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Sociologia, Problemas e Práticas

versão impressa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.74 Oeiras jan. 2014

https://doi.org/10.7458/SPP2014743202 

Entre a utopia e a crise: nos meandros da (in)segurança urbana na segunda metade do século XX

Between utopia and crisis: the meanderings of urban (in)security in the second half of the 20th century

Entre l'utopie et la crise: dans les méandres de la(in)sécurité urbaine dans la seconde moitié du XXe siècle

Entre la utopía y la crisis: en el interior de la (in)seguridad urbana en la segunda mitad del siglo XX

 

Ximene Rego*

* Doutoranda no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), Escola de Ciências Sociais e Humanas, Departamento de Antropologia, 1649-026, Lisboa, Portugal. E-mail: ximene@gmail.com

 

RESUMO

As transformações que marcaram o Ocidente da segunda metade do século XX foram determinantes dos discursos sociopolíticos e académicos acerca de dois fenómenos — o crime e a pobreza. No imaginário coletivo, um e outro foram associados, mesmo que as estatísticas não o confirmassem. Agravado o sentimento de insegurança, o crime retomou o protagonismo e as atenções voltaram-se para as cidades. Procurando desconstruir a intuição que dizia da pobreza ser uma variável da prática criminal, propõe-se uma releitura da insegurança que a situe num debate mais amplo do que aquele que a reduziu à relação entre medo e crime. Dando nota do peso que a sensibilidade ao risco tem vindo crescentemente a assumir, apontam-se, por fim, algumas pistas para a compreensão e análise da (in)segurança contemporânea.

Palavras-chave insegurança urbana, crime, pobreza, risco.

 

ABSTRACT

The transformations that marked the western world in the second half of the 20th century were determinant elements in the socio-political and academic discourses about two phenomena — crime and poverty. The two were linked in the collective social imagination, even if the statistics have not confirmed the connection between them. With a worsening of the feeling of insecurity, crime returned to the forefront of people's concerns and the spotlight was once more focused on cities. The author seeks to deconstruct the intuitive idea that poverty was a variable in criminal practice, and proposes a new reading of insecurity which situates it within a broader debate than the one that reduced it to just the relationship between fear and crime. She notes the importance that has increasingly been attached to the awareness of risk, and concludes by suggesting a number of clues that may help understand and analyse contemporary (in)security.

Keywords urban insecurity, crime, poverty, risk.

 

RÉSUMÉ

Les transformations qui ont marqué l'occident de la seconde moitié du XXe siècle ont été déterminantes des discours sociopolitiques et académiques autour de deux phénomènes —  le crime et la pauvreté. Avec l'aggravation du sentiment d'insécurité, le crime est revenu au premier plan et les attentions se sont tournées vers les villes. Afin de déconstruire l'intuition qui voit dans la pauvreté une variable de la pratique criminelle, cet article propose une relecture de l'insécurité qui la situe dans un débat plus large que l'approche réductrice de la relation entre peur et crime. Tout en rendant compte du poids croissant de la sensibilité au risque, l'article donne quelques pistes pour la compréhension et l'analyse de la(in)sécurité contemporaine.

Mots-clés insécurité urbaine, crime, pauvreté, risque.

 

RESUMEN

Las transformaciones que marcaron el occidente de la segunda mitad del siglo XX fueron determinantes de los discursos sociopolíticos y académicos acerca de dos fenómenos — el crimen y la pobreza. En el imaginario colectivo, uno y otra fueron asociados, aunque las estadísticas no lo confirmaran. Agravado el sentimiento de inseguridad, el crimen retomó el protagonismo y las atenciones se viraron para las ciudades. Procurando de-construir la intuición que menciona a la pobreza como una variable de la práctica criminal, se propone una relectura de la inseguridad que la sitúe en un debate más amplio de aquel que la redujo a la relación entre miedo y crimen. Dando nota del peso que la sensibilidad al riesgo viene registrando, se señalan, al final, algunas pistas para la comprensión y análisis de la (in)seguridad contemporánea.

Palabras-clave inseguridad urbana, crimen, pobreza, riesgo.

 

Introdução

Vários foram os que procuraram fazer uma leitura discursiva da insegurança, situando-a num debate mais amplo do que aquele que a reduziu à relação entre o medo do crime e as curvas da criminalidade. Esta visão correspondeu a uma análise que a procurou relacionar com as grandes transições que se operaram na segunda metade do século XX — aquelas que foram alvo do prefixo pós, seja a propósito do caráter industrial, fordista ou moderno da sociedade — e que marcaram de forma indelével, pelo menos, duas esferas: a da comunidade e a do trabalho. O amplo desafio lançado aos pilares da modernidade industrial (Girona, 2003) abriu caminho ao enfraquecimento das instituições tradicionais, a família, a empresa, a igreja, a escola, que haviam sustentado, até aí, as identidades coletivas, e criou espaço para o advento do individualismo, da diversidade e da pluralidade dos valores. Será também nesse seguimento que se terá esboçado a constituição de uma sociedade em que a noção de risco se funda como elemento estruturador da vida individual.

