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Sociologia, Problemas e Práticas

versão impressa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.74 Oeiras jan. 2014

https://doi.org/10.7458/SPP2014743203 

Envelhecimento e políticas sociais em tempos de crise

Ageing and social policies in times of crisis

Vieillissement et politiques sociales par temps de crise

Envejecimiento y políticas sociales en tiempos de crisis

 

Luís Capucha*

* Docente do Departamento de Ciência Política e Políticas Públicas do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), investigador do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-IUL), Avenida das Forças Armadas, 1649-026, Lisboa, Portugal. E-mail: luis.capucha@iscte.pt

 

RESUMO

O envelhecimento das populações no topo da estrutura etária é resultado da relação entre políticas sociais e longevidade, a qual não deixa porém de gerar novos desafios para a sustentabilidade dos sistemas de pensões e de saúde. A resposta a esses desafios tem vindo a assumir a forma de políticas de austeridade que não poupam os idosos. O recuo da qualidade das políticas sociais tem vindo a degradar as condições de vida das pessoas e a ofender os seus direitos, sem resolver o problema do financiamento do estado. A alternativa poderá passar por reformas que tomem o estado como um investimento e como fator de crescimento e bem-estar.

Palavras-chave envelhecimento, estado social, políticas sociais ativas, qualidade de vida, crise.

 

ABSTRACT

The ageing of the populations at the top of the age structure is a result of the relationship between social policies and longevity, and is posing new challenges to the sustainability of health and pension systems. The response to these challenges has been taking the shape of austerity policies that are not sparing the elderly. This backwards step in the quality of social policies has been degrading people’s living conditions and harming their rights, without resolving the problem of how to finance the state. An alternative may entail reforms that see the state as an investment and a factor for growth and well-being.

Keywords ageing, welfare state, active social policies, quality of life crisis.

 

RÉSUMÉ

Le vieillissement des populations au sommet de la structure des âges est le résultat du rapport entre politiques sociales et longévité, qui engendre par ailleurs de nouveaux défis pour la pérennité des systèmes de retraites et de santé. La réponse à ces défis tend à passer par des politiques d’austérité qui n’épargnent pas les personnes âgées. Le recul de la qualité des politiques sociales entraîne une dégradation des conditions de vie des personnes et porte atteinte à leurs droits, sans résoudre pour autant le problème du financement de l’Etat. L’alternative pourrait passer par des réformes qui considèrent l’Etat comme un investissement et comme un facteur de croissance et de bien-être.

Mots-clés vieillissement, Etat social, politiques sociales actives, qualité de vie, crise.

 

RESUMEN

El envejecimiento de las poblaciones en la cumbre de la pirámide de edad es resultado de la relación entre políticas sociales y longevidad, la cual no deja todavía de generar nuevos desafíos para la sustentabilidad de los sistemas de pensiones y de salud. La respuesta a esos desafíos ha venido asumiendo la forma de políticas de austeridad que afectan también a la gente mayor. El descenso de la calidad de las políticas sociales ha degradado las condiciones de vida de las personas y ha ofendido sus derechos, sin resolver el problema del financiamiento del estado. La alternativa podrá pasar por reformas que tomen al estado como una inversión y como factor de crecimiento y bienestar.

Palabras-clave envejecimiento, estado social, políticas sociales activas, calidad de vida, crisis.

 

Introdução

Em 2012 decorreu o Ano Europeu do Envelhecimento Ativo e da Solidariedade entre as Gerações. Foram várias e por vezes muito ricas as iniciativas que convocaram investigadores das mais diversas áreas do conhecimento científico, profissionais técnicos, responsáveis políticos e institucionais, e mesmo as próprias pessoas idosas, para reflexões conjuntas sobre os desafios do envelhecimento e as políticas que têm como destinatários principais os cidadãos mais velhos.[1] Iniciativas do mesmo tipo prolongaram-se ainda por 2013, o Ano Europeu dos Cidadãos. Tal foi o caso das III Jornadas de Serviço Social, promovidas pelo Centro de Apoio Social de Oeiras do Instituto de Acção Social das Forças Armadas, I. P., dedicadas ao tema “As Políticas Sociais e os Direitos da Pessoa Idosa”, nas quais apresentei uma comunicação à qual dou agora letra de forma.

Deixa-se constância de duas notas iniciais. A primeira para dizer que cada vez que, como sociólogos, somos chamados a pronunciar-nos sobre matérias com fortes ressonâncias biológicas, como é o caso do envelhecimento, somos sistematicamente levados à afirmação do primado das relações sociais sobre os “dados” naturais, presentes nos fenómenos abordados (Bordieu, Chamboredon e Passeron, 1968; Almeida e Pinto, 1982). Apesar de continuarmos a não poder dispensar a afirmação da dimensão socialmente construída que os fenómenos “naturais” incontornavelmente comportam, julgo que temos sido razoavelmente bem-sucedidos nesta tarefa em que não temos estado sozinhos.[2] Por exemplo, tornou-se já um lugar-comum a distinção entre o atributo biológico que distingue o sexo masculino do feminino, da realidade socialmente construída do género, que diferencia — de modo variável de sociedade para sociedade e de um momento histórico para outro — homens e mulheres.

