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Sociologia, Problemas e Práticas

versão impressa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.77 Lisboa jan. 2015

https://doi.org/10.7458/SPP2015773293 

ARTIGO ORIGINAL

Deficiência e inclusão social: os percursos da lesão medular em Portugal

Disability and social inclusion: the paths of medullary injury in Portugal

Handicap et insertion sociale: les parcours de la lésion médullaire au Portugal

Deficiencia e inclusión social: los recorridos de la lesión medular en Portugal

 

Fernando Fontes* e Bruno Sena Martins**

* Investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Colégio de S. Jerónimo, Largo D. Dinis, Apartado 3087, 3000-995 Coimbra, Portugal. E-mail: fer_fontes2003@yahoo.co.uk

** Investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Colégio de S. Jerónimo, Largo D. Dinis, Apartado 3087, 3000-995 Coimbra, Portugal. Coordenador do Núcleo de Democracia, Cidadania e Direito (DECIDe). Coordenador executivo do Programa de Doutoramento “Human Rights in Contemporary Societies”. E-mail: bsenamartins@gmail.com

 

RESUMO

O presento artigo procura contribuir para um questionamento cultural e sociopolítico da deficiência, através de uma análise dos percursos biográficos de pessoas que viram as suas vidas marcadas por uma lesão medular. Partindo de uma extensiva recolha de testemunhos de pessoas com lesão medular em diferentes momentos dos seus processos de reabilitação, procura-se compor um retrato que mapeie alguns dos desafios centrais que se colocam à sua inclusão social. Assim, através de uma análise que convoca, igualmente, as perspetivas dos atores institucionais e das famílias, procura-se refletir sobre o modo como os percursos dos lesionados medulares refletem a situação de exclusão social amplamente vivida pelas pessoas com deficiência em Portugal.

Palavras-chave deficiência, inclusão social, lesão medular, reabilitação, Portugal.

 

ABSTRACT

This article problematizes the cultural and socio-political positioning of disability through the analyses of the lives of people with spinal cord injuries. Their personal testimonies, collected at different stages of the rehabilitation process, are used to map some of the challenges faced by this group of people in the social inclusion process. This analysis is then complemented with the perspectives of the organizations working in the field and of family members, in order to explore the similarities between the lives of people with spinal cord injuries and the general situation of social exclusion lived by most disabled people in Portugal.

Keywords disability, social inclusion, spinal cord injury, rehabilitation, Portugal.

 

RÉSUMÉ

Cet article a pour objectif de contribuer à une réflexion culturelle et sociopolitique sur le handicap, au travers d’une analyse des parcours de personnes qui ont vu leurs vies basculer à cause d’une lésion médullaire. En partant d’un grand nombre de témoignages de personnes atteintes d’une lésion médullaire, à différents moments de leurs processus de rééducation, l’article essaye de dresser la liste de certains défis majeurs qui se posent à leur insertion sociale. Une analyse qui convoque également les points de vue des acteurs institutionnels et des familles permet aussi de déterminer à quel point les parcours des personnes atteintes de lésions médullaires reflètent la situation d’exclusion sociale que connaissent la plupart des personnes handicapées au Portugal.

Mots-clés handicap, insertion sociale, lésion médullaire, réhabilitation, Portugal.

 

RESUMEN

El presento artículo procura contribuir para un cuestionamiento cultural y sociopolítico de la deficiencia através de un análisis de las trayectorias biográficas de las personas que vieron  sus vidas marcadas por una lesión medular. Partiendo de una extensiva colecta de testimonios de personas con lesión medular en diferentes momentos de sus procesos de rehabilitación, se procura componer un retrato que señale algunos de los desafios centrales a su inclusión social. Así, através de un análisis que convoca, igualmente, las perspectivas de los actores institucionales y de las familias, se procura reflexionar sobre el modo como las trayectorias de los lesionados medulares reflejan la situación de exclusión social ampliamente vivida por las personas con alguna deficiencia en Portugal.

Palabras-clave deficiência,  inclusión social, lesión medular, rehabilitación, Portugal.

 

Introdução

As pessoas com deficiência vivem na sociedade portuguesa numa flagrante situação de exclusão e num contexto social opressivo das suas especificidades.[1] Apesar de sucessivas propostas legislativas e do continuado desenho de políticas sociais, elaboradas no propalado desígnio de conduzir a uma inclusão social deste grupo particularmente vulnerável, a realidade social vem dando prova de uma tenaz perpetuação deste quadro excludente (Martins 2006; Veiga, 2007; Fontes, 2009; Portugal et al., 2010). Esta situação reflete-se nas próprias ciências sociais (Martins et al., 2012). Não obstante o seu investimento analítico nas questões da desigualdade social, a questão da deficiência vem sendo uma vertente de análise sistematicamente negligenciada (Barnes e Mercer, 2003; Davis, 2002).

Em termos conceptuais, a deficiência constitui uma categoria eminentemente moderna, estabelecida enquanto uma exterioridade do modelo biomédico de saúde e normalidade corporal. Daqui decorreu a consagração de um percurso de adequação à normalidade das ditas pessoas com deficiência, numa abordagem medicalizada que, na maior parte das vezes, situa de forma estreita os problemas evocados pela deficiência no corpo, que é também a sede de saúde ou doença. Trata-se de uma abordagem que, no essencial, aceita a norma, aceita a deficiência como um desafio individual, preservando intactas as margens da sociedade (Striker, 1999: 135, 142). Portanto, não colocando em causa intervenções inteiramente apropriadas das práticas médicas, como o diagnóstico, a estabilização da condição clínica, e a recuperação funcional, haverá que procurar analisar como podem ser profundas e negativas as consequências das classificações médicas (Oliver, 1990: 48, 49). Sobretudo porque uma tal abordagem consagra perspetivas e práticas individualizadoras em que “o efeito da medicalização dos problemas sociais é a sua despolitização” (Barnes, Mercer e Shakespeare, 1999: 60).