Não obstante, a formação de um terreno fértil para o florescimento do sentimento de insegurança que, quer como elemento integrante e rotineiro da vida urbana, quer como objeto das ciências, só pode ser amplamente entendido na rutura entre um mundo que se esperava crescentemente próspero e igual, erradicada a pobreza e o crime, como foi convicção nas primeiras décadas do pós-guerra, e um mundo que se começou a gizar, pelo contrário, como crescentemente desigual. O aspeto mais desconcertante da transformação que rompeu todos os domínios da vida terá sido a sua extraordinária rapidez e o seu caráter universal (Hosbawm, 2008 [1994]). Locus da sua intensificação, por um lado, e do desenrolar das práticas quotidianas, por outro, a cidade seria, como faz notar Seth Low (2005 [1999]), um espaço singular para o registar. Mais do que analisar em detalhe as dinâmicas que ocasionaram as conquistas sociais e económicas desses anos dourados, entre 1945 e 1973, ou as que ditaram a derrocada que se seguiu, importa aqui fazer notar como, primeiro, a necessidade de reformular algumas ideias sobre o crescimento económico trouxe transformações relevantes à vida nas cidades e, depois, como as questões da exclusão social e da pobreza se foram cruzando com as do sentimento de insegurança, indo buscar, quando a crise sobreveio à bonança, os “suspeitos do costume”.[1]

 

O lado utópico

Entre a privação que caracterizou a vida de vastas camadas populares e a crise que se instalou nas últimas décadas do século XX, refletida de maneira mais evidente na emergência de amplos grupos de excluídos, assistiu-se a uma extraordinária melhoria das condições materiais e existenciais na generalidade das sociedades ocidentais. Razoavelmente protegidas das incertezas que tinham até aí tingido a existência, a que se aliou um recuo significativo da criminalidade na primeira metade do século (Lourenço e Lisboa, 1996), as expetativas das populações relativamente à segurança só puderam elevar-se enormemente. Contudo, o bem-estar coletivo irá coincidir com a inversão do sentido das curvas da criminalidade, que inicia por esta altura um percurso ascendente, numa tendência de agravamento progressivo. Mas a desconfiança que começou a abalar grande parte dos países ricos deve ser entendida no contraste com o otimismo que distinguiu “os gloriosos trinta” e na viragem nas políticas dominantes até então.

No caso português, será necessário esperar pelo processo de democratização que sucedeu à ditadura e aos intensos desequilíbrios que sobrevieram. Ainda que até tarde protegido da agitação social e cultural que sacudia outros países, Portugal, com o esquema capitalista bem instalado e a economia em maré de desenvolvimento, abre-se às mesmas dinâmicas. Com ritmo próprio, não pôde ficar indiferente às transformações e, com alguma distância temporal e diferentes intensidades, sofreu os ganhos e as perdas — a euforia e as desilusões — processos que corresponderam a “trinta anos de mudança estrutural, incluindo a difusão alargada de novos valores e estilos de vida” (Machado e Costa, 1998: 17). Num curto espaço de tempo, e numa dependência estreita com o consumo de massas e o individualismo crescentes, traços centrais da cultura urbana, não só no sentido mais material, o da própria urbanização, mas pelos valores em que assenta, a vida nas cidades transforma-se profundamente.

As mudanças no plano social, visíveis logo a partir da década de 1950, inauguram novos arranjos — a queda do campesinato, a migração maciça do campo para a cidade, a subida excecional das ocupações que requerem educação secundária ou superior, acompanhada da subida dos níveis de educação formal e, só mais tarde, nos anos 80, da contração manifesta da classe operária (Hosbawm, 2008 [1994]). Foi assim que, um pouco depois, entre as décadas de 1960 e 1980, Portugal, ao mesmo tempo que via a sua ruralidade reduzida quase a metade (Barreto, 2000), assistiu a uma intensa litoralização e metropolização que rapidamente concentrou cerca de 80% da população numa faixa de 30 km de largura e aglomerou, em torno dos dois principais polos metropolitanos, Porto e Lisboa, cerca de cinco dos dez milhões que vivem em território nacional (Rosa e Chitas, 2000).

