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Sociologia, Problemas e Práticas

versão impressa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.75 Lisboa maio 2014

https://doi.org/10.7458/SPP2014753579 

ARTIGO ORIGINAL

O conceito de movimento social em debate: dos anos 60 até à atualidade

The social movement concept under debate: from the sixties to the present day

Le concept de mouvement social en débat : des années 1960 à nos jours

El concepto de movimiento social en debate: de los años 60 hasta la actualidad

 

Cristina Nunes*

* Bolseira de doutoramento no CIES-IUL, Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), Travessa da Glória n.º 6, 3.º Dto. 1250-118 Lisboa . E-mail: cristina.oliveira.nunes@gmail.com

 

RESUMO

A partir da noção de movimento social avançada pelas teorias da mobilização de recursos, do processo político e dos novos movimentos sociais, pretende-se traçar os diferentes caminhos analíticos percorridos nos estudos dos movimentos sociais e da ação coletiva. Nesta discussão parte-se da hipótese de que, ao longo das últimas décadas, à medida que as abordagens macroestruturais foram dando lugar a contributos mais centrados nos processos e nas características microssociais dos movimentos sociais, o debate em torno do conceito de movimento social poderá ter perdido a importância assumida pelas análises dos anos de 1960 e de 1970.

Palavras-chave paradigmas teóricos, ação coletiva, movimentos sociais.

 

ABSTRACT

Departing from the notion of social movement advanced by the theories of resource mobilization, political process and new social movements, the article aims to trace different analytical paths traversed by the studies on social movements and collective action. In this discussion it’s considered the hypothesis that over the past few decades, as the macro-structural approaches were giving way to contributions more focused on the micro-social processes and features of social movements, the debate around the concept of social movement may have lost the relevance assumed by earlier analysis developed during the 1960s and 1970s.

Keywords theoretical paradigms, collective action, social movements.

 

RÉSUMÉ

À partir de la notion de mouvement social avancée par les théories de la mobilisation des ressources, du processus politique et des nouveaux mouvements sociaux, cet article trace les différents chemins analytiques parcourus dans les études des mouvements sociaux et de l’action collective. Il part de l’hypothèse selon laquelle, au long des dernières décennies, à mesure que les approches macrostructurales ont cédé la place à des contributions plus centrées sur les processus et sur les caractéristiques microsociales des mouvements sociaux, le débat autour du concept de mouvement social pourrait avoir perdu l’importance assumée par les analyses des années 1960 et 1970.

Mots-clés Paradigmes théoriques, action collective, mouvements sociaux.

 

RESUMEN

A partir de la noción de movimiento social planteada por las teorías de la movilización de recursos, del proceso político y de los nuevos movimientos sociales, se pretende trazar los diferentes caminos analíticos recorridos en los estudios de los movimientos sociales y de la acción colectiva. En esta discusión se parte de la hipótesis de que, a lo largo de las últimas décadas, en cuanto que los abordajes macro-estructurales fueron dando lugar a contribuciones más centradas en los procesos y en las características micro-sociales de los movimientos sociales, el debate en torno del concepto de movimiento social podrá haber perdido la importancia asumida por los análisis de los años 60 y 70.

Palabras-clave paradigmas teóricos, acción colectiva, movimientos sociales.

 

Introdução

Neste artigo tentar-se-á proceder a um mapeamento das diferentes abordagens sobre o conceito de movimento social no âmbito dos principais paradigmas teóricos dos movimentos sociais.[1]

A discussão terá como marco cronológico os debates iniciados nas décadas de 1960 e de 1970 em torno dos movimentos que ficaram conhecidos, sobretudo na sociologia europeia, como “novos movimentos sociais”. Nos Estados Unidos da América (EUA), a contestação social e política levada a cabo pelo movimento dos direitos civis contribuiu para o surgimento das teorias da mobilização de recursos (TMR) e do processo político (TPP), assim como, na Europa, os protestos emergentes no Maio de 68 conduziram à construção das análises em torno dos novos movimentos sociais.

Estes contributos ficaram consagrados no que se convencionou apelidar paradigmas norte-americano e europeu e até às décadas de 1980 e de 1990 foram observados como antagónicos no estudo dos movimentos sociais. A partir de então passaram, segundo alguns autores (Cohen, 1985; Della Porta e Diani, 1999; Diani, 1992), a ser perspetivados como convergentes na análise de diversos fatores, nomeadamente na conceção face à noção de movimento social — analisado como um tipo de ação peculiar, distinto de outras formas de ação coletiva, que apenas se realiza ante a junção de determinadas condições.

Mas se foi em meados dos anos de 1980 e de 1990 que surgiram as análises que tentam conciliar ambos os paradigmas, foi também por volta dessa época que se elaboraram as suas principais críticas, dirigidas sobretudo à TPP, que se expandiu até às pesquisas desenvolvidas em diversos países europeus e mencionada por alguns investigadores como sendo hegemónica na análise dos processos de ação coletiva (Jasper, 2012; McDonald, 2006).  No entanto, se desde a década de 1990 até à atualidade, os debates continuam a construir olhares críticos face aos “paradigmas dominantes”, nomeadamente pela sua abordagem macroestrutural, também não é menos verdade que os contributos mais recentes continuam a ser influenciados pelos seus enfoques.

As discussões atuais tendem a sublinhar a importância da subjetividade identitária ou da experiência pública do self e, em certa medida, da passagem da importância do coletivo ao individual (McDonald, 2004, 2006) ou até mesmo em torno da importância das emoções nos protestos das sociedades atuais (Goodwin, Jasper e Poletta 2000; Jasper, 2012).

