (2011) notou diferenças entre vereações de direita, centro-esquerda e esquerda quanto à articulação entre identidade local, expressão cultural e serviço público cultural. Mas, no Portugal pós-25 de Abril, o nível de partida era reduzido (em termos de dimensão e diversidade), no que tocava ao capital cultural local, e as câmaras municipais encontravam-se numa posição de dependência face ao poder central e, quando passou a ser o caso, às orientações e recursos europeus veiculados por esse poder, que fazia delas mais destinatários que autores de políticas públicas. O baixo nível de partida favoreceu o consensualismo político, porque a lógica incrementalista, baseada no princípio de que o que era preciso era desenvolver e isso se fazia por crescimento tão rápido quanto possível de infraestruturas, representava não apenas um ponto de convergência entre forças políticas e interesses locais como também um fator de legitimação política, pronto a usar. Por seu lado, a relação de dependência face às orientações e aos recursos nacionais e europeus — carecendo tipicamente a generalidade dos municípios de parcerias com essoutros dois níveis de administração para poder concretizar e sustentar os seus projetos incrementalistas — facilitava o consenso, porque as variações de políticas que realmente contavam eram as que ocorriam ao nível do governo e da Comissão Europeia, ou pelo menos contavam mais, em regra, do que a alternância política local, quando ela existia. Pôde assim sugerir-se que o “roteiro de abordagem” das políticas culturais devia ser específico, e não partir das classificações políticas que fazem sentido no plano dos estados (Silva, 2007).

A terceira e última afirmação que fará a síntese do que sabemos hoje, em Portugal, sobre as políticas locais já destaca as dinâmicas de alteração. Se a descrição empreendida por Silva, Babo e Guerra (2013) estiver correta, dir-se-á que, depois de um período de subalternidade no conjunto das preocupações autárquicas, se foi estabelecendo desde os meados dos anos 1980 um padrão de intervenção municipal estruturado em três eixos principais: a defesa e valorização do património, o desenvolvimento de uma oferta local e a formação de públicos culturais. O padrão é ainda hoje largamente hegemónico. Mas, nos anos mais recentes, tem sido desafiado em municípios de vária dimensão e localização. Não se trata de uma mudança radical, mas sim de complexificação: não colocando em causa nenhum dos três eixos anteriores, várias políticas locais (mais uma vez, respondendo a estímulos e incentivos exógenos, nacionais ou europeus, e nalguns casos também à influência de agentes culturais locais ou do meio nacional que atuam localmente como consultores ou ativistas) vão acrescentando e valorizando outras dimensões. Principalmente duas. Uma é interna à esfera cultural — e procura redefini-la como uma economia local, apostando mais em questões como a profissionalização, a gestão, a clusterização e a qualificação de sistemas de governança. A outra articula a política cultural com outras políticas públicas, designadamente de reabilitação urbana, de inclusão social, de turismo, ou para a promoção da marca local e a captação de residentes e investidores, numa lógica de alavancagem cultural do desenvolvimento local (Babo, 2010a; Silva, Babo e Guerra, 2013).

 

Para a análise intensiva das políticas culturais locais

As políticas culturais autárquicas são relevantes; são específicas — entre outros pontos, porque o consensualismo político é nelas bastante mais forte do que ao nível nacional; e estão em transformação, pelo menos parcial e no sentido de maior complexificação do paradigma vigente. Nestes termos, como podemos avançar, metodologicamente?

A nossa resposta é: investindo mais na sua análise como políticas públicas (cf. Throsby, 2010: 33-57). Quer dizer, estudando como se formam e desenvolvem como políticas, como se integram e articulam no conjunto das políticas públicas autárquicas, como interagem com os meios sociais e territoriais sobre que se exercem e como dialogam com os respetivos campos culturais.

Esta resposta não subentende nenhuma desvalorização crítica do que tem sido feito. Pelo contrário: foi muito importante analisar o discurso político sobre a cultura e a política cultural; foi igualmente importante proceder ao inventário cuidadoso dos recursos e processos postos em prática para incrementar o capital cultural local; e foi absolutamente decisivo perceber as ligações entre os vários níveis e setores da política e da administração pública portuguesa. A dimensão de avaliação, muito corrente nos estudos disponíveis, também tem indiscutível pertinência, além de ser útil para os eleitos e as instituições, que são, muitas vezes, clientes ou parceiros das investigações empreendidas. Entretanto, a acumulação de informação e a possibilidade de traçar visões panorâmicas (a que ainda agora restituímos, ou outras mais certeiras) incita ao aprofundamento, aplicando modelos económica e sociologicamente enriquecidos. O que sugerimos aqui pretende servir de guia a estudos empíricos intensivos, isto é, a análises de casos: sejam os municípios tomados isoladamente ou em cachos (e não apenas as comunidades intermunicipais e as áreas metropolitanas, mas outro tipo de redes).[1]

O quadro 2 apresenta o modelo.

 

 

 

O modelo considera quatro níveis principais. O primeiro diz respeito à caraterização do contexto; e a opção metodológica subjacente é fazê-lo pela identificação das dinâmicas observáveis em quatro dimensões: o sistema político; o sistema social; o sistema territorial; e o sistema de recursos e atividades culturais. O segundo nível é a autonomização do que se poderia considerar como um conjunto de fatores intermédios, que ligam as dinâmicas de contexto às políticas culturais: são as caraterísticas próprias das instituições e orientações políticas e das tecnoestruturas associadas. O terceiro descreve cada política cultural, dando conta do seu desenho, discurso, operacionalização e desenvolvimento. Finalmente, procura-se identificar e, sendo o caso, avaliar os resultados da política e a sua retroação quer sobre esta, quer sobre os sistemas locais pertinentes. Distingue-se entre os efeitos propriamente culturais e os efeitos para o desenvolvimento local e regional.