O tropel de transformações invadiu igualmente a alçada privada. Eric Hobsbawm (2008 [1994]) destaca os cambiantes porque passaram as relações entre os géneros e as gerações, concretizadas sobretudo nas novas e múltiplas configurações da família ocidental clássica, bem como na emergência daquilo que designou “cultura jovem”. Portugal viu a integração das mulheres na escola e no trabalho e o seu acesso generalizado à vida pública. A dinâmica sociodemográfica partilha da mesma lógica. Numa “aproximação acelerada aos padrões demográficos europeus” (Barreto, 2000: 43), a família reduz-se enquanto os casamentos não católicos, as uniões de facto e os divórcios aumentam, bem como os filhos fora do casamento, as pessoas a viver sozinhas ou as famílias monoparentais (Almeida e outros, 1998). A natalidade diminui e aumenta a esperança média de vida, conduzindo a um rápido envelhecimento da população (Rosa, 2000). As dinâmicas migratórias invertem-se. A emigração foi encolhendo, substituída pela imigração, obrigando o país a uma aprendizagem — a da convivência com a pluralidade (Barreto, 2000), para voltar a subir mais recentemente sob o desígnio da mobilidade dentro do espaço europeu.

No plano económico, os países mais desenvolvidos ficaram marcados pela forte expansão da economia com base num aumento da produtividade e pela concomitante expansão de um volumoso mercado de consumo orientado para a família, assente na reestruturação do capitalismo e na internacionalização da economia (Hobsbawm, 2008 [1994]). Com o grau de síntese possível, pode dizer-se que, tendo como pano de fundo a gestão keynesiana[2] da economia, estabeleceu-se um mercado assente na negociação salarial e no estado social. E o fordismo,[3] mais do que um sistema de produção em massa, foi, como assinalado por David Harvey (1998 [1990]: 135), um estilo de vida altamente homogeneizado em torno de determinados padrões de consumo, culminando numa estética “mercantilizada” da cultura.

A promoção social e económica dos grupos assalariados, amparados por um sistema de direitos sociais, dissociou, finalmente, a segurança da propriedade, antes a única fonte de garantia (Castel, 2000), ao mesmo tempo que o acesso crescente à cultura, à educação e ao lazer permitiu que se falasse do “aburguesamento” da classe operária. Robert Castel (2000) prefere falar da sua “relativa integração”. Em todo o caso, esta conjuntura terá acostumado as sociedades ocidentais prósperas a percecionarem-se como crescentemente civilizadas e democráticas, critérios que seriam reguladores das anteriores disparidades assentes na classe e/ou na etnicidade (Wacquant, 2008). A par, foi criada a expetativa de que, com a diminuição das desigualdades, a erradicação da pobreza seria uma questão de tempo e, a acontecer, juntamente com o atenuar das más condições de habitação, tidas como uma das principais causas da criminalidade, esta seguiria o mesmo caminho. Crescente mas baixa, a delinquência dos anos 50 seria algo a ser absorvido pela normalização cultural em torno do consumo (Lea, 1997) e as desigualdades, algo de residual, destinadas a submergir na onda do progresso.

Ainda que não figurasse entre os mais desenvolvidos e o grau de segurança social experimentado pela população tenha sido vivido dentro de um quadro mais modesto, as mudanças tiveram lugar de forma inequívoca e célere em Portugal. Dois momentos terão marcado a modernização portuguesa: a adesão à EFTA, em 1959, e, em 1986, a entrada na Comunidade Europeia, cujos fundos ampliaram as oportunidades (Barreto, 2000). Sem o fulgor registado noutros lados, o surto industrial permitiu que, no final da década de 1960, e, sobretudo, a partir de 1974, os portugueses vivessem melhor e pudessem aceder ao consumo de massas. Assiste-se ao aumento progressivo e constante do bem-estar coletivo e individual, notório através dos indicadores de consumo.[4] Entretanto, as expressões do estado social, ainda parcas em fins de 60, universalizam-se rapidamente, reflexo dos ideais de Abril.

Estas dinâmicas aproximaram a estrutura social portuguesa daquela que caracteriza os países do capitalismo avançado, sobretudo considerando a preponderância das classes médias urbanas, circunstâncias para as quais o aumento da escolaridade terá concorrido (Machado e Costa, 1998). Contudo, os ainda assim baixos níveis de qualificação escolar e profissional da população, bem como a persistência e a extensão da pobreza, a par do acentuar das desigualdades sociais (Barreto, 2000; Capucha, 1998) deixam no ar suspeita de que se terá tratado de processos, usando o título de Fernando Machado e Firmino da Costa (1998), de “uma modernidade inacabada”.

A ordem social não teve, então, grande dificuldade em alcançar relativo consenso num contexto em que a razão do desvio tendeu a ser encontrada nas opções individuais, quando muito no contexto familiar (Young, 1999). Acontece algo de semelhante com a pobreza. Ainda que longe de ser extinta, ela esteve, em temporada de fortuna, circunscrita a uma preocupação mais episódica (Castel, 2000; Wacquant, 2008) e, quando ponderada, o discurso dominante versava sobre a “inadaptação” ao progresso (Paugan, 2003 [1991]) de que certos indivíduos ou “famílias problemáticas” padeceriam, deficiências individuais impeditivas de que encontrassem o seu lugar num mundo cheio de oportunidades.