Ao longo dos últimos anos, à medida que as diferentes análises se movem de uma vertente macroestrutural para uma mais microcultural (Jasper, 2012), as análises do significado conceptual de movimento social e de novas propostas sobre a sua definição parecem ir perdendo centralidade nas abordagens sobre os movimentos sociais. Um debate importante é se estas tendências poderão estar, por um lado, a construir caminhos de análise que transformam as abordagens tradicionais da noção de movimento social ou se, por outro, a utilização da sua terminologia conceptual estará a ser preterida na análise dos processos de ação coletiva contemporâneos.

 

A efervescência social e política dos anos de 1960 e de 1970 — as teorias da mobilização de recursos, do processo político e dos novos movimentos sociais

O contexto de efervescência política desencadeado pelo movimento dos direitos civis nos EUA, a par da sua capacidade estratégica para reivindicar para a população afro-americana os direitos sociais e políticos vigentes para os membros da comunidade branca, conduzia a que os teóricos da TMR (McCarthy e Zald, 1977) propusessem uma abordagem racional dos movimentos sociais (Cohen, 1985).

A TMR começou por recusar a análise dos movimentos sociais enquanto fenómenos de agregação de indivíduos movidos por sentimentos de irracionalidade e partiu da premissa de que os atores envolvidos na contestação são guiados pela ação racional onde medem a relação custos-benefícios do seu compromisso e mobilizam estrategicamente os recursos necessários para atingirem os seus objetivos (McCarthy e Zald, 1977). No que respeita ao movimento dos direitos civis, o objetivo seria garantir o abandono de um contexto de exclusão social e política através da igualdade de acesso aos direitos sociais e políticos vigentes para a população branca (Cohen, 1985; Della Porta e Diani, 1999).

Para McCarthy e Zald, os movimentos sociais representam um tipo de ação coletiva nos quais a participação de organizações que apoiam as suas causas é fundamental para o seu sucesso. Aliás, a enunciação da visão estratégica e racional de McCarthy e Zald (1977: 1217) não se reflete claramente na formulação do conceito de movimento social — que os autores definem como “…um conjunto de opiniões e crenças comuns a uma população que representa preferências pela mudança de alguns elementos da estrutura social e/ou pela distribuição de recompensas numa sociedade” — mas sobretudo na importância conferida às organizações de movimentos sociais que desempenham um papel importante na mobilização dos recursos necessários para a obtenção dos objetivos delineados por tais movimentos.

O sucesso das organizações de movimento social depende dos recursos económicos e humanos que conseguem reunir e captar. Os autores (1977) também reconhecem a importância de outro tipo de recursos (como o conhecimento, o acesso aos media e o reconhecimento da legitimidade e da autoridade junto das populações), mas é principalmente através dos meios económicos que se consegue estabelecer uma ligação profissional e contínua dos indivíduos às organizações e aos movimentos sociais.

Na década de 1970, surgiam também os contributos associados à TPP através de Charles Tilly e da sua obra From Mobilization to Revolution (1978). Neste livro são lançadas as bases de uma teoria que tem vindo a sofrer atualizações e a ser utilizada com algumas variações analíticas por diferentes autores norte-americanos e europeus (Jenkins e Klandermans, 1995; Kriesi, 1995; McAdam, 1996; Della Porta e Rucht, 1995; Tarrow, 1998, entre outros).

A TPP tem sido analisada como integrando uma abordagem racional dos movimentos sociais (Della Porta e Diani, 1999), mas que, ao invés da TMR, se concentra não na mobilização dos recursos internos aos movimentos sociais mas dos que lhes são externos, ou seja, é valorizado o ambiente político que os rodeia para compreender os fatores que possibilitam ou dificultam a sua expansão (Tarrow, 1998). Desta enunciação da mobilização de recursos externos decorre a importância que a TPP confere à caracterização do contexto político institucional para explicar a emergência de episódios de protesto ocasionais e dos movimentos sociais.

A apreensão das condições em que um movimento social emerge implica a compreensão da estrutura de oportunidade política (Tarrow, 1998) vigente numa sociedade. No âmbito da TPP, Tarrow (1998) foi um dos autores que concedeu especial atenção ao conceito de estrutura de oportunidade política, embora o autor atribua a génese do conceito a Eisinger (1973) e afirme que as bases da sua conceptualização se encontram em From Mobilization to Revolution (Tilly, 1978). Nesta obra, Tilly analisa um conjunto de fatores que podem ou não fomentar a mobilização (Tarrow, 1998). Estes estabelecem-se em torno dos eixos “ameaça-oportunidade” e “facilitação-repressão” que o contencioso político enfrenta por parte dos sistemas políticos nacionais. Estes elementos não só permitem analisar um dos temas centrais no seio da TPP — que fatores auxiliam a construção de determinadas formas de ação política contenciosa em cada estado-nação e em cada momento histórico —, como também ajudam a compreender as dimensões que propiciam o sucesso ou o insucesso dos movimentos sociais. Contudo, é principalmente sobre o binómio “ameaça-oportunidade” que Tarrow (1998: 19) define as noções de oportunidades como “…dimensões consistentes — mas não necessariamente formais, permanentes ou nacionais — da luta política que encorajam as pessoas a envolverem-se no contencioso político”. O conceito de oportunidade política é ainda composto por quatro dimensões que enunciam mudanças para a emergência do contencioso político e, num nível de ação coletiva mais elaborado, dos movimentos sociais (1998: 77), a saber: (i) “a abertura do sistema político”; (ii) “a instabilidade nos alinhamentos políticos das elites”; (iii) “a divisão das elites marcada por divergências de governação que conduzem à procura de aliados no contencioso político” e, por último, (iv) “a capacidade e a propensão do estado para a repressão”.

