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Sociologia, Problemas e Práticas

versión impresa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.77 Lisboa ene. 2015

https://doi.org/10.7458/SPP2015773765 

ARTIGO ORIGINAL

“Eu sou os olhos dela”: As babás nas imagens, na praça ou uma etnografia do olhar

“I am her eyes”: nannies at the market, or an ethnography of images

"Je suis ses yeux": les nounous dans les images, sur la place ou une ethnographie du regard

“Yo soy los ojos de ella”: las nanas en las imágenes, en la plaza o una etnografia de la mirada

 

Liane Silveira*

* Pesquisadora no Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli — ENSP/Fiocruz, Av. Brasil, 4036, sala 700 — Manguinhos, CEP 21040-361 Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: lianemariasilveira@gmail.com

 

RESUMO

Este artigo é a descrição do percurso da pesquisa etnográfica do meu interesse sociológico pelo universo das babás. A partir da perspectiva das babás, pretende-se compreender uma parcela da dinâmica que movimenta o universo da maternidade. Ênfase é dada ao trabalho de campo que foi realizado principalmente numa praça em um bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro. Lida-se, portanto, com famílias em geral e, especificamente, com famílias de camadas médias e elites cariocas. Mas, porque as babás estão e transitam por vários locais, a observação etnográfica se estendeu a diversos espaços da cidade, marcando a vocação etnográfica do estudo.

Palavras-chave trabalho de campo, babás, maternidade, sociedades complexas.

 

ABSTRACT

This articleis the description of my ethnographic sociological interest in the universe of nannies. From the perspective of nannies, it is intended to comprise a portion of the dynamic that moves the world of motherhood.Emphasis is given to field work that was primarily conducted in a square located in a district of Rio de Janeiro’s wealthier southern zone. It therefore focuses on families in general and on families from Rio’s middle classes and elite in particular. But because the nannies live and move through a variety of locations, the ethnographic observation was extended to various parts of the city, reflecting the study’s ethnographic vocation.

Keywords ethnography, nannies, maternity, complex societies.

 

RÉSUMÉ

Cet article décrit le parcours de la recherche ethnographique de l’intérêt sociologique de l’auteur pour l’univers des nounous. À partir du point de vue des nounous, l’article cherche à comprendre un pan de la dynamique qui habite l’univers de la maternité. L’accent est mis sur le travail de terrain, réalisé principalement sur une place publique, dans un quartier du sud de Rio de Janeiro. Il s’agit donc de familles en général et tout particulièrement de familles cariocas des couches moyennes et hautes. Mais comme les nounous se trouvent et passent à plusieurs endroits, l’observation ethnographique a été élargie à différents espaces de la ville, manquant ainsi la vocation ethnographique de l’étude.

Mots-clés travail de terrain, nounous, maternité, sociétés complexes.

 

RESUMEN

Este artículo es la descripción de la trayectoria de la investigación etnográfica de mi interés sociológico por el universo de las nanas. A partir de la perspectiva de las nanas, se pretende comprender una parte de la dinámica que moviliza el universo de la maternidad. El énfasis es dado al trabajo de campo que fue realizado principalmente en una plaza en un barrio de la Zona Sur de Rio de Janeiro. Se trata, por lo tanto, con familias en general y, específicamente, con familias de camadas medias y elites de Rio de Janeiro. Debido, a que las nanas están y transitan por varios locales, la observación etnográfica se extendió a diversos espacios de la ciudad, marcando la vocación etnográfica del estudio.

Palabras-clave trabajo de campo, nanas, maternidad, sociedades complejas.

 

Introdução

Quem, entre nós, foi criado exclusivamente pelos pais? Goldstein afirma que “é bastante comum ouvir cariocas de classe média e alta, de todas as idades, falando com nostalgia sobre sua babá favorita ou sua empregada doméstica favorita. Para quem vem de fora, o não brasileiro, esses comentários podem soar estranhos”(2003: 73). É assim mesmo. Não só as babás guardam lembranças afetuosas de suas relações com algumas crianças (singulares para cada babá) das quais cuidaram. Vários adultos ainda hoje se comovem ao se relembrarem carinhosamente “daquela babá”. A nostalgia nos é familiar. Mas o que torna interessante a citação acima é menos a confirmação desse sentimento nostálgico, e mais o fato de que para um estrangeiro esse sentimento possa soar “cínico” (Goldstein, 2003). É nesse estranhamento, nessa ambiguidade, a meu ver, que está uma maneira bem particular a nós — brasileiros — de nos relacionarmos socialmente. Não quero dizer com isso que outras sociedades não portem suas maneiras particulares de relacionamento entre diferentes segmentos sociais. Mas, quando essas relações entre segmentos sociais distintos são vivenciadas na intimidade de uma família, de uma casa, assumem para nós um significado diferenciado, repleto de ambivalências. O cinismo pode até estar presente (como em qualquer outra relação), porém não é a marca dessas relações. É nesse sentido que Goldstein, analisando as relações entre patroas e empregadas domésticas no Rio de Janeiro, sublinha que, ao estrangeiro, embora possa parecer “cinismo”, o que define essas relações é a “ambiguidade afetiva”, e é essa ambiguidade que torna as relações entre mães e babás complexas.

Este artigo é a descrição do percurso etnográfico do meu interesse sociológico pelo universo das babás.[1] A observação etnográfica teve como principal sítio a praça dos Girassóis situada na Zona Sul do Rio de Janeiro, onde permaneci por 17 meses. Mas, porque as babás estão e transitam por vários locais, o trabalho de campo se estendeu a diversos espaços da cidade, sobretudo nos horários de maior circulação de crianças.

As cenas entre babás, crianças e mães, presenciadas nos teatros, nas portas das escolas, nos shoppings, entre outros lugares, e ainda os mesmos encontros observados e relatados por amigos entusiasmados pelo tema marcaram a vocação etnográfica do estudo que originou este artigo.