Todavia, a intuição oitocentista de que a pobreza seria o motivo do crime não mais largaria o senso-comum e foi retomada pela ciência, ainda que fora das relações lineares de causalidade, nomeadamente pela criminologia crítica dos anos 60.[5] Nela, desenrolam-se diferentes momentos que têm em comum o facto de considerarem o crime uma coisa que está para além do indivíduo, isto é, de natureza mais ou menos estrutural: percebido seja na contingência das rápidas transformações económicas e políticas da sociedade industrial avançada, seja no âmbito da interação social. Acresce ainda uma profunda desconfiança relativamente às instituições do controlo social. Daqui resulta um conjunto relevante de pressupostos: o risco estaria desigualmente distribuído e enraizado tanto geográfica como socialmente nos setores mais vulneráveis da sociedade; seriam os mecanismos estruturais da desigualdade que empurrariam determinados grupos para uma posição recorrente de policiamento, contribuindo para fortalecer o estigma da pobreza como fator propiciador da prática criminal; finalmente, o crime não constituiria uma realidade ontológica. Ele deveria ser tomado como um produto e não como objeto das políticas de controlo social.

A questão manteve aceso o interesse académico e o daqueles com intervenção direta na área. São da década de 1960 os trabalhos de Oscar Lewis, que popularizou a “cultura da pobreza”,[6] bem como as críticas que lhe dirigiu, entre outros, Anthony Leeds (1971), que, contrapondo-lhe questões de ordem estrutural, contesta sobretudo a ideia de que a pobreza possa ser explicada por causas internas — traços individuais — transmitidos geracionalmente. É na mesma década que Gunnar Myrdal (em Wacquant, 2008), tomando de empréstimo à literatura oitocentista o termo underclass, antecipa, mais do que uma realidade estabelecida, a ameaça decorrente da sociedade pós-industrial. Numa dinâmica inerente ao desenvolvimento, o aumento sistemático da produtividade, por um lado, e a generalização do acesso à educação, por outro, expulsaria da esfera produtiva extensas porções da classe operária que, incapazes de acompanhar o desenvolvimento tecnológico, se sujeitariam ao aumento da “anomia”, do ”isolamento” e da “desmoralização”.

É a partir de então, algures entre as décadas de 1950 e 1960, que, na esmagadora maioria dos países democráticos e desenvolvidos do Ocidente,[7] se regista uma elevação das curvas da criminalidade. Foi nas cidades que a transformação se revelou mais eloquente e foi ao crime de natureza aquisitiva, que congrega cerca de 80% da totalidade da criminalidade, que ela se ficou a dever (Cusson, 1990; Shelley, 1981). Tornado uma peripécia de elevada probabilidade, o crime predatório de rua foi designado “facto social normal” (Garland, 1996), um lugar-comum na vida urbana (Young, 1999), assomando, dessa maneira, no horizonte de expetativas do quotidiano. Louise Shelley (1981) situa-o, à semelhança do que faz Maurice Cusson (1990), no âmago das rápidas transformações ocorridas, elementos comuns à organização social que caracteriza esse conjunto de países.

Em Portugal, com manifesto desfasamento temporal, os números do crime aumentam ligeiramente, sobretudo nas grandes áreas metropolitanas, entre 1974 e meados da década de 1980, momento a partir do qual avultam de forma mais acentuada. Santos e colabs. (1996) assinalam, em 1984, os crimes relacionados com o consumo e o comércio de drogas como uma das mudanças estruturais mais relevantes. Serão aqueles a alcançar maior expressão nas ruas e os que mais estreitamente se relacionam com o recrudescimento do sentimento de insegurança. Transformada a estrutura da criminalidade — do crime de sangue ao crime contra o património — tal não significa necessariamente um acréscimo de violência.[8]

Ainda assim, no plano discursivo, os sentimentos de inclusão e conformidade, traduzidos, por exemplo, na extensão da cidadania plena, como é o caso da participação mais ampla das mulheres e das minorias étnicas na vida pública, foram, naquele período, predominantes (Young, 1999). O criticismo, embora crescente, era ainda embrionário, culminando só mais tarde na contestação maciça aos valores cristalizados em torno do trabalho e da família, e do consumo e do lazer que os enquadrava, sinal da procura de alternativas a um presente sentido como insatisfatório.[9] Ao largo das preocupações do coletivo, sem grande visibilidade na agenda política ou mediática, até porque o contrário significaria admitir a “ineficácia do sistema e das suas realizações” (Capucha, 1998: 209), num e noutro caso, no crime ou na pobreza, o papel do estado era o de assimilar e integrar, plano para o qual recruta um corpo de especialistas (Graham e Clarke, 2002 [1996]). O “Outro”, tal como Young (1999: 7) faz notar, não é tido tanto como um inimigo externo, mas como algo que deve ser “transformado, socializado, reabilitado e feito um de nós”. Regista-se, desta maneira, uma redefinição das “classes perigosas” que faz substituir o modelo assistencialista pelo técnico, dando lugar às “classes desfavorecidas” tratadas pelas ciências sociais ao longo do século XX (Fernandes, 1998). A desigualdade permanecia, mas disciplinadas pelo trabalho, integradas no pleno emprego, que deixava de fora somente 1,5% da população (Hobsbawm, 2008 [1994]), as “classes perigosas” não eram mais do que um eco distante, apenas o fragmento de um velho problema social. O que se seguiu foi uma profunda inversão das expetativas até aí sustentadas.