O questionamento da naturalização da exclusão social a que as pessoas com deficiência são sujeitas nas sociedades ocidentais só tem lugar a partir dos anos 1970, com o desenvolvimento dos Estudos da Deficiência (Disability Sudies). Esta nova área de estudos, sedimentada em países como o Reino Unido ou os EUA, é subsidiária da politização surgida nos anos 1960 e 1970 em torno da deficiência nestes mesmos países (Oliver, 1996; Hanh, 2002). A sua politização deveu-se sobretudo ao ambiente de efervescência política e à emergência dos ditos novos movimentos sociais. A luta política passou então a estar mais sensível às relações de poder que estão presentes na vida quotidiana, ao efeito das representações culturais e às políticas do corpo, criando-se, com esta mudança, um inédito espaço de enunciação para a experiência de exclusão vivida pelas pessoas com deficiência. Assim, nos anos 1970, um pouco por todo o mundo, viriam a criar-se e a reformular-se estruturas organizativas que estabeleceram como propósito central, por vezes único, a visibilização do estigma (Goffman, 1963) e das múltiplas formas de opressão a que as pessoas com deficiência estão sujeitas. Essa crítica social veio também contestar as lógicas que ao longo de séculos vincaram o protagonismo exclusivo das organizações para pessoas com deficiência. Tal contestação, com maior expressão nos países centrais do sistema-mundo, viria a nutrir, tanto quanto a articular-se, com o reconhecimento académico da situação estrutural de opressão vivida pelas pessoas com deficiência: valores culturais paternalistas, barreiras arquitetónicas de comunicação e transporte, ausência ou inadequação de apoio no sistema regular de ensino, critérios excludentes no acesso ao ensino superior e ao emprego, entre outros. A partir de diferentes aflorações políticas, como o Independent Living Movement nos Estados Unidos (cf. Albrecht, 2002; Hahn, 2002) ou o Social Model no contexto britânico (cf. Oliver, 1990, 1996), surge um corpo teórico que cresce lado a lado com este novo movimento social (Barnes, Oliver e Barton, 2002).

 

Abordagens da deficiência: modelos e perspetivas

O desenvolvimento da medicina moderna produziu mudanças significativas no entendimento social da saúde e da doença e na forma como a sociedade lida com elas. Em resultado, assistimos ao desenvolvimento de um diagnóstico médico cientificamente alicerçado que apresenta a “cura” como principal objetivo; assistimos à consolidação de um ramo de conhecimento com o poder de “determinar as fronteiras entre o que são pessoas ‘normais’ e ‘anormais’, mentalmente ‘sãs’ ou não, saudáveis e doentes” (Barnes e Mercer, 2010: 18); assistimos à individualização e à medicalização da deficiência (Stone, 1984; Oliver, 1990); assistimos à institucionalização e à segregação das pessoas com deficiência (Finkelstein, 1980; Goffman, 1987; Hughes, 2001); e assistimos à hegemonização do modelo médico da normalidade face à deficiência (Davis, 1995).

De acordo com este modelo, que se centra nas ideias de normalidade e numa apetência estandardizada para o trabalho, as barreiras e limitações enfrentadas pelas pessoas com deficiência derivam diretamente das suas incapacidades funcionais, reais ou imputadas. Em resultado, as pessoas com deficiência são convertidas em seres humanos não válidos, dependentes e passivos, para os quais a única solução passa pela sua adaptação às condições do meio que os rodeia. Esta tarefa só é possível através de uma intervenção médica e/ou reabilitacional no sentido de produzir a “cura” ou a sua adaptação. A reabilitação pode ser assim entendida como um instrumento de transformação dos corpos e das mentes das pessoas com deficiência, com vista à sua “normalização” e à superação das suas limitações físicas (Oliver, 1990).

O desagrilhoamento das pessoas com deficiência face a uma ótica centrada exclusivamente nas suas limitações funcionais individuais em favor de uma perspetiva que, ao invés, visibilize o modo como as suas possibilidades se encontram reféns das formas excludentes de organização social (Oliver, 1990; Corker e French, 1999) foi formulado pela emergência da mobilização política das pessoas com deficiência e a formulação de uma abordagem social da deficiência. Uma das primeiras organizações no Reino Unido a questionar a naturalização da deficiência foi a Union of the Physically Impaired Against Segregation (UPIAS), criada em 1972 por dissidentes de outras organizações de pessoas com deficiência, ao defender que é a sociedade que incapacita (disables) as pessoas que designa como deficientes.

A UPIAS procurava superar as conceções que vinham alimentando a ideia de que a central reivindicação das pessoas deficientes deveria ser a demanda de melhores pensões sociais. Ao invés, esta organização colocou no primeiro plano a necessidade de se transformarem, quer as conceções dominantes detidas em torno das pessoas com deficiência, quer a organização social que excluía as pessoas deficientes da sociedade, remetendo-as à experiência da segregação e pobreza (UPIAS, 1976).

A emergência de conceções politizadas da deficiência veio assim denunciar o “modelo individual/médico da deficiência”, cuja vigência se reconhecia como hegemónica nas sociedades ocidentais. É precisamente esta dimensão social que urge ser evocada na compreensão das vidas das pessoas que sofreram lesões medulares, tanto mais que a literatura neste âmbito invariavelmente se restringe às questões médicas e à reabilitação médica individual num sentido estrito (e.g. Somers, 2001; Klein e Karp (orgs.), 2004).

O desenvolvimento médico operado após a Segunda Guerra Mundial ao nível dos tratamentos, com a generalização do uso dos antibióticos, da anestesia, antissepsia, sulfatos, etc., permitiu reduzir drasticamente a elevada taxa de mortalidade dos lesionados medulares. Os avanços médicos, o aumento da esperança de vida dos lesionados medulares e o elevado número destes, resultantes tanto da Primeira como da Segunda Guerra Mundial, transformaram a lesão medular num problema social a que é necessário dar resposta; em resultado disso começam a surgir os primeiros centros de reabilitação. Em Portugal a criação de instituições dirigidas à reabilitação especializada de pessoas com lesão medular surge apenas nos anos 1960 com a criação do Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão. Se em Portugal as estruturas que definem mais cabalmente as respostas médicas surgem tardiamente, a resposta ao desafio da inclusão social é, ainda hoje, muito incipiente.

