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Sociologia, Problemas e Práticas

versión impresa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.76 Lisboa set. 2014

https://doi.org/10.7458/SPP2014763901 

ARTIGO ORIGINAL

“O pessoal está interessado numa tour”: ritos de procrastinação das cenas musicais underground

“My friends want a tour”: procrastination rites in underground music scenes

Les rites de procrastination des scènes musicales underground

"La banda está interesada en un tour": ritos de dilación de las escenas musicales underground

 

Rui Telmo Gomes*

* Investigador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Av. Prof. Aníbal de Bettencourt, n.º 9, 1600-189 Lisboa. Email: rui.gomes@ics.ulisboa.pt

 

RESUMO

A relação entre culturas juvenis e música é objeto de estudo com um longo desenvolvimento na perspetiva do ritual. O presente artigo foca não tanto o significado metafórico, mas a prática padronizada e os quadros de interação da cena musical underground, baseando-se num extenso trabalho de observação realizado em Lisboa na década de 2000. Os estratagemas de envolvimento e sustentação de uma prática estética precária são definidos como ritos de procrastinação e debatidos enquanto formas culturais liminares nas sociedades contemporâneas pós-industriais.

Palavras-chave underground, cenas musicais, liminar, ritual.

 

ABSTRACT

Youth cultures and music connections have long since been studied from a ritual perspective. Drawing on extensive fieldwork on the Lisbon underground music scene in the 2000s, the author departures from metaphorical meaning to focus on the patterned practice and interaction settings of music making. Schemes to engage and sustain such a precarious aesthetic activity are defined as procrastination rites and discussed as a liminal cultural form in contemporary post-industrial societies.

Keywords underground, music scenes, borderline, ritual.

 

RÉSUMÉ

Le rapport entre les cultures juvéniles et la musique fait l'objet d'une longue étude du point de vue du rituel. Cet article n'est pas autant axé sur le sens métaphorique, mais sur la pratique standardisée et les cadres d'interaction de la scène musicale underground. Il s'appuie sur de vastes travaux d'observation menés à Lisbonne dans les années 2000. Les stratagèmes d'implication et de support d'une pratique esthétique précaire sont définis comme des rites de procrastination et débattus comme des formes culturelles liminaires dans les sociétés contemporaines post-industrielles.

Mots-clés underground, scènes musicales, liminaire, rituel.

 

RESUMEN

La relación entre culturas juveniles y la música es objeto de estudio con un gran desarrollo desde la perspectiva del ritual. El presente artículo se enfoca más en la práctica estandarizada y en los marcos de interacción de la escena musical underground que en el significado metafórico, basándose en un extenso trabajo de observación realizado en Lisboa en la década de 2000. Las estrategias de envolvimiento y sustentación de una práctica estética precaria están definidas como ritos de dilación y debatidos como formas culturales interdictas en las sociedades contemporáneas post-industriales.

Palabras-clave underground, escenas musicales, interdicto, ritual.

 

Introdução

Uma das características mais salientes das cenas musicais underground e das bandas juvenis que as compõem é a aura de marginalidade (Císar e Koubek, 2012; Dale, 2012; Gosling, 2004; Guerra, 2013; Harrison, 2006; Solomon, 2005). A expressão émica, de uso corrente em inglês, demarca uma oposição ideológica face ao mainstream (metonímia para indústria fonográfica global, mercado massificado da música pop e respetivos circuitos profissionais). O uso nativo de underground refere-se também a formas de contestação juvenil, manifestação de valores antiautoridade e intervenção política — formal ou informal — de que a prática musical é expressão simbólica. Um outro significado usual é simplesmente o de lugares recônditos onde se faz música com amigos.[1]

Por outro lado, a dimensão marginal do underground tem sido pesquisada segundo diversos planos: dissidência criativa inscrita na prática musical (Pais, 2004; Seca, 2001); relação entre expressão simbólica e transição para a vida adulta (Bennett, A., 2000; Fornäs, Lindberg e outros, 1995); e, finalmente, articulação entre prática cultural e estratificação social (Hall e Jefferson, 2000; Rimmer, 2010; Willis, 1996). A conjugação de planos analíticos faz do underground um objeto de estudo do tema da marginalidade ou, mais exatamente, da liminaridade ritual nas sociedades contemporâneas (Pina-Cabral, 2000; Turner, 1987). O uso de metáforas relativas a ritual tem uma longa elaboração teórica no estudo da relação entre culturas juvenis e música, ora numa orientação mais estruturalista, como o conceito de subcultura segundo a escola de Birmingham (Hall e Jefferson, 2000), ora numa orientação que enfatiza a fluidez das culturas juvenis a partir do conceito de “neotribo” (Bennett, A., 2005; Pais, 2004).

Neste texto examino não tanto os significados metafóricos de ritual no underground, mas as suas manifestações enquanto trabalho simbólico (Bell, 1992), as práticas e padrões de interação que conduzem à sua configuração como espaço social liminar, articulando performance artística e ritual (Grimes, 2006; Schechner, 1995). Para tal, retomo a distinção goffmaniana entre bastidores e primeiro plano (Goffman, 1993), que tem por assim dizer uma aceção literal no caso da prática musical, separando o trabalho de preparação que é feito em espaço reservado (ensaio, entre outras tarefas) e o tempo de apresentação pública (em concerto). Os quadros de interação reservados estão mais diretamente inscritos no quotidiano juvenil (em casa, na rua, na escola e em outros lugares de sociabilidade habitual); os quadros de interação pública comportam um contexto excecional de densificação relacional e de protagonismo no concerto.