Antes, porém, me entusiasmei pelos elementos de uma dimensão histórica ligada à escravidão, que surgiam fantasmagoricamente em cenas e queixas relatadas pelas babás e mães de hoje. Por esse motivo, antes de iniciar o trabalho de campo na praça dos Girassóis, realizei uma breve pesquisa no acervo iconográfico de Militão Augusto de Azevedo e Carlos Eugênio Marcondes de Moura no Museu Paulista, aqui apenas mencionada.[2] Tratava-se de uma primeira abordagem do tema através do acervo em suas diferentes dimensões: como produtor de conhecimento e no que se refere à interpretação das fotos propriamente ditas. Assim, considerei a pesquisa realizada nesses acervos iconográficos uma entrada em trabalho de campo, buscando transformar o acervo em um encontro etnográfico com as babás. Resta, ainda, a seguinte pergunta: que “real” esperava encontrar?

 

Na praça: observando quem observa

Depois de observar as relações entre babás e bebês nos diferentes espaços, a praça me pareceu ser o lugar em que a babá estava menos submetida às regras da família da criança. Isto é, o lugar em que ela mais consegue subverter essas regras. Nesses espaços, a babá se comportava com menos constrições em comparação aos outros locais em que eu havia observado a relação entre essa profissional e as crianças. Logo compreendi o porquê dessa impressão. Uma babá me disse: “está pensando que isso aqui [a praça] é para eles [as crianças]? Isso aqui é para nós. Se a gente não vem pra cá, ficamos doidas. Isso aqui é o nosso lazer”.

Sempre vi as praças como lugares em que as crianças brincam, idosos se distraem e cachorros passeiam. Levei um tempo para “des-conhecer”[3] a praça tal como a concebi inicialmente, e perceber essa outra dimensão do espaço: um local de lazer para as babás, onde elas conversam muito entre elas, compram roupas ou produtos cosméticos, agendam e organizam encontros festivos (muitas vezes sem que os pais das crianças saibam dessa agenda festiva). Nada mais familiar do que uma praça. No entanto, o trabalho de campo me fez estranhar o mais familiar dos espaços públicos. A partir das ideias de “proximidade e distância, familiaridade e estranhamento” discutidas por Gilberto Velho (1978; Velho e Kuschnir, 2003: 16), pude refletir sobre os principais aspectos que constituíram o trabalho de campo — “essa pedra de toque da organização do nosso saber”, como afirma Luiz F. Dias Duarte (1999: 21).

A partir de agosto de 2008, como uma etapa exploratória e sistemática do trabalho de campo, comecei a frequentar uma vez por semana (durante três meses) a praça Nossa Senhora da Paz, em Ipanema — Zona Sul do Rio de Janeiro. Ainda que não tenha entrevistado nenhuma babá dessa praça, pude perceber, através de conversas isoladas e ou comentários, que ela é um dos cenários nos quais a babá atua como se fosse mãe. Elas reúnem-se e comentam sobre os diversos aspectos ligados ao seu cotidiano: como as crianças passaram a noite, a que horas acordaram, alimentação/mamadeiras feitas durante a noite, dentre outros temas.

Paralelamente à observação etnográfica realizada na praça em Ipanema, participei de um curso para babás ministrado por uma agência de empregos para babás. Nesse curso de treinamento das babás, pude não só estabelecer contatos como também vivenciei o ensinamento de postura, atitude e “técnicas corporais” (Mauss, 2003) transmitidas à babá. Um final de semana de verdadeira imersão no universo em que é cultivado o habitus da babá.

Vários “mantras” eram repetidos durante o curso, visando a doutrinar o que é “ser babá”. Rizzo, na apostila do curso, inicia afirmando que “a mãe sonha com uma babá que cuide de seus filhos sem jamais pensar em substituir a mãe […] parece complicado achar o meio-termo nessa relação mãe-babá; mas é para isso que você está aqui, para receber informações e ensinamentos que a auxiliarão a tornar-se, a cada dia, mais profissional” (2009: 3). Todas as orientações preconizam a onipresença da babá na casa da família onde trabalha. Mas, desde que ela “não fique na cola da patroa”. A ideia é que ela esteja em todos os lugares; mas, ao mesmo tempo, ela tem que parecer que não está lá. Esse é um dos exemplos que evidenciam as contradições presentes na prática da babá.

Em fevereiro de 2009, recebi a certificação pela realização desse curso voltado para babás. Especulei como seria realizar um trabalho de campo tal como aquele realizado por Judith Rollins, em que ela se empregara como empregada doméstica de uma família americana, em um regime de oito horas diárias, a fim de observar no modelo malinowskiano como se dava o trabalho doméstico (Rollins, 1990). Posteriormente, uma babá na praça dos Girassóis sugeriu que eu deveria estudar o trabalho delas nas casas dos patrões. Não como babá, mas passar um tempo nas casas. Expliquei a essa babá as dificuldades e implicações que esse tipo de experiência de campo traria. Afinal, quando a praça é considerada como uma área de lazer e descontração para a babá, não é incomum presenciar atitudes, falas e desabafos com certo grau de espontaneidade.

De todo modo, a fala dessa babá provocou indagações que considero que estão colocadas desde o início de qualquer pesquisa ao se definir o trabalho de campo. Até que ponto a definição do campo se associa à questão colocada por Howard S. Becker: “qual a credibilidade das conclusões derivadas de dados coletados pelo trabalho de campo?” (1993: 65). Estudar o trabalho das babás nas casas onde elas trabalham ou nas praças? Essas questões podem ser vazias porque a negociação para acompanhar e participar do trabalho de uma babá no local de trabalho seria bastante complicada. Na praça, observei uma dupla dimensão do cotidiano da babá: a do trabalho e a do lazer. Nesse sentido, tal como Becker descreve sobre os participantes que um pesquisador de campo estuda, nas praças as babás “estão enredadas em relações sociais que são importantes para elas, no trabalho, na vida da comunidade […]. Os eventos de que participam importam pra elas […] Todas as restrições que as afetam em suas vidas comuns continuam a operar enquanto o observador observa” (1993: 75). Ademais, a praça dos Girassóis, cuja experiência de campo relato a seguir, tornou-se uma predileção. A meu ver, era uma praça dotada de certo ar perene, que nos remete a todas as “praças” pelas quais passamos em nossa vida, sobretudo na infância: um caráter previsível, “familiar” e, ao mesmo tempo, dinâmico, “estranho”.