 

O lado crísico

O triunfo do individualismo sobre o coletivo (Hobsbawm, 2008 [1994]) conjugado com a posterior crise económica e consequente reestruturação do trabalho (Harvey, 1998 [1990]), ambas resultado das mesmas forças de mercado (Young, 1999), trazem transformações radicais às duas esferas da ordem social — a da comunidade e a da produção. A mais evidente terá sido a destituição de grandes segmentos da população do seu percurso profissional normativo, ditando o declínio, sobretudo a partir da década de 1980, das classes operárias. A necessidade de reduzir custos, desde logo ordenada pela crise do petróleo de 1973, conduziu a um primeiro momento de deslocalização do tecido industrial — hoje um facto consumado — que, a par da automação crescente, ocasionou a instalação do desemprego estrutural (Hobsbawm, 2008 [1994]), que foi irretorquível.[10] Estes processos ajudaram a mudar a feição das cidades, que vão transformando também a sua vocação — de polo industrial a polo cultural e científico, elas terciarizam-se.[11]

De forma geral, o enfraquecimento do modelo keynesiano, particularmente afetado pela globalização da economia, tornou mais difícil o controlo desta por parte dos estados e a política de mercado livre passa a dominar nos anos 80.[12] É assim que o setor público, anteriormente uma das maiores fontes de emprego, se vê emagrecer e, agora pressionado pela lógica neoliberal (Hosbawm, 2008[1994]; Harvey, 1998 [1990]; Wacquant, 2000 [1999]), começa a denunciar o contrato fordista-keynesiano. Nas economias desenvolvidas terá engrossado tanto a riqueza como a pobreza, deparadas com dificuldades colocadas não tanto pelo lado produtivo, mas pelos obstáculos em distribuir os resultados de maneira equitativa, fazendo pairar sobre o futuro coletivo as ameaças decorrentes de um mundo globalizado e extremamente competitivo. O controlo da despesa terá dado origem, entre a década de 1980 e a de 1990, a “um clima de insegurança e ressentimento” (Hosbawm, 2008 [1994]: 398).

Enquanto as transformações da esfera produtiva tolhiam as expetativas materiais, o individualismo transformava as sensibilidades e, por essa via, a esfera da comunidade. Se a modernidade industrial se tinha organizado ao redor da imagem forte da cadeia de montagem e da cidade como o locus de concentração da nova forma de produzir, fazendo repousar no trabalho a constituição das identidades sociais, a “pós-modernidade consumista” (Girona, 2003) aponta para uma realidade em que o indivíduo se define, em larga medida, por aquilo que elege para consumir. Das oportunidades de consumo, intensificadas, às exigências do mercado de trabalho, dilatadas, ao questionar das anteriores certezas, à crescente reflexividade, as biografias expõem-se a uma flexibilidade identitária ilimitada que incentiva a busca e a escolha contínua (Giddens, (1996 [1991]), fazendo da elegibilidade um pilar das identidades.

A liberdade individual e a dignidade humana, fulcrais na difusão da ideologia neoliberal (Harvey, 2005), acomodáveis no estabelecimento da meritocracia como valor (Wacquant, 2008), vêm reforçar aquelas dinâmicas. Ao abrigo da ideia de que cada indivíduo deve ser julgado responsável pelas suas próprias ações e pelo seu bem-estar, é privilegiada uma lógica em que o interesse coletivo está comprometido porque preceitua, num contexto crescentemente desigual, sistemas de recompensa com base no mérito, contribuindo para o esvaziamento do contrato social (Young, 1999). É também nesta linha que David Harvey (2005) desenvolve o argumento de que existe uma incompatibilidade entre a ideia de liberdade individual, tal como colocada no seio do neoliberalismo, e a ideia de justiça social.

