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Sociologia, Problemas e Práticas

Print version ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.76 Lisboa Sept. 2014

https://doi.org/10.7458/SPP2014763898 

ARTIGO ORIGINAL

Orquestra da Boba: lugar de sonoridades plurais

Boba Orchestra: a place of plural sounds

Orchestre de Boba: lieu de sonorités plurielles

Orquesta de la Boba: lugar de sonoridades plurales

 

Ricardo Bento*

* Doutorando na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa, Avenida de Berna 26-C, 1069-061 Lisboa, Portugal. Email: ricardo.bento7@gmail.com

 

RESUMO

Neste texto foram examinadas as relações e práticas dos protagonistas de uma orquestra que surgiu num bairro social da Amadora. Os contextos sociais de desigualdade no bairro e o projeto como forma de capacitar a população em múltiplas dimensões de participação e cidadania são aqui explorados. Dessa forma é lançada a hipótese de poderem existir, nesse meio inter-relacional, campos de possibilidades criativas seguindo a linha teórica proposta por Gilberto Velho. Por outro lado, através deste ponto de vista etnográfico, problematizam-se as experiências de pluralidade, mediação e diferenciação como possibilidades de convergência entre aspirações e oportunidades, na sequência da exploração das redes de interação da orquestra.

Palavras-chave campos de possibilidades criativas, mudança social, música, pronomia.

 

ABSTRACT

This text examines the relationships and practices of the protagonists  of an orchestra that grew up on a council estate in Amadora. It explores the social contexts of inequality on the estate, and the project as a means of empowering the population in multiple dimensions of participation and citizenship. The author hypothesises that this inter-relational environment may generate fields of creative possibilities along the lines of the theory put forward by Gilberto Velho. At the same time, application of this ethnographical point of view to his exploration of the orchestra’s integration networks allows the author to problematize experiences with plurality, mediation and differentiation as possible means of convergence between aspirations and opportunities.

Keywords fields of creative possibilities, social change, music, pronomia.

 

RÉSUMÉ

Ce texte se penche sur les rapports et les pratiques des membres d'un orchestre né dans un quartier HLM d'Amadora, dans la banlieue de Lisbonne. Les contextes d'inégalité sociale dans le quartier et le projet en tant que vecteur de formation de la population dans de multiples dimensions de participation et de citoyenneté sont explorés ici. On pose ainsi l'hypothèse suivant laquelle il existerait dans ce milieu interrelationnel des champs de possibilités créatives suivant la ligne théorique proposée par Gilberto Velho. Par ailleurs, on problématise de ce point de vue ethnographique les expériences de pluralité, de médiation et de différenciation comme des possibilités de convergence entre aspirations et opportunités, à la suite de l’exploration des réseaux d'interaction de l'orchestre.

Mots-clés champs de possibilités créatives, changement social, musique, pronomia.

 

RESUMEN

En este texto fueron examinadas las relaciones y prácticas de los protagonistas de una orquesta que surgió en un barrio social de Amadora. Los contextos sociales de desigualdad en el barrio y el proyecto como forma de capacitar a la población en múltiples dimensiones de participación y ciudadanía son revisadas aquí. De esa forma es lanzada la hipótesis que pudiesen existir, en ese medio inter-relacional, campos de posibilidades creativas siguiendo la línea teórica propuesta por Gilberto Velho. Por otro lado, desde este punto de vista etnográfico, se cuestionan las experiencias de pluralidad, mediación y diferenciación como posibilidades de convergencia entre aspiraciones y oportunidades, en la secuencia de la exploración de las redes de interacción de la orquesta.

Palabras-clave campos de posibilidades creativas, cambio social, música, pronomia.

 

Introdução

A Orquestra Geração, designação portuguesa para um modelo de orquestras criado na Venezuela, surgiu em Portugal, na escola E.B. 2, 3 Miguel Torga, do Casal da Boba, no concelho da Amadora, em meados de 2007. Recorrendo a processos de aprendizagem musical em contexto de orquestra este projeto foca-se em populações que vivem em circunstâncias sociais, culturais e económicas vulneráveis. Atualmente a Orquestra Geração em Portugal tem mais de 800 alunos e 90 professores, organizados em 16 núcleos distintos, que se localizam na sua maioria em escolas públicas. A participação dos jovens nas orquestras e coros é voluntária e gratuita, e os instrumentos são fornecidos pelas autarquias ou pelos mecenas envolvidos.

A Orquestra Geração teve como fonte de inspiração o sistema nacional de orquestras infantis e juvenis da Venezuela, designado “El Sistema”, desenvolvido para oferecer oportunidades sociais, artísticas e intelectuais a jovens e crianças de poucos recursos que, de outro modo, não teriam forma de experimentar o exercício dessas atividades. Diane Hollinger (2006), que fez um estudo sobre o modelo do “El Sistema”, destaca a flexibilidade das orquestras junto das comunidades por procurarem combinar as melhores ferramentas dos métodos de ensino musical — Suzuki, Orff, Kodaly, Dalcroze — usando canções, dança e movimento numa filosofia de ensino integrado. Para além disso são reforçados os valores da assiduidade, esforço, abertura à comunidade e compromisso continuado entre alunos e professores, que iniciam a aprendizagem através da execução de peças musicais em conjunto nas orquestras, incentivando desse modo a reciprocidade nos objetivos delineados.

A orquestra do Casal da Boba, na escola E.B. 2, 3 Miguel Torga, surgiu em 2007 por intermédio de alguns atores institucionais, nomeadamente a Câmara Municipal da Amadora, a escola de música do Conservatório Nacional, o Ministério da Educação e a Fundação Calouste Gulbenkian. Posteriormente, o aparecimento de outros núcleos das orquestras distribuiu-se por diversas zonas do país: Amadora, Oeiras, Sintra, Vila Franca de Xira, Sesimbra, Loures, Coimbra, Mirandela, Amarante. Em determinados concertos os núcleos estão preparados para integrarem ensaios e estágios conjuntos. Em 2010, no concerto do fim do ano letivo na Aula Magna da Universidade de Lisboa, estavam presentes 700 alunos.