No entanto, para os precursores da TPP, a maioria das formas de contencioso político que ocorrem numa sociedade não podem ser observadas como movimentos sociais (Tilly e Tarrow, 2006). Estes apenas emergem quando estamos perante “um desafio sustentado dirigido aos detentores do poder, em nome de uma população que vive sob a jurisdição desses detentores do poder, através de sucessivas demonstrações públicas de respeitabilidade, unidade, número e compromisso: no mínimo os movimentos sociais envolvem uma interação contínua entre os opositores e os detentores do poder” (Tilly, 1999: 256).

 O conceito de movimento social implica uma definição dos adversários e um processo de ação coletiva consecutivo que tenta ter consequências políticas por um determinado período. Esta noção de movimento social determina que os autores da TPP (Tilly e Tarrow, 2006: 45) incluam uma série de ações que os constroem e cujas combinações os distinguem de episódios de protestos ocasionais. Esses processos são constituídos por: (i) “campanhas sustentadas de reivindicações”; (ii) “um conjunto de performances públicas que incluem manifestações, comícios, criação de associações especializadas, encontros públicos, petições, propaganda e lobbying”; (iii) “representações públicas concertadas de respeitabilidade, unidade, número e compromisso”.

Nos EUA, enquanto nas décadas de 1960 e 1970, o estudo dos movimentos sociais era influenciado pelo movimento dos direitos civis e pelas abordagens organizacional e política (TMR e TPP), na Europa as pesquisas centravam-se na análise dos protestos do Maio de 68 em França que se estenderam a outros países, incluindo os EUA, mas cuja “novidade” identitária e cultural foi enfatizada pela sociologia europeia e pela teoria acionalista de Touraine (1978).

Para se compreender o que Touraine entende ser “novo” nos modos de contestação dos anos de 1960 e de 1970, é necessário ter em atenção a sua definição de movimento social, assim como a análise elaborada relativamente ao movimento operário. Para este autor (1996), os movimentos sociais desempenham um papel fundamental na transformação social e cultural das sociedades e, tal como na TMR ou na TPP, correspondem a um tipo de ação coletiva particular que os distancia de simples protestos populares ou, em alusão às correntes do comportamento coletivo, de fenómenos de massas guiados pelo pânico ou por contágio de modas. Só podemos considerar a existência de um movimento social mediante a articulação de três princípios: a definição do ator (princípio da identidade — I); a identificação do adversário social (princípio da oposição — O) e a referência a temas culturais comuns (princípio da totalidade — T).

A aplicação do seu conceito de movimento social começa por se reportar à análise do movimento operário, reconhecido por si como o motor do desenvolvimento da transformação e de um conflito central na sociedade industrial. Segundo Touraine (1996), o movimento operário criou uma identidade estruturada e coerente, capaz de travar um conflito com um ou mais adversários sociais — neste caso, os industriais que controlavam os modos e os meios de produção. Contudo, a enunciação do opositor não é suficiente para apreendermos o seu conceito de movimento social. É necessário que o conflito se desenrole em torno da historicidade, ou seja, ao nível “… da produção das grandes orientações normativas da vida social” (Touraine, 1996: 12). Assim, só podemos falar em movimento social quando se realiza a conjugação “de um projeto cultural associado a um conflito social” (Touraine, 1998: 131).

No que respeita à sua conceção sobre os novos movimentos sociais, embora o autor os diferencie por contraposição ao movimento operário — distinção esta que se encontra na génese das expressões “novos” e “velho” movimento(s) social(ais), em que os primeiros seriam animados pelos movimentos feministas, estudantis, pacifistas e ambientalistas e o último pelos trabalhadores industriais e agrícolas —, as condições que poderão elevar estes novos movimentos a um autêntico movimento social são as mesmas delineadas para o movimento operário.

Apesar desta extensão conceptual, o autor distingue radicalmente os “novos” dos “velhos” movimentos sociais. Tal como o movimento operário foi o produto da sociedade industrial, os “novos” movimentos seriam o resultado da sociedade pós-industrial ou programada, em que os principais conflitos sociais já não girariam à volta da divisão capital/trabalho, do controlo dos meios materiais de produção e da dicotomia de classes, mas da produção simbólica de bens, da informação e da cultura. Os novos movimentos sociais são animados por uma miríade de identidades, oriundas maioritariamente das classes médias, em que a rejeição das orientações culturais da sociedade substitui a contestação da privação e a defesa do bem-estar económico.

Contudo, estas diferenças idiossincráticas não impossibilitam Touraine de colocar a hipótese de os “novos” poderem vir a desempenhar um papel de transformação social não menos importante que o do movimento operário, onde a junção da diversidade das identidades coletivas corresponderia à união das faces ofensiva (operários menos qualificados) e defensiva (operários qualificados) do movimento dos trabalhadores e conduziria a um conflito central iniciado não nas fábricas e nos locais de trabalho, mas sobre os modelos de produção cultural e de conhecimento impostos pelos tecnocratas que governam as sociedades pós-modernas (McDonald, 2006).

Autores como Offe (1985), Habermas (1986 [1981]) ou Melucci (1996) também refletiram sobre os movimentos sociais que emergiram no final da década de 1960 e sobre as suas diferenças relativamente ao movimento operário.[2]

Para Habermas (1986 [1981]), os “novos” movimentos sociais surgem associados à fase do capitalismo tardio. É nas sociedades modernas ocidentais que se consolidam as funções sociais do estado, através da regulação das economias e da redistribuição dos rendimentos. No entanto, a consolidação do estado providência é acompanhada pelo desenvolvimento de um sistema burocrático e racional que se estende a todas as dimensões da vida em sociedade e tende a colonizar o que Habermas (ibid.) qualifica como mundo da vida, ou seja, o espaço da reprodução simbólica, da interação e comunicação subjetiva dos indivíduos. É por oposição a essa hegemonização do espaço do mundo da vida que surgem as condições para o aparecimento de novos protestos.