Partindo das histórias de vida das pessoas com lesão medular, este artigo propõe-se apresentar uma exploração analítica dos seus percursos biográficos e, simultaneamente, das respostas institucionais e sociais oferecidas. Ao longo do trabalho empírico de que este texto dá conta, realizaram-se 93 entrevistas semiestruturadas: 28 entrevistas a pessoas com lesão medular em reabilitação inicial, 22 entrevistas a profissionais e quadros gerentes dos três centros de reabilitação, 29 entrevistas com pessoas com lesão medular nas suas comunidades, distribuídas pelas diferentes regiões do país, e 14 entrevistas com as redes de apoio (familiares e institucionais) na comunidade.

 Na primeira parte do artigo analisaremos as respostas institucionais colocadas à disposição das pessoas com lesão medular ao longo de todo o processo de reabilitação. Na segunda parte analisaremos as vivências pessoais deste percurso e as respostas dos entrevistados face à existente rede institucional e ao seu funcionamento.

 

Os percursos institucionais das pessoas com lesão medular

O percurso terapêutico das pessoas com uma lesão medular traumática passa por várias fases.[2] Em termos esquemáticos e como podemos observar na figura 1, este processo inicia-se ainda no local do acidente através de uma intervenção dos serviços de socorro.

 

 

A esta fase inicial segue-se uma segunda fase, de internamento hospitalar, inicialmente no hospital distrital da zona onde são prestados os primeiros cuidados e, após a confirmação da lesão medular, o utente é transferido para um hospital que disponha de urgências polivalentes dotadas de serviço de neurotraumatologia, a fim de ser submetido a uma operação à coluna vertebral e às outras estruturas lesionadas. Em algumas situações, identificadas à partida como mais graves, a pessoa é transportada diretamente do lugar do acidente para as urgências polivalentes. Findo o período de recuperação pós-operatória e estabilização fisiológica, as pessoas com lesão medular são transferidas para outras unidades (como os hospitais distritais, unidades de cuidados continuados e, mais raramente, para casa) onde aguardam vaga para o centro de reabilitação médica inicial para pessoas com lesão medular.

No que diz respeito a esta resposta institucional, a análise das entrevistas, tanto a profissionais como com a pessoas com lesão medular, revela uma melhoria significativa no atendimento das equipas de emergência médica nos últimos dez anos. Tal como pudemos apurar, esta melhoria do serviço prestado fica sobretudo a dever-se a uma maior e melhor formação das equipas de socorro. O mesmo não se pode afirmar face ao período de internamento hospitalar. Como a grande maioria dos nossos entrevistados relata, esta fase de internamento hospitalar caracteriza-se por frequentes transferências entre hospitais e pela falta de informação das pessoas com lesão medular seja acerca do seu estado clínico seja sobre as razões que estão na base dessas transferências hospitalares. De igual modo, são identificadas falhas no período de transição entre as unidades hospitalares e os centros de reabilitação. Conforme pudemos perceber, idealmente, para assegurar um atendimento adequado da pessoa com lesão medular, a passagem da posição deitada para a cadeira de rodas deve ser feita numa unidade de convalescença da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (RNCCI). No entanto, na prática, por falta de cobertura de camas na RNCCI, esta passagem é feita precocemente nos hospitais gerais, onde frequentemente inexiste preparação adequada para tal etapa, ou tardiamente nos Centros de Reabilitação, o que implica o aumento do período de permanência nestes centros, a ocupação de tempo que deveria ser dedicado à reabilitação médica propriamente dita e, logo, o escusado agravamento do tempo de espera na entrada para estes serviços.

Os centros de reabilitação médica inicial

Em Portugal existem atualmente três centros de reabilitação especializados na área da lesão medular: o Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão (criado em 1966), o Centro de Medicina de Reabilitação da Região Centro (CMRRC) — Rovisco Pais (cujo serviço de lesão medular foi criado em 2007), e o Centro de Medicina Física e Reabilitação do Sul, em São Brás de Alportel (criado em 2007). Está ainda prevista a abertura do Centro de Reabilitação do Norte, em Gaia, cuja inauguração tem sido sucessivamente adiada.

Como a nossa análise revelou, a realidade dos centros de reabilitação a este nível é muito díspar, apresentando o CMRRC — Rovisco Pais as mais longas listas de espera para entrada no serviço de reabilitação. Entre as várias razões justificativas desta situação é de salientar o facto de este centro de reabilitação abranger toda a população das zonas Centro e Norte do país e de se tratar do único centro a nível nacional totalmente integrado no Ministério da Saúde. Esta situação é particularmente penalizadora se tivermos em conta que quanto maior o tempo de espera menor é o potencial de reabilitação médica. Trata-se de um quadro extensível à realidade nacional no que concerne à lesão medular. As palavras do diretor do Serviço de Lesionados Vértebro-Medulares do CMRRC — Rovisco Pais, são disso ilustrativas:

Nós, neste momento [2012], como sabe, temos três centros de reabilitação em Portugal, só o nosso, digamos, faz parte do Sistema Nacional de Saúde como entidade pública pura, portanto nós temos obrigação, embora seja o Centro de Reabilitação da Região Centro, originalmente, vocacionado só para os distritos da ARS do Centro, nós neste momento recebemos doentes de todo o país. Como calcula, 30 camas para todo o país é muito pouco. Nós, neste momento [2012], temos, à espera de um primeiro internamento no nosso centro, 22 doentes, e à espera de reinternamento mais de 30, portanto eu, neste momento, tenho uma lista de espera com mais de 52 doentes para internar, isto em termos temporais, dado que são internamentos sempre prolongados, acarreta que um doente quando cá chega, digamos, já muitas das vezes passou o tempo que nós chamamos minimamente adequado para iniciar o seu processo de reabilitação mas, infelizmente, é a realidade que temos. [E isso dá-se, portanto, pela exiguidade? Pela falta de camas?] Exiguidade, falta de camas. Nós temos 30 com mais 5 moradias adaptadas, portanto o máximo 35 doentes. Sabendo que um doente tetraplégico demora, em média, em termos de processo de reabilitação, como deve ser, entre cinco a oito meses, podendo estender-se até um ano, que um doente paraplégico demora, no mínimo dos mínimos, entre dois e quatro meses, como ambos são internamentos prolongados e estão sempre a surgir novos casos e, neste momento, não conseguimos dar resposta em tempo útil, em tempo útil não diria, portanto em tempo idealmente indicado para conseguir internar o doente. [Médico]

O reduzido número de centros de reabilitação existentes em Portugal, o seu vasto raio geográfico de intervenção e a distância entre as unidades de saúde e as comunidades de origem dos utentes constituem uma significativa barreira ao envolvimento das famílias no processo de recuperação e reabilitação.

Claro que, vir para cá, nos primeiros tempos, a gente foge da beira de quem gostamos, vimos para um isolamento, um isolamento das pessoas a quem estávamos habituados. É a troca de pessoal, é a troca de enfermeiros, é a troca de auxiliares, o ambiente é totalmente diferente, depois temos sempre a falta dos familiares, não é? Nós quando estamos perto de casa temos sempre esse agrado. E aqui, não; aqui é nos fins de semana, e nem todos… Acaba por ser um bocado longe das habitações — em relação a mim falo, há pessoas, se calhar, de mais perto e com mais facilidades de se deslocar cá. [Jorge,[3] lesionado medular]

Os centros de reabilitação constituem, todavia, o único espaço institucional devidamente preparado para atender as especificidades da lesão medular, algo que se torna ainda mais patente face à realidade que se segue. Após a alta do centro de reabilitação, a pessoa com lesão medular regressa ao seu domicílio, onde poderá recorrer aos serviços locais de apoio domiciliário ou, por razões médicas e/ou sociais, é reencaminhada para uma Unidade de Longa Duração e Manutenção da Rede de Nacional de Cuidados Continuados Integrados, ou mesmo para um lar.

O regresso a casa

Na grande maioria dos casos, nem os centros de saúde, nem os serviços de apoio domiciliário prestados pela rede social de apoio à deficiência, nem os hospitais gerais dispõem de especialistas em lesões vértebro-medulares. Mesmo nos espaços institucionais onde existem estes especialistas, como no caso dos hospitais com unidades de urgência polivalente e das unidades de cuidados continuados de convalescença, verifica-se a ausência de unidades especiais que abordem a lesão medular na amplitude das suas implicações. Esta situação é particularmente aguda ao nível dos serviços da comunidade. As respostas institucionais para pessoas com lesão medular, aquando do regresso à comunidade, são mínimas, tanto no que se refere à qualidade como à cobertura de serviços e estruturas de apoio existentes, tal como demonstraram as diferentes entrevistas, realizadas a profissionais de saúde, a pessoas com lesão medular e a organizações da sociedade civil. Um tal cenário coloca em risco muito do trabalho de capacitação desenvolvido nos centros de reabilitação. Além das questões que se prendem com os retrocessos ao nível dos ganhos funcionais, cabe considerar as complicações de saúde (úlceras de pressão, infeções urinárias, etc.) que frequentemente resultam de lacunas nas estruturas de apoio fora dos centros de reabilitação:

 […] porque entretanto também havia umas feridas, lá está, por falta de cuidado. Porque apesar de eu ser posicionado algumas vezes eles não estão preparados para receber doentes como nós. Por exemplo, eu já fui algumas vezes internado, depois disso em outros serviços no Hospital São João e eles não estão minimamente preparados para doentes com lesão medular que sejam dependentes para levantar, para deitar, para virar. Que tenham de ser posicionados, que precisem dum colchão especial, não estão minimamente preparados para isso. Pelo menos não estavam há uns tempos atrás. [João, lesionado medular]

Nos casos mais graves — os dos tetraplégicos com lesões muito altas e com a necessidade de apoio médico complexo — a alta do centro de reabilitação pode significar uma esperança de vida contada em meses.

Os serviços de apoio domiciliário, por melhor se adequarem às necessidades quotidianas das pessoas com lesão medular, são uma instância chave no processo de reinserção na comunidade. A carência de serviços de apoio constitui, todavia, um forte obstáculo à autonomização da vida das pessoas com lesão medular em Portugal, que quase invariavelmente acabam por ter de recorrer à ajuda familiar. Esta realidade coloca a maioria dos lesionados medulares numa situação de dependência face à família, reforçando e naturalizando a imagem das pessoas com deficiência como dependentes e incapazes de gerir as suas vidas e, desta forma, condicionando o processo de reconstrução identitária.

Tal como acontece noutros setores populacionais, também no caso da maioria das pessoas com lesão medular, a diminuição da responsabilidade estatal tem sido compensada por um aumento da responsabilidade familiar. Não obstante os alertas de exaustão das famílias (Wall et al., 2001; Damas et al., 2002), continuam a ser estas o crucial suporte económico, psicológico e social das pessoas com lesão medular (Henriques, 2004: 137). Como relata um dos nossos entrevistados:

A ajuda da mulher e isso. Para mim acho que a minha maior ajuda… foi impecável, esteve sempre ao meu lado, sempre, sempre. Eu estive seis meses hospitalizado e ela nunca me faltou um dia, e a fazer 80 quilómetros todos os dias para um lado e para o outro. Cento e sessenta quilómetros todos os dias, 80 para cada lado… de stresse… nunca me faltou um dia… seis meses… É preciso ter coragem e eu olhar para ela é de não perder assim a fé… que a pessoa estar a lutar e a outra pessoa a baixar assim não está a sofrer só, está a fazer a outra pessoa sofrer. Além do que ela sofreu… [Luís, lesionado medular]