Elaboro nas duas próximas secções os padrões de interação reservados e públicos, para depois encerrar o texto em torno dos ritos de procrastinação da prática musical underground — dispositivos interacionais e performativos de criação e sustentação da liminaridade nas sociedades contemporâneas.

 

 “Pequenos ritos” de fazer música

A atividade de banda é vivida e valorizada como jogo entre amigos. Ao mesmo tempo, acarreta um labor de grupo e, não obstante a vivência lúdica, uma disciplina de trabalho musical de acordo com um guião implícito de tarefas a desempenhar pelos vários membros. Durante o ciclo de vida do projeto musical que é cada banda, há uma tensão ambivalente (Berkaak, 1999) entre, por um lado, o pequeno ritual festivo de ensaio (Seca 2001) e, por outro lado, o compromisso coletivo com o projeto, implicando, entre outros aspetos, uma divisão do trabalho da banda (Cohen, 1991).

Tal tensão representa um dilema simbólico crucial para a dinâmica de grupo e eventual desenvolvimento do projeto musical. Nos quadros de interação restrita da banda vai sendo construído um espaço reservado, onde se formam as relações intersubjetivas e as disposições musicais dos respetivos membros e onde se joga o envolvimento individual no coletivo. A interação passa por um “pacote de tarefas” (Hughes, 1984), as quais nem sempre correspondem a operações precisas, mas que são procedimentos relativamente padronizados e reconhecidos como convenções do trabalho criativo (Becker, 1982).

Estas tarefas — de que as mais relevantes são o treino individual, a aquisição de equipamento, a composição musical, o ensaio coletivo, a orientação da banda e a gravação — representam “pequenos ritos” que ajudam a inserir a experiência estética no quotidiano (Miller, 2009), ao mesmo tempo que constituem uma pragmática da prática amadora (Hennion, 2004). A dimensão ritualizada advém do caráter repetitivo de cada tarefa e do conjunto de tarefas como ciclo constantemente reelaborado, de que resulta um modelo iterativo da prática musical underground, explicitado de seguida.

Treino individual

O autodidatismo é a modalidade mais frequente de aprendizagem musical, embora seja também comum a aprendizagem formal em escola especializada ou com professor particular — o que depende dos recursos familiares, económicos e culturais. Uma dimensão básica do trabalho musical underground é a competência mimética na apropriação e manipulação da música consumida (Bennett, H., 1980), como, por exemplo, “sacar de ouvido” nos géneros rock e afins (reprodução manual num instrumento de uma música escutada repetidamente) ou a “samplagem” no rap (extração de fragmentos de peças musicais preexistentes, depois concatenados em composições próprias). A aprendizagem solitária de um instrumento por erro e tentativa é vulgar, tal como a aprendizagem solidária dos truques individuais e do património comum de técnicas informais de fazer música. Trata-se de um processo de in-corporação duma gestualidade musical específica.

Aquisição de equipamento

O valor imediato dos instrumentos musicais é evidentemente o de ferramenta de produção musical — mesmo que a competência estritamente técnica seja muitas vezes desvalorizada face à comunicação expressiva. Contudo, a aquisição e uso proficiente do equipamento acarreta outros significados de construção identitária. Desde logo, a posse de instrumentos musicais é um marcador simbólico decisivo da identidade de músico (Bennett, H., 1980: 49 ss.; Everett, 2003; Lena, 2004). Aliás, a aquisição de um instrumento que não se domina é frequentemente o ponto de partida da prática amadora. O modo de aquisição do equipamento é revelador da matriz disposicional dos músicos, pela valorização, não raro fetichista, do equipamento enquanto artefacto emblemático de certo género musical e pela adequação, efetiva ou desejada, entre competência técnica própria e potenciais funções técnicas do equipamento. Revelador também, do ponto de vista material, pelo volume de recursos (dinheiro e tempo despendidos) que o músico está disposto a investir na compra e estudo do equipamento.

Composição

Longe da carga simbólica de composição na aceção erudita, criar uma música (ou um trecho) é das materializações fundamentais da prática musical desde as primeiras experiências, por comportar um resultado palpável em que os músicos amadores se reconhecem. Nem todos os músicos se dedicam à composição, mas é um desejo generalizado, pelo menos nalguma fase dos percursos individuais — por exemplo, o caderno das letras/rimas é uma ferramenta relativamente comum.

Em geral, a composição pode ser coletiva e concretizada no ensaio — modalidade mais frequente — ou individual e preparada como tarefa isolada, por vezes a cargo de apenas um ou dois membros. Mesmo sendo sentida como ato espontâneo, a composição está fortemente ligada à orientação geral da prática individual e de banda. Por isso mesmo é uma das tarefas do trabalho musical em que é mais sensível a diferença das matrizes diposicionais entre músicos consoante a experiência e grau de empenhamento, permitindo distinguir modos de fazer música e percursos musicais.

Ensaio coletivo

A situação de ensaio é por excelência o espaço do ritual privado da banda e também o momento onde se joga a sua coesão enquanto projeto (Finnegan, 1989: 263 ss.). Os fatores de ordem pragmática mais relevantes na sua organização são rotina, regularidade e espaço físico.

A definição de papéis e tarefas entre os membros é indicadora de uma rotina de trabalho e organização interna do projeto. O ensaio regular é preenchido normalmente com passagens do repertório semelhantes ao alinhamento de concerto. A introdução de novos temas é variável e depende em grande medida do modo de composição e das dinâmicas intersubjetivas e de liderança do grupo — num modo de maior participação coletiva, um novo tema pode surgir a partir de uma ideia inicial mais ou menos espontânea a que se vão juntando mais ou menos de improviso as partes relativas a cada instrumento ou participante; num modo de maior orientação individual, um novo tema já mais ou menos elaborado antes do ensaio por um dos músicos é proposto ao restante grupo com as partes individuais mais ou menos previstas.