Iniciei o meu trabalho de campo na praça dos Girassóis com a seguinte frase: “Você não vai escrever mal da gente — não é? — como a imprensa tem feito…”, dita por uma das babás mais comunicativas da praça. Atrás de uma aparente hostilidade, estava o fato de que, naquele momento, a imprensa divulgava vários casos de agressão de babás às crianças. Como fui apresentada às babás por uma mãe cuja babá de sua filha frequentava a praça, o receio de que eu enfatizasse essas notícias que eram veiculadas foi atenuado. Assim, em fevereiro de 2009, comecei a frequentar a pequena praça dos Girassóis situada no Jardim Botânico, considerado um bairro de renda elevada, estando também entre aqueles com maiores índices de escolaridade (Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 2003: 4-5).

Permaneci em trabalho de campo de fevereiro de 2009 a julho de 2010 e, ao longo desse período, inseri o hábito de transitar pelos arredores da praça no meu dia a dia, como uma moradora do bairro. Percebi, com isso, que criava situações para encontrar as babás, que já conhecia, circulando pelo bairro, na lida das diversas tarefas ligadas à criança. Consequentemente acumulava fragmentos de conversas e impressões sobre a prática delas. Essas observações de fora da praça atribuíam coerência àquelas realizadas no espaço da praça e, além disso, somadas às conversas mantidas com mães e babás, me orientavam para traçar um perfil socioeconômico dos patrões. Estava lidando com camadas médias e de elite. Nas entrevistas com as mães e as babás, foi possível definir mais o perfil dos pais através das informações sobre os salários pagos às babás e os estilos de vida adotados pelas famílias.

Cheguei à praça da seguinte maneira: uma amiga indicou-me Cristina[4] — mãe de Maria (10 meses de idade), cuja babá Nilsa apresentou-me a outras babás que frequentam essa praça. Nilsa era uma das babás mais cobiçadas por outras mães, por ter acumulado bastante experiência. Já cuidou de crianças gêmeas, de uma criança especial, e me relatou (com um misto de orgulho e admiração) que havia tomado conta sozinha, por dois meses, de uma criança cuja mãe viajara ao encontro do pai (da criança) que morava no exterior. Quando a conheci, ela disse que só tomaria conta de Maria e/ou de um irmão dela, caso Cristina decidisse ter outro filho. Logo Maria foi para a escola. Nilsa parou de frequentar a praça e a encontrei nos arredores do bairro realizando outras tarefas domésticas, enquanto Maria estava na escola. Cristina engravidara de seu segundo filho e, diante do crescimento da família, ela decidiu mudar-se para um apartamento na Barra. Agora Nilsa é babá das duas crianças.

A chegada de outra criança ou o crescimento de uma criança da família, seja qual for a maneira como isso é negociado entre patrões, empregada e babás, certamente constituem-se num elemento de tensão. Essas observações podem ser obtidas através de entrevistas. Mas o fato de ter permanecido por um tempo extenso na praça me possibilitou observar essas mudanças de maneira contínua, digamos, em “tempo real”.

Sobre o tempo

A categoria “tempo” me chamou a atenção na experiência do campo. Mais de um ano em trabalho de campo envolveu diversas mudanças e transformações nas vidas das pessoas que eu estudava. De fato, é uma observação bastante óbvia. Mas há algo inquietante nessa dimensão do tempo, que esteve presente (intensamente) durante todo o trabalho de campo. O tempo do trabalho de campo, o tempo de crescimento das crianças, o tempo que demitia e contratava novas babás, o tempo que mostrava a renovação constante de babás na praça e que me deixava a impressão de que não conseguiria abarcar tantas histórias de vida, dentre outros tempos. Enfim, são ideias esparsas que registro aqui (com medo do tempo levá-las) para elaborá-las mais e lhes dar um sentido ao longo do tempo.

Johannes Fabian discute a noção de “tempo compartilhado”, uma noção da fenomenologia que reelabora com base em Alfred Schutz. Uma vez que a antropologia fundamenta-se na etnografia, na investigação empírica, para Fabian a “investigação empírica fundamenta-se, de modo crucial, não somente em observação e coleta de dados, mas em interação comunicativa [intersubjetividade], e esta última só é possível com base no compartilhamento do tempo […] nós vemos e escrevemos. Representamos. Construímos um discurso.” (2006: 509-510) Este autor sublinha que está implicada nessa noção de “tempo compartilhado” (posteriormente denominado por “coetaneidade”) uma maneira através da qual buscamos no trabalho de campo atingir “nossa objetividade [que deve] basear-se na intersubjetividade” (2006: 509).

A qualidade na interação com os participantes (para não denominá-los de informantes) da pesquisa advém de um intenso tempo dedicado ao trabalho de campo. Talvez essa compreensão responda de alguma maneira à inquietação que menciono logo acima. Do mesmo modo pode explicar o porquê de certa empatia pela experiência de campo na praça dos Girassóis. Parece-me que nessa praça pude vivenciar o “campo” como “um dos mais sutis segredos disciplinares”, que Cavalcanti descreve e compara à “escuta psicanalítica, esse ‘deixar-se levar’, aparente abandono de si a uma certa situação, é uma técnica profissional cujo domínio requer amplo treinamento e exercício” (2003: 119).

Inicialmente frequentei a praça duas a três vezes por semana. Posteriormente passei a frequentar todos os dias úteis da semana, com exceção dos dias chuvosos. Pela manhã, entre 8h 30min e 12h era o período de maior frequência das crianças. A organização do dia era pautada, evidentemente, por uma agenda (às vezes) atribulada de “compromissos” da criança. Por vezes, ficava claro quando eram os pais que determinavam a agenda e quando a iniciativa partia da babá.

Nas primeiras vezes em que fui à praça ficava conversando com Nilsa. Até então eu era “estranha” para a maioria das frequentadoras da praça. Antes mesmo de me “situar” no campo, nos termos de Geertz (2008 [1973]: 10), pouco a pouco me apresentei a cada babá e mãe que surgia na praça explicando que passaria um ano (aproximadamente) frequentando a praça a fim de estudar o trabalho da babá e a relação dela com as famílias correspondentes. Em outra perspectiva, poderia ter dito que eu era uma “estranha” estudando a “estranha” mais “familiar”, mais íntima de uma casa: a babá.