Algo semelhante se passa com a idade. Operam na sociedade processos de categorização e codificação das atitudes, identidades e valores, normas, regras, recompensas e sanções, estatutos e papéis sociais, expectativas e códigos de apreciação que tornam a idade biológica um pretexto que dá mote à projeção, nas pessoas, de um conjunto de atributos socialmente construídos de forma mais ou menos arbitrária, à estruturação de posições e à definição de deveres e direitos específicos para cada categoria etária. As categorias resultantes dessas operações correspondem assim a tipos de comportamento e a padrões culturais construídos no quadro de processos históricos complexos, produtores de práticas e representações que “confirmam” a condição esperada para uma determinada idade. De tal modo que, às vezes, os atributos sociais se confundem com os dados biológicos, criando uma ilusão de inevitável “naturalidade” de realidades cuja natureza é de facto relacional (Almeida e outros, 1994).

Compete às ciências sociais recordar a natureza relacional dessas construções, evitando determinismos e, em particular, efeitos negativos eventualmente resultantes dos mecanismos de dominação em função da idade. Por exemplo, como dizia Bourdieu (1984), ao criar-se a categoria da “juventude”, período de “meio caminho” entre a puberdade e a idade adulta, o que se produz é um complexo mecanismo de exclusão das principais esferas de poder (social, económico, político) acionado pelos mais velhos em relação aos mais novos. Ao que os mais jovens respondem procurando enviar os adultos para a “velhice”, o espaço em que, nas nossas sociedades, já se terá perdido boa parte dos recursos de poder típicos dos adultos em idade dita ativa (Giddens, 2004). No jogo jogado no campo social da manipulação das idades, a juventude, uma criação recente das sociedades mais avançadas — pelo menos para a grande maioria da população que não estava destinada a ocupar posições de elite e, portanto, era “dispensada” de períodos mais prolongados de preparação para as funções futuras —, tem vindo a dilatar o seu período de existência, roubando anos à idade adulta (que se inicia agora pela categoria dos “jovens adultos”) e à maturidade social plena, cuja chegada costuma ser simbolizada pelo autossustento e pelo abandono da casa dos pais (Pais, 1996).

Do outro lado, a velhice vai roubando anos à morte e os “idosos” constituem uma categoria com peso cada vez maior na sociedade (Almeida e outros, 2007), de tal modo que já não basta uma designação única para os abranger a todos. Aparecem assim os “idosos jovens”, os idosos “tout-court”, os “grandes idosos”, a “velhice invisível” e outras designações para períodos da vida que se vão alongando no quadro das “idades móveis” (Fernandes, 1997) típicas da demografia de fronteiras fluidas dos nossos tempos. Esta realidade faz-nos recusar, desde logo, o tratamento desta categoria populacional no singular. A pessoa idosa não existe, existem muitas pessoas em fases diversas do último tramo da vida, que partilham atributos que se foram diversificando e a respeito das quais mudaram as representações sociais, os valores, os estereótipos, as políticas, as práticas relacionais e os contextos de vida.

A segunda nota é para reafirmar o que têm dito, no nosso país, alguns investigadores: a diferenciação entre as pessoas idosas não se limita à segmentação interna em “tramos” etários ou em função das capacidades (para fins estatísticos utiliza-se a primeira ótica, no pressuposto que de alguma forma ela se associa, de modo variável, à segunda). Há entre os idosos diferenças de classe social, de níveis de rendimento, de género, de tipo de agregado familiar, de zona de residência, de densidade e afetividade dos laços sociais, de condições de saúde e de autonomia, enfim, de modos de vida de tal forma diversificados que definitivamente nos obrigam a abandonar a ideia de que a situação se possa conjugar no singular (Mauritti, 2004). Nem mesmo dicotomias um pouco mais complexas como a que distingue a “velhice positiva” da “velhice negativa”, são já suficientes para dar conta desta diversidade. A idade, bem como o aumento da probabilidade de com ela surgirem doenças crónicas e/ou degenerativas acarretando dependência (Ribeirinho, 2012), configura-se apenas como mais um dos vetores que se articulam nesta complexa realidade.

 

Envelhecimento, um fruto do progresso

Às duas notas prévias deixadas acima poderíamos acrescentar uma terceira. Cada sociedade, em cada momento, trata os idosos à sua maneira. Existem sociedades em que os mais velhos, normalmente pouco numerosos, são venerados como repositórios de valores e conhecimentos indispensáveis à vida coletiva (Giddens, 2004). Mais comuns no passado ou em países menos desenvolvidos,[3] eles representam a autoridade moral e às vezes também política.

Noutros casos, pelo contrário, os idosos são tidos como um peso inativo que consome os recursos necessários à coletividade, pelo que a sua eliminação é socialmente tolerada. Em certos casos é até incentivada, por razões económicas ou morais, como tão bem ilustrou Miguel Torga para o caso da sociedade portuguesa de apenas há algumas décadas atrás, no seu conto “Alma Grande”.

O envelhecimento tende a ser tratado, mais recentemente, em quase toda a literatura sobre o estado social, como um “problema” para a sustentação das políticas sociais (Ebbinghaus, 2011, 2012; Bonoli e Natali, 2012; Castles, 2004; Taylor-Gooby, 2004). Porém, são as próprias sociedades modernas que têm vindo a criar o envelhecimento[4] e o “risco da velhice”. Curioso risco esse que a generalidade das pessoas deseja afincadamente correr e que se torna, de facto, a situação normal e legitimamente expectável para a maioria das pessoas (Capucha, 2005). Este é um facto novo, a exaltar, fruto do progresso.