É, desta maneira ainda, que o “novo individualismo” encerra um paradoxo — as mesmas forças de mercado que moldam e encorajam um consumo voraz, excluem dele, através da expulsão do circuito do trabalho, vastas franjas da população (Young, 1999). Este movimento — da produção ao consumo diversivo — já notado entre a juventude portuguesa da década de 1980 (Cruz e outros, 1984) e de 1990 (Schmidt, 1990), reinventa o sentido social do trabalho e faz-se ancorar num “modo de vida lúdico” (Baptista, 2005). Portugal, num cenário de crescente liberalização do trabalho, viu as desigualdades acentuarem-se ao longo da década de 1990, colocando grande pressão num estado providência de constituição recente e de fraco desempenho (Capucha, 1998). À custa do endividamento externo, os níveis de consumo puderam elevar-se ao mesmo tempo que a pobreza — 12% superior à média europeia — se foi agravando, tanto no contingente de pessoas afetadas como na intensidade da escassez de recursos (Capucha, 2005). A “nova pobreza” portuguesa, semelhante à dos países mais desenvolvidos, consequência de “processos de modernização injustos” (Capucha, 1998: 218), tende a corresponder a circunstâncias que, ao contrário da pobreza que “contribui para a coesão” (ibid.), traduzem um potencial de exclusão. António Teixeira Fernandes (2000: 206), a propósito, descreve a “nova” desigualdade que, distinta daquelas que eram “grandemente consentidas”, é desagregadora do tecido social e das relações intersubjetivas.

É nas zonas de habitação social — os bairros sensíveis — mas também noutros lugares intersticiais, como algumas zonas degradadas do centro do Porto, por exemplo, onde mais se fez sentir o impacto da retração do mundo industrial e da crise das instituições (Fernandes, 2001). Estas populações transitam da condição de “marginais” à de “inúteis”, para usar a expressão de Robert Castel (2000), fazendo, enfim, o caminho da workingclass à underclass. O conjunto de fenómenos convergentes — o aumento do desemprego, a precarização do trabalho e o enfraquecimento da proteção social — levaram Castel (2000: 20) a falar da “vulnerabilidade crescente das sociedades capitalistas avançadas”. Estas redescobrem “a existência de categorias de pessoas que ocupam uma posição […] de supranumerárias […] no sentido em que não podem ocupar um lugar estável na estrutura social” (ibid.: 26). A nova vulnerabilidade deve ser entendida face à extraordinária promoção das condições materiais e de segurança até então conquistadas e que trouxeram consigo um entendimento novo das realidades sociais, bem refletido na substituição da questão dos conflitos laborais pela questão da exclusão, da crise da cidade, da segregação. O alarme social em torno de temas como a emergência da “nova pobreza” na Europa, aquilo a que Serge Paugan (2003 [1991]) chama também “desqualificação social”, da underclass nos EUA, ou “polarização e dualização” vivida nas cidades (Wacquant, 2008), é um indicador da transição de uma época para outra, contextualizando-se não como fenómeno residual, mas intrínseco à própria dinâmica da economia, como tinha antes alertado Gunnar Myrdal.

A “sociedade excludente” (Young, 1999) procura condensar o conjunto de transformações que estiveram por detrás do roteiro que terá levado da inclusão à exclusão, do paradigma moderno para a modernidade tardia, de uma sociedade que “assimila e incorpora” para uma sociedade que “separa e exclui”, dando lugar a um mundo de “risco e incerteza”. Wacquant (2008) alimenta o mesmo tipo de contraste: a transformação da imagem das sociedades desenvolvidas como pacíficas, homogéneas, coesas e igualitárias noutra importunada pelas desordens públicas, tensões raciais e ressurgimento da desigualdade, sociedades confrontadas, enfim, com a “marginalidade avançada”.

A expressão “exclusão social”, surgida em meados da década de 1970 para distinguir aqueles incapazes de participar do progresso (Capucha, 2005), é adotada no início da década de 1990 pela Comissão Europeia em substituição do termo “pobreza” (Costa, 2007 [1998]). O conceito pretenderia salientar um conjunto de traços que não constituem inteiras novidades (Capucha 2005: 79): multidimensional, processual, cumulativa e estrutural, “resultante de ruturas sucessivas dos laços sociais”. A exclusão social remeteria, nuns casos, como na linha francesa, para certas dimensões como as da solidariedade e as dos laços que fazem a coesão social, e noutros, para questões que se prendem com a resposta institucional, como por exemplo, o acesso à cidadania. Ela não estaria circunscrita unicamente à privação material, mas apontaria, sobretudo, para a dessocialização e para a crise do vínculo. Análises mais recentes têm tomado a questão à luz das “interdependências sociais globais”, sublinhando-lhe o caráter transversal. Costa (2012) identifica e analisa os traços “dessa configuração global das desigualdades sociais contemporâneas”.

Mas terá sido o aumento da criminalidade, a ocorrer precisamente numa época de pleno emprego, quando tanto o estado social como a qualidade de vida se expandiam como nunca antes, o elemento mais profundamente perturbador. A convicção de que o crime se firmava, sobretudo, em condições sociais adversas é alvo de um processo de desacreditação que transforma doravante a orientação das políticas penais. Aquelas terão ficado marcadas pelo “realismo de direita”, uma corrente criminológica que dominou durante os anos 80 os discursos securitários norte-americanos e britânicos, nas figuras de Ronald Reagen e de Margaret Tatcher, respetivamente, e que, depois, sob a sua influência, moldaram os restantes, sobretudo, os mais populistas e conservadores. É essencialmente a esta posição que se deve a tese securitarista que pressupõe um nexo causal entre medo e crime, admitindo que o aumento deste traduziria diretamente o aumento da inquietação. As ideias vulgarizadas em torno da responsabilidade individual associam-se a políticas criminais repressivas, fazendo deslizar o foco da análise do plano social para o plano individual.