Para Habermas (ibid.), tal como para os outros autores que teorizaram sobre os novos movimentos sociais, estes protestos estabelecem-se em torno de questões que ultrapassam a esfera material e são impulsionados por uma nova classe média que tenta pôr em prática novas formas de ação política.

No espetro das novas causas sociais e políticas, Habermas (ibid.) coloca um leque abrangente de atores onde se destacam os movimentos ambientalistas, juvenis, pacifistas ou aqueles que defendem modos de produção e de vida alternativos ao vigente nas sociedades dominadas pela racionalidade instrumental. Embora estes movimentos possam ser de natureza diversificada, Habermas (ibid.) coloca a hipótese de que serão eles a resistir e a combater a colonização do mundo da vida pela racionalidade instrumental, particularmente o seu domínio sobre a vida privada e individual, os papéis sociais e profissionais dos indivíduos e o paradigma consumista que predomina nas sociedades avançadas.

Na esteira de Habermas, Offe (1985) também sugere que os “novos” atores coletivos são animados por uma nova classe média que age em nome de novas formas de conceção política e de temas reivindicativos que ultrapassam os direitos económicos e sociais elementares. Offe (ibid.) destaca-se, contudo, pela problematização das relações entre movimentos e classes sociais. O que caracteriza os “novos” movimentos sociais é serem protagonizados por indivíduos provenientes de uma nova classe média altamente qualificada, com recursos escolares elevados e que exerce a sua atividade profissional sobretudo no setor público. Esta caracteriza-se ainda por possuir vínculos laborais estáveis e um bem-estar económico que lhe permitem avançar com os chamados protestos pós-materialistas, relacionados com as questões do ambiente, das relações de género ou ainda com assuntos que tradicionalmente permaneciam fora da discussão pública e da atuação dos movimentos sociais como, por exemplo, a identidade sexual, a saúde ou o corpo. Para Offe (ibid.), embora os membros desta nova classe média emergente sejam predominantes na constituição dos “novos” movimentos sociais, nestes participam também quer indivíduos pertencentes à antiga classe média, por exemplo, artesãos e agricultores ameaçados pelo avanço técnico-científico, quer dos chamados grupos “desmercantilizados”, onde estão representados indivíduos com uma integração precária no mundo laboral ou inteiramente excluídos do mercado de trabalho.

A junção destes grupos diferenciados conduz a que os novos movimentos sociais não ajam em nome de uma classe homogénea, tal como ocorria no movimento operário, mas na defesa de temas tanto de índole universalista como particularista e identitária. Esta transformação nas reivindicações dos movimentos sociais é um dos fatores que marca a passagem daquilo que o autor enuncia como “velho paradigma político”, típico de organizações de interesses corporativistas e dos partidos políticos, ao “novo paradigma político”, construído pelos novos movimentos sociais. Este contrasta com o anterior por prosseguir repertórios de ação e processos de organização que Offe (ibid.) adjetiva como não institucionais, horizontais, descentralizados e com fraca diferenciação hierárquica dos papéis sociais dos seus membros.

Ainda no âmbito das teorias dos novos movimentos sociais, Melucci é referido como um dos autores que mais contribuíram para o estudo da ação coletiva contemporânea. No entanto, em Challenging Codes (1996), Melucci distancia-se do termo “novos movimentos sociais” argumentando que a sua designação provocou, muitas vezes, discussões estéreis que pouco contribuíram para um conhecimento analítico mais adequado e esclarecedor dos movimentos sociais contemporâneos. Tal como para o conjunto dos autores que desenvolveram uma noção conceptual de movimento social, também para Melucci (1996: 28) um movimento social distingue-se de outros modos de ação coletiva. O seu conceito, comportando a conjugação de três princípios, aproxima-se do elaborado por Touraine: “um movimento é a mobilização de um ator coletivo (i) definido por uma solidariedade específica, (ii) envolvido num conflito com um adversário pela apropriação e o controlo dos recursos valorizados por ambos (iii) e cuja ação implica uma rutura com os limites de compatibilidade do sistema em que a ação tem lugar”.

A solidariedade evocada por Melucci só pode ser atingida pela constituição de uma identidade coletiva coesa que exige negociações constantes entre os seus membros. Para Touraine, a identidade coletiva também necessitava de ser (re)construída. Este processo, no movimento operário, traduzia-se em negociações frequentes entre as suas faces ofensiva e defensiva (Wieviorka, 2003). Melucci (1996) enuncia igualmente a presença de dois atores envolvidos num conflito pela apropriação e controlo dos recursos e de uma rutura com o sistema de ação que podem ser comparados aos princípios de oposição e de totalidade de Touraine. Mas, enquanto para o último autor, o conflito tinha de se situar ao nível da historicidade, para Melucci este tem de produzir-se num dos sistemas que enformam a estrutura social. Os movimentos sociais distinguem-se por erigirem conflitos e tentarem romper com os limites da compatibilidade nos diferentes sistemas societais.