Wilkinson (1996) mostra, a partir da análise de informação detalhada de vários países no mundo e do cruzamento de indicadores de desigualdade e de pobreza, indicadores de esforço nas políticas de saúde, e indicadores de resultado como a esperança de vida à nascença, que existe uma relação forte entre a desigualdade (menor nos países com políticas de redistribuição mais fortes) e a saúde, quer se trate de cuidados médicos, quer se trate de políticas de prevenção, incluindo o acesso a saneamento básico, água canalizada e habitação condigna. Vários organismos internacionais, como o PNUD e a OMS, chamam também insistentemente a atenção para a correlação existente entre a pobreza, indicadores de saúde e bem-estar como os referidos e a longevidade média das populações. O aumento da “esperança média de vida à nascença”, causa direta do envelhecimento no topo, é, pois, um dos resultados do progresso social.

Ainda há poucas décadas atrás Portugal se encontrava próximo dos padrões típicos de países em desenvolvimento, com esse indicador a não ultrapassar os 60,7 anos para os homens e os 66,4 anos para as mulheres (ver figura 1).

 

 

Cinquenta anos depois, período em que ocorreram processos como a criação do Sistema Nacional de Saúde, a promulgação da Lei de Bases da Segurança Social e a montagem de um sistema em convergência com a Europa, os valores eram de 76,5 anos e 82,4 anos para cada um dos sexos, sendo a média de 79,6 anos. Cerca de 16 anos é o que uma pessoa hoje vive mais, em média, do que nos anos 60, o que nos coloca nos padrões típicos das sociedades mais desenvolvidas.[5]

O número de pessoas estatisticamente classificadas como idosas (ou seja, com 65 e mais anos) ultrapassou, já em 2011, os dois milhões, sendo o segmento dos que têm 75 ou mais anos (961.925 pessoas), quase metade. Na década decorrida entre 2001 e 2011, o envelhecimento da base apresentou uma perda de 5,1% de crianças e adolescentes entre os zero e os 14 anos e a população entre 15 anos e 64 anos perdeu 0,4%, enquanto o número de pessoas com 65 ou mais anos de idade cresceu 18,7%, de 1.693.493 para 2.010.064.

 

 

Se em 2001 a proporção daqueles que estavam acima dos 65 anos ultrapassou pela primeira vez a dos que estavam abaixo dos 15 anos (respetivamente, 14,6% e 14,0% da população total), em 2011 essa tendência acentuou-se: as crianças passaram a ser 14,9% do total e os idosos 19,0%.

São vários e muito complexos os fatores que explicam o envelhecimento quer da base, quer do topo do que foi outrora a pirâmide etária, entretanto transformada numa espécie de “barril”. Não é nossa intenção abordá-los aqui. Apenas argumentamos que o fenómeno do envelhecimento no topo não se deve a nenhuma mutação genética, mas sim a mudanças económicas, sociais e políticas profundas. Elas são, na verdade, como noutros países que envelheceram mais cedo, resultado da melhoria generalizada dos sistemas de saneamento básico, de acesso a água potável, das condições de higiene e segurança no trabalho, dos progressos da ciência e da medicina postos à disposição de todos pelo sistema público de saúde, do crescimento dos rendimentos do trabalho, dos sistemas de pensões, dos equipamentos sociais e das medidas de combate à pobreza, que permitem às pessoas aceder a padrões de consumo e à satisfação de necessidades básicas, como alimentação, vestuário, conforto na habitação e a cuidados de saúde que se refletem diretamente na esperança de vida. Por outro lado, uma eventual regressão naqueles domínios de política não deixará de se refletir num retrocesso da esperança de vida, dada a já assinalada relação entre a pobreza e a desigualdade, a pobreza, a saúde e a longevidade (Wilkinson, 1996).

O risco de pobreza constitui uma boa aproximação de síntese às condições que se associam ao prolongamento da vida. Embora sem podermos explorar, no âmbito do presente artigo, a relação causal estatisticamente demonstrável entre a evolução da esperança média de vida à nascença e a pobreza, não podemos deixar de evidenciar que os dois fenómenos se comportam de modo regular: se a esperança de vida vai crescendo, a pobreza comporta-se de modo inverso. A pobreza, que nos anos 70 atingia mais de metade da população idosa, era ainda de 39,9% há 20 anos atrás, quando para o conjunto da população era de 22,5%, tendo vindo a cair desde aí até aos 20,0%, em 2010, apenas 2 pontos percentuais acima da população em geral (Rodrigues e outros, 2012).

 

 

Trata-se, ainda, de valores muito elevados no plano europeu, mas a evolução é inegável, tanto mais quanto outras categorias, como as crianças, têm conhecido uma evolução negativa (Rodrigues e outros, 2012). O fluxo de entrada de pessoas com passados contributivos mais favoráveis, em resultado da maturação do sistema e do aumento geral dos níveis de remuneração dos trabalhadores, reduzindo o peso relativo dos pensionistas do regime não contributivo e dos pensionistas com pensões mais baixas, produz uma parte deste resultado na pobreza dos idosos. Para ele contribuem depois medidas de solidariedade como o “complemento solidário para idosos”, que explica o declive registado na taxa de risco de pobreza após a introdução dessa medida.

A evolução da despesa do estado com a segurança social e com a saúde em percentagem do PIB tem tido em Portugal uma evolução que acompanha a tendência da esperança média de vida à nascença. De níveis muito baixos característicos de um país sem estado social (nem democracia) em 1960 e 1970, a montagem de sistemas públicos e de acesso universal no campo da saúde foi fazendo crescer a despesa com estas políticas à medida da maturação do sistema de políticas sociais.