Como o relato anterior deixa antever, dentro da família, o papel de mulher-cuidadora — sobretudo a mãe e a esposa — emerge como um lugar-comum (facto tão mais saliente na análise em apreço dado que a prevalência de lesões medulares é muito superior nos homens). Na linha da divisão de trabalho que acontece na sociedade portuguesa, em que as mulheres são o esteio da “sociedade providência” (Santos, 1993; Portugal, 2008), são as mães ou as esposas que muitas vezes abdicam das suas carreiras profissionais para cuidar do familiar com lesão medular ou que acumulam esta prestação de cuidados pessoais com a sua atividade profissional. Neste quadro há uma tendência, mesmo que temporária, para que um dos membros da família, habitualmente a mulher, transforme radicalmente a sua vida pessoal para passar a viver em função da pessoa com lesão medular. Nestas situações, as relações familiares passam a estruturar-se em torno dos papéis de cuidador e de recetor de cuidados, atuando os restantes membros da família em conformidade com este núcleo central. Esta delegação de responsabilidades estatais tem, portanto, duas consequências centrais. Em primeiro lugar, um assinalável esforço da parte da estrutura familiar, que frequentemente acarreta situações de exaustão e de tensão interpessoal; por outro lado, quando esta estrutura não existe, o lesionado medular enfrenta gravosas situações de desamparo ou a “alternativa” da institucionalização (que muitas vezes tem por destino instituições — como lares de idosos — inteiramente desadequadas, seja para as especificidades do cuidado, seja para a idade dos lesionados). Em segundo lugar, reitera-se um quadro de menorização da pessoa com deficiência que, constituída como sujeito passivo e dependente, se vê despojada de uma relação de cuidado capaz de lhe conferir autonomia de decisão e controlo sobre a sua vida.

Como foi referido, nos casos em que o regresso ao domicílio não é uma opção viável por razões médicas e/ou sociais, as soluções existentes em Portugal são limitadas e resumem-se aos lares e às unidades de cuidados de curta, média ou longa duração. Tal como acontece no acesso aos serviços e às prestações sociais, também aqui o acesso não é garantido, estando dependente de vagas, totalmente inexistentes em algumas zonas do território nacional. Por outro lado, não são raras as situações de pessoas jovens que se veem na insólita situação de serem colocadas num lar de idosos. Isto mesmo nos explicava uma assistente social de um dos centros de reabilitação:

[…] são as situações mais graves e que para nós são desafios muito grandes porque a maior parte das respostas, em termos sociais, não se adequam a esta população. Porquê? Porque é uma população normalmente jovem que não é, quanto a mim, não é legítimo da nossa parte querer encaminhá-los para um lar de idosos e por vezes é a única possibilidade que nós temos […] Existem já alguns centros residenciais para pessoas com alguma dependência, mas são mesmo muito, muito, muito insuficientes. É impossível dar resposta… Mesmo os lares… Não há respostas suficientes, porque o número de vagas é sempre muito inferior à necessidade das pessoas, então os centros residenciais […] Também há as unidades de cuidados continuados, ao nível dos cuidados de tipologia da longa duração. Agora o utente precisa de ter critérios clínicos para integrar as unidades, não basta ser uma situação social. O que nos causa grandes constrangimentos. Por isso, por vezes, temos aqui os utentes bastante tempo sem a alta social. [Assistente social]

Uma das consequências mais marcantes da lesão medular é a perda de mobilidade e/ou sensibilidade ao nível dos membros inferiores e a necessidade de utilização de uma cadeira de rodas por parte dos lesionados medulares. Dada a falta de acessibilidades de grande parte do ambiente construído em Portugal, o momento de alta hospitalar ou do centro de reabilitação levanta também a questão da adequação da habitação familiar às novas necessidades da pessoa com lesão medular e das acessibilidades na comunidade para permitir a mobilidade em cadeira de rodas. Tal como pudemos apurar, estas adaptações no espaço doméstico são mais facilitadas no caso de o lesionado medular estar coberto por uma companhia de seguros, uma vez que são, na indeminização paga em resultado do acidente, alocadas verbas para a remodelação da habitação. Já no caso das pessoas com lesão medular dependentes do sistema nacional de saúde e do serviço de segurança social, dada a morosidade e a dificuldade em obter estes apoios, a execução de adaptações fica dependente do esforço financeiro da família. Como tem sido assinalado, o estado-providência português caracteriza-se precisamente pela existência de diferentes regimes de segurança, com graus distintos de generosidade, e pelo fraco nível de proteção social dos grupos economicamente mais desfavorecidos (Santos, 1999; Andreotti et al., 2001; Hespanha, 2001). No caso das pessoas com lesão medular sob exclusiva proteção do regime geral de segurança social, esta situação é vivenciada não só através do baixo valor e do caráter não universal das prestações sociais, mas também através da maior dificuldade no acesso a serviços de reabilitação, a cuidados de saúde, a acompanhamento médico, a ajudas técnicas e a outros elementos facilitadores da sua inclusão. O acesso a determinados serviços essenciais no processo de inclusão na comunidade — onde se incluem serviços apoio domiciliário, serviços de fisioterapia e enfermagem, remodelações de modo a tornar a habitação acessível ou mesmo vagas nas unidades de cuidados continuados — são extremamente morosos, obrigando a contínuas e insistentes diligências junto das diferentes entidades. Assim, a título ilustrativo, das 27 pessoas com lesão medular entrevistadas, já residentes na comunidade, em 19 casos as habitações sofreram obras de adaptação ou houve necessidade de mudar de habitação, mas em apenas dois casos existiu algum apoio direto da segurança social. Neste processo, assumem especial relevância as juntas de freguesia, que em muitos dos casos oferecem os materiais — e por vezes a mão de obra — para estas obras de adaptação.