Embora a conceção de movimento social seja um dos elementos centrais na análise de Melucci (1985), este autor afirma que relativamente às mobilizações pela paz e contra a energia nuclear dos anos de 1980 talvez seja mais adequado falar em “áreas de movimentos” ou em “redes de movimentos”. O autor prefere utilizar o termo mobilizações pela paz e não movimentos pacifistas, porque considera que aquelas são ações que emergem apenas de forma episódica e sobre temas muito específicos, em que participam grupos identitários diversos que tornam difícil estabelecer a sua unidade. O autor prefere ainda falar de “áreas de movimentos” devido aos seguintes atributos: o âmbito global das causas e a realização na esfera individual através das experiências coletivas; o fenómeno da multiparticipação, portanto, a possibilidade de os ativistas abraçarem simultaneamente mais do que uma causa; e o seu envolvimento de curta duração ou parcial.

Como veremos adiante, algumas das características anunciadas por Melucci como sendo apanágio dos grupos dos anos 80 serão, décadas mais tarde, com o despontar dos movimentos alterglobalização ou dos movimentos pela justiça global, igualmente apresentadas como “novos” atributos no âmbito do estudo dos movimentos sociais (Pleyers, 2010; McDonald, 2004, 2006).

 

Eixos de convergência e divergência nas abordagens dos movimentos sociais

A partir dos anos de 1980 inicia-se um período de reflexão sobre os eixos de análise convergentes e divergentes nas abordagens norte-americana e europeia. A primeira é destacada pela análise dos fatores que explicam como ocorrem os fenómenos de mobilização coletiva (Diani, 1992, Mayer, 1995), designada paradigma da estratégia (Cohen, 1985) ou macroestrutural materialista (Jasper, 2012). A segunda identificada por observar o porquê dos fenómenos de ação coletiva (Diani, 1992, Mayer, 1995), o paradigma da identidade (Cohen, 1985) ou macroestrutural culturalista (Jasper, 2012).

Quer a TMR, quer a TPP foram categorizadas como análises estruturais concentradas em contemplar o contexto organizacional (no caso da TMR) e político institucional (no caso da TPP) em que se desencadeiam a ação política contenciosa e os movimentos sociais. Segundo Jasper (2012), tanto a TMR como a TPP concebem os atores como indivíduos dotados de racionalidade e capazes de fazer escolhas estratégicas, mas negligenciam os aspetos subjetivos conducentes ao seu envolvimento nos movimentos sociais: “… esta abordagem teórica ignorava as escolhas, os desejos e os pontos de vista dos atores: os potenciais participantes estavam somente à espera de uma oportunidade para poderem agir”. Uma das principais críticas é construída em torno do conceito de estrutura de oportunidade política e de as suas diferentes dimensões pretenderem explicar os fatores facilitadores na construção de movimentos sociais, descurando as capacidades individuais e coletivas dos atores para construírem as oportunidades que podem desencadear a sua formação. Ainda segundo Jasper (2012), esta abordagem estrutural não permitiu aos teóricos da TPP desenvolver uma análise sobre a importância dos processos de formação identitários na edificação dos movimentos sociais nem sobre os cenários temáticos culturais introduzidos pelos atores coletivos das décadas de 1960 e de 1970.

No entanto, os teóricos da TPP reconheceram algumas das críticas que lhes foram dirigidas. McAdam (1996) admitiu que o conceito de estrutura de oportunidade política foi utilizado de forma muito abrangente como variável que permite explicar em contextos nacionais muito diferentes as condições em que se formam a ação coletiva contenciosa e os movimentos sociais. Este autor socorre-se ainda das críticas formuladas por Gamson e Meyer (1996) quando defendem que a excessiva plasticidade do conceito pode dificultar a sua exequibilidade: “… o conceito de oportunidade política enfrenta problemas, corre o risco de se tornar uma esponja que absorve virtualmente todos os aspetos do ambiente dos movimentos sociais — instituições políticas e cultura, crises de vários tipos, alianças e mudanças políticas —, utilizado para analisar demasiado, em última análise, pode nada explicar”.

Outro tema que sofreu reiteradas críticas no seio da TPP foi o de inicialmente não associar o conceito de identidade ao estudo dos movimentos sociais. Segundo McDonald (2002, 2006), nos anos 90, o aumento da visibilidade na esfera pública da defesa dos temas culturais influenciou o interesse da TPP em estudar as questões da identidade. McDonald (2006: 26-27) acrescenta que a pertinência de explorar os temas da identidade decorre de transformações políticas nos EUA “… onde, num contexto de crescente pluralismo cultural, as mobilizações políticas possuem cada vez mais o objetivo de criar o estatuto de minorias, usando efetivamente a ”identidade" como recurso político…". McDonald (2006: 26) tece ainda críticas ao modo como os teóricos da TPP conceptualizaram a identidade: “como mais um recurso disponível para ser mobilizado” (no caso de Tilly), como “um fator que reduz os custos da mobilização ou organização” (em Tarrow) ou “um meio através do qual os movimentos politizam os seus membros (Taylor e Whittier)”.

Comparativamente com as análises europeias sobre os “novos” movimentos sociais, a esfera de influência da TPP sobre o pensamento de diferentes autores foi sempre mais alargada, assim como as críticas que lhe foram dirigidas mais contundentes.

As reflexões europeias sobre os “novos” movimentos sociais são criticadas pela excessiva ênfase na novidade conceptual destes atores coletivos: “Os movimentos […] não eram inteiramente novos, especialmente nas suas táticas, nem estavam necessariamente mais orientados para o sentido cultural que o movimento laboral, especialmente nos seus começos” (Jasper, 2012: 22). Como observámos, também Melucci (1996), um dos autores mais reconhecidos no âmbito dos “novos” movimentos, acabou por abandonar a designação por considerar que nem sempre os debates surgidos à sua volta eram profícuos e mais importante do que refletir sobre o que era novo no surgimento de cada movimento social, era tentar enquadrá-lo de acordo com o contexto da sua época.