Os principais objetivos para a escolha destas práticas musicais como objeto empírico da investigação que está na base deste artigo passam pela análise das oportunidades sociais daqueles que participam no projeto. Por isso foram acompanhadas de perto a diversidade das relações de interação e as trajetórias dos indivíduos ao longo das suas experiências vividas na orquestra da Boba. Nesse sentido o foco nuclear da investigação e as observações realizadas nos diferentes níveis da orquestra A (principal), e orquestras B, C e D (categorizadas em função das capacidades e conhecimentos dos intervenientes) incidiram sobretudo nos cerca de 40 elementos da orquestra A. Estes graus nas orquestras servem para distinguir quem tem os reportórios mais bem estudados ou aqueles que apresentam uma aprendizagem mais desenvolvida em relação aos que ainda denotam pouca experiência ou conhecimento, como no caso da orquestra D. No entanto, esta circunscrição toma em consideração as alterações dos percursos individuais entre os níveis de organização, dado que estes não acontecem de forma hermética, e são valorizadas as passagens e relações entre as diferentes avaliações.

A observação no terreno organizou-se em dois períodos distintos: o primeiro, entre outubro de 2010 e janeiro de 2011, e o segundo, de outubro de 2011 a abril de 2012. A estratégia da pesquisa orientou-se pela metodologia etnográfica, através de entrevistas aprofundadas e semidirigidas, mobilizando os processos teóricos, metodológicos e estratégicos de uma abordagem qualitativa e intensiva. Deste modo, foi possível observar, registar e interpretar as atividades entre alunos e professores das aulas individuais e de grupo, dos ensaios e dos concertos.

A orquestra do Casal da Boba foi definida como lugar crucial de focagem deste percurso analítico, o que permitiu observar e compreender o modo como se combinaram a pluralidade de valores, capacidades e relações que estão em jogo naquelas práticas orquestrais, acrescentando os contextos sociais dos protagonistas.

Em que medida a pluralidade cultural e social da orquestra da Boba contribui para um processo de resposta à adversidade das condições sociais desiguais vividas pelos seus participantes? A possibilidade de que se clarifiquem as hipóteses, na análise das situações orquestrais e dos contextos do bairro, está enraizada na estratégia da presente investigação.

 

Voz do bairro, ecos da orquestra

No seu conjunto, a maior parte dos alunos da orquestra do Casal da Boba vive no bairro ou nos arredores. O bairro social do Casal da Boba, construído em 2001, está situado no topo de uma colina, num dos limites da fronteira norte do concelho da Amadora, na freguesia de São Brás. As ruas do bairro são amplas e desafogadas, com espaços exteriores organizados de forma geométrica e funcional. Os edifícios têm entre três a cinco andares de altura, com uma arquitetura contemporânea de linhas direitas e volumetria cúbica.

Embora possamos localizar o bairro num espaço geográfico periférico relativamente ao centro do concelho, na sua configuração interior observamos a existência de serviços e equipamentos sociais. Mesmo na área central do bairro está situada a escola E.B. 2, 3 Miguel Torga, a esquadra de polícia, a junta de freguesia e a associação Amigos de Cabo Verde. Por outro lado, os habitantes do bairro do Casal da Boba, na sequência de um processo de realojamento, são provenientes de diversos locais de habitação ilegal ou degradada do concelho: as Fontainhas, o bairro 6 de Maio, o Alto do Trigueiros, entre outros. Sabendo que a cidade foi destino de diversos fluxos migratórios desde os anos 70, nomeadamente oriundos do centro do país, de Cabo Verde, Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, tais processos de integração e realojamento, no concelho da Amadora, foram focos estruturantes da demografia do bairro, assim como da paisagem urbanística.

Num olhar mais pormenorizado sobre o padrão socioeconómico da população do bairro deparamos com as reduzidas qualificações escolares das famílias e insucesso escolar prematuro dos jovens, que tendem a exercer profissões pouco qualificadas. Mais de metade da população está dentro desta faixa etária, com cerca de dois terços de origem africana, sobretudo cabo-verdiana, cuja maioria não chegou a frequentar o ensino secundário e superior (Machado e Silva, 2009).

O estado de coisas descrito nos dados anteriores sustenta a análise do contexto de desajustamento entre o universo escolar e o familiar, que leva em muitos casos ao aumento da tendência para a reprovação e insucesso no ensino formal. De maneira similar, algumas das trajetórias de abandono precoce da escolaridade obrigatória (52,3% não concluíram o 9.º ano) também se mostram frequentes; muitos jovens acabam por sair do sistema de ensino devido a um acesso desigual aos recursos disponíveis (sociais, económicos e culturais) e, como consequência, entram no mercado de trabalho em profissões pouco qualificadas, sem projetos e com as suas possibilidades de transição entre diferentes universos sociais e simbólicos diminuídas.

Assim, de acordo com Machado e Silva (2009), 23,7% dos indivíduos residentes no bairro encontram-se desempregados, porém apenas 2,2% recebem subsídio de desemprego, sendo a média nacional 7,3%. Podemos evidenciar na configuração das profissões do bairro a ausência significativa de quadros superiores, dirigentes, especialistas e profissionais intermédios.