James Wilson (Wilson e Kelling, 2003 [1982]), conselheiro de Reagan, rejeita a ideia de que a criminalidade pudesse ser contida pela melhoria das condições sociais. A minoria dos pobres que envereda por uma carreira no crime, explica, não estaria constrangida por fatores de ordem externa, mas antes assistida por uma escolha pessoal. Sendo assim, é advogada a persuasão, e menos a reabilitação, conjugando a diminuição das oportunidades de delinquir com o endurecimento dos riscos de o lograr (Clarke, 2003 [1980]; Hirsch, 2003 [1976]). No centro do debate estaria o argumento de que o esforço depositado no combate à pobreza coincidiu com o aumento da criminalidade, não com a sua diminuição. Charles Murray (2003 [1990]) resgata ainda o termo underclass para melhor distinguir, à maneira oitocentista, entre os diferentes tipos de pobreza, aquele que remete unicamente para a insuficiência económica e aquele que define também um conjunto de comportamentos indesejáveis, traços que, explicando a imobilidade social destes grupos em termos dos seus próprios padrões culturais e das suas escolhas, relembra a cultura da pobreza, sem contudo lhe atribuir a dimensão identitária “positiva” descrita por Lewis. Perdida também a dimensão estrutural, que colocava estas populações na condição de vítimas das transformações estruturais da esfera socioeconómica, irá considerá-las essencialmente enquanto categoria perigosa e de ameaça à ordem social.

A teoria das “janelas partidas” (Wilson e Kelling, 2003 [1982]) estará entre as mais celebradas. Persuadida de que, na origem da criminalidade estariam as pequenas desordens do quotidiano, sugere que será lutando contra a incivilidade que se poderá fazer recuar o crime.[13] Mas inscrita num programa mais lato, o da redefinição do papel do estado, ela concretiza-se, de acordo com Wacquant (2000), na missão de reduzir o seu braço social, estendendo, por outro lado, o seu braço penal. Manuela Ivone Cunha (2002: 337) descreve a “atual crispação penal”, a “consistência do padrão repressivo”, que recupera a criminalização da pobreza típica do século XIX, reflexo do declínio dos ideais de reabilitação, bem percetível no perfil da população carceral portuguesa. A penalização da pobreza, seja no plano das representações seja no das políticas penais e sociais, faz retratar os seus territórios como lugares da desordem, onde se desdobra toda a sorte de ilegalidades, espaços dotados de propriedades criminogéneas, produtores da marginalidade e de figuras da desviância. O crime seria assim uma estratégia de sobrevivência que estaria limitada aos mais desprotegidos e não teria aplicação à ambição generalizada — de todos — de enriquecer. Naturalmente, fica por explicar a razão de a esmagadora maioria dos pobres não cometer crimes ou o facto de eles estarem particularmente expostos à vitimação.

As curvas da criminalidade constituem, todavia, cenários de difícil averiguação. Há que distinguir as análises que se referem a macrovariações, relativas a períodos extensos de tempo, das que atendem a microvariações, centradas em períodos exíguos, como é o caso dos dados divulgados anualmente pelos relatórios de segurança do Ministério da Administração Interna. Estes últimos tendem a exibir um comportamento “em dente de serra” — uma categoria de delito pode aumentar durante um determinado período de tempo para em seguida decrescer para valores idênticos aos anteriores ou pode suceder o contrário. Privados de sentido histórico e distanciamento temporal, o seu significado de longo prazo pode ser pouco ou nenhum, impossibilitando inferências. Serão as análises relativas às macrovariações que permitirão afirmar, como faz Carla Machado (2004: 26) referindo-se à Europa, que “a sociedade de hoje é inegavelmente menos violenta”.[14] De forma idêntica, a relação entre a privação económica e o crime presta-se pouco a interpretações simplistas. Ferreira (2011) analisa o período entre 1993 e 2009 e conclui, indo ao encontro de ilações tiradas noutros países, que as circunstâncias conjunturais de maior privação económica, como as que observamos atualmente em Portugal, coincidem com o aumento do crime contra as pessoas, mas — ao contrário das expetativas do senso-comum — também coincidem com uma diminuição do crime contra o património.