Na grande maioria dos casos a adaptação do espaço doméstico às necessidades da pessoa com lesão medular é uma realidade aquando da alta do centro de reabilitação. O mesmo não acontece relativamente ao período de espera entre a alta hospitalar e a entrada para o centro de reabilitação. Este período é, assim, marcado por contrariedades acrescidas, que refletem o quão pouco acessível é a esmagadora percentagem do espaço edificado em Portugal:

E os meus pais explicavam ao diretor do hospital e aos enfermeiros: que eu não morava numa casa adaptada; eu morava num apartamento, num primeiro andar, só de escadas; não havia condições para eu voltar para casa. E os meus pais, como sempre, muito boas pessoas, estavam a fazer de tudo para mudar o mais rápido possível… Por isso é que o meu processo de alta do hospital de Coimbra, depois de restabelecida, demorou um pouco. Porque eles explicavam a situação de que eu não tinha ainda casa. E lá eles eram acessíveis: “Então a gente vai deixar ela aqui, até ela conseguir ir para Alcoitão.” E tentavam, o mais depressa possível, arranjar-me vaga para Alcoitão. E lá, com a assistente social, pressionando, e depois a gente tentava falar — eu não, que estava no hospital, mas os meus pais e amigos estavam sempre a fazer telefonemas, a pressionar… Então, foi um processo um pouquinho demorado, para conseguir a minha entrada em Alcoitão, foi… Mas entrei; sei lá, passados oito meses, mais ou menos, do acidente, consegui. […] E, enquanto eu estava lá, os meus pais trataram da mudança. Arranjaram um apartamento à pressa, alugado; nós fomos para lá morar, realmente, também não havia grandes acessos; mas era o que, na altura, as possibilidades financeiras permitiam [Ana, lesionada medular]

As dificuldades deste período de transição entre o hospital e o centro de reabilitação devem-se, nesta fase, não só às condições físicas dos lesionados medulares — na maior parte dos casos não foi feito o levante e a passagem para a cadeira de rodas — mas também à existência de barreiras físicas, seja na habitação seja no espaço público. Estes fatores fazem com que as pessoas com lesão medular fiquem muitas vezes confinadas ao espaço do seu quarto, que seja prolongado o período de internamento hospitalar, como o relato acima exemplifica, ou que sejam, noutros casos, internadas em clínicas privadas enquanto aguardam vaga para entrada no centro de reabilitação.

Nos diferentes momentos da relação entre as respostas institucionais e a vida pessoal, a análise do percurso das pessoas com lesão medular demonstra a carência e inadequação de respostas que maximizem a sua reabilitação e que agilizem o processo de inserção na comunidade. A ausência destas respostas é tão mais gravosa em face de um ambiente que, sob variados pontos de vista — social, cultural, laboral, arquitetónico, urbanístico —, é, por defeito, ostensivamente hostil à inclusão social das pessoas com lesão medular (e com deficiência, de um modo geral).

 

Os percursos pessoais da lesão medular

Lesão medular e experiência incorporada

A lesão medular tem como implicações físicas mais comuns e evidentes a paraplegia (perda de mobilidade e/ou sensibilidade ao nível dos membros inferiores), a tetraplegia (perda de mobilidade e/ou sensibilidade nos quatro membros) e, eventualmente, outras disfunções orgânicas. No entanto, desde o momento do acidente, passando pelos centros de reabilitação, até à integração na comunidade, as pessoas enfrentam momentos complexos, marcados por desafios, transformações e angústias, que de modo algum se apreendem por um olhar cingido seja às questões médicas e funcionais, seja aos enquadramentos institucionais de resposta a essas mesmas questões.

Definido entre uma subjetividade corpórea profundamente transformada, um modus vivendi que tem de ser reconfigurado e uma construção social hegemónica que retrata a pessoas com deficiência em termos profundamente opressivos, o processo de reconfiguração identitária e vivencial das pessoas com lesão medular enfrenta desafios particularmente árduos. A partir dos dados do trabalho de campo, pode-se dizer que a forma como as pessoas com lesão medular vivenciam as transformações impostas pela lesão depende de uma multiplicidade de fatores, dos quais destacamos: a distância temporal face à ocorrência da lesão, a estrutura socioeconómica, a situação profissional, a situação familiar e afetiva, o sistema de proteção ativado aquando do acidente (nomeadamente existência de seguro), o ambiente social na área de residência, etc.

Se é verdade que podemos elencar algumas varáveis que condicionam o ajustamento dos sujeitos à necessidade de, após a lesão, terem de viver em novos termos, o impacto pessoal e emocional desta reconfiguração vivencial e existencial inscreve-se sempre nas particularidades e contingências de cada história de vida. Não ignorando os importantíssimos condicionantes sociais, estamos perante a necessidade, bem sublinhada por Arthur Kleinman, de, perante eventos significativos de sofrimento e tribulação, acedermos aos mundos locais da experiência dos sujeitos:

For an ethnography of experience the challenge is to describe the processual elaboration of the undergoing, the enduring, the bearing of pain (or loss or other tribulation) in the vital flow of intersubjective engagements in a particular local world. (Kleinman, 1992: 191)

A partir das entrevistas, podemos, pois, concordar com Michael Oliver (1988), quando ele refere que, não obstante as respostas sociais e os recursos disponíveis, ter uma lesão medular será sempre um episódio biográfico altamente significativo que implica sentimentos de vulnerabilidade e incerteza. De facto, o período inicial que se segue à lesão medular é frequentemente marcado por uma forte angústia vivencial e por uma expectável meditação ontológica em que os tempos da vida aparecem por referência ao antes e ao depois da ocorrência da lesão:

A parte mais difícil é você saber que você trabalhava, que tinha a sua vida normal e, de repente, você vê sua vida se desmoronar. Você vem abaixo. Aí você se sente muito mal, muito, muito mal. Se sente uma pessoa inútil, que não pode fazer nada, dependendo dos outros para tudo. [Helena, lesionada medular]