Por um lado, as redes de sociabilidade existentes no meio social do bairro, na família, nos grupos de pares e na escola têm em comum a mesma condição social desfavorecida, o que acentua a probabilidade de fechamento dos jovens em quadros de interação de mobilidade social descendente (Costa, 2008 [1999]). Nesse sentido, a limitação desses recursos, reforçada pela convergência de processos, aponta para que a probabilidade de transformação dos reduzidos capitais sociais, as possibilidades efetivas de poder fazer escolhas sejam afetadas negativamente. Por conseguinte, as oportunidades de mobilidade social ascendente estão condicionadas por fenómenos sociais que os indivíduos têm dificuldade em identificar e controlar, uma vez que se encontram demasiado longe dos mesmos.

Teoricamente, estamos perante três dimensões fundamentais de análise, que se intersetam naquilo que se poderia designar como diálogos entre culturas juvenis, desigualdades sociais e processos de mudança social.

Tal como no estudo realizado por António Firmino da Costa — Sociedade de Bairro: Dinâmicas da Identidade Cultural (2008 [1999]) —, que articula padrões culturais, classes sociais e quadros de interação numa longa e aprofundada investigação do bairro de Alfama, ou como no estudo de William Foote Whyte — Street Corner Society (1993 [1943]) —, que descreveu e equacionou as relações de grupos de jovens num bairro pobre de Boston, também no nosso estudo, inspirado por aquelas obras, foram procurados os contextos de vulnerabilidade social dos protagonistas da orquestra da Boba, os padrões de conduta, as orientações de vida e os seus códigos simbólicos.

Por outro lado, procurámos compreender as relações mantidas com o modelo complexo de organização cultural e simbólica de uma orquestra, no sentido de serem propiciadas trajetórias de mobilidade social ascendente por via da participação conjunta nessa rede de relações.

Assim, compreender as nuances das diversas escalas de complexidade que se vão disseminando na morfologia de uma orquestra, de modo a clarificar as suas interligações com os contextos e as situações sociais adversas do bairro do Casal da Boba foi uma das preocupações que atravessou todo o trabalho de pesquisa.

Na sequência das propostas sugeridas por Gilberto Velho (1987, 1994), a orientação das entrevistas e das observações realizadas na densa rede de relações da orquestra seguiu as noções de campo de possibilidades e de projeto, com ligeiras afinações conceptuais que se foram estruturando na relação recursiva entre teoria, método e empiria (Beaud e Weber, 1998). Deste modo, as configurações relacionais que é possível observar e interpretar na presente investigação assinalam a tendência para o aparecimento de contextos de interação específicos. O esforço individual e coletivo assumia, aqui, uma importância fundamental para o alcance das aspirações planeadas entre protagonistas e orquestra. A relação dos conceitos de projeto e campo de possibilidades (Velho, 1987, 1994) permitia organizar a interpretação das trajetórias sociais dos protagonistas, mesmo quando estes participavam em diferentes esferas simbólicas e culturais.

Neste sentido, a noção de projeto encontra-se ligada às explorações, aos desempenhos performativos e às decisões ancoradas em avaliações e definições da realidade, sendo de notar que a complexidade das relações na orquestra e a interseção dos objetivos desta com os projetos individuais implicam uma reinterpretação dos estilos de vida. Os atores veem potenciada, dessa forma, a mudança das suas redes de sociabilidade, uns em relação aos outros. Nesta ordem de ideias são observados os movimentos de partilha entre as decisões individuais e os vínculos a um contexto reticular e interdependente de oportunidades sociais e simbólicas, nas convenções elaboradas no longo processo histórico de racionalização da notação musical, que facilitou o florescimento da música complexa, tal como aquela que temos numa orquestra sinfónica.

 

Entre concertos e aprendizagens

Podemos afirmar, segundo a terminologia elaborada por Tia DeNora (2003), que o manuseamento de conteúdos musicais é uma das formas de ter acesso a modelos de preservação da complexidade, o que por outras palavras significa que estes modelos revelam relações entre as partes e o todo e, em simultâneo, mostram os modos como estas podem ser concebidas ou configuradas. De modo sucinto, a organização da aprendizagem musical na Orquestra Geração, do Casal da Boba, denota uma sofisticada e rigorosa elaboração. Por conseguinte, as aulas dividem-se e subdividem-se de forma a alcançar de forma diferenciada sentidos simbólicos, sociais, pedagógicos e culturais. Podemos destacar três níveis principais de interação nas práticas da aprendizagem musical: as aulas individuais, os naipes e, por último, os ensaios da orquestra, que reúnem todas as técnicas e idiossincrasias das práticas subdivididas dos vários instrumentos, conjugando os diversos naipes musicais numa perceção do todo.

Importa realçar que estas atividades têm lugar depois das aulas do ensino formal, num horário intenso, cerca de quatro horas diárias, e aos sábados de manhã com os ensaios da orquestra. Reforçamos que as aulas individuais aferem e desenvolvem o esforço intraindividual de cada um dos protagonistas, através de métodos de leitura das notas musicais (solfejo), técnicas de execução instrumental, dinamismos interpretativos, sentidos expressivos das peças musicais, e outros significados ligados à esfera da atividade musical. Noutro sentido, os naipes designam a constituição de secções que compõem as caraterísticas morfológicas da orquestra e nas quais os músicos tocam em conjunto, integrando uma especificidade de práticas determinadas pela própria família de instrumentos musicais.

Não sabia como pegar, era um objeto desconhecido. Primeiro comecei a tocar sem dedos, aprendi o nome das cordas, mais à frente aprendi a afinar, a respiração. Quando se começa uma música deve-se respirar para iniciar, depois aprendi melhor o vibrato. [Mónica, 16 anos, toca violino]

Além das aprendizagens quotidianas, a realização de concertos assume uma importância crucial para os protagonistas sentirem a autenticidade de todo o seu esforço e empenho numa troca partilhada com a audiência. A participação nas práticas da orquestra, nos ensaios, na arrumação e preparação dos instrumentos, nos concertos implica, de certa forma, esta incorporação das noções de backstage e frontstage de Goffman (1993), dado que a interação pressupõe a manutenção expressiva da situação e assim a aprendizagem de determinadas condutas sociais está presente no próprio trabalho performativo da orquestra.