Quanto à regularidade, observam-se três variantes principais: (i) inexistência de ensaios regulares, que ocorrem fortuitamente ou apenas na véspera de um eventual concerto; (ii) ensaios com regularidade fixa (semanal, por exemplo) em que a banda se reúne mesmo sem o pretexto de novo concerto ou gravação de uma maquete; (iii) ensaios intensos, normalmente na preparação do concerto ou da maquete, ou ainda numa fase planeada de composição de temas novos.

Um outro fator decisivo nos modos de organização da banda é a disponibilidade de um espaço de ensaio. Sendo crescente a utilização de estúdios domésticos — mas apesar de tudo limitada —, os principais espaços de ensaio nos circuitos subterrâneos são estúdios de aluguer (muitos não licenciados), os estúdios de autarquias e associações locais, estúdios próprios em instalações improvisadas (por exemplo, garagens).

Orientação da banda

A tarefa de orientação da banda pode distinguir-se em dois planos principais: a organização do trabalho criativo, que tem a sua manifestação mais visível no ensaio, e o trabalho de produção e promoção da banda, que implica não apenas a gestão dos seus recursos mas também o contacto com terceiros. A tensão entre jogo e disciplina perpassa ambos os planos e manifesta-se através do relacionamento interpessoal. Um dos seus aspetos mais sensíveis é a conjugação entre camaradagem igualitária implícita e a afirmação de uma liderança individual explícita. A figura de autor enquanto líder do projeto só é relativamente comum em bandas muito experientes ou com uma disposição profissionalizante vincada; na maior parte dos casos, os quadros de interação das bandas incluem certamente relações de ascendente pessoal entre os músicos, mas que tendem a ser atenuadas em favor da valorização do coletivo.

A prática criativa no ensaio — e a procura de soluções para as limitações técnicas e expressivas da banda — não decorre pois de orientações normativas ou relações hierárquicas, mas antes da dramaturgia e linguagem próprias da banda, assentes por seu turno nas convenções de cada estilo musical. A utilização de figuras de estilo vernaculares (Certeau, 1990) é fundamental na constituição da banda como equipa, veiculando instruções — e sentimentos — inscritas em cada situação de interação, como, por exemplo: incentivo à repetição e aperfeiçoamento (“eu sei que tu és capaz…”); referenciação à mitologia de bandas e estilos musicais emulados (“isto é punk!”); reprodução incessante de exercícios musicais como tática de ganhar segurança performativa (“[esta malha] está lá!”); invocação da banda como compromisso identitário conjunto (“ou estamos juntos contra o mundo, ou então…”); entre outras.

Gravação

É usual as bandas gravarem os seus ensaios, quer como ferramenta para que os músicos ouçam e corrijam a sua própria prestação, quer como registo para memória futura. As gravações podem inclusive constituir um arquivo improvisado e simbolizar na sua datação as diferentes fases do percurso da banda. Resulta daqui uma periodização da prática musical, que lhe confere uma maior espessura de significado. O efeito é maximizado quando a gravação está associada à produção de uma maquete — suporte fonográfico que contém a cópia matriz das canções gravadas preparada para ser replicada.

A maquete pode servir diversos objetivos: editar um disco, seja na modalidade de autoprodução, seja através de contrato com uma editora comercial; angariar concertos em locais de música ao vivo; participar em concursos de novos valores; divulgar a banda em canais massificados (especialmente programas de rádio); enviar a contactos relevantes nos circuitos subterrâneo e profissional.

A maquete, além de produto palpável, tem uma simbologia particular relativa à configuração cíclica do trabalho de autoprodução. Muitas vezes é o ponto de chegada de determinada fase do percurso da banda. Em especial para as bandas em que predomina uma matriz disposicional profissionalizante, a maquete incorpora as aspirações de sucesso no mercado; goradas essas aspirações, é comum ocorrer uma redefinição do projeto estético e eventualmente a alteração ou fim da banda. Mesmo quando não existe a disposição profissionalizante, a produção da maquete obriga a uma mobilização de recursos materiais, relacionais, técnicos e expressivos de grande exigência para os músicos amadores, pelo que adquire um valor simbólico emblemático nas suas trajetórias — a maquete é o conjunto de músicas realizadas e também a expressão da prática musical e das relações sociais a ela ligadas num dado momento.

A maquete tem portanto um valor objetivado e um valor projetado. Objetivado no sentido em que o artefacto representa a “coisificação” da experiência underground numa certa circunstância (Straw, 1999); projetado no sentido em que a maquete transporta as aspirações dos músicos na direção dos seus outros (públicos, intermediários profissionais, colaboradores e concorrentes nos circuitos underground, etc.), abrindo possíveis novos cenários de atividade em que os elementos da banda se confrontam, individual e coletivamente, com as opções futuras da prática musical. Este duplo sentido faz que a maquete seja o produto-projeto paradigmático da cultura material dos circuitos underground e um objeto ritual dos seus processos de construção identitária (Harrison, 2006).