Por outro lado, segundo Jasper (2012), Touraine reservou para os movimentos da sociedade pós-industrial o mesmo papel central ao nível da historicidade outrora atribuído ao “velho” movimento social da sociedade industrial e, em última instância, o mesmo conceito de movimento social. Para Jasper (2012), quando Touraine tentou operacionalizar esta hipótese, os ativistas dos “novos” movimentos sociais das décadas de 1960 e de 1970 rejeitaram-na e não se identificaram com a ideia de transportarem uma identidade coletiva congruente e de um contraprojeto comum que teria como finalidade estabelecer um conflito com os tecnocratas da sociedade programada, assumindo antes que cada um deles possuía o seu programa específico.

Mas, sendo as teorias norte-americanas e europeias aparentemente antagónicas nas suas abordagens, em que dimensões de análise poderão convergir?

Para os autores abordados, os movimentos sociais são observados como um tipo de ação coletiva peculiar. Iniciam-se fora da esfera política institucional e transportam um conflito entre pelo menos dois opositores (Diani, 1992). Todavia, a noção de conflito é interpretada em diferentes sentidos: para Touraine o conflito tem de se situar ao nível da historicidade, ou seja, não só tem de pôr em causa os modelos normativos sociais e culturais vigentes como tem de guiar a sua transformação; no caso de Melucci, o conflito tem de pôr em causa e combater o sistema de dominação (Diani, 1992); no que respeita à TPP, envolve claramente um conflito entre os indivíduos que formam uma comunidade (lado não institucional) e as instituições que a governam (lado institucional). Na definição de movimento social da TMR não existe declaradamente a referência a um conflito, manifesta-se antes o desejo de mudança nalguns elementos da estrutura social. Esta ideia de que os movimentos sociais apelam sempre a mudanças nas sociedades está ainda presente nas reflexões de outros autores convocados na nossa análise: em Touraine corresponde a transformações nos modelos sociais e culturais, em Melucci a ruturas nos sistemas de dominação e na TPP a mudanças no sentido das formas de governação. A conceção de movimento social como envolvendo duas partes antagónicas implica, em Touraine e em Melucci, a constituição de uma identidade coletiva coesa e homogénea e que, de acordo com o último autor, origina a solidariedade. Na TPP, à qual foram dirigidas críticas pela parca importância atribuída inicialmente ao tema da identidade, o facto de se declarar que os movimentos sociais combinam uma série de estratégias para atingir os seus objetivos onde figuram “sucessivas demonstrações públicas de respeitabilidade, unidade, número e compromisso”, convoca um reconhecimento da importância de uma convergência sustentada dos envolvidos nas ações dos movimentos sociais. Para a TMR (McCarthy e Zald, 1977), um movimento social pressupõe a existência de “um conjunto de opiniões e crenças comuns a uma população”, ou seja, a partilha de um quadro mental comum é também uma das condições necessárias à sua formação.

Como sugere Diani (1992), embora as perspetivas teóricas invoquem diferentes fatores na explicação do desenvolvimento dos movimentos sociais, é possível apreender elementos confluentes na construção analítica da noção de movimento social.

 

O conceito de movimento social em mutação?

Após a consagração dos modelos teóricos explanados anteriormente e dos processos de análise críticos que estão sempre associados à consolidação de qualquer paradigma, em décadas mais recentes o estudo dos movimentos sociais e da ação coletiva volta a ser estimulado por um conjunto de debates sobre os chamados movimentos alterglobalização.

O objetivo principal destas reflexões não é o de analisar os fatores macroestruturais que explicam o surgimento dos protestos mas evidenciar o estudo das “microfundamentações da ação política e social” (Jasper, 2012). O seu propósito não é tanto perspetivar os movimentos sociais como os principais atores da transformação social e cultural ou como as mudanças nos sistemas políticos institucionais os influenciam, ou ainda distinguir o “movimento social” de outras formas de protesto, mas sobretudo sublinhar a importância da afirmação da subjetividade identitária e da expressão da identidade individual (McDonald, 2004, 2006), das redes ou dos compromissos individualizados (Pleyers, 2010) ou das emoções no desenvolvimento da ação coletiva contemporânea (Goodwin, Jasper e Poletta, 2000), características que, quando enfatizadas no estudo dos movimentos sociais, parecem ser contraditórias com o atributo de “coletivo” que normalmente lhes está associado.

A discussão do conceito de “movimento social” e da sua singularidade face a outros modos de ação coletiva tem vindo a perder a centralidade outrora tida nos paradigmas das décadas de 1960 e de 1970, ou seja, a preocupação atual dos investigadores não é tanto definir o que é um movimento social ou os fatores que levam à sua formação mas refletir sobre as principais tendências das formas de ação coletiva contemporâneas. Autores como McDonald (2004) afirmam, mas sem avançar com uma proposta teórica, que para designarmos os conflitos atuais se deve substituir o termo movimento social por experiência no movimento, aludindo ao papel crucial que considera que a identidade individual possui na construção dos protestos. No entanto, a sua proposta de passagem do conceito de movimento social a experiência no movimento permanece ambígua e não chega a ser concretizada de acordo um modelo de análise ou da enunciação de um conjunto de condições que permitam a transformação do conceito. Aliás, o autor quando se refere a experiência no movimento não renuncia inteiramente ao conceito de movimento social, apenas enfatiza o papel da identidade individual como se cada um no movimento, mais do que estar preocupado em viver uma experiência coletiva, estivesse a interagir com os seus pares para vivenciar algo individual e realizar-se mais em termos pessoais do que coletivos.