A sucessão é apresentada do ponto de vista lógico, não do ponto de vista metodológico. Será, até, eventualmente mais operatório começar o exercício analítico pelo terceiro nível lógico, fazendo dele a primeira etapa da abordagem. Ensaiar-se-á, assim, uma caraterização inicial do objeto da investigação — a política cultural em vigor no município ou conjunto de municípios em referência — para depois procurar explicá-la, em função das variáveis de contexto (primeiro nível lógico) e intermédias (segundo nível). O que provavelmente permitirá refinar a caraterização (retomando e desenvolvendo o terceiro nível), apreender melhor os resultados (quarto nível) — e seguir a retroação destes sobre contexto, instituições e atores políticos e política, tornando pois a percorrer os primeiros três patamares analíticos (figura 2).

 

 

 

Considerar o contexto

Como é que o sistema político local serve de contexto à formação e desenvolvimento da política cultural do município? A resposta depende evidentemente do caso, mas há um conjunto de passos que podem ser dados. Desde logo, considerar a dimensão e a localização do ou dos municípios em causa e as dinâmicas de cooperação inter ou supramunicipal em que estejam envolvidos. Depois, fazer o inventário dos atores locais cuja ação produz efeitos políticos: os atores políticos propriamente ditos — partidos e outras associações, incluindo evidentemente o fenómeno dos grupos partidariamente independentes, cuja importância vem crescendo de eleição para eleição; mas também os restantes atores politicamente relevantes, de que é útil destacar os meios de comunicação com expressão local, as associações cívicas e os grupos de interesse, e (eventualmente) movimentos sociais. Dadas as caraterísticas específicas do poder local, importa sublinhar, no primeiro grupo de atores, as lideranças pessoais (muito fortes num sistema de governo de pendor presidencialista e em que a maioria tem grande capacidade de cooptação das oposições); e, no segundo grupo, as redes estabelecidas entre extensões locais dos partidos, serviços e níveis locais da administração pública, e instituições sociais ligadas à Igreja, à assistência social, ao terceiro setor, à proteção civil e a outras formas de entreajuda e solidariedade local.

A influência social e a representação eleitoral dos partidos políticos (e seus equivalentes funcionais), o histórico e o estado da competição arbitrada eleitoralmente, são também fatores essenciais para a dinâmica do sistema político local. Basta pensar em como são diferentes as seguintes situações, todas verificadas em Portugal: longa permanência de uma mesma liderança pessoal (isto é, não só o mesmo partido como a mesma pessoa), que nalguns casos se estendeu desde as primeiras eleições, em 1976, até às eleições de 2013, as primeiras em que teve efeito a proibição da acumulação de mais de três mandatos sucessivos na mesma autarquia; longa hegemonia por parte de um partido, com renovação de lideranças, muitas vezes numa lógica de sucessão quase nos termos de dinastia política (entre patronos e delfins); alternância bipartidária, cada um dos partidos ou coligações assegurando um período de governo relativamente longo (mais de dois mandatos); e forte competição a dois ou três partidos, com mudanças constantes de maioria e governação (e, várias vezes, de coligação).

O modelo sugere que sejam relevadas as ligações extralocais dos atores políticos, quer na relação com o campo político nacional, quer na relação com as orientações nacionais e europeias. No caso particular dos Açores e da Madeira, isto passa pela especificação das articulações com os respetivos governos e partidos regionais.

Um segundo elemento central do contexto local das políticas culturais concerne a dinâmica do sistema social. Em sentido lato. Múltiplas variáveis consideradas pelas estatísticas nacionais — a começar pelo Recenseamento Geral da População — são úteis para apreender essa dinâmica: é-o especialmente a variação da composição da população residente por género e grupos de idade, assim como por instrução e classe socioprofissional. Importa também recolher a informação relativa à frequência das instituições do ensino superior, nas cidades que são suas sedes e nas respetivas áreas urbanas. A natureza e o impacto local da atividade destas instituições (assim como de outros centros de produção e transferência de conhecimento) contribuem ainda para qualificar o meio social.

Dar conta das condições objetivas que contextualizam uma política cultural passa pelo inventário tão minucioso quanto possível dos agentes locais: associações e coletividades, grupos menos formais, promotores privados e instituições públicas, operando nas artes performativas e visuais e nos restantes círculos das atividades culturais (Throsby, 2008), sem esquecer o papel, muitas vezes crítico, desempenhado pelos órgãos de comunicação social. Em alguns municípios é possível obter, a partir de fontes secundárias, dados sobre o consumo cultural dos residentes, as suas práticas de envolvimento artístico amador ou semiprofissional e as audiências dos prestadores de bens e serviços culturais. Todavia, na generalidade dos casos, isso não dispensa algum inquérito específico.