Em seguida, Nilsa me apresentou à Ana — babá do Marcelo —, que herdou de Nilsa certa empatia por mim e foi quem me concedeu a primeira entrevista gravada para esta pesquisa. Ela estava em seu primeiro emprego como babá. Ao me falar como se relacionava com a patroa dela, ela disse: “é estranho, ela conversa muito comigo, conta muita coisa da vida dela, coisas que ela não fala pra ninguém”. Comparei-a aos profissionais que Hughes vincula à ideia de guilty knowledge. Para esse autor, algumas profissões, tais como: “policial, advogado, […], todos eles têm licença — de certa maneira — para guardar um segredo — uma espécie de ‘guilty knowledge’” (1971: 288).

A maneira como as babás lidam com a intimidade — inerente ao trabalho delas — e os vínculos que se estabelecem entre intimidade e a ideia de se apegar (mais ou menos) à criança e/ou à família para a qual trabalham constituem um tema importante para análise. Em seu trabalho sobre as empregadas domésticas, Rollins considera que uma das maneiras que as empregadas domésticas encontravam para atenuar o sentimento de inferioridade (em decorrência das relações de trabalho com os patrões) era através do conhecimento íntimo da realidade da vida dos patrões: detalhes da personalidade, hábitos, humores, gostos. Isso tudo as fazia desconsiderar as atitudes e julgamentos ofensivos dos patrões em relação a elas, visto que também se encontravam numa situação em que poderiam fazer um julgamento incisivo a respeito deles (1990: 69).

Aos poucos, as babás foram me apresentando umas às outras: ora eu era identificada como escritora e estava ali para escrever um livro sobre a vida de cada uma delas; ora eu era pesquisadora e estava estudando a vida delas. Em outros momentos também fui considerada uma especialista na carreira das babás e, portanto, era chamada para esclarecer questões que regulamentam juridicamente a prática da babá.

Em geral, a reação das pessoas em relação à pesquisa — mães e babás — era sempre muito positiva. As mães tinham diferentes reações. Aquelas que estabelecem uma relação muito intensa e harmoniosa com as babás de seus filhos sorriam e diziam: “é uma relação muito forte!” Outras, que viviam essa relação de maneira conflituosa, a descreviam como: “é muito difícil!” Havia ainda aquelas que não se imaginavam contratando uma babá para ficar com seu filho. Para essas, a reação tinha sempre um tom indignado: “Eu não consigo entender como pode alguém deixar o seu filho com uma babá!”

Já as babás reagiam um pouco da mesma maneira. Algumas ficavam, inicialmente, intrigadas e ou admiradas: “Nossa! Vai estudar a gente?” Logo em seguida várias delas diziam que tinham muitas histórias para contar. A babá Marta se adiantou e disse: “Ah! Minha vida dá um livro”; e, imediatamente, começou a narrar-me que ela era do interior do Maranhão e que o sonho dela era vir para o Rio de Janeiro conhecer Roberto Carlos.[5] Ela veio para o Rio e está trabalhando para a mesma família há 22 anos. Mas ainda não tinha conhecido Roberto Carlos.

De todo modo, estudar a relação entre elas (mães e babás) já me colocava numa situação, uma espécie de ponto de convergência de interesses (e expectativas), em que ambas se reconheciam na importância que eu argumentava a propósito do estudo. Embora a recepção tenha sido bastante acolhedora, mesmo assim decidi não gravar (formalmente através de entrevistas) essas histórias logo no início do campo. Estar na praça e vivenciar esse trabalho de campo era muito interessante. Não tinha pressa. Mas também não tinha o interesse em “tornar-me nativa”. Procurava “conversar com elas”, tal como Geertz descreve sobre o trabalho do antropólogo. Geertz afirma que “compreender a cultura de um povo expõe a sua normalidade sem reduzir sua particularidade. […] Isso os torna acessíveis: colocá-los no quadro de suas próprias banalidades dissolve sua opacidade” (2008 [1973]: 10).

Estar na praça assiduamente me permitiu estar em situação constante de entrevista. Ainda que eu permanecesse calada, praticava a dimensão do silêncio que provoca a fala. Cito um exemplo. A babá de Carolina, a quem a menina era muito apegada, foi despedida ao retornar de férias. Carolina, quando reapareceu na praça, tinha voltado a usar chupeta. Carolina tinha quatro anos e não se espera que nessa idade a criança ainda use chupeta (ao menos não publicamente). O comentário de todos (mães e babás) na praça era que o uso da chupeta indicava a tristeza dela pela partida da antiga babá. A folguista — Lina — assumiu o lugar daquela que era a efetiva. Lina sempre falou comigo laconicamente. Passei a silenciar-me quando estava ao lado dela. Conversava com Carolina, mas, ainda assim, preferia ficar em silêncio. A primeira manifestação de Lina foi para falar sobre quanto ela recebia para cuidar de criança em Ilhéus — Bahia: “R$ 40,00 por mês!”.[6]

A atitude de reserva assumida por Lina diz algo sobre como uma pesquisadora é vista em trabalho de campo. Ainda bem no início do campo, uma babá me revelou que algumas dentre elas comentaram sobre a suspeita de que eu teria sido contratada por um grupo de mães para vigiá-las! Algumas mães, por sua vez, procuraram me situar como uma “agenciadora” de babás. Atitude sutil na maioria das vezes. Mas, numa situação, em especial, uma mãe (aqui denominada de Rita) me enviou e-mail e deixou recado na secretária eletrônica num tom bastante angustiado, relatando que não estava mais satisfeita com a babá dela e, portanto, ela precisava conversar comigo, urgentemente, a fim de que eu a repassasse o contato telefônico de outra babá da praça — Catarina: babá de Paulo e Maria Paula — vislumbrando que Catarina se tornasse a babá de seu filho. Tal como mencionei anteriormente, ao longo desse ano de trabalho de campo, me aproximei bastante de um grupo de mães que comparecia assiduamente à praça. Com o tempo, elas passaram a me consultar sobre determinados aspectos a respeito de características do trabalho da babá que até então eu teria acumulado a partir da minha pesquisa. Às perguntas dessa natureza, eu respondia (genericamente) com as minhas observações preliminares, deixando claro que ainda havia muito a analisar e interpretar sobre o tema. Mas a demanda de Rita exigiu que eu interviesse de maneira bastante clara. Numa resposta delicadamente firme esclareci à Rita o que significava estar na praça como pesquisadora e que jamais intermediaria contatos dessa natureza.