Embora se tenham produzido críticas categóricas face aos paradigmas dos anos de 1960 e de 1970, sobretudo direcionadas para a TMR e para a TPP, estes continuam a delinear os rumos das discussões atuais e a contribuir para a construção dos alicerces dos debates através da recuperação de alguns elementos que os autores contemporâneos consideram ser vitais para as suas análises. McDonald (2006) e Pleyers (2010) constroem as suas reflexões sobre os movimentos alterglobalização na esteira de Touraine (Jasper, 2012; McDonald, 2006). McDonald (2006) afirma recuperar o conceito de identidade de Touraine como um campo de tensões, para defender que nos conflitos em torno da globalização é necessária uma mudança paradigmática que substitua os termos de solidariedade e identidade coletiva pelos de fluidez e experiência pública do self. No seu estudo sobre os grupos de ação direta juvenis, o autor sugere que estes se formam em torno de ligações de amizade e de horizontalidade que se aproximam da constituição de laços em rede e fluidos e se afastam das relações verticais e burocratizadas avançadas pelo “velho movimento social” ou, ainda nos dias de hoje, pelas organizações sindicais. Os participantes envolvem-se nos “grupos de afinidade” com objetivos de contestação de curta duração que, na maioria das vezes, findam assim que terminam os protestos, mas que, estando baseados em relações afetivas, são reativados sempre que necessário. Nestes grupos é rejeitada a nomeação de líderes e de propostas comuns a todos os membros do grupo e, para McDonald (2004), o que é valorizado não são “as experiências do nós mas do eu com o outro”.

Também para Pleyers (2010), as iniciativas alterglobalização apoiam-se na criação de redes e de compromissos individualizados. O autor divide as “identidades” do movimento em “racionais”, as que se estabelecem em torno das organizações que desempenham o papel de peritagem técnica e crítica sobre o funcionamento das instituições políticas e económicas internacionais, e os atores que escolhem a via da subjetividade e da criatividade e que se orientam pelos princípios definidos por McDonald (2006). Segundo Pleyers (2010), estes são ativistas da experiência e do sentir onde os objetivos do protesto não passam tanto pela dimensão política mas mais pela cultural e individual, ou seja, a sua finalidade é criar espaços de vida que consigam opor-se à dominação económica e cultural do modelo de globalização neoliberal.

Jasper (1998) desenvolve um campo de pesquisa tendo em atenção a importância das emoções no estudo dos movimentos sociais. Este autor afirma que a importância do lado emocional e menos racional dos atores foi negligenciada no estudo dos movimentos sociais e tenta demonstrar como os fatores subjetivos podem influenciar o seu percurso, ajudar a compreender as suas dinâmicas internas e como as ligações afetivas que se vão gerando entre ativistas que partilham o mesmo grupo e/ou ideário afetam o percurso do grupo. O autor defende que a pesquisa sobre a influência da vertente emocional nos movimentos sociais deve incidir sobre diferentes dimensões: desde a estrutura de oportunidade política à formação de identidades até à compreensão dos processos através dos quais as emoções dos ativistas podem transformar os movimentos sociais.

Estes autores evidenciam como a pesquisa sobre os grupos de protesto, mobilizações coletivas e movimentos sociais se tem concentrado mais do que no passado sobre as dinâmicas e os processos microssociais que os enformam, acentuando a importância de fatores que pareciam lograr a abordagem científica destes fenómenos. Mas, se a importância de determinados temas se tem acentuado no estudo dos movimentos sociais, perspetivá-los como atributos inteiramente “novos” e apenas reconhecíveis nas formas de ação coletiva contemporâneas, poderá ser uma abordagem excessivamente entusiástica de tentar trazer para as discussões de cada “novo” ciclo de protesto a novidade conceptual já encontrada em protagonistas de outros cenários conflituais. Esta é uma discussão que perdura, desde os anos de 1960, nas pesquisas sobre os movimentos sociais: o que é “novo” e “velho” nos movimentos sociais ou, mais recentemente, o que é “novíssimo” (Feixa, Pereira e Juris, 2009).

Muitas das características dos protestos atuais eram já anunciadas como apanágio dos “novos” movimentos sociais. Por exemplo, a presença da heterogeneidade das identidades, a tendência para a constituição de grupos adeptos das formas de democracia participativa que funcionam de forma assembleária, onde existe uma tendência para a não nomeação de líderes e para processos de decisão por consenso, eram já atributos perspetivados como “novos” nos atores coletivos dos anos de 1960 e de 1970 (Cohen, 1985). Offe (1985) analisou-os como o ‘’novo paradigma de ação política" por contraposição ao “velho” tipificado nas organizações sindicais e nos grupos corporativistas: o primeiro é baseado na “informalidade, espontaneidade e no baixo grau de diferenciação vertical”, e o segundo manifesta-se através da “organização formal e de associações representativas de larga escala” (Offe citado por Plotke, 1995: 117).

Ainda que as reflexões dos anos de 1960 e de 1970 se concentrassem na influência das transformações estruturais e de larga escala nos movimentos sociais, a referência de autores como Touraine, Habermas e Melucci aos “novos” movimentos sociais como atores que incluem as preocupações com a esfera privada, íntima e individual parecia antever os contornos das reflexões dos autores contemporâneos. Determinadas características atribuídas aos grupos de protesto atuais podem não ser inteiramente novas, mas também é inegável que, nos últimos 40 anos, as sociedades atravessaram mudanças sociais, políticas, económicas e culturais que poderão ter contribuído para as tornar cada vez mais como marcos de análise fundamentais no estudo dos movimentos sociais. Com o consolidar da sociedade de informação e em rede, do papel das tecnologias de informação e comunicação (TIC) na transformação de todas as dimensões da vida em sociedade e também dos movimentos sociais (Castells, 1999), características como a cultura das redes, da fluidez e da horizontalidade poderão estar cada vez mais a influir nas dinâmicas de constituição e funcionamento dos movimentos sociais.