O terceiro elemento do contexto local que é considerado no presente modelo refere-se à dinâmica do sistema territorial. Está em jogo a interdependência entre a configuração das políticas culturais e a forma como se organizam no território as estruturas urbanas, as redes de equipamentos e infraestruturas, os fluxos de pessoas e atividades. A análise dos sistemas urbanos locais, na sua dinâmica de funcionamento, é essencial para compreender as tipologias de ocupação de atividades, os fatores de atratividade dos espaços centrais e de esvaziamento funcional dos espaços limítrofes, as lógicas de hierarquização e concentração das funções. Esta análise implica abordagens intraurbanas e interurbanas, considerando a participação dos agentes locais em espaços de cooperação e de relação com os agentes e públicos de outros territórios, próximos ou distantes (como os regionais, nacionais e internacionais). Implica também a perceção dos modos como as cidades, onde se concentram os principais agentes artísticos e culturais e parte significativa do mercado consumidor, se relacionam com os seus territórios de proximidade, onde frequentemente persistem ativos de grande relevo histórico ou significado simbólico (por exemplo, monumentos relevantes e sítios arqueológicos) e segmentos de públicos igualmente importantes.

A informação disponível é de natureza quantitativa e qualitativa; e merece, em geral, um tratamento integrado, capaz de traduzir não apenas a diversidade e densidade das funções instaladas como também os fluxos entre os diferentes espaços e as suas condicionantes principais. A mobilidade das populações constitui atualmente uma dimensão fundamental no quadro do funcionamento das estruturas territoriais e urbanas, garantindo o acesso das pessoas aos principais centros de produção e disseminação cultural.

Já quanto ao que designámos como sistema de recursos e atividades culturais, as abordagens têm acentuado a preocupação de combinar vários quadros de leitura. O sistema é multidimensional, compreendendo o património, as artes, as chamadas indústrias culturais e parte das criativas. Mas também se estrutura de acordo com a natureza dos seus agentes, integrados no setor público, privado empresarial e privado não empresarial, neste predominando as organizações sem fins lucrativos do terceiro setor.

Por outro lado, o sistema incorpora uma lógica de mercado e de cadeia de valor económico. A relação entre oferta e procura de bens e serviços culturais apresenta especificidades, de que uma das mais estudadas é o envolvimento de uma boa parte dos agentes culturais em processos de formação de públicos. As atividades culturais são multímodas, indo desde a criação artística e a conceção das ideias à produção e circulação de produtos, ou à participação direta dos públicos no desenho e desenvolvimento de eventos e obras.

O sistema de recursos e atividades culturais é ainda um sistema aberto. Ele mantém um conjunto alargado de interligações e fluxos com os sistemas político, social e territorial. Concorre assim para a configuração e evolução de diversas formas de capital no contexto local: capital humano, em complementaridade com as estruturas de educação e qualificação formais; capital social, na evolução das normas, da participação cívica e cidadã, dos laços e redes interpessoais (cf. Putnam, 1993); capital cultural, entendendo os bens artísticos e culturais enquanto ativos de capital (Throsby, 2010); e capital simbólico.

Também as caraterísticas e dinâmicas do meio criativo e o seu posicionamento no campo nacional e internacional são fundamentais na análise do sistema local de recursos. Assim, considere-se a emergência e consolidação de atores e projetos culturais; a distribuição territorial dos protagonistas e as formas e dinâmicas de relacionamento e cooperação entre eles; o potencial de atração de novos recursos e atores; as relações das estruturas e atores com os espaços exteriores; as parcerias e redes de desenvolvimento artístico, criativo, profissional em que se inserem (Kebir e Crevoisier, 2008). A dimensão e caraterísticas dos mercados locais de bens e serviços culturais são, evidentemente, fatores críticos de potenciação e sustentação dos meios criativos.

Por último, os elementos artísticos e culturais locais são muito influenciados pela natureza dos espaços, urbanos ou territoriais, em que se implantam, definindo tipologias diversas — “bairros”, “distritos”, “cenas”, ou clusters. E são inúmeras as investigações que recorrem a essas expressões para apreender as espacializações das dinâmicas culturais, artísticas e criativas.

O conceito de cena conota o espaço de desenvolvimento e manifestação de múltiplas dinâmicas de produção, intermediação, consumo e fruição. Ele conduz à análise da conectividade entre os atores e os espaços sociais das cidades, facilitando a compreensão da dinâmica das forças sociais, económicas e institucionais que influenciam a expressão cultural e criativa coletiva (Guerra, 2013). As cenas são ancoragens territoriais, mas não significam exatamente lugares físicos (são locais, mas também translocais e virtuais); e conjugam múltiplos efeitos: de aglomeração, do quadro de interação, de marca, de artistas e de estilos de vida.

Esta abordagem permite adaptar conceitos trabalhados pela economia ou a geografia. Como o de distrito, usado, por analogia à perspetiva marshalliana, como espaço de concentração de recursos culturais e artísticos qualificados e de informação, gerando vantagens competitivas (Babo, 2010b). Ou o de bairro cultural, que articula, por referência a um mesmo espaço, os estilos de vida e as sociabilidades com as produções e práticas criativas e a economia e o desenvolvimento urbano (Costa, 2008). O reconhecimento dos processos e efeitos de concentração de atividades artísticas e culturais também levou alguns investigadores à adoção da expressão “quarteirões culturais”, para dar conta de espaços urbanos regenerados com a cultura como alavanca do desenvolvimento socioeconómico (Montgomery, 2003).