Numa viajem de autocarro, num final de tarde de outono, com nuvens de chumbo e chuva densa, a orquestra da Boba dirigiu-se para mais um concerto. Os cerca de 30 alunos falaram durante todo o trajeto com os professores de forma cúmplice e a excitação nervosa de irem tocar novamente para um público desconhecido invadia a atmosfera. Conhecer os bastidores, a vivência de saírem em conjunto do bairro, da escola onde fazem os ensaios, ganhava cada vez mais importância para perceber os sentimentos de pertença nessa mudança de contexto, dessa aventura vivida em conjunto. No local onde se fizeram as últimas afinações, onde ainda imperavam os movimentos informais do backstage, na linha de Goffman (1993), observavam-se os gestos de ajuda para encerar um arco de violino, as mãos que compunham a roupa, que arranjavam o cabelo antes de entrar em palco, uma canção que era entoada, uma ondulação que embalava o corpo num ritmo invisível. As brincadeiras para libertar a tensão e os semblantes concentrados coexistiam lado a lado. Na preparação de todo este aparato necessário para atuar no concerto, um certo caos inicial foi dando lugar à forma como os instrumentos estavam dispostos, as estantes com as partituras e os lugares a serem ocupados pelos protagonistas da orquestra. Os sinais do corpo, a forma de andar, de segurar os instrumentos, a concentração e o silêncio assumiam uma expressão mais coordenada quando entravam em palco. [Notas de campo, 26 outubro de 2011]

A morfologia da orquestra sinfónica ocidental, que está na base da organização e da criação da orquestra da Boba, permite aceder a um lugar de códigos e modelos complexos de interação. Estes “modelos” podem de alguma forma equilibrar uma tendência para ocorrerem processos de desigualdade social dentro do bairro, como de seguida será referido. Desta forma, são propiciados, através da criação de redes de relações e significados, acessos a redes de sociabilidade mais alargadas (Agier, 2009), colocando em ação códigos simbólicos e culturais criadores de capacidades, disposições e visões de uma empatia cosmopolita que vive as diferenças partilhadas como um dos sinais positivos das sociedades contemporâneas, nas possibilidades desta para combinar relações de proximidade e distância.

Numa das aulas de violino cerca de seis ou sete alunos começavam por fazer o aquecimento das mãos, uma ginástica de dedos com pequenos exercícios que eram repetidos pela observação e imitação dos movimentos do professor. Depois liam a partitura (de forma cantada) respeitando os códigos da notação musical, uma prática designada solfejo. Os alunos iam repetindo uma variação multíplice de leituras que facilitava a memorização da peça que estavam a estudar, e em paralelo as práticas de leitura da notação musical com a identificação das notas e dos seus tempos eram desenvolvidas sem quase darem por isso. Existia um sentido muito prático e coordenado nas atividades da aula: num momento estavam concentrados nos movimentos do professor, no outro estavam a imitar os mesmos movimentos num som conjugado e uníssono. As dificuldades na leitura de um determinado compasso, um atraso na ligação entre notas, a pulsação errada de um andamento eram correções feitas na altura pela orientação focada do professor. No entanto, depois de repetidos e interiorizados os compassos fragmentados das peças, os arcos dos violinos erguiam-se no espaço vazio desenhando uma coreografia onde as ligações ao todo se faziam corpo, movimento, sentido e voz.

Eles ajudam-se muito uns aos outros […] Para a próxima pode ser aquele que está em dificuldades a ensinar o outro. Agora nem é preciso dizer nada e isso acontece constantemente por aqui nos corredores […] Na orquestra A temos cerca de 40 alunos. Às vezes alguns alunos da A vão para a B e pode ser positivo para ambos porque ensinam um repertório que já sabem. Gostávamos de ter uma orquestra sinfónica de mais ou menos 80, eu gostava muito. [Sandra, coordenadora da orquestra da Boba, 27 de outubro de 2010]

Esta abertura a múltiplas possibilidades de negociação da realidade através de atividades cooperativas e convenções (que simplificam e ajudam a reduzir recursos) permite aprender a organizar experiências estéticas e sociais não familiares. Assim, se houver desconhecimento das convenções não há comunicação possível entre quem tenta fazer algo, e quem supostamente pode vir a colaborar ou a entender essa expressão. Se por acaso tal suceder, isso significa que a cooperação entre ambos está desligada. Por outro lado, como afirma Howard S. Becker (1982: 301): The history of art deals with innovators and innovations that won organizational victories, succeeding in creating around themselves the apparatus of an art world, mobilizing enough people to cooperate in regular ways that sustained and furthered their idea.

Neste aspeto, acresce a relevância crucial da cooperação como processo de negociação e transformação das visões do mundo, e este encadeamento teórico aparece inclusivamente como essencial na própria modificação das regras e códigos simbólicos que mantêm uma determinada convenção. No caso da criação das redes de relações e significados da orquestra da Boba podemos articular os critérios de cooperação com os diferentes esquemas de desenvolvimento e dimensão de análise da rede. Na escala microssocial, na atenção focal mútua (sem a qual as disposições e as capacidades plurais dos protagonistas não seriam atualizadas por falta de congruência), seguindo as pistas de Randall Collins (2004); na escala mesossocial, na negociação de projetos no campo de possibilidades da orquestra; e a nível macro, nos potenciais de metamorfose gerados pelas redes de interação na criação de encontros entre aspirações e oportunidades dentro e fora da orquestra.