O modelo iterativo da prática musical — combinando disciplina de trabalho e ritual festivo — é uma forma de negociação do projeto de banda e de desenvolvimento da pulsão musical. Esta disciplina é, de diferentes modos, tanto mais vincada quanto, por exemplo: (i) racionaliza a prática musical como projeto profissional passando por etapas de progressão técnica e aproximação ao mercado; (ii) articula a atividade de fazer música como esfera central de autorrealização pessoal face a outros compromissos e constrangimentos sociais, embora não se traduza num projeto profissional; (iii) transforma a experiência juvenil de participação em circuitos subterrâneos num hobbie gratificante na vida adulta, porventura compatível com outros compromissos.

As tarefas que compõem o labor criativo são desempenhadas segundo um princípio sequencial de engendramento do projeto musical, execução de tarefas padronizadas acompanhada de um estado de efervescência de grupo, objetivação material da performance na maquete, promoção do produto-projeto, reengendramento do (novo) projeto, etc. O modelo iterativo do trabalho de banda comporta, mesmo numa escala de interação presencial reduzida, elementos de ritualização da prática, muito evidentes no ambiente performativo de ensaio. A maquete é também um objeto ritual — especialmente porque é um meio material de passagem da prática privada entre amigos para a prática pública dirigida a uma audiência.

 

Cronótopos do concerto underground

O concerto é o momento de paroxismo do ritual underground, dada a sua dimensão pública e densificação relacional. Uma das condições para que tal se verifique é a existência de um público mais ou menos volumoso (variando normalmente entre algumas dezenas e poucas centenas de espetadores), concentrado num determinado lugar e momento, criando um quadro de interação denso e um estado de exaltação coletiva. Podendo assumir diferentes configurações (Fonarow, 2006), o concerto underground é uma experiência de festa transgressiva, intensificada pelo efeito sensorial da música — na maioria das ocasiões acompanhado do consumo, por vezes excessivo, de álcool, haxixe e outros estupefacientes.

O acontecimento não se esgota no prazer hedonista da experiência musical. Para músicos e outros agentes dinamizadores dos circuitos subterrâneos, cada concerto é um momento raro em que se podem relacionar com adeptos em número superior àquele que é habitual durante a prática de banda. O significado ritual do concerto reside tanto na exacerbação expressiva e sensorial da performance musical em cada ocasião, como na recorrência de concertos, através da qual se criam e mantêm as redes de cooperação (e competição) dos circuitos de produção subterrâneos.

O concerto corresponde a diferentes contextos espácio-temporais — cronótopos (Bakhtin, 1998) — de preparação da prática musical e de inscrição da experimentação artística no quotidiano. Trata-se de gestos e procedimentos padronizados de preparação e vivência da performance que se intensificam num determinado momento mas que se desenvolvem para além dele, incluindo o próprio concerto, o dia do concerto, a espera entre concertos e o período mais ou menos longo de envolvimento na prática musical. No seu conjunto são gestos que marcam a liminaridade da performance musical e da experiência underground. Destacam-se quatro cronótopos que sublinham ou prolongam essa condição de liminaridade: entrada em palco, checksound, rodagem, carreira underground.

Entrada em palco

A entrada em palco é imediatamente antecedida por um compasso de espera em que a banda se congrega cerimonialmente (Bennett, H., 1980: 48) e prepara a sua encenação perante um público, mesmo quando este é formado por amigos. Os músicos apartam-se da audiência e reúnem-se brevemente num exercício de concentração e suporte mútuo.

A curta pausa é por definição um momento liminar, que marca uma alteração súbita do quadro de interação, com a transposição do privado para o público, do regular para o excecional, do anonimato habitual para o protagonismo da ocasião. A transição entre bastidor e palco implica um jogo ritual de inversões estatutárias: a performance em palco corresponde a uma intensificação da experiência juvenil, cujo caráter espetacular e transgressivo é resguardado em situações do quotidiano; mas a intensidade da experiência de concerto comporta por seu turno dispositivos performativos e de controlo da excitação, de que o mais evidente é a máscara.

A máscara de palco é construída a partir de um conjunto de expedientes interacionais que permitem manter a performance entre a desejada busca de excitação, e respetivo controlo, através da encenação de comportamentos mais ou menos provocatórios (Lee, 2009). Vejamos duas situações contrastantes de encarar o público, isto é, de incorporação da máscara.

 

Chegar ou não chegar à frente, eis a questão[2]

Situação 1: Está ainda pouco público presente no início do concerto. As bandas não são das redondezas, talvez as claques venham mais tarde. O vocalista dos Jaquins, banda que abre o concerto, está um pouco acanhado com a plateia vazia. Tenta sem grande sucesso atrair público para a frente de palco, desconfortável por estar vazia — “Podem chegar aqui à frente, mas só se quiserem”. É notório que ainda lhe faltam truques para lidar com a situação. Uma boa parte do alinhamento tem de ser tocada assim mesmo, o que provoca um retraimento da banda.
Situação 2: Apesar da sua aparente juventude, os elementos de CT são muito bons músicos e têm uma interessante presença em palco, sobretudo a vocalista. O concerto começa com alguns instrumentais — covers de clássicos do reggae — e só depois se ouvem os originais (em inglês). A secção de metais dá a este grupo um som festivo a que dificilmente se fica indiferente, sobretudo, uma vez mais, porque é bem executado. Está pouca gente de início, cerca de uma vintena de espetadores. Mas a vocalista não se embaraça — “vocês são tão pouquinhos podiam vir cá para a frente…” A parte engraçada é ela ser obedecida, inclusive por três ou quatro espetadores que levam consigo os bancos altos em que estavam sentados. A coisa ficou assim mais intimista. Alguns ensaiavam uns passos de dança (à ska que é como se diz como quem está a correr sem sair do lugar), outros cantavam com a banda. [Registos de campo 5 e 67]

O domínio da máscara implica algum distanciamento sobre o próprio papel desempenhado e um controlo reflexivo da sua própria encenação — mesmo em situações de maior violência simbólica que a exemplificada (Kahn-Harris, 2004). Tal domínio adquire-se com a experiência, mas apoia-se também na rotina definida pelo modelo iterativo da prática da banda que prepara a prestação musical e contribui para que o desempenho especificamente musical seja o menos possível perturbado por condições adversas de concerto.