 

Estudar o processo de formação da política

O que o nosso modelo designa como fatores intermédios procura identificar as dinâmicas do sistema político que contribuem diretamente para a formação e aplicação da política cultural local. Fazem a ligação entre as condições contextuais (objetivas, na medida em que definem as caraterísticas do meio local que situam, restringindo e capacitando a atuação dos diferentes atores políticos) e os comportamentos destes atores. Uma forma simples de compreender a relação é pensar que o primeiro nível analítico do modelo respeita ao contexto político (além de social e cultural); e reservar para o segundo nível a imagem do jogo político, em sentido técnico (e não pejorativo).

A lista indicativa de fatores apresentada no quadro 2 procura evidenciar dois traços específicos da formação da política cultural autárquica em Portugal. O primeiro é o peso dos contributos externos: pois, se uma das lições principais dos estudos empíricos realizados até ao momento é, a nosso ver, a maior importância relativa desses contributos sobre as dinâmicas endógenas a cada meio, a abordagem analítica de novos casos deve tornar este ponto numa hipótese de partida. Daí que se sugira o inventário dos programas disponíveis ao nível regional, nacional e europeu, porque eles orientam muito do que será a intervenção prática de cada município; a identificação da presença e influência dos técnicos (gabinetes de estudos e planeamento, consultores, terceiro setor, fundações culturais, etc.) que funcionam como mediadores, “traduzindo” aqueles programas para as necessidades e condições de cada caso, no plano das orientações, terminologias, financiamentos e outros recursos de acesso competitivo; e a despistagem das relações dos eleitos, tecnoestruturas e agentes culturais locais com personalidades, instituições e correntes de opinião do campo cultural e artístico nacional, já que vários programas postos em prática por autarquias são virtualmente incompreensíveis sem observar a ligação especial que se foi criando e consolidando entre certo parceiro institucional ou pessoal externo e certo eleito, técnico ou protagonista local.

O segundo traço que o nosso modelo pretende relevar, na formação da política cultural, é a influência de aspetos da estrutura política local que não estão diretamente associados ou dependentes da filiação partidária e ideológica da maioria municipal. As circunstâncias são ainda muito marcadas pelo consensualismo político, em que o discurso em torno da valorização patrimonial, da promoção da oferta, da formação de públicos e do trabalho com as escolas e, mais recentemente, da economia da cultura tende a percorrer transversalmente — mesmo que com as nuances já indicadas por Luísa Albuquerque (2011) e outros — o sistema partidário. Em tais circunstâncias, a diferença pode ser feita, não pela chegada ao poder deste ou daquele partido e o triunfo deste ou daquele programa eleitoral, mas sim pelo perfil social e político do/a vereador/a encarregado/a do pelouro cultural, dos técnicos e responsáveis pelos serviços e equipamentos, e pelo tipo e alcance da relação que todos eles mantenham com redes locais de influência social e política, designadamente as provenientes do meio cultural.

Se nos demorarmos na análise fina destes atores da formação de cada política, do seu comportamento estratégico e do jogo que resulta da sua interação, estaremos mais bem apetrechados para compreender a conformação específica dessa política. Queremos, em suma, defender que a combinação de uma abordagem sistémica e contextual e de uma abordagem estratégica, centrada sobre os jogos de atores, tal como teorizada por Crozier e Friedberg (1992 [1977]), constitui uma excelente via para conhecer e interpretar a dinâmica das políticas locais. De tal modo que, depois de uma primeira descrição geral, cada política pode ser revisitada (enquanto nível III da figura 2), como consequência de um jogo político (nível II) contingente a um dado contexto (nível I).

A elucidação e resumo dessa política tende a concentrar-se em duas vertentes principais: discurso e produtos. Não deixa assim de ecoar, no plano analítico, o foco político no “programa” e na “obra”: que propusemos fazer e como o justificámos, que fizemos e como o aproveitámos? Daqui não decorre nenhum problema de maior, desde que os dispositivos analíticos sejam respeitados. Mas a nossa ideia é que não só se vá mais longe do que estas duas vertentes, como que estas sejam integradas e bem compreendidas no corpo mais vasto a que pertencem.

Assim, tentemos esboçar o desenho global da política cultural autárquica em causa. Como se integra no conjunto das políticas dessa autarquia, isto é, que lugar detém nelas (subalterno, central?); e como se articula com outras políticas setoriais (designadamente educativa, social, de turismo, de qualificação urbana)? E como é construída e apresentada, discursiva e organizacionalmente: que finalidades exprime, que estratégias propõe para atingi-las, que recursos mobiliza, que atores interessa e que interlocutores identifica? O modelo seguido por Maria de Lurdes Rodrigues na discussão analítica da sua própria política educativa pode ser de grande utilidade: quer na ponderação das medidas de política por objetivo e modalidade de intervenção (Rodrigues, 2010: 19-32), quer na restituição de cada medida através da sequência lógica: (i) análise do problema — (ii) desenho e definição das políticas (objetivo global, objetivos específicos, estratégia de intervenção) — (iii) metodologia e atores (atividades desenvolvidas, atores) — (iv) avaliação e resultados — (v) desafios futuros (por exemplo, Rodrigues, 2010: 55-72). Mas há outras formas possíveis de organizar a informação e análise; e todas têm de ser adaptadas a cada pesquisa.