Tal tendência, ao mesmo tempo que nos aproximou dos padrões europeus, deu também um forte contributo para melhorar as condições de vida das pessoas e para sustentar o envelhecimento de que demos conta acima.

O investimento público na melhoria dos serviços, das prestações sociais e das infraestruturas foi, em suma, o grande responsável pelo envelhecimento da população.

 

 

Novos desafios

Contrariando aqueles que falam do “falhanço” do estado social (Friedman e Friedman, 1980), o envelhecimento é a melhor prova do seu sucesso. Um sucesso traduzido, como vimos, em vidas mais prolongadas e com melhores condições de bem-estar para a generalidade da população. E ainda, deve sublinhar-se, no estímulo à economia. De facto, não estão distantes os tempos em que os indefetíveis defensores da superioridade do mercado perante a suposta “falência” do estado social, salientavam a importância da “geração cinzenta”, economicamente abonada e em crescimento, como um dos principais segmentos dos consumidores e, por isso, um fator de estímulo ao crescimento económico.

As pessoas idosas são a prova de que o estado social não faliu (Castles, 2004),[6] ao passo que a crise atual mostra o falhanço de um modelo de economia política apostada em fazer recuar o estado e as suas funções, deixando campo livre para a especulação financeira, a precarização das relações de trabalho e a colonização do espaço do interesse público pelos interesses particulares dos mais poderosos, que desprezam e vilipendiam os valores da solidariedade e da justiça social (Crouch, 2011; Dorling, 2011). E cuja falência arrastou as sociedades e as economias para a crise profunda e sem termo previsível em que nos encontramos. De resto, não é por acaso que os países que melhor resistiram à crise, com melhor desempenho tanto social como económico, são os que possuem estados sociais mais consolidados, mais desenvolvidos, mais ativos (Almeida, 2013). Pelo contrário, sofrem dramaticamente mais os países com políticas sociais menos desenvolvidas e o comum dos seus cidadãos (Morel, Palier e Palme, 2012; Larsen, 2013).[7]

Quando se resolve um conjunto de problemas sociais, no caso vertente criando um bem de inestimável valor, como o prolongamento da vida das pessoas, não ficam resolvidos todos os problemas. Alguns permanecem e aparecem outros, novos. Se esses novos problemas se situam num patamar superior de satisfação das necessidades e expectativas dos cidadãos, podemos dizer que houve progresso. Se, pelo contrário, representam um recuo para patamares que a histórica deixara no passado, diremos que há um retrocesso.

No caso do envelhecimento, os novos problemas situam-se, claramente, num patamar mais avançado em relação ao passado. É bom, repete-se, que a maioria das pessoas viva mais tempo. Mas nem por isso são menos complicados, dado que essa “bondade” tem limites. A esmagadora maioria dos trabalhos sobre o envelhecimento centra-se no que está por resolver, em particular a questão da sustentabilidade financeira das políticas sociais, esquecendo o que foi conquistado. Por vezes compreende-se que assim seja, pois isso pode revelar a ambição de progresso. Mas outras vezes resulta da tentativa de fazer recuar o estado social, sob a capa de constrangimentos financeiros incontornáveis. As soluções que têm vindo a ser adotadas passam por um welfare mix com maior presença do sistema privado (Ebbinghaus, 2011, 2012). Apesar de a experiência mostrar vários perigos presentes nesta solução, nomeadamente em termos da cobertura das populações de menores recursos e de recuo na qualidade das políticas, ela tem vindo a fazer o seu caminho.

Se olharmos para os problemas gerados com o envelhecimento apenas pela ótica economicista da sustentabilidade financeira do estado e do funcionamento da economia, e para as políticas sociais apenas como despesa, o que vemos são dificuldades geradas pelo aumento do rácio de dependência (atualmente situado em 1,21 ativos para cada pensionista, quando no início dos anos 80 era 1,73); pressão sobre a sustentabilidade financeira dos sistemas de pensões e do sistema de saúde; representações negativas (ainda que infundadas) sobre a adaptabilidade e a produtividade dos trabalhadores mais velhos; crescentes despesas com equipamentos e serviços sociais, perigo de crescer o sentimento de desconfiança entre as pessoas, nomeadamente entre as gerações (Almeida, 2013), num sistema baseado precisamente na solidariedade intergeracional. São problemas efetivos que, porém, podem ser atacados de diversas maneiras e não apenas pelo recuo da generosidade, da cobertura e da eficácia geral do sistema.

A procura de alternativas ao simples corte cego nas políticas que asseguram qualidade de vida implica que se adote uma perspetiva que não esqueça as pessoas e o seu bem-estar, mas também os efeitos económicos do crescimento e plena utilização do seu potencial. Podemos sumariar, rapidamente, três dos principais problemas emergentes com o envelhecimento da população visto nesta perspetiva.

1.    Do ponto de vista da posição social das pessoas numa sociedade em que o trabalho constitui a principal fonte de poder e estatuto, a saída do mercado de trabalho para a inatividade de trabalhadores que se sentem e estão de facto ainda na plena posse das suas faculdades (umas vezes antes, mas outras também após a idade legal de reforma), tornou-se um problema no plano da identidade pessoal, do sentimento de utilidade e das oportunidades de participação social (Moura, 2012). Respostas que mantenham as pessoas ativas, intelectual e funcionalmente, como as universidades da terceira idade (Jacob, 2012) e outras estruturas de aprendizagem e ensino, o coaching de iniciativas empresariais de jovens por parte de trabalhadores experientes e disponíveis, o apoio prestado por profissionais mais experientes à formação técnica no ensino vocacional de nível secundário ou superior, a formação contínua das pessoas numa lógica de aprendizagem ao longo da vida, são algumas das medidas de política que podem fazer face ao problema da rentabilização das políticas de pensões, com benefícios também para a economia e a produtividade.