Ao princípio senti-me longe de casa. A escola no início era um bocado esquisita, não havia grades nem nada disso, podíamos entrar e sair livremente. A Miguel Torga por exemplo está cheia de grades. Foi um bocadinho esquisito porque aqui tinha muitos amigos, e depois lá [no Conservatório] senti muita diferença. Aqui tinha muitos amigos e colegas de origem africana e lá era quase o único. [Diogo, 15 anos, toca tuba e é aluno da escola de música do Conservatório Nacional]

Na aprendizagem das práticas musicais na orquestra da Boba são enfatizadas as virtualidades de começar a tocar logo nas primeiras sessões. Os processos performativos passam por imitar o professor e o grupo de pares por observação e repetição. Porém, a entrada na esfera de sentido das práticas das orquestras sinfónicas ocidentais e da música em geral aí executada só acontece, em certa medida, quando as primeiras leituras da notação musical começam a ser compreendidas.

As redes de relações e significados em formação no processo criativo da orquestra mostram aos protagonistas as hesitações, os fracassos, as vitórias alcançadas por aproximação, por etapas graduais, por repetição e superação. Deste modo, o que se alcança neste “fazer de coisas” passa por desvelar a opacidade do que é aparentemente apresentado como terminado, sem mácula nem erro. As hierarquias de um palco distanciado, as receções passivas de uma peça musical ganham contornos vivos de arestas e descontinuidades que se escondem na superfície das coisas. Desta maneira, a facticidade das performances musicais repousa num significado intersubjetivo que é mantido e recriado pelas relações mediadoras da interação com os sistemas de tonalidade convencionados.

Alguns dos protagonistas entrevistados explicaram que depois de terem entrado para a Orquestra Geração da Boba fizeram provas e integraram escolas vocacionadas para o ensino profissional da música, como a escola do Conservatório Nacional de Música, ou a Metropolitana de Lisboa. Embora alguns deles sejam modelos que os outros pretendem seguir, e assim, desse modo, sejam fortalecidos laços de interação na partilha de conhecimentos e afetos dentro da orquestra, por outro lado também ocorrem tensões e conflitos quando se fazem escolhas, de quem fica de fora e de quem participa, nas apresentações de um concerto agendado, por exemplo. Sendo necessário gerir rivalidades, expetativas e desejos frustrados.

No entanto, embora nestes casos a pertença a múltiplas instituições no âmbito da aprendizagem musical apareça como uma realidade, a importância fundamental do projeto da orquestra da Boba é para os protagonistas inquestionável, mesmo quando questionados sobre as novas possibilidades em perspetiva. A orquestra é vista como ponto de partida e como lugar ao qual posteriormente se regressa.

A orquestra para mim faz parte da minha vida. É uma grande oportunidade que nos deram […] Nas trompas é mais complicado estar a estudar, os harmónicos estão muito juntos, para treinar as flexibilidades e afins. Na viola de arco era mais estudar as partituras. Eu dou ao meu colega de naipe as partituras de primeira trompa para ele aprender os meus papéis, para eu também poder fazer os outros lugares. Os sopros são mais brincalhões. As cordas acho que têm mais disciplina. As partes que têm para tocar são mais rápidas e complexas por isso precisam de mais treino. As percussões também gostam de brincar, mas nós, os sopros, somos mais fixes [risos]. [Patrícia, toca trompa, 16 anos]

 

Jazzband e projetos paralelos

No decurso das práticas da Orquestra Geração do Casal da Boba, nasceu um projeto de aprendizagem musical, a Big Jazz Band (Gerjazz), que ensaiava os seus temas em paralelo com as peças da orquestra da Boba. Por esta via, a partir do modelo inicial da orquestra sinfónica, surgiram outros processos de interação, nos quais os protagonistas experimentavam diferentes práticas musicais.

Na Gerjazz uma evidência ressaltava de imediato quando comparávamos de forma genérica as suas práticas com as da orquestra da Boba. Os protagonistas eram incentivados a improvisar por cima da cadência rítmica que os pares mantinham continuamente, mesmo que ocorressem pausas repentinas nos solos, “erros” nas ligações das notas ou bloqueios embaraçosos nos gestos performativos. Aliás, eram pedidas capacidades de improvisação a cada um dos intervenientes deste ensaio, sem que ninguém ficasse excluído de expressar a voz singular do contrabaixo, da tuba, do trompete, do trombone ou das percussões. Esta singularidade emergia do pano de fundo sonoro que o grupo de pares engendrava como se fosse uma dança disposta em círculo. Lugar onde um de cada vez se dirigia ao centro de uma circunferência imaginária para partilhar a linguagem improvisada do seu movimento. Em sentido inverso, nas práticas da orquestra, os solistas traduziam as intenções e emoções da notação prévia de uma dada composição, como forma de controlar o acaso. Nas esferas simbólicas do jazz era a apropriação do inesperado, a combinação de motivos e ritmos que surgiam no momento da própria atuação que propiciava a ligação expressiva entre os músicos.

De facto, no caso dos músicos de jazz a mestria da sua improvisação está apoiada por um vasto contexto de suporte social, seja por via de mentores, relações privilegiadas no grupo de pares, ou linguagens congruentes que sustentam sentidos comunicacionais entre os participantes do processo performativo. Nos ritmos ondulantes de uma versão composta por Miles Davis, sentíamos as pulsações e as intermitências instrumentais dos solos mais agudos e mais graves a contrastarem nas paredes nuas do refeitório da escola E.B. 2, 3 Miguel Torga. Noutra ocasião, ouvia-se num pátio exterior da escola a paisagem sonora do trompete a ensaiar as mesmas frases melódicas, disseminando notas e melodiosas texturas no espaço etéreo do bairro. Desta maneira, seguindo as reflexões enfatizadas por António Pinho Vargas (2011: 508), “[a]s vozes de novas músicas e novos cânones só podem produzir uma comunidade mais interessante e diversa se, de facto, o poder estiver distribuído com mais igualdade”.