Uma variável chave da política pública a que deve dar-se mais atenção é a relativa ao sistema de governança. Ele permite perceber melhor não só os jogos de atores e interlocutores como as condições de controlo sobre os recursos e de uso eficiente e eficaz deles, bem como as questões próprias de legitimidade e liderança política. A assunção da governança no processo da decisão implica a compreensão das relações entre os vários níveis do exercício de poder (público, privado e sociedade civil); e a consideração da complexidade dos processos de desenvolvimento nas suas dimensões (económica, social, cultural, ambiental e institucional) e nos seus níveis de ação (local, regional, nacional e transnacional) (OECD, 2005). A cooperação e o envolvimento dos atores — públicos, privados e associativos — situam-se em diversos patamares e numa geometria variável: cooperação vertical, entre o governo nacional e outras autoridades públicas, regionais ou locais; cooperação horizontal, das autoridades locais (municípios) entre si; cooperação com outros stakeholders, aos diversos níveis, pressupondo relacionamentos entre representantes públicos e atores privados (empresas, instituições sem fins lucrativos ou terceiro setor e cidadãos) (Greffe, 2005).

Um dos efeitos da perspetiva da governança reside na ligação das políticas culturais a outras políticas setoriais, como as políticas de regeneração e reabilitação urbana, as políticas sociais ou as intervenções de marketing urbano e territorial. Esta luz facilitará a interpretação das informações relativas a aspetos como a orgânica do município e dos seus equipamentos e agências; a distribuição do poder e das responsabilidades entre os intervenientes, bem como a relação entre a administração pública central e a administração pública local, ou entre esta e os privados; as rubricas e níveis de despesa, corrente e de capital, as suas fontes de financiamento e os beneficiários diretos e indiretos; os níveis de participação da população e dos agentes locais, públicos e privados, nos processos de formulação de opções de política, de tomada de decisão e da sua execução; assim como uma primeira leitura de indicadores de produto e resultado das políticas.

Não menorizamos a vertente discursiva da política cultural. Os discursos sobre as políticas devem interessar-nos a vários títulos: os discursos de todas as partes interessadas e, designadamente, dos eleitos locais (no poder ou na oposição, no executivo e na assembleia), bem como dos ativistas culturais (pessoas ou associações, em contexto profissional ou amador, no mercado ou em instituições públicas ou de terceiro setor, etc.) — já para não falar dos discursos dos investigadores, formadores e consultores em políticas culturais…; os discursos políticos e os discursos culturais sobre as políticas culturais; os discursos dirigidos para dentro e para fora (e de fora para dentro) do meio local; e por aí adiante, qualquer que seja o nível de estruturação e impacto de tais discursos. Apenas dizemos que, no estado atual da investigação, já não devemos reduzir a análise a este plano; e ele compreende-se melhor em interseção com os demais.

 

Análise de resultados

Considerando, por um lado, a complexidade das interações entre os sistemas presentes no contexto local e a política cultural municipal e, por outro lado, o tempo, imediato ou prolongado, de tais interações, a análise dos resultados das políticas culturais locais exige uma abordagem simultaneamente matricial e diacrónica.

Vale a pena distinguir dois grandes grupos de resultados: setoriais, relacionados com o sistema de recursos e atividades culturais; e globais, os que o extravasam, induzindo efeitos nos sistemas político, social e territorial, ou na dinâmica geral do desenvolvimento. Para além da separação entre resultados setoriais e globais, podemos ainda admitir diferentes gradações de resultados, consoante se trate de efeitos imediatos, que traduzem as mudanças diretamente efetivadas com a aplicação dos instrumentos de política adotados, ou de impactos, que representam mudanças de outras componentes não diretamente envolvidas na aplicação desses instrumentos.

Indiquemos, então, alguns dos parâmetros mais relevantes da análise dos resultados das políticas culturais.

O primeiro pode bem ser a conservação e valorização do património, tangível e intangível. Os indicadores hão de ser procurados nas estatísticas oficiais da cultura, que nos dão conta da frequência de visitantes por tipo de equipamento cultural; nas avaliações realizadas na última década em torno da aplicação de programas específicos de valorização e dinamização patrimonial; no recurso a inquéritos próprios aplicados no quadro da gestão dos equipamentos; nas monografias temáticas ou por equipamentos; ou, ainda, no contexto escolar, no interesse e abordagem do património e sua interligação com as diversas atividades educativas. É reconhecido que o Programa Operacional da Cultura (2000-2006) inaugurou uma nova sensibilidade face ao património e sítios culturais; mas é necessário um investimento mais intenso na realização de abordagens integradoras dos impactos da valorização patrimonial.

Um segundo parâmetro respeita à consolidação e desenvolvimento do meio artístico e cultural, assim como ao emprego associado. Ele permite-nos ter uma noção mais clara dos reais resultados da política e das possibilidades de intervenção dos diferentes atores. Requer a mobilização de procedimentos capazes de traçar a evolução do número e perfil de agentes culturais e artísticos locais. Com duas prevenções: por um lado, atender aos protagonistas privados e do terceiro setor; por outro, identificar os criadores e as entidades criativas emergentes, designadamente em meio urbano, as quais muitas vezes não possuem uma atividade formalizada, ou então exercem múltiplas atividades de cruzamento artístico, cultural, lúdico e turístico. Não basta, pois, olhar para os registos estatísticos e administrativos oficiais; é geralmente preciso empreender investigações próprias, e de caráter intensivo, procurando apreender e atualizar perfis de atividade (cf. ainda IQF, 2006a, 2006b).