Checksound

Os concertos underground incluem quase sempre várias bandas, o mais comum entre três e seis. A montagem do palco, em particular o acerto do som — checksound —, pode demorar algumas horas, durante as quais se cruzam, dependendo do formato do concerto, músicos, organizadores, técnicos, amigos mais próximos e eventualmente agentes profissionais. Este período resume-se na aparência a uma função técnica, mas demarca um tempo especial da prática musical e das trajetórias dos músicos. Especial por várias razões: porque o dia de concerto é dia de festa; porque os tempos mortos entre preparativos técnicos são muitas vezes momentos de discutir opções estéticas e a orientação da banda; porque esses mesmos tempos dão lugar à recordação de situações semelhantes já vividas e, por vezes, a um balanço sobre o próprio percurso musical. Nesse compasso de espera cruzam-se comportamentos lúdicos (brincadeiras e alteração de consciência) e reflexivos (rememoração de aventuras e afirmação de afinidades), que antecipam a performance e amplificam o contexto liminar do concerto.

Horário e espera

Vera tem um programa em cheio para o dia — primeiro, o concerto de Babes, a sua banda, em Palmela (22h00), e logo de seguida (23h30) participação como backvocal no concerto de Gadjó em Corroios. Os concertos distam cerca de 30 km. Quando chega a agente de Gadjó, Teresa, da agência WonderSound, é totalmente apanhada de surpresa pelo facto de Vera ter outro concerto, mas tenta ainda arranjar as coisas de modo a que consiga fazer tudo — checksound ora aqui ora acolá, concerto nos dois lugares. Assim, decide ir imediatamente para Corroios fazer o checksound, depois para Palmela para checksound e concerto e, mal este acabe, diz Teresa, pega na Vera e leva-a de volta para Corroios. Chegamos a Corroios, onde se procede de modo muito fluido e eficaz ao checksound. Retenho o registo bastante profissional de toda a operação, com Teresa a funcionar como elo de ligação entre o técnico de som e os músicos, e a sugerir, quer dizer, impor ritmos de trabalho — “Vamos lá despachar as vozes da Vera, que é para ela poder ir andando”, por exemplo. Em Palmela, o cenário é nobre — entre a igreja e o cineteatro — e grandioso — ao ar livre, com muito espaço. Verónica, os DRG e os Fightin’ chegaram antes, bem como outros elementos do bairro que vão cantar. Vera e Verónica já antes discutiram se deviam ser as primeiras a tocar (Vera, que tem o outro concerto) ou não (Verónica). Durante o checksound, Verónica pergunta claramente a Vera qual é para si o concerto prioritário, respondendo a última — “Obviamente este”, o de Palmela. Quando o rapaz da organização vem perguntar qual é a ordem definitiva de entrada, ainda hesitam, mas acabam por deixar que fossem os Fightin’ a tocar primeiro. Joga aqui também a questão simbólica de senioridade juvenil: os Fightin’ são um projeto recentíssimo, têm poucas músicas e, segundo a convenção que faz bandas mais prestigiadas tocarem por último, devem vir antes das Babes, tal como estas têm o direito de entrar imediatamente antes das “vacas velhas” KFC, que encerram. É mesmo essa a ordem seguida. O concerto começa. Por esta altura, o largo já está bem composto — umas 300 pessoas ou talvez mais, mas a largueza do espaço não dá essa impressão, parecendo menos. Muitos jovens liceais, muita gente adulta. Tocam os primeiros miúdos rappers, começam a tocar os Fightin’, quando chega Teresa, para buscar Vera, conforme foi combinado. Teresa diz que o concerto de Corroios já começou e que o horário marcado para Gadjó vai cumprir-se. Quando vê que as Babes ainda nem sequer começaram, remata logo que o melhor é desistir da ideia e volta para Corroios, sem Vera. [Registo de campo 78]

Durante o checksound confundem-se paradoxalmente o aborrecimento da espera e a ansiedade de tocar em público. A resolução do paradoxo depende em muito da composição e dimensão do grupo de colaboradores e amigos que acompanha a banda, fatores que contribuem para definir a espera como tempo social vazio ou denso. Quanto maior o número de acompanhantes e mais densa a interação entre eles, mais intensificada é a experiência ritual.

Por outro lado, o checksound é também circunstância em que os músicos amadores se confrontam com profissionais — por exemplo, promotores, técnicos e agentes. Tal confronto rompe, de modo mais ou menos explícito, com o ambiente convivial e festivo do concerto, pondo em causa a condição estatutária dos músicos, a sua determinação no projeto musical e as suas oportunidades.

Rodagem

O cronótopo rodagem diz respeito ao tempo que medeia entre concertos e aos lugares percorridos em busca de os angariar ou organizar. A atividade das bandas mais experientes e com uma prática regular é determinada pela agenda de concertos — podendo chegar a duas dezenas ou mais de concertos num ano. As tarefas não musicais relativas à angariação ou montagem de concertos e respetiva logística são fundamentais — garantir a presença do equipamento necessário, a colaboração com outras bandas e participantes e, não menos importante, assegurar a comparência dos amigos entre o público. Durante o interregno de concertos o modelo iterativo da prática musical é um dispositivo processual de organizar a atividade da banda e assegurar a preparação da performance pública.