Neste aspeto, importa realçar como a diversidade de trajetórias e experiências nas quais alguns protagonistas da orquestra da Boba participam se evidenciam pela hipótese de abertura a uma multiplicidade de possibilidades de interação frequentes e duradoiras. Logo, podemos representar desta maneira o cariz fundamental do desenvolvimento de disposições e capacidades plurais no contexto de uma organização que de facto procura criar relações ativas entre os professores, os alunos e a sociedade.

Poderíamos considerar que a participação dos protagonistas da orquestra da Boba em festivais de música contemporânea — como foi o caso do Big Bang, em 2011, no Centro Cultural de Belém, com a colaboração de um músico de jazz da cena americana, workshops que decorreram no Hot Club, em Lisboa, arranjos inusitados de peças musicais de Cabo Verde (um funáná), de música cigana — desvendava modos de saber, províncias de significado até esse momento ocultas e por transitar. Para além disso, acrescentaríamos os encontros ocasionais que relatavam as experiências de terem tocado num descampado do Casal da Boba, com as pessoas dos prédios em frente que na altura ouviam as invenções sonoras, partilhando, desse modo, as capacidades que saíram à rua e faziam do espaço público uma “apropriação simbólica”. Importa ainda referir que alguns dos projetos construídos pelos protagonistas da orquestra nasciam destes contactos exploratórios e das negociações dos interesses divergentes ou convergentes, semelhantes ou contrastantes.

Nesta conjugação de influências, ter preferência por música rap, heavy metal, pop rock, erudita ou eletrónica, embora pareça ser à primeira vista um fator de fechamento em tribos diferenciadas por culturas e significados díspares, adquire, pelo contrário, um caráter de composição e recombinação no campo de possibilidades (Velho, 1994) da orquestra da Boba.

O desempenho institucional da orquestra e as suas convenções modificam-se. Como consequência destas orientações, as qualidades flexíveis, diversas e estruturantes da organização num processo bottom-up, referido por Sieber e Centeio (2010), rompem com noções de hierarquia assentes em visões demasiado centradas nas origens elitistas das orquestras sinfónicas, sedimentadas por movimentos históricos de longa duração. A proximidade das relações na orquestra forma um conjunto de sentido simbólico mais fluido e partilhado com as populações onde se inscrevem. Neste caso específico através do encadeamento de atividades centradas no equilíbrio cooperativo dos seus protagonistas.

Nesta linha de raciocínio, considero a probabilidade de a orquestra da Boba ilustrar a ultrapassagem de alguns dos pressupostos convencionais que poderiam em princípio impedir a estrutura institucional de uma orquestra, em termos gerais, de se adaptar a um meio social mais distante e adverso, por via de favorecer a “expressão polifónica” de projetos multidisciplinares e contemporâneos no interior das disposições e atividades negociadas pelos agentes.

Desta maneira, o enquadramento das possibilidades de ação e a sua diversidade expressiva no manuseamento desses conteúdos simbólicos tendem a contornar as limitações das vias de sentido único ou a paralisia excessiva dos labirintos económicos, sociais e culturais dos contextos sociais desfavorecidos, nos quais estes atores se encontram, em consequência de, porventura, existir permeabilidade dos modelos complexos da orquestra relativamente aos seus processos de interação com os padrões culturais e sociais das redes de sociabilidade do bairro. Desta concomitância de linguagens musicais (clássica, contemporânea, popular, jazz) que atravessam as práticas dos alunos e professores da orquestra da Boba nascem focos propiciadores de percursos singulares e diferenciados.

Numa das observações realizadas foi possível assistir à preparação das condições necessárias para os alunos se apresentarem em forma de audições, aos professores e às famílias. A sala do refeitório da escola Miguel Torga era um frenesim de cadeiras, estantes (para as partituras) e instrumentos musicais. A efervescência emocional daquele grupo diverso e extenso era sentida nos diálogos, nas expetativas de irem revelar ao grupo de pares, aos professores e aos familiares a aprendizagem alcançada durante as aulas e os ensaios. Durante alguns dos ensaios, antes das audições, o Daniel (clarinete), o Diogo (tuba), e o Isalcino (trombone) abordavam os professores e negociavam o plano de terminarem as audições com uma música criada por eles (neste caso um rap sobre a Orquestra Geração). Os professores pediram para ouvir, de modo a entenderem o resultado da ideia. A composição misturava os teclados eletrónicos do Daniel, as sonoridades do trombone do Isalcino e a voz do Diogo. Desta maneira, expressavam um tema de agradecimento à Orquestra Geração (professores, alunos, e funcionários) através da pluralidade de capacidades e disposições (Lahire, 2008) atualizadas no próprio campo de possibilidades da orquestra.

Nos corredores da escola, no espaço de recreio e durante as pausas entre as aulas de naipes viviam-se improvisações experimentais inerentes à sensibilidade exploratória dos instrumentos musicais. Deflagrações sonoras, “interferências” das cordas de um contrabaixo, de um violino, nas frases musicais estudadas por alguém que tocava tuba ou trombone. Gramaticalidade exercitada num ato expressivo de comunicação sem palavras, mas com um código partilhado por sentimentos, vozes, ritmos e harmonias.

Desta forma, a música criada pelo Daniel, o Diogo e o Isalcino, para lá das livres associações mais imediatistas, supõe a perceção de fazer uma escolha livre e de exercer as oportunidades de concretização das ações planeadas, dos projetos e emoções. As aspirações convergem no sentido das oportunidades, dando espaço à atualização de capacidades e à possibilidade efetiva de ter alternativas, de poder realizar discernimentos.