A qualificação da oferta cultural local depende bastante da dinâmica de variáveis de composição da estrutura socioprofissional, tais como a geração e o género, a formação e a ocupação, os regimes de trabalho, o impacto das mudanças tecnológicas e organizacionais, ou o relacionamento entre agentes e entidades. As funções de intermediação e os mediadores (produtores, representantes, distribuidores, comunicadores, críticos, divulgadores…) são naturalmente centrais, quando se trata de observar a dinâmica de um meio cultural.

Um terceiro parâmetro refere-se à internacionalização: como é que a (eventual) circulação e apropriação internacional de projetos e obras tem impacto no desenvolvimento, reputação e visibilidade do meio cultural e artístico local? Neste âmbito, importa perceber a amplitude, os objetivos e as caraterísticas das procuras internacionais; os canais e conteúdos de projeção mediática de tecidos culturais locais; e os contextos, as oportunidades e os espaços de internacionalização.

Não se pode deixar de lado, evidentemente, as dinâmicas de consumo e fruição das obras e eventos culturais. Referimo-nos, em primeiro lugar, à dinâmica dos públicos, que tem sido objeto de vários estudos, desde a década de 1990. A informação existente é sobretudo de caráter quantitativo, recolhida sob a forma de inquéritos por questionário aplicados a conjuntos diversos e espacialmente variáveis de atores e contextos: cidades e redes de cidades, concelhos, equipamentos culturais, festivais e eventos, escolas, espaços de fruição musical e lúdica, galerias, ruas… Os dados permitem identificar os gostos e práticas culturais e artísticas, os seus tempos e espaços de realização, as lógicas de habituação e fidelização, as determinantes sociais das práticas e a sua organização segundo hierarquias de classificação e preferência.

Complementarmente, estudos mais qualitativos — ou ligando o quantitativo e o qualitativo — têm abordado “ambientes”, “atmosferas” e “cenas” criativas, nomeadamente no Porto e em Lisboa (cf. Guerra, 2010). Está em causa uma combinação de técnicas que vão do inquérito por questionário ao focus group, passando pela observação etnográfica, e o recurso a técnicas de tratamento como a análise de correspondências múltiplas ou a social network analysis; sendo o objetivo fundamental a identificação de padrões relacionais de gostos e fruições em quadros de interação concretos. Quer dizer, a perspetiva de uma cultura em ação, restituindo culturas urbanas, juvenis, ecléticas, locais e translocais (cf. Pais e Blass, 2004). Aliás, o marketing territorial vem estimulando a realização de estudos focados em segmentos específicos de fruição cultural, associados ou associáveis a “marcas” culturais; o que por sua vez ajuda ao desenho de estratégias de clusterização que agreguem segmentos da população, atividades e espaços, a fim de favorecer o jogo entre oferta e procura artística e cultural (Costa e Lopes, 2010).

Do lado da economia, a análise das políticas culturais considera um conjunto de variáveis macroeconómicas fundamentais, como são o emprego, o VAB, o PIB, as exportações, entre outras. Trata-se de uma matéria a que tem sido reconhecida, nas últimas décadas, grande pertinência e relevância estratégica por diferentes protagonistas do tecido político e institucional e pelos meios científicos e técnicos. Contudo, a projeção da avaliação para além dos resultados económicos diretos da atividade cultural enriquece-a, na medida em que os efeitos induzidos e os impactos da política cultural nas restantes componentes dos sistemas do contexto local geram igualmente valor económico. Neste caso, a análise pode incidir menos em dimensões quantitativas e mais em dimensões qualitativas, que traduzem os efeitos da política cultural em vários níveis: a competitividade local, baseada em fatores de diferenciação e atratividade; a inovação nos sistemas empresarial, tecnológico e organizacional, baseada na criatividade artística e cultural; ou a internacionalização dos territórios e das empresas, baseada em ativos, atributos e símbolos culturais.

Procuremos agora sinalizar pistas para a abordagem de resultados mais globalizantes das políticas culturais. Uma boa chave de integração pode ser a consciência de que a cultura, enquanto campo e objeto de intervenção política, representa um domínio de atividade humana em simbiose com o território (o lugar) em que se instala (cf. Pinto, 1994).

Assim, ao nível intraurbano, sublinham-se as articulações entre a salvaguarda e valorização do património e a reabilitação e regeneração urbana, bem como o papel que os artistas e agentes culturais em geral assumem nos processos de transformação e revitalização de áreas urbanas degradadas, obsoletas ou abandonadas. Por outro lado, destacam-se os processos de aglomeração e concentração urbana e espacial de base cultural (incluindo atividades culturais e atividades relacionadas, como a animação urbana, o entretenimento, a restauração e o alojamento turísticos), que configuram os já  referidos clusters, quarteirões, bairros e cenas culturais. Impõem-se ainda, como campo de análise espacial das políticas culturais, os resultados da participação dos criadores na configuração do desenho, morfologia e estrutura urbanas, e particularmente na arquitetura e na arte pública.

Ao nível interurbano e territorial, a análise dos resultados das políticas culturais incidirá particularmente nas interações entre espaços que dispõem da presença de capital cultural ou de dinâmicas artísticas e culturais significativas. São igualmente relevantes os efeitos ao nível da aglomeração e da concentração territorial de atividades culturais e conexas, formando os distritos e clusters culturais; bem como os efeitos nas dinâmicas de cooperação e intercâmbio entre diferentes centros urbanos, configurando redes de cidades de base cultural e redes de atores culturais e artísticos de diferentes cidades.