Ao relatar essa passagem e passado um tempo, redimensiono esse episódio. Mas, naquele momento, vivi a situação como um pequeno dilema, porque senti a angústia dela — como mãe — diante da pressão do retorno ao trabalho, e a busca por uma babá para ficar com o seu filho. A maneira como me senti tocada pela situação pode ser um exagero. Mas, na releitura do episódio, identifico-o como um momento que sinaliza uma mudança no meu envolvimento no campo. Eu havia sido “afetada” pelo campo, respeitando as proporções do significado do termo para Favret-Saada.[7] “Ser afetada”, para esta autora, “não tem nada a ver com uma operação de conhecimento por empatia, qualquer que seja o sentido em que se entende esse termo” (2005: 158). Não se trata de “tornar-se nativo”, mas sim de ser afetado de alguma maneira por algo que também afeta àqueles que estudamos. É nesse sentido que Favret-Saada afirma que “ser afetado […] abre uma comunicação específica com os nativos: uma comunicação sempre involuntária e desprovida de intencionalidade, e que pode ser verbal ou não” (2005: 159).

Quando reencontrei Rita, tivemos reações parecidas. Ambas as reações eram desencadeadas pelo reconhecimento de posições ocupadas por sujeitos num contexto de pesquisa — a entrevistada e o pesquisador. Eu estava com receio que ela não tivesse compreendido a minha reação e ela, com medo do meu julgamento da atitude dela.

Afinal, na experiência de campo, aprende-se que as pessoas não esperam que você seja igual a elas (Whyte, 2005: 304). Interessar-me pelas histórias de vida dos pesquisados e, a partir daí, compreender a complexidade da relação entre mães e babás possibilitou-me transitar (e me aproximar) tanto na perspectiva materna quanto naquela vivenciada pela babá. Ainda que fosse identificada (pelas babás e mães) como pertencente ao segmento social das mães. Nesse sentido, destaco alguns aspectos da experiência de campo em dois episódios que traduzem parte da minha situação no trabalho de campo e ilustram o que acabo de comentar: o open house da babá Patrícia e a festa de dois anos do filho de Marina (mãe que conheci na praça).

Já havia algum tempo que Patrícia me convidara para comer uma comida baiana em sua casa na comunidade do Vidigal.[8] Esse jantar ficara como uma promessa que seria cumprida no convite para o seu open house. Antes, porém, Patrícia perguntou-me se eu tinha medo de subir “a favela do Vidigal”. Algumas amigas dela preveniram-na de que não iriam porque tinham medo pela violência presente em comunidades. Medo? Segui as recomendações de Patrícia e me senti mais apreensiva do que com medo.

Há muito tempo não ia ao Vidigal. Algumas amigas cujos prédios sofreram transformações advindas do aumento de pessoas circulando pelo local atualizaram-me das mudanças ocorridas por lá. Portanto, já tinha visitado uma amiga que morava no prédio situado no início do Vidigal; mas nunca enveredei pela Av. Presidente João Goulart — principal rua do Vidigal — incrustada nas encostas de um dos locais mais nobres da cidade do Rio de Janeiro.

O primeiro impacto aconteceu diante do excesso de códigos desconhecidos. Uma circulação “nervosa” de códigos: pululavam pessoas, sons, cheiros, motos, barracas de madeira, buracos na rua e curvas até a casa de Patrícia. Vestida com um macacão aceitei a primeira oferta de moto-boy para me conduzir ao destino. E, logo no início da subida da primeira ladeira, o medo, ocasionado pela visão de um homem armado responsável pela segurança da facção local do tráfico de drogas, foi substituído pela apreensão diante da condução do moto-boy. Não só a alta velocidade me incomodava, mas, sobretudo, a iminência (a meu ver anunciada) de um choque frontal com as inúmeras motos que circulavam no contrafluxo. Não estava claro onde se situavam a mão e contramão da rua e nem como isso era negociado. Soma-se a isto o fato de que também tive medo que uma vez tendo tirado a mão — sequelada por uma paralisia — do punho da moto, o jovem rapaz que me conduzia não a conseguisse reencaixá-la.

Vivi o segundo impacto ao entrar na casa de Patrícia e me deparar com a fascinante paisagem do mar. A casa dela, além de ser um corredor para o mar, tem as paredes pintadas em cores vivas (laranja e roxo) e, imediatamente, não pude deixar de comparar aquela ambiência colorida e a vista livre com a cor opaca e o confinamento característicos de quartos de empregada. Como fui a primeira convidada de Patrícia a chegar, ela e o seu marido (João Paulo) tiveram bastante tempo para comentar sobre o trabalho da Patrícia como babá e as “mágoas” decorrentes que ela estava experimentando naquele momento e, ainda, contaram como eles se conheceram.

A mãe Marina, que me convidou para a festa de aniversário de dois anos do seu filho, conheci-a na praça dos Girassóis. Naquele momento, ao saber o meu tema de estudo, ela se adiantou e declarou: “Você quer saber se eu sinto ciúmes da babá? Não, eu não sinto ciúmes dela, eu sinto inveja dela. Porque o trabalho dela é cuidar do meu filho, é ficar com meu filho… ela faz o que eu gostaria de fazer e não posso por causa do meu trabalho, da minha vida.”

Marina me convidou para a festa porque, segundo ela, lá haveria muitas babás. Ela acrescentou: “nada melhor do que uma festa dessas para você observar as babás”. Já tinha encerrado essa etapa do trabalho de campo, mas não resisti à possibilidade de observar o que uma coordenadora de um curso de babás comentou a respeito de como eram denominadas as babás que frequentam as festas infantis: “peste branca”. São babás que acompanham as crianças a festas que acontecem em dias de semana, portanto, sem a presença dos pais da criança, levando para casa docinhos, salgados e enfeites. Essa coordenadora fala (com muito bom humor) em seu curso sobre esse comportamento e orienta-as sobre a importância de mudança de hábitos.