 

Origens e possibilidades da orquestra

Bernard Lehmann (2002), na sua pesquisa sobre as principais orquestras parisienses, elabora um conjunto de classificações nas orientações dos protagonistas em relação às orquestras por ele analisadas, que mostram grupos de origem social com condutas diferenciadas dentro da orquestra: “os promovidos”, “os desclassificados” e “os herdeiros”. Por essa via compreensiva, o autor depara com a existência de uma tensão polar, de atração e repulsa, que reflete um sentimento de ambivalência em relação às disposições da orquestra. Na sua ótica analítica identifica, “os promovidos” (oriundos de um estrato social baixo) e “os desclassificados” (de origem social média alta) com um conjunto de aspirações que vai para além do que é oferecido pela organização e pela posição em que se encontram na rede relacional da orquestra.

Neste sentido, torna-se frequente serem indivíduos que dinamizam outras formas de expressão musical para lá das fronteiras da orquestra, como a música popular, ou registos alternativos de música erudita (jazz, música de câmara, contemporânea, etc.). Em contraposição, “os herdeiros” são os filhos de músicos que estão desde muito cedo sob a influência e as predisposições das práticas musicais dos seus progenitores. Revelam a tendência deste ideal-tipo para se integrarem melhor nas posições que ocupam na orquestra e ajustam a sua trajetória ao que de algum modo é esperado.

No encadeamento teórico de Lehmann (ibid.), “os herdeiros” reproduzem os conhecimentos e as práticas adquiridas no contacto com o meio familiar e adequam esses conteúdos ao papel que têm na orquestra, quer tenham mais inclinações para serem solistas ou intérpretes de grupo (tuttistes) na criação de sonoridades uníssonas.

Então, se numa determinada perspetiva importa explorar a complexa rede morfológica e disposicional de uma orquestra, de forma a elucidar o cruzamento de elementos históricos, sociais e simbólicos, de outro ângulo torna-se fundamental reforçar que a pertença à orquestra não advém apenas do conhecimento dos códigos culturais estéticos e técnicos que permitem uma boa interpretação musical da peça em questão. As relações sociais de amizade, competição, conflito e entreajuda entre os pares da orquestra são cruzadas com as posições simbólicas da organização da própria orquestra.

Deste modo, seguindo ainda a análise do mesmo autor, podemos esquematizar, de forma sintética, a morfologia das orquestras sinfónicas ocidentais nas seguintes vertentes: as famílias instrumentais (cordas, madeiras, metais e percussões), a relação de mais ou menos exposição dentro da orquestra (primeiro violino e segundo violino, por exemplo), a abordagem dos compositores na utilização dos instrumentos (solistas, melódicos, harmónicos e rítmicos) e uma divisão entre instrumentos agudos e graves.

Na orquestra da Boba teríamos de considerar, seguindo as perspetivas anteriores, que a maioria dos seus protagonistas se encontrava defronte dum modelo complexo de valores, de códigos de interação e relações culturais que estavam ausentes das redes de sociabilidade quotidiana do bairro do Casal da Boba.

Que tipo de interdependência se encontra em jogo? Como é que as mudanças intraindividuais e interpessoais acontecem dentro de um determinado quadro sociocultural? Como é que ocorre o trânsito entre projetos e redes de significados?

Podemos destacar a tendência, por intermédio de uma consciência desperta para a consciência dos outros, de as disposições plurais dos protagonistas encontrarem nesse entrelaçado de relações um lugar para se atualizarem. Neste universo de atividades da orquestra existe uma reciprocidade inerente às próprias práticas; uma vez que não é possível o exercício dos desempenhos individuais de forma aleatória ou ocasional, o foco das capacidades e disposições individuais alterna de modo polifónico com as configurações do grupo. Ou seja, o desenvolvimento da singularidade melódica das vozes individuais progride de forma autónoma, na medida em que a expressão das diversas vozes observe a rigorosa unidade da composição musical, a par das múltiplas gradações que ligam os gestos simbólicos e performativos entre si.

Como consequência, aduzimos que nos campos de possibilidades é que se podem elaborar projetos (Velho, 1994), o que assinala a hipótese de existirem campos de possibilidades específicos, campos de possibilidades criativas. Estes desenvolvem formas de interação potenciadoras de mediação (Velho, 2012), ou seja, práticas que permitem a negociação e o desenvolvimento da capacidade de transitar entre diferentes códigos e grupos, colocando em evidência a possibilidade de ponderar e questionar a natureza das complexas redes de interdependência que englobam as trajetórias individuais. Tendo em vista esta orientação teórica, as práticas de interação, as redes de interconhecimento analisadas no âmbito da orquestra da Boba revelam um processo de criação de empatia, uma dimensão cosmopolita capaz de se colocar no lugar do outro e de organizar mudanças nos estilos de vida e na visão do mundo dos atores implicados.

Embora seja possível constatar que nas sociedades contemporâneas os indivíduos se movimentem em diferentes esferas sociais sem prejuízos de maior, argumentamos que a expansão de redes de interdependência cada vez mais complexas e menos controláveis (Elias, 1993: 174) pode, pelo contrário, limitar as margens de manobra dos indivíduos. Como, por exemplo, por via de “processos” criadores de desigualdade, no sentido em que são referidos por Göran Therborn (2006), de distanciamento, exclusão, hierarquização e exploração das relações humanas, que marcam ininterruptamente diferenças injustas nas trajetórias condicionadas da vida social. Se, por um lado, os jovens e os diferentes grupos de sociabilidade revelam uma tendência plural e heterogénea nas experiências que vivem e exploram, nas sociedades contemporâneas, por outro lado, essas multiplicidades de disposições (Lahire, 2008), conjugadas com as complexidades dos contextos do nosso mundo multidiferenciado, nem sempre encontram as formas de se atualizarem. Admitindo uma tendência genérica para ocorrerem nas sociedades complexas contemporâneas processos criadores de desigualdade social, na sequência do desenvolvimento reflexivo de Göran Therborn (2006) podemos constatar que, no caso específico dos contextos sociais, culturais e económicos da população do bairro do Casal da Boba, esses fenómenos de distanciamento, hierarquização, exclusão e exploração manifestam-se em diferentes escalas e intensidades.