Por fim, a análise dos efeitos das políticas culturais em termos de desenvolvimento local deve integrar as diversas dimensões anteriormente enunciadas — a cultura, a educação, o tecido social, a economia, o território — com as esferas organizativas e institucionais. Sobressaem então os efeitos das políticas culturais sobre as condições de governação, do relacionamento entre os agentes públicos e privados e das práticas de colaboração, cooperação e associação em rede entre uns e outros. A consideração destes últimos efeitos requer a avaliação dos processos de planeamento e formulação de estratégias, dos processos de tomada de decisão, e dos processos de operacionalização e implementação de programas e projetos, de promoção pública e privada. É essencial escrutinar as formas e práticas de participação pública, procurando perceber também de que modo é que as políticas culturais têm contribuído para aumentar a capacidade de intervenção dos diversos grupos da população nas estruturas de governança local.

 

Conclusão

Os leitores acabaram de tomar contacto com o que não é mais do que um exercício de método. Parte de duas bases fundamentais e procura cumprir também dois propósitos centrais.

Uma base teórica: é uma defesa da combinação entre as perspetivas da economia e da sociologia da cultura. Como logo se viu, a aplicação dessa combinação a dinâmicas locais fez imediatamente surgir a importância de uma terceira perspetiva, a geográfica, centrada no território. E uma base empírica: o conhecimento acumulado em Portugal sobre as políticas culturais locais permite e pede um esforço de sistematização, capaz de propor linhas de investigação para futuras pesquisas: isto é, um modelo de análise daquelas políticas.

Um dos propósitos deste artigo é, pois, contribuir para a orientação metodológica — no sentido preciso da palavra, isto é, articulando teorias e técnicas a partir do “comando” das primeiras — de estudos de casos e outras investigações intensivas sobre as políticas culturais locais. Não se trata de propor um quadro fechado, mas sim um guião, a ser validado e aplicado em função dos condicionalismos e desenvolvimentos concretos de cada pesquisa. Procurámos aqui estender ao nível heurístico o “roteiro” específico que já foi defendido, num plano mais introdutório, para a análise dessas políticas (Silva, 2007).

A investigação não tem de circunscrever-se, entretanto, ao nível estritamente analítico. Ela pode integrar-se num processo mais geral de formação, realização e avaliação de políticas concretas, enriquecendo-o com as competências e saberes próprios de sociólogos, economistas, geógrafos e outros cientistas. Tal é o segundo propósito do nosso artigo: sugerir que um modelo de análise bem calibrado é um instrumento útil para o desenvolvimento da política pública.

Uma nota final. Concluída a leitura, perceber-se-á melhor o uso do adjetivo “locais” para designar as políticas de que tratámos. As políticas autárquicas constituem certamente uma sua componente principal. Por isso mesmo, o modelo sugere vivamente que se considere com minúcia a dimensão autárquica e o contexto e processo político-institucional que a materializa. Mas não fechemos a investigação nesse nível, por duas razões cumulativas. A primeira é que os atores realmente envolvidos nas políticas locais transcendem o plano autárquico — e a valorização específica das questões de governança, a que demos tanto realce, permite justamente compreendê-lo. A segunda razão é que os processos de desenho e implementação de polícias culturais territorializadas já hoje não estão circunscritos às fronteiras concelhias — e estarão cada vez menos no futuro. As aglomerações supramunicipais, as comunidades intermunicipais, as redes de equipamentos e atores de âmbito regional (ou de escala ainda mais larga) e tantas outras formas de parceria constituem campos de análise que não podem ser esquecidos — e para os quais o modelo heurístico aqui delineado pode ser útil.

Eis, pois, mais uma ferramenta disponível para investigadores interessados em estudos intensivos sobre políticas culturais. Como para qualquer outra ferramenta, o seu valor é instrumental. Esperemos que seja suficientemente plástica para poder ser usada eficientemente em várias aplicações.

 

Referências bibliográficas

Albuquerque, Luísa Arroz (2011), A Cultura como Categoria de Intervenção Pública no Tempo e no Território, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, tese de doutoramento.         [ Links ]

Babo, Elisa (2010a), Cultura e Desenvolvimento. Novos Desafios para as Políticas Municipais, Aveiro, Universidade de Aveiro, tese de mestrado.         [ Links ]

Babo, Elisa (2010b), “Da cultura à inovação: os desafios da nova economia”, Cadernos Sociedade e Trabalho, 14, pp. 53-66.         [ Links ]

Costa, Pedro (2008), “Creativity, innovation and territorial agglomeration in cultural activities: the roots of the creative city”, em Philip Cooke e Luciana Lazzeretti (orgs.), Creative Cities, Cultural Cluster and Local Economic Development, Cheltenham, Edward Elgar, pp. 183-210.         [ Links ]

Costa, Pedro; e Ricardo Lopes (2010), “Intrametropolitan location patterns of cultural services: the territoriality of the cultural cluster activities in Lisbon, Barcelona and São Paulo”, em XX International Conference of Reser (The Resilience of the Global Service Economy), Gotemburgo, Reser.         [ Links ]

Crozier, Michel,e Erhard Friedberg (1992 [1977]), L’Acteur et le Système. Les Contraintes de l’Action Collective, Paris, Editions du Seuil.         [ Links ]