“O pessoal está interessado é numa tour

Choques falou-me há uns tempos que Hot Wheels e O Pessoal Não Está Interessado pensavam fazer uns concertos em conjunto. O plano ficou finalmente alinhavado no último ensaio d’O Pessoal — logo crismado “O pessoal está interessado é numa tour”. A oportunidade concretizou-se após Choques avisar que o concerto previsto para o Algarve ficava sem efeito, porque o Bar do Alemão, lendário no underground, fora encerrado após rusga, com fitas na porta e tudo. Perante o incidente, fica decidido que a tour começa num bar de música ao vivo existente no bairro. Haverá depois mais dois concertos noutros espaços da cidade. Embora o concerto esteja marcado para as 22h00, quando chego, o bar está fechado e o porteiro sozinho fechado do lado de fora. Dou um toque de telemóvel a Choques e encontro-me com a trupe dos Hot Wheels nos bancos do jardim, no meio do bairro. Técnicas de passar o tempo de forma muito compassada: ronda preliminar de charros; o Francisco vem com uma garrafa de vinho na mão, estilo punk standard, mas acaba por se fartar do adereço; já no parque de estacionamento fronteiro ao bar, passou-se ainda cerca de uma hora e, aí sim, no rito consagrado de consumo de haxixe; Ana e Carla enrolam os charros em estrita paridade com os rapazes; quando enfim chegam, os irmãos Jaime e Paulo já estão muito atrasados em relação aos restantes. Chega a trupe d’O Pessoal. Segunda roda ritual de haxixe. Alguns transeuntes passeiam o cão. O ponto de encontro integra-se na paisagem, não havendo barulho ou agitação que se faça notar na vizinhança, mesmo chegando a juntar-se cerca de 20 pessoas. Uma hora depois, já dentro do bar, o início do concerto ainda está para demorar. Outras duas horas e a abertura é com a banda Ad Hoc, também do bairro, que na verdade é uma jam de amigos meio na brincadeira que por vezes abre as hostilidades nos concertos desta tribo. A prestação de Hot Wheels é intensa e considerada pelos próprios como a melhor dos últimos tempos. Talvez tenha ajudado à festa tratar-se de um ambiente familiar. Grande animação, embora o espaço seja apertado. Faz-se o mosh-pit, as mesas próximas a cair, efeito conseguido. O Pessoal toca no fim e estes estão mesmo em casa, nem distingo bem onde acaba o palco e começa o público, se é que há diferença. As trupes das duas bandas são distintas. Algumas personagens cruzam espaços, mas os círculos não se fundem. Até no mosh-pit, descontando a turbulência do movimento, as filiações parecem diferentes. A trupe de Hot Wheels é mais suburbana e classe trabalhadora. A trupe d’O Pessoal é mais jovem e tem mesmo pinta de tribo juvenil, skaters-surfistas, a composição parece-me mais heterogénea. As mesas ocupadas pelos dois grupos são claramente demarcadas. Ramone é veterano do circuito punk e conhece de ginjeira os veteranos desta claque. Choques faz a ligação entre a malta do seu bairro de referência (onde já não mora) e da sua atual banda. Fecho por volta das quatro. Amanhã é quarta, toca a bulir. Daqui a dois dias há mais. [Registo de campo 15]

Mesmo as bandas mais juvenis tendem a saturar rapidamente os lugares de concerto na sua zona de vizinhança (que é usual serem as escolas, associações ou equipamentos juvenis do bairro). Logo a partir duma fase inicial da atividade musical, torna-se necessário um trabalho de prospeção — levado a cabo pelas bandas individualmente ou por cliques de bandas — de espaços de concerto na cidade e ocasionalmente noutras cidades (Gomes, 2004) ou até fora do país (Nóvoa, 2011). Tais itinerários são rotas de deambulação juvenil pelo espaço urbano (Magnani, 2005), por vezes espetacularizadas pela inabitual concentração de participantes no concerto, pelo seu visual e gestualidade, e pelo volume sonoro da música.

Uma das expressões mais evidentes de deambulação e territorialização da prática musical no espaço urbano é a referência simbólica ao bairro de origem quando este corresponde a uma rede de sociabilidade e prática musical (Raposo, 2010). Para além das amiudadas alusões ao bairro no nome da banda ou nas canções, é comum os concertos serem pontuados por pregões identitários da “malta do bairro” que faz de claque para os amigos que estão no palco.

Uma outra modalidade de apropriação do espaço urbano característica do cronótopo rodagem é o formato de concerto matiné em salas de espetáculo desativadas de coletividades e associações recreativas locais. Neste caso, um grupo de bandas aluga a sala, onde promove os seus concertos durante um período de alguns meses e que se torna identificado com uma “microcena”. A continuação do aluguer pode tornar-se inviável por diversas razões — como o desacordo sobre o preço, a falta de público, ou, pelo contrário, o “excesso” de público que pode criar situações de conflito entre os participantes ou entre estes e os responsáveis associativos. A “microcena” desloca-se então para nova coletividade noutro ponto da cidade. Este formato — muito associado ao estilo hardcore e ao ideário do it yourself — ilustra bem a inscrição da prática underground nos interstícios do espaço público.