2.    Há hoje, como vimos, um número relevante de pessoas que vivem até idades avançadas com total autonomia e níveis de saúde e bem-estar mais do que razoáveis. Acabam muitas vezes por morrer saudáveis e muito idosas. A situação mais comum, porém, corresponde à progressiva perda de eficiência física, psicológica e da autonomia para o desempenho das tarefas comuns do quotidiano, à medida que a idade avança (Pedro S. Carvalho, 2012; Barreto, 2005). Esta situação é dobrada, com frequência, pelo isolamento dos idosos, primeiro em casal e depois de um dos ex-cônjuges, maioritariamente mulheres, sozinhas (Aboim e Wall, 2002; Guerreiro, 2003; Mauritti, 2011). O já várias vezes referido Wilkinson (1996) aponta o empobrecimento da qualidade e da densidade da vida social como fator de perda da saúde e de limitação ao prolongamento da vida. As famílias estão, na verdade, quase sempre distantes e ocupadas com duplas carreiras profissionais, que têm de combinar com o cuidado dos filhos e com a luta pela sobrevivência diária a que todos estão sujeitos. O isolamento e a perda de autonomia provocam o empobrecimento do quotidiano, impedem a participação na vida da comunidade e geram degradação, por vezes até limites chocantes, das condições de vida. A resposta política a este problema passa pelo desenvolvimento de serviços de ação social que se vão adaptando à evolução das condições de cada pessoa. Falamos de serviços como os centros de dia e os centros de noite, os serviços de apoio domiciliário, os serviços integrados de apoio domiciliário e, nos casos de grande dependência, os lares de idosos. Estes serviços não apenas podem assegurar os apoios materiais mais básicos, como oportunidades de participação e enriquecimento da vida pessoal e relacional, direitos essenciais para a qualidade de vida (Ribeirinho, 2012). Neste ponto importa salientar duas notas: (i) é preciso atender com particular atenção à situação dos idosos mais pobres, cuja proporção continua a ser mais elevada do que a média da população, e cujos recursos, tal como aliás os de outras pessoas com rendimentos intermédios, estão quase sempre abaixo do necessário para procurar no mercado os serviços de que carecem, reforçando assim a condição desigual que marca a sua existência; (ii) os serviços prestados a pessoas idosas e a outros cidadãos dependentes (crianças, pessoas com deficiência ou doentes, etc.), constituem um setor relevante para a criação de emprego e a dinamização da economia, que não se pode menosprezar (Guerreiro e Lourenço, 1999; Morel, Palier e Palme, 2012).

3.    O envelhecimento tem associados novos problemas quando olhamos para as pessoas, mas tem outros cuja natureza é sistémica. Podem-se considerar outras hipóteses, mas não arriscaremos muito se dissermos que a par da globalização, do desemprego, das qualificações, das mudanças na organização familiar, do ambiente e da pobreza, o envelhecimento é um dos desafios mais relevantes na agenda de reforma do estado. Os sistemas de pensões e de saúde foram pensados para uma sociedade e uma economia diferentes das que temos hoje (Bonoli e Natali, 2012; Esping-Andersen e outros, 2002; Taylor-Gooby, 2004). Nas atuais condições esses sistemas não seriam financeiramente sustentáveis (João Carvalho, 2012). Por isso os governos de todos os países desenvolvidos têm introduzido alterações importantes nas políticas de segurança social e de saúde, enquanto alguns dos que estão em fase de grande crescimento, como o Brasil e outros da América Latina (Haggard e Kaufman, 2008), iniciaram o processo de construção de um estado social. Na maioria dos casos, aquelas alterações procuraram alternativas de financiamento e ganhos de eficiência que preservem o desempenho das políticas sem comprometer a sua sustentabilidade (Ferrera, Hemerijck e Rhodes, 2000).

Também Portugal reformou o seu sistema de segurança social, nomeadamente introduzindo o chamado “fator de sustentabilidade”, e tem apresentado melhorias significativas no funcionamento da saúde (Rodrigues e Silva, 2012), mas não é de excluir que no futuro se tenham de encontrar novas soluções, nomeadamente que passem por novas formas de repartição do esforço da solidariedade entre as gerações e principalmente não onerando apenas o trabalho, mas todos, por via de políticas fiscais mais informadas pela perspetiva da justiça social.

Esta questão é tanto mais relevante quanto melhor se sabe que, para além da salvaguarda futura do sistema de pensões e de outros esquemas de cobertura de riscos como os de desemprego, doença ou acidentes de trabalho, existem ainda setores da população não cobertos por qualquer esquema de proteção, como os jovens, ou que são abrangidos por medidas que não os colocam a salvo do risco de pobreza, como as crianças, entre as quais o fenómeno tem vindo a crescer mesmo quando diminuiu em termos médios. Naturalmente, reduzir os apoios aos idosos, que são já baixos na maioria dos casos, não será uma solução justa. E as bases da solidariedade entre as gerações têm de ser preservadas.