 

Notas conclusivas

Ao longo das últimas décadas, o estudo dos movimentos sociais foi atravessado por diferentes debates que permitiram pensar os movimentos sociais, os grupos de protesto de ativistas e as mobilizações sociais e políticas dos cidadãos a partir de diferentes ângulos. Do lado das teorias norte-americanas, num sentido mais racionalista e organizacional, a TMR destacou os fatores da mobilização de recursos e o papel das organizações como fundamentais no desenvolvimento dos movimentos sociais. Tendo sido criticada por propagar uma visão excessivamente racional dos fenómenos da ação coletiva, demonstrou que não é possível pensar a ação dos movimentos sociais ou até de uma manifestação, por mais espontânea que pareça, sem a ativação de determinados meios. Sem dúvida que nas sociedades atuais a mobilização dos recursos disponíveis pode assumir outros contornos, nomeadamente com a possibilidade de acesso às TIC e aos social media.

Ainda do lado norte-americano, a TPP demonstrou como os sistemas políticos podem influenciar a forma como emergem os movimentos sociais, assim como os percursos que trilham numa determinada sociedade. Embora o conceito de estrutura de oportunidade política tenha sido alvo de diversos argumentos desfavoráveis e o seu modelo analítico continue a ser criticado (McDonald, 2006), num contexto de erosão dos poderes políticos e económicos dos estados-nação, a sua exequibilidade conceptual poderia ainda ser mais facilmente posta em causa. Mas num exercício de reflexão oposto, se pensarmos sobre o estado atual de um contexto político e económico regional — o Sul da Europa — não continuará a ser útil convocar o conceito de estrutura de oportunidade política para explicar as diferentes dinâmicas de protesto que emergem nos diferentes contextos nacionais? E se observarmos as mobilizações que têm surgido na sociedade portuguesa, o conceito de estrutura de oportunidade política não auxiliará na compreensão da emergência de novos grupos de protesto e de níveis de mobilização difíceis de verificar em tempos anteriores?

Do ponto de vista dos teóricos dos novos movimentos sociais, apesar de todas as controvérsias, a utilidade em diferenciar os “novos” e os “velhos” de diferentes épocas a partir de uma abordagem cultural e de compreender como os movimentos sociais estão carregados não só de dimensões estratégicas e racionais mas também de valores culturais. Estas perspetivas demonstraram ainda a relevância de diferentes temáticas: desde a análise dos processos de construção da identidade colectiva, de como as questões da sua formação afectam as continuidades e descontinuidades dos movimentos sociais, (Melucci, 1996) até à introdução das matérias do foro privado e íntimo como sendo importantes no estudo dos ‘novos’ repertórios de ação (Offe, 1985; Habermas, 1986; Melucci, 1996).

Comum a quase todas estas abordagens foi a importância e a centralidade atribuída ao conceito de movimento social. Como vimos anteriormente, apesar de todas as diferenças, foi possível encontrar pontos de análise convergentes entre as diferentes conceções: a presença da noção de conflito, a existência de duas partes que se opõem, de uma identidade partilhada e de uma ação que exige uma certa continuidade e coesão num determinado momento e que vai além do significado de um protesto ou de uma manifestação. Todavia, se a necessidade de clarificação do conceito de movimento social era uma preocupação dos diferentes autores dos anos de 1960 e de 1970, atualmente parece não se constituir como uma discussão central nos debates sobre os movimentos sociais. Ainda que autores como McDonald (2006) afirmem que para se compreender os conflitos na globalização é necessário substituir o termo movimento social por experiência no movimento, a sua conceção de movimento social define-se mais pela exclusão daquilo que não é do que pela afirmação daquilo que o compõe. Também para autores como Pleyers (2010) ou Jasper (1998), a definição de “movimento social” não se constituiu como um elemento central das suas análises, que se debruçam sobretudo nos aspetos e nas características que se têm vindo a acentuar nos protestos e mobilizações contemporâneas. A tendência de algumas linhas de pensamento é a de examinar as dinâmicas internas de funcionamento e organização dos grupos de protesto e/ou procurar explicar as “microfundamentações da ação social e política” (Jasper, 2012), apropriando-se muitas vezes de contributos já existentes, mas não muito explorados, e não tanto a de propor novos conceitos para abordar as realidades atuais das formas de protesto. Estas têm sido qualificadas cada vez mais como redes fluidas, horizontais e descentralizadas onde a defesa da subjetividade identitária é muito importante para o envolvimento dos indivíduos. São estas particularidades que hipoteticamente poderão tornar menos necessária e difícil de estabelecer a unidade empírica a que nos habituámos ser essencial na definição de movimento social. Estará assim a noção de movimento social a atravessar um processo de transformação ou de erosão?

 

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Receção: 8 de julho de 2013. Aprovação: 24 de janeiro de 2014

 

Notas

[1] Agradeço ao professor Joaquim Gil Nave a leitura atenta e crítica e as recomendações que contribuíram para enriquecer este artigo.

[2] Ao invés de Touraine e Melucci, Offe e Habermas não desenvolvem qualquer discussão conceptual sobre o significado de movimento social. Sendo o nosso objetivo discutir o conceito de movimento social a partir das reflexões dos anos de 1960 e de 1970, a análise em torno de Offe e Habermas cingir-se-á apenas às suas reflexões sobre os “novos” movimentos sociais. Assim, por exemplo, no caso de Habermas excluir-se-á qualquer reflexão mais aprofundada sobre a teoria da ação comunicativa ou o conceito de mundo da vida.

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