No entanto, nessa festa, fui mais procurada pelas mães do que observei a atuação das babás. Uma mãe que frequentava a praça me procurou também para saber se já tinha finalizado o estudo. Às mães que conheci na festa, Marina me apresentava sublinhando que eu era “uma pesquisadora que está estudando a nossa relação com as babás”. Frase-chave. Todas começam a contar suas parcelas de experiências com as babás. Séraphine — mãe de um filho —, na época em que frequentava a praça, ela optara por não contratar babá. Na festa, no entanto, ela revelou-me que mudara de opinião e declarou: “É melhor ter uma babá do que ter um chifre do marido. Ai, que horrível!”

As mães, presentes nessa festa e outras que entrevistei, apresentaram opiniões divergentes acerca do que seja uma “boa babá”. Para discutir esse aspecto, retomo a história que envolve Catarina. Porque Rita (mãe) escolhera Catarina? Catarina era vista por Rita como uma “ótima babá”. Já outra mãe não compartilhava da mesma opinião e dizia que “Catarina falava muito da vida da patroa, na praça”. A “babá boa ou perfeita” é uma definição bastante relativa.

Quando conheci Catarina, chamava-me a atenção o fato de que ela chegava à praça e, imediatamente, se dirigia para o “tapete”, onde somente as crianças acompanhadas das suas mães permaneciam. O uso do “tapete” é restrito às crianças ainda bebês que estão (no máximo) na fase de engatinhar. Naquele momento, Maria Paula era mais nova (seis meses de idade) e, portanto, se inseria neste grupo de bebês. Mesmo nas situações em que ninguém havia aberto e disponibilizado um tapete, Catarina sempre se mantinha mais isolada, ou seja, ela não se agregava às outras babás, tal como a maioria fazia. Nessas situações, eu a via circulando pela praça empurrando o carrinho que levava Maria Paula e falando (constantemente) no celular. Mais tarde, uma das poucas situações em que estive com a mãe de Maria Paula na praça, ela permaneceu circulando na praça, empurrando o carrinho de Maria Paula e falando (constantemente) no celular. Tal mãe, tal babá! Ou, por que não? Tal babá, tal mãe! Com esse episódio chamo a atenção para certa memória dos gestos. Uma vez que a minha observação e interpretação das condições em que essas relações se davam na praça baseavam-se nas noções de códigos sociolinguísticos formuladas por Bernstein (1975); observava até que ponto os gestos empregados por mães e babás mantinham afinidades. Os gestos as aproximavam mais do que distanciavam? O que é compartilhado nessa relação?

Somente observar os gestos praticados na praça não bastava para responder a essas perguntas. Nas entrevistas realizadas individualmente ou nas conversas mantidas na praça, perguntava claramente (e de diversas maneiras) o que era ou não compartilhado entre a família e a babá. Neste momento, no entanto, busco destacar a observação dos gestos no contexto etnográfico.

Na praça, os gestos mais sutis sensibilizaram-me analiticamente. Os gestos diziam algo não só da relação entre mãe e babá, mas, sobretudo, indicavam para as próprias babás quem era uma “boa babá” e, em algumas situações, quem era uma “mãe de verdade”. Certo dia, uma babá me disse que eu teria ficado chocada se tivesse presenciado a cena em que uma babá (considerada muito boa pelas outras babás) puxou a criança pelo braço num gesto intenso. Segundo a babá, todas ficaram surpresas com essa reação. Esses gestos praticados, compartilhados (ou não) e observados por todos na praça são importantes porque fazem parte de uma legitimação da prática das babás, que passa (e é construída) a partir da repercussão de seus comentários e de seus gestos.

Por um lado, as atitudes intempestivas (fora do lugar) de uma babá surpreendiam as demais babás e, ao mesmo tempo, colocavam em dúvidas as suas próprias avaliações e convicções sobre enquadramento de uma babá. Por outro lado, os casos que confirmavam as suspeitas sobre determinada babá e suscitavam falas como: “eu sabia que tinha algo estranho com ela [aquela babá]”. Isto foi dito quando todas souberam que a babá Gisele havia sido demitida (ou fugido) porque se descobriu através do colégio (e depois pelo pediatra da criança) que ela “dava remédio para a criança dormir”. Naquele dia, ao chegar à praça, várias babás me perguntaram o que havia acontecido com Gisele e o que eu poderia explicar sobre o fato. Uma vez que eu estudava a carreira das babás, tal como um psicanalista, eu deveria portar comigo um suposto saber da vida das babás da praça. Outras babás, no entanto, me disseram que sabiam que ela era estranha porque “ela chegava à praça com a criança no carrinho; dava uma volta na praça e depois dizia (para poucas pessoas) que ia embora porque a criança estava dormindo”.

Os gestos que mentem são os mais temidos. Quando uma babá é considerada por todas como uma excelente babá e, em seguida, sabe-se que ela cometeu algum ato que comprometeu a sua idoneidade, a repercussão é mais expressiva. Isto aconteceu com a babá de uma criança cujos pais eram conhecidos publicamente. Neste caso em especial, as babás comentavam sobre o quanto ela era carinhosa com a criança e como esta última gostava da babá. Talvez os gestos as tivessem enganado e, diante do risco de “queimar” as babás como um todo, elas disseram que não mais indicariam o nome de ninguém para outras pessoas. Não queriam correr o risco de se verem confundidas nessas histórias.

Outras passagens sobre a observação dos gestos foram vivenciadas no trabalho de campo. Por enquanto sublinho que foi importante observar no contexto etnográfico os gestos e as trocas de olhares para afinar a “capacidade de distinguir um piscar de olhos de uma piscadela conspiratória”(Geertz, 2008 [1973]). É nesse sentido que Geertz (a partir de sua leitura de Ryle) afirma que “contrair as pálpebras de propósito, quando existe um código público no qual agir assim significa um sinal conspiratório, é piscar. É tudo que há a respeito: uma partícula de comportamento, um sinal de cultura e — voilà! — um gesto” (2008 [1973]: 5).