Desse modo, encontramos no baixo nível de ensino da população do bairro em geral, nos recursos económicos limitados, nas redes de sociabilidade fechadas e direcionadas para profissões pouco qualificadas, sentidos de incapacidade de atingir determinados padrões culturais inerentes à vida em sociedades complexas e heterogéneas. Essa perda de coesão social e de horizontes de sentido tende, num caso limite, para o aparecimento de fenómenos de anomia inter e intrageracional, seguindo as pistas teóricas de Robert Merton (1938) quando este observa a relação entre fins ou interesses culturais e os meios institucionais que regulam os modos de alcançar esses propósitos, analisando os desequilíbrios dos tipos de interação nos quais se verificam dissociações entre os intuitos culturais de um determinado grupo e as estruturas socialmente formadas para lhes dar resposta.

A dificuldade em consolidar ou criar normas, a ausência de uma relação congruente entre indivíduos e instituições e a falta de coesão social referida por Durkheim (1973 [1897]), tal como a classificação reificadora das condutas desviantes e os estigmas sociais a elas associados (Becker, 1985) convergem de modo diverso para o entendimento da noção de anomia. Em contraponto, mas também em diálogo com esta multiplicidade de visões, proponho o conceito de pronomia como uma relação na qual os indivíduos e grupos colaboram na construção de tecido social. Este sentido de coesão dos laços sociais, onde as instituições estimulam e favorecem as capacidades individuais, solicita uma nova forma de pensar as interligações entre a estrutura de oportunidades e a liberdade de fazer florescer as potencialidades humanas em conjunto. Assim, esta procura de um modo justo de distribuir os recursos e o bem-estar social em geral permite medir aos movimentos das diferentes organizações sociais. Uma vez que as sociedades mais igualitárias, para além aumentarem a profusão das relações entre redes, através da confiança face ao desconhecido, estimulam diálogos de invenção entre indivíduos, valorizando a dignidade da interação e as capacidades de cada um, contrariamente a modos de exploração que tendem a criar desigualdade e pobreza.

Desta forma a criação de elaboradas redes de interação, os lugares de encontro entre aspirações e oportunidades, as dimensões intermédias de mediação entre estrutura e ação podem ser vistos como manifestações das práticas presentes na orquestra da Boba. Na mesma linha, argumentamos que o acesso a campos de possibilidades criativas, para onde convergem aspirações e oportunidades, traduzem um processo social de pronomia. Neste quadro, os sonhos e aspirações individuais no fluxo desordenado da imaginação e da esfera complexa de oportunidades, onde os projetos se estruturam, encontram a hipótese de metamorfosear o que antes eram meras possibilidades em formas e sentidos atualizados de expressão social, articulando dimensões micro, meso e macrossociais.

 

Conclusões

Podemos afirmar que a pluralidade de disposições desencadeada através da rede de relações e significados presentes na complexidade relacional da orquestra está necessariamente atravessada pelos constrangimentos do meio social no qual ela se encontra inserida. Porém, e em sentido contrário, as interações e interdependências sociais, formadas pelas relações e significados da orquestra, permitem reduzir o peso das desvantagens sociais herdadas. Por se apoiarem numa gramaticalidade simbólica partilhada, em desempenhos e projetos congruentes na negociação da realidade (Velho, 1994), através de campos de possibilidades criativas que emergem das relações estabelecidas nas configurações da própria orquestra.

Em resumo, as disposições e capacidades plurais dos protagonistas na orquestra da Boba seguem uma orientação para projetos, que são negociados na esfera de modelos de preservação de complexidade (DeNora, 2003), lugares de encontro entre aspirações e oportunidades, campos de possibilidades criativas que se estabelecem em múltiplas dimensões: interações frequentes e prolongadas nos ensaios individuais, de naipes (cordas, sopros, ou percussões), na orquestra, ou na jazzband. Podemos ainda acrescentar a interpretação de reportórios diferenciados, a combinação de gostos pessoais com capacidades instrumentais entretanto adquiridas, os concertos, a organização logística dos grupos e dos instrumentos.

Nesta dimensão interpretativa assinalamos: “No plano individual, a participação em mundos diferenciados e o desempenho de múltiplos papéis levam ao desenvolvimento de um potencial de metamorfose particularmente rico” (Velho, 1994: 68). Por outras palavras, os contextos de interação da orquestra da Boba apontam no sentido de facultar o alargamento das redes de sociabilidade. Estas disposições para outros modos de saber, outros valores e interesses abrem em simultâneo o horizonte social dos seus protagonistas para inesperadas visões do mundo. Desta maneira, a hipótese de os sentidos singulares das redes de interação orquestral (estéticos, técnicos, históricos e expressivos) se poderem vir a configurar em campos de possibilidades criativas aparece como um modo criador de igualdade social. Logo, um lugar potenciador de capacidades e disposições plurais, num encontro entre aspirações e oportunidades sociais, ou seja, mecanismos de coesão e transformação social, processos de pronomia.

 

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Receção: 16 de maio de 2014 Aprovação: 7 de julho de 2014

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