 

O “choque de austeridade” só agravou os problemas

A crise das dívidas que atravessamos atualmente em resultado da desregulação dos mercados financeiros e da explosão das desigualdades a nível global, agravou profundamente todas as tensões preexistentes (Dorling, 2011; Lansley, 2011; Crouch, 2011). Mas é legítimo duvidar, face à experiência recente, que tenha sido a crise o único fator desse agravamento. Dúvida reforçada pelo modo como países com estados sociais mais desenvolvidos se comportam perante a mesma situação (Almeida, 2013).

Depois de um curto período, entre 2008 e 2010, em que os governos responderam à crise com políticas primeiro de assistência ao sistema financeiro e depois de apoio às PME e aos cidadãos e de reforço da proteção dos mais vulneráveis, tem vindo a ser seguido, principalmente na Europa, um caminho de fixação exclusiva no objetivo de controlo do défice dos estados e de proteção do sistema financeiro. Sem qualquer esforço de desenvolvimento político da União Europeia que permitisse abordar os efeitos sociais e económicos desse caminho. As políticas daí decorrentes, focadas na lógica da austeridade, tanto quanto se consegue perceber à curta distância a que nos encontramos do seu início, geraram, entre outros fenómenos negativos, a retração da economia, a diminuição dos rendimentos do trabalho, o desemprego com valores inéditos (sempre crescentes e particularmente graves dada a prevalência do DLD e dos desempregados que perdem o direito ao subsídio), o agravamento até limites extremos de situações de pobreza e exclusão social e a queda da receita do estado (apesar da subida dos impostos sobre as classes médias e os trabalhadores), ao mesmo tempo que a despesa pública cresce (apesar de cortes pesados nas políticas sociais) por via dos juros da dívida e dos encargos sociais com o desemprego. Deixamos para o fim, para melhor os realçarmos, os efeitos na descida dos valores das pensões, incluindo as mais baixas, o corte em medidas de apoio ao rendimento dos mais pobres e de luta contra a pobreza e na interrupção de programas de criação de equipamentos sociais, todos eles com forte incidência sobre os idosos.

Assim, apesar dos cortes substanciais nas prestações e nas políticas públicas, as medidas regressivas e os encargos da dívida impactaram retroativamente de forma negativa sobre a economia e as receitas do estado, gerando-se aquilo que vem sendo designado no espaço mediático e político por “espiral recessiva”. É por isso possível defender, como tem vindo a ser defendido no mesmo espaço, que se sofre hoje o impacto da crise financeira, mas também o impacto das políticas restritivas de resposta a essa crise, criando uma situação extremamente delicada no plano social, económico e político, a nível nacional e a nível europeu (Krugman, 2013).

A nível nacional esta realidade será, provavelmente, ainda mais dura dado que, como foi confessado, o governo levou mais longe a lógica da austeridade do que os programas de ajustamento negociados com a Troika (BCE, CE e FMI) exigiam, como se esses programas fossem vistos como uma oportunidade para aplicar um programa com forte carga ideológica de retração do estado social e de desregulação dos mercados de trabalho.

Uma diminuição acentuada do rendimento dos idosos (e da maioria das pessoas de todas as idades) incluindo os que já os possuíam baixos, traduz-se no regresso a situações de carência extrema para grande parte deles. O desemprego exclui do mercado um número de pessoas que não cessa de crescer, com uma parte delas, nomeadamente os ativos mais experientes — considerados “velhos” pelas empresas mas novos para aceder à reforma e para se sentirem dispensáveis — a confrontar-se com dificuldades inultrapassáveis de regresso à atividade económica. Os programas de investimento em novos e mais inclusivos equipamentos sociais para idosos estão parados, considerados como “despesa” incomportável para o estado. As famílias são chamadas a contribuir ainda mais para o financiamento do sistema de saúde,[8] com o impacto a ser maior precisamente entre aquelas que mais têm de o utilizar, ao mesmo tempo que aparecem sinais preocupantes, pela primeira vez em décadas, de recuo na qualidade do serviço.

O objetivo único de equilibrar as finanças a todo o custo parece, pois, estar a prejudicar seriamente quer as próprias finanças, quer a economia, quer, principalmente, a qualidade de vida, a segurança e a satisfação dos direitos das pessoas.

 

As políticas a favor dos idosos como ativos sociais e económicos

O caminho seguido tem sido apresentado como a única via possível. Porém, desde há algumas décadas têm vindo a confrontar-se, na prática, no debate político e na investigação científica, duas agendas de reforma do estado que se têm concretizado segundo combinatórias (policy mix) diferenciadas nos modelos de capitalismo existentes nos países europeus (Esping-Andersen, 1990; Amable, 2005; Goodin e outros, 1999; Hall e Soskice, 1995). Repetidamente se tem dito que os países com estados sociais mais fortes responderam melhor ao contexto de crise. Com mais precisão coloca-se hoje a hipótese de os estados com maior componente de políticas sociais ativas, consideradas como investimento e não como despesa, apresentarem melhores resultados em todos os domínios (Hemerijk, 2012; Jenson, 2012).