Assim, a lesão medular comporta uma consciência do corpo por via daquilo que Leder designa dys-appearance. Esta formulação é explicada do seguinte modo: “Empreguei o termo dys-appearance para me referir à tematização do corpo que acompanha a disfunção e os estados problemáticos” (Leder, 1990: 86). Assim dys-appearance — cujo prefixo dys o autor extrai do grego para dizer “mal” — nomeia o acréscimo de consciência do corpo por via de uma irregularidade, de uma perda ou de um excesso no seu funcionamento. Do ponto de vista das perceções subjetivas do próprio corpo, a pessoa lesionada confronta-se com um sentimento de vulnerabilidade num corpo despojado das referências anteriores ao acidente. Estamos perante aquilo que Martins (2006, 2008) denomina “angústia da transgressão corporal”. A “angústia da transgressão corporal” refere-se a uma dimensão de sofrimento pessoal, eminentemente corporal, não totalmente apreensível na sua relação com elementos sociais. Estamos, portanto, no campo da vulnerabilidade decorrente de um corpo que falha, que transgride as referências na existência, as referências no modo de ser-no-mundo. Assim entendida, a angústia da transgressão corporal concita-nos a reconhecer dimensões de dor, sofrimento e ansiedade existencial onde o corpo vivido, o conhecimento incorporado do ser-na-vida e as emoções adquirem uma centralidade.

Este quadro de angústia ontológica tende a atenuar-se à medida que se vai sedimentando um maior ajustamento à condição imposta pela lesão ou que o processo de reabilitação produz alguns progressos. No entanto, este percurso é acompanhado por um complexo calibrar de expectativas que, em grande medida, passa pela construção de quadros de diagnóstico mais plausíveis em detrimento da possibilidade de “voltar a andar”:

No início eu ainda pensei “isto é uma coisa passageira, eu vou voltar a ser a mesma pessoa, vou voltar a andar, vou voltar ao meu trabalho”, mas depois, ao longo do tempo, fui-me apercebendo e vi que realmente não era assim, e depois fui falando com médicos, enfermeiros… os próprios médicos também falaram com os meus familiares, os meus familiares também me prepararam, principalmente a minha mãe, e fui encarando a realidade. [Álvaro, lesionado medular]

Lentamente, a angústia pessoal e a relação de perda ligada à subjetividade corpórea dá lugar à consciência dos limites que, fora do corpo, fora do sujeito, por omissão ou violência, negam à pessoa com lesão medular a possibilidade de ressignificar a sua existência numa participação social tão plena quanto possível.

Momentos-chave

Sendo pertinente falar de um fluxo processual da experiência no ocaso de uma adversidade com marcas biográficas indeléveis, como o fazíamos em cima glosando Arthur Kleinman, também é verdade que o processo de reconfiguração identitária das pessoas com lesão medular não deixa de ser marcado por alguns momentos-chave. Um desses momentos ocorre no período inicial de internamento hospitalar, após o acidente, quando a pessoa toma conhecimento da lesão. Altura em que o impacto desta assalta toda a estrutura física, emocional e social dos sujeitos. O isolamento repentino face aos seus ambientes familiares, a imobilização numa cama hospitalar, o sofrimento físico, a sensação de alienação em face a um corpo transformado, e o confronto com um diagnóstico são tudo fatores que engendram um quadro de vulnerabilidade e incerteza. O momento difícil do confronto com o diagnóstico traumático é frequentemente agravado pelas circunstâncias em que ele é conhecido. Seja pela impreparação dos profissionais na definição de um protocolo de informação que tenha em conta o peso existencial da revelação a ser feita, seja pelo facto de os primeiros tempos do cuidado médico implicarem uma peregrinação confusa por diferentes estruturas e serviços, seja ainda pelo desejo de adiar uma comunicação difícil ou de se esgotarem as dúvidas acerca da irreversibilidade da lesão, o facto é que são muitos os casos em que os lesionados conhecem o seu diagnóstico médico de forma acidental ou através de expedientes comunicacionais confrangedoramente bruscos:

Sim, foi no primeiro hospital onde eu fui operado, no dia a seguir, um médico […] que não era o chefe de equipa, chegou lá ao pé de mim, disse-me assim: “Senhor Leonardo, a operação correu bem mas uma coisa é certa, você nunca mais vai andar”. Foi um choque para mim… Eu agarrei-me à cara, pus a mãos na cara, pus-me a chorar… Pus-me a chorar e ele falou, falou e eu não tomei mais atenção ao que ele me disse. E ele viu o estado que eu estava, foi-se embora, no outro dia voltou e veio-me pedir desculpa daquilo que ele tinha dito. E eu disse: “Sr. Doutor, eu nunca o vou desculpar porque o doutor está farto de lidar com muitos casos e disse-me uma coisa tão violenta [Leonardo, lesionado medular].

Um segundo momento-chave é a passagem da cama hospitalar para a cadeira de rodas. Este momento constitui um primeiro marco na tomada de consciência sobre uma nova condição. Se, do ponto de vista funcional, a passagem para a cadeira de rodas constitui um importante ganho funcional e uma libertação da imobilidade da cama, esta passagem comporta também o confronto simbólico com uma nova identidade e com uma nova relação com o usufruto do espaço: porque a cadeira prefigura um futuro que se perpetuará como uma extensão do próprio corpo essencial à mobilidade — enquanto a cama remete para a transitoriedade afeta ao sick role de Parsons (1951); e porque a cadeira é, por excelência, o símbolo da deficiência na nossa sociedade (basta ver, por exemplo, o dístico que identifica um estacionamento reservado), pelo que a passagem para a cadeira implica, igualmente, a incorporação do estigma hegemonicamente associado à deficiência. O conflito de Sofia com a passagem para a sua própria cadeira exprime bem o modo como esta convoca o espectro de uma nova vida:

Então fui para o Curry Cabral fazer fisioterapia. Mas a parte que mais me custou foi quando eles encomendaram a minha cadeira. Porque eu andava na cadeira do hospital, e depois, quando a minha cadeira chegou eu não a quis. E durante quase duas semanas o enfermeiro vinha com a minha cadeira e eu mandava-o embora. A cadeira do hospital era diferente… era tipo: estava a pensar que sempre me ia levantar da cadeira. A minha cadeira é ter a noção que vou estar nela para sempre!… E é complicado… [Sofia, lesionada medular]

O terceiro momento-chave é constituído pela primeira visita a casa após a lesão medular. A importância deste momento em todo o processo advém de dois fatores principais: o reencontro com a vida de antes da lesão e a consciencialização das barreiras físicas, sociais e culturais que se lhes colocam. O guia para pessoas com lesão medular publicado por Sara Palmer, K. H. Kriegsman e J. Palmer (2008) é congruente com os nossos dados, ao alertar para o modo como o regresso a casa, após a permanência no hospital ou no centro de reabilitação, corresponde também a um choque com o mundo real:

Em Alcoitão [Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão] aquilo para nós era uma terra prometida, aquilo uma pessoa deslocava-se para a esquerda, para a direita à vontade, íamos à casa de banho tínhamos toda a segurança, agora, de um momento para o outro apanho-me cá fora, deparo com todas as barreiras possíveis e imaginárias, barreiras arquitetónicas, barreiras humanas, de pessoas que encaravam a nossa situação chamando-nos “coitadinho”, “desgraçadinho”, isto custava um bocadinho a ouvir, quer dizer, e depois quando chegávamos a algum edifício ficávamos a olhar para os degraus, quando não há barreiras arquitetónicas — ainda hoje isso acontece — uma pessoa parece, entre aspas, que se “esquece” da deficiência, mas quando as encontra parece que há ali um sininho logo a trabalhar… E quando eu saí de Alcoitão foi isso, isso mexeu muito comigo, mexeu e de que maneira. [André, lesionado medular]

A saída do centro de reabilitação constitui o primeiro ensaio de uma autonomização após o contexto de proteção que a instituição confere (Oliver et al., 1988). Por um lado, no regresso a casa, consoante os recursos de que disponha, a pessoa com lesão medular pode recuperar o controlo sobre a sua vida, escapando aos rigores do controlo médico (Oliver, 1990; Turner, 1992; Hughes, 2001) que invariavelmente pautam os tempos e as práticas nos hospitais e nos centros de reabilitação. Por outro lado, o regresso a casa implica estar exposto a um mundo hostil que configura o lesionado medular como um corpo estranho. Num mundo construído em função de uma celebrada normalidade (Davis, 1995) a pessoa com deficiência está exposta a toda a sorte de obstáculos, incompreensões e ameaças à perda de controlo sobre a sua vida. Adicionalmente, quando o regresso a casa implica a saída do centro de reabilitação onde se haviam estabelecido relações de camaradagem junto de outras pessoas da mesma condição, o regresso a casa pode implicar uma reindividualização da experiência. Nesse sentido a politização da deficiência no espaço público e a criação de comunidade em torno da deficiência constitui um elemento fulcral para fazer face à vulnerabilidade imposta por essa individualização da experiência.

 

Conclusão: para uma crise da normalidade

A fraca politização da questão da deficiência em Portugal (Fontes, 2009, 2011) pela não apresentação de modelos alternativos e positivos de deficiência, tem constituído também um importante condicionante no processo de reconstrução identitária das pessoas com lesão medular. A maioria dos nossos entrevistados, apesar de manter contacto com outros lesionados medulares, sobretudo através de redes sociais, relata não ter uma atividade de intervenção política pela inclusão das pessoas com deficiência. É, assim, notória a ausência de uma plataforma de partilha e coletivização de experiências que permita desenvolver uma consciência política da realidade dos sujeitos e uma atitude positiva face à sua situação. Neste particular, há uma recursividade entre as complicações de saúde — que frequentemente decorrem de cuidados inadequados e da ausência de recursos — e a exclusão dos lesionados medulares do espaço e da vida pública. A desadequação da rede institucional de apoio às pessoas com lesão medular, tanto ao nível de estruturas de saúde, como de respostas sociais para a sua inclusão na família e na comunidade, constitui uma barreira adicional ao processo de reconfiguração identitária. Como emerge da nossa análise, urge politizar a questão da deficiência em Portugal de forma a oferecer modelos alternativos de deficiência e quadros de vida decentes para as pessoas com lesão medular. Dessa politização deverá decorrer a criação de uma rede institucional devidamente apetrechada às necessidades de socorro, reabilitação e inclusão na comunidade. Dela decorrerá ainda a transformação das lógicas de cuidado médico, de molde a munirem a pessoa com lesão medular de maior informação e controlo sobre os passos e itinerários terapêuticos. Finalmente, a análise crítica dos percursos das pessoas com lesão medular deverá forjar uma transformação social mais ampla, assim recusemos a trivialização da exclusão social, a hegemonia da normalidade, e nos deixemos ensinar pelos múltiplos caminhos e lugares da experiência.

 

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Receção: 5 de dezembro de 2013 Aprovação: 15 de maio de 2014

 

Notas

[1] Este artigo foi produzido no âmbito do projeto “Da lesão vertebro-medular à inclusão social: a deficiência enquanto desafio pessoal e sociopolítico”, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (PTDC/CS-SOC/102426/2008-FCOMP-0-0124-FEDER009269).

[2] A investigação realizada enfoca os percursos das pessoas que adquiriram a lesão medular após um acidente ou evento abrupto. Na base desta opção está o desejo de compreender de que modo os sujeitos e a sociedade se confrontam com circunstâncias de transformação vivencial súbita, seja pela alteração do modus vivendi imposta pela lesão medular, seja pela metamorfose na experiência incorporada, seja ainda pelas implicações de uma identidade — pessoa com deficiência — sumamente desqualificada na nossa sociedade.

[3] Todos os nomes próprios referidos neste texto são fictícios.

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