Gomes, Rui Telmo, Vanda Lourenço, e Teresa Duarte Martinho (2006), Entidades Culturais e Artísticas em Portugal, Lisboa, Observatório das Atividades Culturais.         [ Links ]

Gomes, Rui Telmo, e Teresa Duarte Martinho (2012), Compendium. Cultural Policies and Trends in Europe. Country Profile: Portugal. Last Profile Update: June 2011, disponível em: http://www.culturalpolicies.net/down/portugal_062011.pdf.         [ Links ]

Greffe, Xavier (2005), “The instruments of good governance”, em Sylvain Giguère (org.), Local Governance and the Drivers of Growth, Paris, OECD.         [ Links ]

Guerra, Paula (2010), A Instável Leveza do Rock. Génese, Dinâmica e Consolidação do Rock Alternativo em Portugal, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, tese de doutoramento.         [ Links ]

Guerra, Paula (2013), A Instável Leveza do Rock. Génese, Dinâmica e Consolidação do Rock Alternativo em Portugal, Porto, Edições Afrontamento.         [ Links ]

IQF — Instituto para a Qualidade na Formação (2006a), O Sector de Actividades Artísticas, Culturais e de Espectáculo em Portugal, Lisboa, Quaternaire Portugal.         [ Links ]

IQF — Instituto para a Qualidade na Formação (2006b), A Indústria de Conteúdos em Portugal, Lisboa, Quaternaire Portugal.         [ Links ]

Kebir, Leila, e Olivier Crevoisier (2008), “Cultural resources and regional development: the case of the cultural legacy of watchmaking”, em Philip Cooke, e Luciana Lazzeretti (orgs.), Creative Cities, Cultural Cluster and Local Economic Development, Cheltenham, Edward Elgar, pp. 48-69.         [ Links ]

Montgomery, John (2003), “Cultural quarters as mechanisms for urban regeneration. Part 1: conceptualising cultural quarters”, Planning, Practice & Research, 18 (4), pp. 293-306.         [ Links ]

Mozzicafreddo, Juan, et al. (1990), “O grau zero do poder local”, em AAVV, A Sociologia e a Sociedade Portuguesa na Viragem do Século, vol. II, Lisboa, Associação Portuguesa de Sociologia / Editorial Fragmentos, pp. 613-625.         [ Links ]

Neves, José Soares (2005a), Despesas dos Municípios com Cultura (1986-2003), Lisboa, Observatório das Atividades Culturais.         [ Links ]

Neves, José Soares (org.) (2005b), O Panorama Museológico em Portugal (2000-2003). An Overview of Museums in Portugal (2000-2003), Lisboa, Observatório das Atividades Culturais.         [ Links ]

Neves, José Soares (coord.) (2012), Estatísticas Culturais do Ministério da Cultura, Lisboa, Gabinete de Estratégia, Planeamento e Avaliação Culturais / Observatório das Atividades Culturais.         [ Links ]

OECD (2005), Building Competitive Regions. Strategies and Governance, Paris, Organisation for Economic Cooperation and Development.         [ Links ]

Pais, José Machado, e Leila Blass (coords.) (2004), Tribos Urbanas. Produção Artística de Identidades, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais.         [ Links ]

Pinto, José Madureira (1994), “Uma reflexão sobre políticas culturais”, em AA. VV., Dinâmicas Culturais, Cidadania e Desenvolvimento Local, Lisboa, Associação Portuguesa de Sociologia, pp. 767-792.         [ Links ]

Putnam, Robert D. (1993), “The prosperous community: social capital and public life”, The American Prospect, 13, pp. 35-42.         [ Links ]

Rodrigues, Maria de Lurdes (2010), A Escola Pública Pode Fazer a Diferença, Coimbra, Edições Almedina.         [ Links ]

Ruivo, Fernando (2000), Um Estado Labiríntico. O Poder Relacional nas Relações entre Poderes Central e Local em Portugal, Porto, Edições Afrontamento.         [ Links ]

Santos, Maria de Lourdes Lima dos (coord.) (1998), As Políticas Culturais em Portugal. Relatório Nacional, Lisboa, Observatório das Atividades Culturais.         [ Links ]

Silva, Augusto Santos (2007), “Como abordar as políticas culturais autárquicas? Uma hipótese de roteiro”, Sociologia, Problemas e Práticas, 54, pp. 11-33.         [ Links ]

Silva, Augusto Santos, Elisa Pérez Babo, e Paula Guerra (2013), “Cultural policies and local development: the Portuguese case”, Portuguese Journal of Social Science, 12 (2), pp. 113-131.         [ Links ]

Throsby, David (2008), “The concentric circles model of the cultural industries”, Cultural Trends, 17 (3), pp. 147-164.         [ Links ]

Throsby, David (2010), The Economics of Cultural Policy, Cambridge, Cambridge University Press.         [ Links ]

 

Receção: 26 de abril de 2014 Aprovação: 27 de junho de 2014

 

Notas

[1] Referimo-nos a exemplos como os do Quadrilátero Urbano—Braga, Barcelos, Famalicão e Guimarães; da Artemrede—Teatros Associados; e da Rede de Programação Cultural—5 Sentidos.

Creative Commons License Todo el contenido de esta revista, excepto dónde está identificado, está bajo una Licencia Creative Commons