Retornando à Catarina, embora soubesse que eu estava fazendo uma pesquisa sobre babás, ela levou um tempo (mais ou menos três meses) para se aproximar de mim e começar a relatar sobre a sua história e o seu cotidiano como babá. Catarina nunca me deu uma entrevista gravada,[9] e, por iniciativa própria, passou a formular questões que ela considerava que eu deveria fazer às babás, tais como: “como a babá lida com a situação de ser acusada de ter roubado alguma coisa na casa onde ela trabalha?” A princípio me parece que são questões formuladas não só a partir de sua própria experiência como babá, mas também são dilemas que ela presenciou das histórias de babás (colegas dela) ao longo desses anos.

Uma cena em especial passada com a babá Catarina chamou-me a atenção, justamente por revelar o quanto no campo, dados e teoria estão interligados. A cena é a seguinte: Paulo (é irmão de Maria Paula e tem oito anos de idade) observava Catarina trocar a fralda de Maria Paula. Catarina dobrou a fralda que seria descartada e pediu a Paulo: “joga a fralda no lixo, Paulo, por favor?” Paulo se surpreendeu, arregalou (discretamente) os olhos e, igualmente, fez um discreto gesto com o corpo a fim de se distanciar da fralda (ou da atitude de Catarina, em aparente estranhamento diante do pedido dela?). Imediatamente, ele disse para Catarina: “tá pensando que eu sou babá?!” Ainda assim ele pegou a fralda e a jogou no lixo. Contudo, na praça, Paulo sempre demonstrou muito afeto por Catarina que, por sua vez, afirmava (constante e enfaticamente) que ela se considerava babá do Paulo; e não de Maria Paula. Até que ponto essa experiência com a babá traduz-se, posteriormente para a criança, em uma memória afetiva coadunada à noção de distanciamento social?

Como afeto e desigualdade coabitam esses tipos de relação? Não são poucos os relatos das babás sobre os casos em que as crianças de que elas tomaram conta no passado, hoje (adultas), guardam uma memória afetiva do paladar. Uma babá me contou que até hoje a pessoa de que ela tomou conta na infância, quando adoece, pede-lhe que faça “aquele bolo” com gosto de infância.

Episódios como aquele que relato entre Paulo e Catarina, embora ínfimos, podem nos revelar algo sobre a maneira através da qual a criança incorpora as noções de hierarquia e distância social. Numa abordagem sociolinguística do aprendizado social, Bernstein afirma que “para as classes superiores o que está em jogo é a formação de crianças individualmente distintas. Pensar em valores diferenciados” (1975: 37). Concordo com Brites quando afirma que “nessa intimidade cotidiana, as empregadas podem assumir conscientemente o papel de transmissoras de conhecimentos” (2007: 99). Mas, ainda que várias crianças cujas babás que tenho entrevistado passem a maior parte de seu tempo ao lado das babás, há uma hierarquização na lógica de transmissão de conhecimentos que supera a questão da intensidade de tempo que a babá permanece com a criança.

Afeiçoar-se à criança pode causar à comunicação entre babás e mães efeitos contraditórios. Pode ser considerado “de mais” e causar “ciúmes” tal como algumas mães relatam. Mas pode ser vivido pela babá (e observado pela mãe) como um sentimento genuíno. Por vezes, a relação entre uma “boa babá” e a “mãe de verdade” se traduzia na seguinte sentença: “Eu sou os olhos dela.” A fala, enunciada pela babá Patrícia referindo-se à mãe da criança da qual toma conta, toca em uma das principais questões que alicerça as relações entre babás e mães: confiança, fidelidade e gratidão são algumas das categorias que amalgamam a dimensão afetiva da relação. Assinala-se, no entanto, que essa dimensão afetiva se articula com dinheiro, seja através da negociação do salário, seja pela troca de presentes.

Mas por trás das dimensões afetiva e financeira está a questão da qualificação da babá: o que faz uma babá ser uma “boa” babá? Percebi ao longo do trabalho de campo que essa resposta muda bastante de mãe para mãe. Se, para determinada mãe, o importante era que a babá gostasse muito do filho dela; para outra, a expectativa era a de que a babá não gostasse tanto assim da criança, o que evitaria uma forte relação de apego entre babá e criança (e vice-versa). Mas “olhar bem a criança” é uma das sentenças compartilhadas pelas mães. Olhar no sentido de cuidar bem (e aqui diversos aspectos são contemplados) e no sentido mais estrito do termo: não tirar os olhos de cima da criança ou, ainda, manter a criança dentro de uma área de observação ao alcance dos olhos (e das mãos) da babá.

 Assim, na praça era movida por esse “milagre do olhar” de que fala Simmel. Olhava quem estava olhando, observava quem estava observando. Na análise dos sentidos apresentada em “The sociology of the senses”, Simmel parte da percepção sensorial do outro e afirma que cada um dos sentidos tem uma contribuição sociológica na percepção do outro, e, portanto, cada tipo de troca de experiência sensorial produz um tipo de interação (Simmel, 1997). Dentre os sentidos analisados, a preeminência da visão é justificada pelo autor por considerá-la um sentido fundamental para a sociabilidade na cultura moderna.

O privilégio do rosto e o “milagre do olhar” são manifestações da primazia da visão no tipo de sociabilidade descrita por Simmel. Contudo, em “La signification esthétique du visage”, o autor não deixa de enfatizar que, embora

o rosto expresse os movimentos de extrema emoção com o mínimo de movimento próprio, o olho é o órgão que atinge a plenitude. O olho parado — como um elemento crucial da paisagem — tem as propriedades de uma agência. Parado, mantendo a sua posição na face, o olho penetra, lembra, envolve um espaço, vagueia, ele parece passar por trás de um objeto observado ou atrair em relação a ele. (Simmel, 1988)

Em várias situações, o “ficar de olho na criança” assume a primeira posição na listagem de exigências da mãe, dirimindo conflitos (por vezes) presentes entre camadas sociais distintas, gerados pelo não compartilhamento de demais códigos sociolinguísticos. Os olhos da babá não precisam ser os olhos da mãe, tal como a babá Patrícia sugere; mas espera-se que eles tenham sempre no horizonte (próximo) a criança.