Mais dificuldades sentem os cidadãos e as economias dos países onde se tem levado mais longe o paradigma de “dualização” dos sistemas de proteção e de outras políticas sociais (Emmeneger, 2012; Levy, 2010), marcado pela substituição dos princípios da qualidade, da acessibilidade e da igualdade (Bauer e outros, 2012; Dye, 2011), pela segregação de políticas orientadas exclusivamente para serviços e prestações “mínimos”, e correspondente individualização da responsabilidade pela proteção contra os diversos riscos; pela privatização e remercadorização dos serviços sociais (Ebbinghaus, 2011; Knill e outros, 2009); pela precarização das relações de trabalho; pela liberalização, desregulação e criação de condições para toda a espécie de arbitrariedades nos mercados (Sennet, 1999); por cortes nas políticas e nas instituições que as operacionalizam; pelo “chauvinismo” contra os sistemas públicos, a administração pública e, em particular, certas políticas dirigidas aos mais desfavorecidos, como o rendimento mínimo.[9] As políticas sociais públicas e universais tendem a ser consideradas como custos que pesam sobre a economia, ao passo que a intervenção reguladora do estado é tomada como um handicap para o bom desempenho do mercado (Stiglitz, 2002; Crouch, 2005).

Ora, a realidade tem mostrado que estas opções produzem mais desigualdades, mais recessão, mais austeridade e exaustão da capacidade de sofrimento dos setores mais frágeis da sociedade. O que não impede as forças políticas e financeiras que apoiam esta estratégia de insistir no caminho. Fazendo lembrar um comandante de um exército que conduz as suas tropas para um desfiladeiro onde sabe que o espera uma emboscada fatal, mas insiste em ir por aí para poupar nas solas das botas das tropas.

Mas há outros caminhos. A experiência mostra-nos, de facto, que o mercado, fazendo embora parte da policy-mix de apoio às pessoas idosas, tem um papel geralmente negativo, pois é no mercado que se geram as desigualdades sociais e a discriminação. Esta, no caso dos idosos, é dupla: primeiro, quando as pessoas idosas eram ativos mal remunerados e consequentemente, passaram a ser pensionistas com baixas pensões; e depois, quando oferece serviços de apoio e cuidados pessoais a preços inacessíveis e totalmente desajustados em relação à qualidade que possuem. A privatização gera mais problemas do que os que resolve e põe em causa a solidariedade e a coesão social, o que representa custos sociais e económicos muito altos.

As famílias podem desempenhar um papel muito importante, mas têm a sua ação limitada pelas suas próprias contingências e recursos. Famílias que tendem a deslocalizar-se em relação às residências dos mais idosos, em que prevalecem duplas carreiras profissionais e que, no caso do desemprego e dos baixos rendimentos, são mais protegidas do que protetoras dos idosos, tendem a estar impossibilitadas do desempenho de funções de apoio social, a não ser à custa da degradação das funções expressivas, aquelas que os idosos mais prezam e gostariam de preservar.[10]

As instituições de solidariedade desempenham igualmente um importante papel, nomeadamente na promoção de serviços de ação social. Mas também neste caso o desempenho, geralmente de boa qualidade, está fortemente limitado pelos recursos que provêm do estado. O estado é, por isso, a entidade melhor qualificada e colocada, e de facto a maior responsável por assegurar a qualidade de vida aos idosos (Capucha, 2012). Incluindo a possibilidade de viverem de forma ativa a velhice, o que constitui o principal fator protetor contra riscos de doença, de empobrecimento, de exclusão e de segurança.

A evidência parece demonstrar que um estado de orientação neoliberal ou conservador (no sentido da persistência nas respostas adequadas a contextos sociais passados) não poderá desempenhar esta função. Como vimos, a educação ao longo da vida,[11] a utilização dos saberes e da experiência dos seniores junto de empreendedores mais jovens,[12] a expansão do emprego nos equipamentos sociais (Guerreiro e Lourenço, 1999), a implementação de mecanismos de transição planeada e suave entre o pleno emprego e a reforma, a revitalização do mercado constituído pela “geração cinzenta”, a adoção de lógicas de ativação nas políticas de emprego e de segurança social (Capucha, Pegado e Saleiro, 2009) e outras,[13] podem ser elementos de um sistema de políticas sociais criadoras de riqueza e de oportunidades económicas qualificadas e de bem-estar social. Mas a adoção dessas políticas implica assumir que os idosos têm utilidade social, económica, qualificacional e cultural. Implica tentar encontrar, não os meios de reduzir para níveis intoleráveis as despesas a que têm direito, mas sim o que podemos aprender com eles.

Correndo embora o risco de utilização de uma expressão que vai sendo recorrentemente utilizada no combate político, cortar nas políticas apenas por cortar não é reformar o estado, nem torná-lo mais eficiente. É destruí-lo e torná-lo mais ineficiente, porque passa a servir para muito menos. Perde mais com isso quem menos tem e quem mais carece de apoio.

Os novos “Alma Grande”, especialistas da transformação de direitos em “regalias”, aparecem vestidos de tecnocratas, saídos das grandes empresas, do mundo das finanças ou de grandes instituições que obedecem a esse mundo, socialmente insensível.[14] De um modo novo, também eles condenam os idosos mais vulneráveis à morte precoce.

O modo como uma sociedade trata os seus idosos é um indicador seguro da qualidade que pretende oferecer a todos os cidadãos. Como tem sido insistentemente afirmado na comunicação social por pensadores sociais de referência como Bourdieu, Beck, Habermas, Giddens e outros, não podemos subordinar o valor da solidariedade aos interesses das finanças e dos mercados, a esfera em que se geram as desigualdades que apenas o estado pode corrigir. Nem substituir a solidariedade pela caridade nem pelo paternalismo, princípios contrários à justiça como direito, à autonomia e dignidade de quem recebe, a favor de quem se afirma pelo poder do “dom” caritativo. Também não podemos substituir as políticas sociais por formas elementares de solidariedade mecânica, como aquela que reclamam os que esperam das famílias, em grande medida exauridas, aquilo que elas já não estão em condições para oferecer de forma digna (INE, 2012). A solidariedade não é um “luxo” de tempos de abundância, é um requisito do equilíbrio social, da coesão e da produtividade, principalmente relevante em tempos de crise.