Os roteiros de concerto estão pois associados a diferentes formas de apropriação material e simbólica do espaço — seja quando um coletivo musical referenciado a um bairro percorre diferentes pontos da cidade afirmando a sua pertença identitária emblematizada no bairro, seja quando outro coletivo referenciado a um género musical assenta arraiais fugaz e ruidosamente em sucessivos pontos de encontro da malha urbana. O caráter simultaneamente coletivo e deambulatório do concerto desenha uma “cartografia subterrânea” da cidade, elemento fulcral da dimensão liminar da experiência underground.

Carreira

O cronótopo carreira tem a ver com a duração e continuidade da prática musical underground. Entre os seus participantes mais ativos distinguem-se os que assumem como motivação prioritária um projeto profissionalizante e aqueles que têm por motivação prolongar a prática musical como dimensão criativa e convivial da vida quotidiana. A fronteira entre estes dois tipos de disposição nem sempre é nítida: a atitude convivial facilmente se combina com a ambição de vir a obter algum rendimento económico da música; entre as figuras mais carismáticas dos circuitos underground contam-se músicos que obtiveram algum sucesso comercial e que mantêm depois reconhecimento subterrâneo. Em qualquer dos casos, as aspirações relativas à prática musical a longo prazo estão estreitamente ligadas às disposições de fazer música no presente.

Entre os músicos que aspiram a um projeto profissional — a carreira de músico, com as suas contingências — é usual uma maior planificação, expressa por exemplo no modelo de trabalho iterativo orientado para a produção e subsequente difusão de uma maquete tanto quanto possível capaz de garantir a entrada no mercado, ou no investimento estratégico em concursos de novos valores e outros dispositivos de relação com intermediários profissionais. Na maior parte dos casos, raramente a experiência underground está na origem de uma carreira de músico profissional — não obstante, tal aspiração pode traduzir-se numa prática empenhada e, principalmente, pode levar a oportunidades de trabalho criativo ligadas à música ou às artes.

Em contraponto com a aspiração de um projeto profissional, os participantes mais envolvidos nos circuitos underground vão adquirindo competências práticas ligadas não apenas a fazer música mas também a um conjunto de atividades de suporte (edição de discos, organização de concertos, produção de fanzines, comércio de discos ou outros produtos relacionados com um estilo de vida ligado à música), construindo ao longo do tempo uma “carreira de lazer” (MacDonald e Shildrick, 2007; Stebbins, 1992) dentro deste particular universo social. Também por esta via a experiência underground pode gerar oportunidades de trabalho ou de negócio (Ferreira, 2013; O’Connor, 2008; Simões, 2011).

O episódio seguinte é ilustrativo de esquemas cooperativos que não visam um objetivo profissionalizante, nem a entrada no mercado, mas antes a mobilização coletiva dos recursos materiais e simbólicos necessários para fazer música e, por essa via, a consolidação de redes de convivialidade em que a prática musical é um recurso de construção identitária.

Retrato — punknique

Depois de algumas semanas de preparação e expetativa, realiza-se na Casa do Povo o concerto-punknique da trupe do Cerco, durante a tarde e noite de sábado — entre as três da tarde e as três da manhã. Trata-se de um ritual de construção identitária de uma rede de convivialidade juvenil extensa, estruturado pela prática musical e simbolicamente elaborado em torno da representação do bairro. Mas vamos por partes. Tenho a impressão de que estarão mais de cem pessoas a assistir ao concerto à noite, sensivelmente menos durante a tarde. Os organizadores, principalmente os irmãos Guga e Canina, asseguram-me que as contas ficam ela por ela, o que supõe 150 bilhetes vendidos (5 euros por cabeça para cobrir os 750 investidos). Como seria previsível, o público participante vinha, na sua esmagadora maioria, acompanhar as bandas do Cerco (O Pessoal Não Está Interessado, Ad Hoc, MC). Tudo considerado, a pandilha do Cerco tem uma efetiva capacidade de mobilização (e organização) coletiva. Há um voluntarismo de grupo que, se não fosse punk, passaria bem por uma atividade excursionista de alguma coletividade popular local. Mas também é curioso que o grupo venha celebrar o bairro numa coletividade local mas noutro lugar da cidade. O investimento no concerto inclui, para além da maior parcela com o aluguer da sala e do equipamento, bifanas, sardinhas, bilhetes, cartazes, um emblema d’O Pessoal em velcro (a sigla da banda, OP, estilizada num patch para colocar na roupa, como fazem alguns dos participantes), um CD-Rom com 11 músicas (das bandas intervenientes e ainda de bandas profissionais próximas do grupo). O bilhete, o cartaz e o CD têm uma composição gráfica comum, polícroma, destacando os elementos “Cerco recomenda” em título e a silhueta a negro de um edifício emblemático do bairro. O velcro e o CD foram oferecidos de surpresa no próprio dia em troca do bilhete à entrada. As tarefas festivas são distribuídas ordenadamente entre os presentes: bifanas e sardinhas, grelha, bar, som. A par disto, uma espécie de jogo de futebol contínuo no pátio ao longo da tarde, com a dose bastante de picardias entre conhecidos e novatos. Dentro do pavilhão, vai decorrendo o checksound. Estão montadas algumas bancas de venda de produtos vários (t-shirts com logos das bandas estampados, CDs, kit lâmpada-vaso para cultivo doméstico de marijuana, pulseiras, missangas, etc.). Bebem-se cervejas e fumam-se charros enquanto os participantes deabulam entre o pavilhão e o pátio. A festa vai-se fazendo em tom ameno, com o concerto a animação sobre de tom, está gente suficiente para um bom desempenho ritual. No final da música, ainda se fez o encerramento com nova futebolada. [Registo de campo 32]

Nesta situação é claramente discernível o efeito do envolvimento musical como expediente (no sentido que lhe dá Certeau, 1990) de prolongamento de práticas juvenis. A maioria dos organizadores do punknique, os participantes que estão presentes ao longo da tarde e que não vêm apenas para a performance musical, ainda que seja esse o momento alto do dia, são (jovens) adultos que se reúnem enquanto amigos de juventude. Tal forma de vivência dos circuitos subterrâneos é um modo de procrastinar o abandono de círculos de sociabilidade e da prática criativa, cujo suporte material e simbólico assenta num conjunto de recursos e convenções da prática artística amadora.