De que maneira acontecem as infinitas negociações nas relações entre camadas sociais distintas foi uma das motivações centrais da pesquisa. Para o antropólogo, o que esta problemática traz é como ele se situa no trabalho de campo, quando sua identificação em termos de status coincide com um dos segmentos pesquisados. Conhecendo os sentidos da vã intenção de “tornar-me nativa”, sabia que não precisava ser babá nem mãe para estudar esse universo. Procurava, então, “situar-me” e, como Geertz afirma, trata-se de “um negócio enervante que só é bem sucedido parcialmente, eis o que consiste a pesquisa etnográfica como experiência pessoal” (2008 [1973]: 10). Em que interstício situei-me ao longo desses meses relacionando-me com as diversas babás e mães, a fim de que ambas me orientassem na compreensão desse universo de relações?

Lembro-me de que no início do trabalho de campo na praça dos Girassóis, a mãe que me apresentou às outras babás da praça me disse que achava interessante eu me vestir com blusa branca. Vestida assim, supostamente as babás encontrariam um ponto seguro sobre o qual projetariam um código de identificação a ser compartilhado. Nem sempre ficavam claras as estratégias de negociação às quais recorria para pavimentar a minha permanência e o meu trânsito pela praça e pelo universo estudado. Talvez tenha recorrido menos a estratégias e deixei-me mais ser influenciada pela ambiência lúdica da praça.

 

Considerações finais

Das amas de leite — do acervo de Militão A. Azevedo (Museu Paulista), aqui apenas mencionado — às babás da praça dos Girassóis, descrevi ao longo deste texto o percurso da pesquisa etnográfica do meu interesse sociológico pelas relações (in)tensas entre mães e babás. Embora não tenha descrito aqui a breve pesquisa ao acervo do Museu Paulista, vale, finalmente, destacar que a considerei como parte da “etnografia do olhar”. Em outras palavras, foi importante “olhar” e procurar sentidos nas fotos consultadas desse acervo para que eu traçasse uma espécie de cartografia dos sentimentos retratados nos encontros entre crianças e amas de leite — ora presente na cena, ora velada atrás das cortinas — nas coxias do palco. Portanto, não avancei na direção de uma perspectiva histórica. Serviu-me apenas como uma passagem do percurso etnográfico. Os primeiros movimentos de uma “sensibilidade específica” — nos termos de Peirano (2009: 53) — voltada para um tema que nos incita intelectualmente.

Por diversos momentos na praça, me perguntei o que uma cena (aparentemente) inócua, ou uma fala qualquer, ou uma brincadeira da criança ou um gesto sem muita importância podiam significar antropologicamente. Ao discutir sobre as diferentes maneiras de falar sobre a sociedade (ficção, filmes, fotografias, etnografia, etc.) Becker afirma que os “relatos sobre a sociedade” (“as representações da sociedade”) “contêm observações que merecem ser lidas sobre como a sociedade é construída e funciona” (2009: 16-17). O autor sintetiza que “um relato sobre a sociedade, portanto, é um dispositivo que consiste em declarações de fato, baseadas em evidências aceitáveis para algum público e interpretações desses fatos, igualmente aceitáveis para algum público” (2009: 26). Nos argumentos de Becker, “fato” é uma parte de um relato sobre a sociedade, “é uma descrição de como as coisas são: como alguns tipos de coisas são, em algum lugar, em algum momento […] fatos estão carregados de teoria”. Por isso Becker entende que “nunca podemos tomar os fatos como óbvios. Não há fatos puros, apenas ‘fatos’ que adquirem significado a partir de uma teoria subjacente” (2009: 24). É nesse sentido que posso afirmar que falar das babás imersas nas famílias de seus patrões é falar das relações interclasses, é falar das redes sociais através das quais elas se movimentam, é falar das diferenças entre elas — as babás — e as empregadas domésticas, é falar de famílias de camadas médias e de elites, é falar de socialização das crianças.

 

Referências bibliográficas

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Receção: 16 de abril de 2014 Aprovação: 17 de junho de 2014

 

Notas

[1] Este artigo explora uma das temáticas desenvolvidas em minha tese de doutorado em Antropologia, defendida no PPGAS-Museu Nacional/UFRJ, sob a orientação do professor Gilberto Velho (Silveira, 2011). Assinala-se, igualmente, que a tese foi publicada como livro, neste ano corrente — 2014 —, com auxílio financeiro da FAPERJ — Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro.

[2] O relato integral dessa pesquisa, realizada no referido acervo iconográfico, encontra-se em Silveira (2011).

[3] Refiro-me à discussão de Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti a propósito de sua pesquisa sobre o espiritismo kardecista. A autora afirma o seguinte: “a aproximação de um ‘familiar’ […] que me era ‘estranho’ […] exigia que eu desfizesse essa estranheza, des-conhecesse—não no sentido de ignorar e recusar o que sabia, mas de desfazer conhecimentos pertencentes à esfera do senso comum que, como eu ia simultaneamente realizando, inundavam não só minhas ideias como em especial meus sentimentos a respeito do tema”(2003: 120).

[4] Os entrevistados apresentam nomes fictícios.

[5] Cantor e compositor brasileiro, considerado como um dos primeiros ídolos jovens da cultura brasileira.

[6] A meu ver, Lina cita algo de Sueli, personagem do filme Profissão Doméstica de Sérgio Goldemberg. Para Bárbara M. Soares e Luiz E. Soares, “sente-se que Sueli, no fundo, detesta a sua vida e sofre, mas não tem linguagem para verbalizar seu desconforto, sua amargura. Não tem distanciamento, já que parece naturalizar a situação. Ser doméstica talvez seja vivido como um destino inexorável. Como adotar uma postura crítica, quando não há alternativa no horizonte, nem mesmo no plano ideal?” (1998: 192).

[7] Jeanne Favret-Saada (2005) desenvolve sobre a noção de afeto a partir de seu trabalho sobre a feitiçaria no Bocage francês.

[8] Vidigal é um bairro da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro. A comunidade do Vidigal, após as transformações impulsionadas pela Unidade de Polícia Pacificadora, teve uma diminuição expressiva do tráfico de drogas e começa a ganhar o status de ‘favela chique’.

[9] A respeito disso, Gilberto Velho sempre nos falava, em sala de aula e em orientações individuais, para alargarmos a ideia que temos de uma entrevista formal e compreendermos que as conversas que temos em trabalho de campo já são uma espécie de entrevista.

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