Os custos a pagar pela política que tem vindo a ser seguida são demasiado elevados e os resultados podem ser muito perigosos. Hoje, estamos a pagar mais impostos e contribuições do que nunca, a troco de muito menos. Quanto tempo demorarão as pessoas a perguntar (se é que já não o fazem, de forma crescente, embora nem sempre visível na comunicação social e na rua) para que querem um regime que não lhes resolve os problemas e que as obriga a recuar a tempos que estavam já longe, no baú das más recordações? Esta é uma questão a que a agenda da pesquisa em sociologia e em políticas públicas não pode deixar de considerar com grande urgência.

Podemos tratar mal os idosos, abandonando-os aos caprichos do mercado e reduzindo-lhes o acesso aos direitos? O risco é demasiado elevado e a moral terá de descer demasiado, até níveis perigosos para a democracia e a coesão social, para que o possamos aceitar.

 

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Receção: 30 de maio de 2013. Aprovação: 6 de outubro de 2013

 

Agradecimentos

Agradeço à Rosário Mauritti a revisão cuidada e amiga e as contribuições para este texto.

 

Notas

[1] Sendo um tema clássico, servido por um acervo bibliográfico nacional e estrangeiro muito considerável, multiplicaram-se neste ano novas publicações como, por exemplo, entre aquelas cuja produção acompanhei, as obras de Cláudia Moura (2012) e Irene Carvalho (2012).

[2] A afirmação de abordagens compreensivas, deselegantemente designadas por “bio-psico-sociais”, que se vem produzindo nalgumas profissões ligadas à saúde, à reabilitação de pessoas com deficiência ou ao serviço social, por exemplo, tem vindo a operar no mesmo sentido.

[3] Embora esse “respeito e veneração” também aconteça em sociedades modernas, desenvolvidas e relativamente igualitárias, como o Japão, onde é grande a proporção de idosos e onde a longevidade é norma ((Wilkinson, 1996).

[4] Embora não seja esse o tópico em discussão, não se ignora que o envelhecimento das sociedades modernas dá-se no topo, mas também na base, com a diminuição das taxas de natalidade e de fecundidade. Uma boa parte deste fenómeno também se explica, neste caso, por fatores à partida positivos, como a diminuição da mortalidade infantil e a criação de sistema de pensões para os idosos. A antiga necessidade sentida por várias famílias, em particular as camponesas, de assegurar a velhice e aumentar a força de trabalho através de uma descendência alargada, perde sentido, enquanto o aumento da probabilidade de uma descendência menor sobreviver até idades avançadas permite o duplo resultado de assegurar o “conforto expressivo” trazido pelas crianças e ao mesmo tempo concentrar num número reduzido de filhos recursos que proporcionem melhores oportunidades de promoção social (Almeida e outros, 1994).

[5] Segundo o Relatório do Desenvolvimento Humano (2013) do PNUD, este indicador atingia os valores de 80,1, 73,4, 69,9 e 59,1 respetivamente para os países com desenvolvimento humano “muito elevado”, “elevado”, “médio” e “baixo”.

[6] O peso das pensões nos sistemas de proteção social, em crescimento mesmo em tempos de discursos orientados para a “redução do estado”, é apontado por muitos autores como um dos fatores de resiliência do estado de bem-estar. Para ver mais sobre este assunto ver Ebbinghaus (2012).

[7] Sofrem também mais as próprias finanças públicas. Segundo a Comissão Europeia existiam em 2006 nove estados-membros com riscos baixos de sustentabilidade das finanças públicas, sendo que neste momento apenas restam quatro: Dinamarca, Estónia, Finlândia e Suécia (Betic, 2011).

[8] Portugal já era dos países com maior peso das contribuições diretas dos cidadãos para as receitas da saúde no contexto europeu (Silva, 2012).

[9] No plano nacional, acusadas, implícita ou explicitamente, de serem “subsídios à preguiça” e, no plano internacional, estigmatizadas pela sigla “PIGS” com que se pretende reforçar simbolicamente a subordinação dos países do sul europeu a programas políticos neoliberais de grande dureza.

[10] Não é por acaso que a larga maioria dos casos de violência sobre idosos é perpetrada por familiares (Santos e outros, 2013).

[11] Por exemplo, Luís Jacob (2012) mostra que a participação em universidades seniores melhora significativamente a qualidade de vida.

[12] É imprescindível para a superação da crise e para a sustentabilidade das políticas sociais o aumento da riqueza, que por sua vez depende, num quadro de estabilização do volume da mão-obra, do aumento da produtividade (João Carvalho, 2012), a qual por sua vez depende em muito da qualificação da função empresarial, de modo a interferir nos três fatores principais: tecnologia, qualificações e organização do trabalho.

[13] Sendo o envelhecimento um “fenómeno social total”, virtualmente todos os setores de política são chamados a ativar-se.

[14] A recente divulgação, no dia 18 de Outubro de 2012, de um relatório produzido por um funcionário da EU que visou interferir de modo notório na vida regular das instituições da democracia portuguesa, ao mesmo tempo que defendia uma ideia radical de reforço da austeridade como solução para o país, constitui um bom exemplo do modo como atuam estes novos “Alma Grande”.

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