 

A prática musical underground como experiência liminar contemporânea

Um dos eixos fundamentais da prática musical underground é a sua configuração padronizada e cíclica. Quer nos contextos de interação restrita em que músicos ensaiam e produzem as suas maquetes, quer nas situações de densificação relacional e efervescência coletiva vividas em concerto, a prática musical é estruturada por convenções relativas simultaneamente à organização material das tarefas necessárias e à inscrição simbólica da criatividade no quotidiano juvenil (Willis, 1996). As convenções têm um importante significado ritual — descrito acima no modelo iterativo (“pequenos ritos”) da prática musical e nos cronótopos do concerto underground.

A dimensão festiva ritual, especialmente manifesta na situação de concerto, pode ser vista metaforicamente como rito de passagem. Por outro lado, corresponde a um “rito de impasse” (Pais, 2009), isto é, a uma forma ritual própria de culturas juvenis, que em lugar de figurar simbolicamente o processo de transição para a vida adulta, figura o bloqueamento de aspirações e a falta de perspetivas futuras. A enunciação performativa e espetacularizada dos impasses sociais com que os jovens se defrontam é mesmo uma das principais formas de comunicação dos circuitos subterrâneos, em particular dos géneros musicais mais salientes e politizados (como o punk/hardcore e o rap).

Contudo, a dimensão ritual da prática underground não diz respeito apenas à transição — ou impasse — entre duas condições estatutárias, seja num sentido geral entre jovem e adulto, ou num sentido específico entre músico amador e músico profissional. Um efeito crucial dos dispositivos rituais aqui analisados é a criação e alongamento de um espaço social liminar, um espaço de relativa indefinição estatutária no qual a vivência da música pode ser investida de um valor excecional de experimentação estética, autorrealização criativa e referenciação identitária a grupos de pertença. A sustentação dessa liminaridade passa por um desempenho proativo das tarefas materiais e simbólicas que asseguram a continuidade da prática musical — ritos de procrastinação que vão fazendo perdurar, mesmo se precariamente, a presença da prática criativa no quotidiano.

Tais ritos de procrastinação assemelham-se aos ritos liminóides que Turner (1974) identifica nas sociedades contemporâneas — por oposição aos ritos liminares, prescritivos, das sociedades tradicionais — na medida em que são intermitentes, voluntários e circunscritos a uma esfera particular da vida social. Nesta versão mitigada do conceito de ritual (cf. St. John, 2008), a experiência de fusão no coletivo em momentos performativos excecionais como o concerto combina-se com a individualização das formas de lazer — concretizada nas trajetórias pessoais (Lahire, 2005).

A tensão entre os planos individual e coletivo replica-se também no nexo entre diferenciação e celebração. A comunhão musical é um dos valores centrais da ética underground; mas isso não impede que, para além da desigualdade de posições no espaço social (expressas em particular no capital escolar e cultural), se encontrem distinções específicas ligadas à prática musical, em especial decorrentes da experiência de envolvimento na produção musical.

A prática musical underground tem um recorte social muito circunscrito, desenvolvida por um número limitado de fãs de música especialmente entusiastas (uma minoria ativa), na sua maioria homens e jovens em redor dos 20 anos de idade. Nesta medida é uma prática cultural juvenil. Os músicos mais regulares e os principais dinamizadores dos circuitos, porém, tendem a ser os que prolongam a prática bem além dessa idade. É certo que as carreiras de longa duração são incomuns, mas não são raras e têm enorme influência na organização de circuitos de produção coletiva que envolvem várias bandas, colaboradores e adeptos. Ou seja, experiência acumulada e senioridade são fatores estruturais num universo marcadamente juvenil (Bennett, A., 2006; Hodkinson, 2011). É principalmente em torno dos protagonistas com um envolvimento mais continuado que se formam redes de cooperação, se mobilizam recursos comuns, se definem relações de afinidade e prestígio.

Os ritos de procrastinação são dispositivos, incertos e contingentes, portanto liminares, de prolongamento no tempo da prática musical, configurando campos de possibilidades (Velho, 1994) das trajetórias juvenis. Entre as possibilidades mais relevantes contam-se a manutenção de redes de sociabilidade, a inscrição de formas de criatividade estética no quotidiano e a profissionalização ou intervenção em esferas de produção artística (musicais ou outras) e mediação sociocultural.

 

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Receção: 30 de abril de 2014 Aprovação: 7 de julho de 2014

 

Notas

[1] O presente artigo retoma parte dos resultados da tese de doutoramento em sociologia do autor, Fazer Música Underground. Estetização do Quotidiano, Circuitos Juvenis e Ritual, orientada por Maria de Lourdes Lima dos Santos e António Firmino da Costa, apresentada no ISCTE-IUL em 2013.

[2] As curtas narrativas naturalistas apresentadas nesta vinheta e nas seguintes são excertos do diário de campo e correspondem a estratégias analítico-ilustrativas das principais linhas de problematização teórica (Demazière e Dubar, 2007). Os nomes utilizados são fictícios.

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