A despeito daquelas pistas, assiste-se ao agravamento do sentimento de insegurança, enquanto o comportamento público se transforma e com ele a relação com a cidade, que é alvo de diversos evitamentos e privatizações. Sinónimo do declínio e da desmoralização de determinadas zonas, a underclass, composta por figuras vagas e díspares que pouco terão em comum além do facto de serem indesejadas, condensa uma variedade de perigos difusos que marcam o regresso das “classes perigosas”. Na convergência com outros “problemas urbanos”, o crime retoma o protagonismo como questão social. David Garland (2000) já havia identificado os traços distintivos do “complexo crime” — a crescente sensibilidade à violência, que é alvo de um investimento emocional intenso e, em conformidade, a crescente politização dos discursos em torno da segurança; a perceção de que o estado é incapaz de suster o agravamento das condições sociais e, em especial, das que respeitam ao crime, pelo que o sistema de justiça é percebido como inadequado; as rotinas defensivas privadas, que são extensamente difundidas ao mesmo tempo que emerge e se massifica o mercado da segurança privada; a intromissão da comunicação social, que transmite e institucionaliza a imagem da multiplicação da violência social. Estes serão os traços da nova experiência coletiva do crime e da insegurança, uma experiência estruturada nos recentes arranjos económicos, sociais e culturais do fim do século XX.

 

Conclusão: novas ou velhas (in)seguranças no início do século XXI?

Se a incerteza é exacerbada pela globalização, como tem feito notar James Mittelman (2010), as cidades continuarão a ser o lugar onde melhor se materializarão as contradições de origem global — a emergência de mercados subterrâneos instalados em zonas periféricas, como o comércio retalhista de drogas, a proliferação do armamento, o fenómeno das migrações, que exige uma maior harmonização de convivências, a ameaça terrorista. As dinâmicas que detêm o potencial de promover a paz — o comércio global, a disseminação da democracia, a expansão do acesso à educação, transportes e sistemas de comunicação — parecem encerrar potencial idêntico para inflacionar o desarranjo, dando forma ao “hiperconflito” (Mittelman, 2010). Como num impasse entre o que se celebra e o que se receia, as trocas facilitadas pela crescente mobilidade das pessoas, dos bens, dos capitais, mas também das imagens e dos discursos, evocam sentimentos cheios de ambivalência, dando nota dos desafios colocados à análise da (in)segurança atual.

Assunto amplamente intensificado a partir do 11 de setembro de 2001, o terrorismo figura provavelmente entre as ameaças mais paradigmáticas no cenário geopolítico do século XXI (Weber e Lee, 2009), fundindo-se, até certo ponto, o medo do crime com o medo do terrorismo (Lee, 2007).[15] A par, a questão das migrações ganha especial relevância num contexto de crise financeira e económica, como sugerem, por um lado, alguns episódios que vão despontando aqui e ali na Europa, e, por outro, o sucesso de determinados discursos populistas, assentes em argumentos xenófobos. Terrorismo e migração interligam-se e prescrevem um (novo) inimigo externo, suscetível de legitimar (novas) políticas de controlo social, agora à escala planetária. É neste sentido que Lee (2007) aponta o dangerous Mulslim other como figura da inquietação. Embora os mecanismos que assistem à constituição daqueles temas como questão social beneficiem claramente da recente ordem global, a sua apropriação política e mediática tem pouco de original.

Os discursos, sobretudo aqueles especialmente capazes de fazer a exigência do restabelecimento da ordem social num mundo percebido como predatório e incerto e de prometer a resolução das ambivalências pela identificação das vítimas e dos vilões, inclinam-se, em tempos de crise, a ganhar destaque. Weber e Lee (2009) argumentam precisamente que a “política do medo” se tem apropriado da ansiedade generalizada para fazer cumprir certas agendas contemporâneas. No cenário nacional, Catarina Frois (2011) ilustra com o caso da videovigilância os dilemas colocados ao binómio segurança versus liberdade, a questão central que tem acompanhado igualmente as análises em torno do terrorismo e das medidas tomadas no contexto da war on terror. Num cenário tolerante da multiplicação da narrativa securitária, apenas a vigilância permanente parece ser capaz de apaziguar tal impressão de volubilidade.

Foi dito inicialmente que a inquietação coletiva tem sido colocada em relação com outros processos sociais mais vastos, apontando novos trilhos para a compreensão da (in)segurança contemporânea. Vários[16] são os que, associando o medo a outras angústias existenciais, se servem do conceito de “risco” (Beck, 1993; Giddens, 1996 [1991]; Douglas; 1996 [1992]) e de outros da mesma esfera — “confiança” e “segurança ontológica” (Giddens, 1996 [1991]) ou “culpa” (Douglas, 1996 [1992]; Douglas, 2002) como forma de a apreender. O discurso em torno da insegurança refletiria uma “tentativa de fixar riscos ambíguos e desconhecidos das nossas atuais circunstâncias históricas”, explica Carla Machado (2004: 96). A orientação não é inteiramente nova. Os trabalhos franceses, nomeadamente os de Ackerman, Dulong e Jeudi (1983), já tinham observado que a insegurança constitui uma construção complexa e um complexo simbólico, capaz de fazer convergir temas dispersos sobre a crise social.

As transformações que, desde a década de 1950, têm vindo a mudar a feição do mundo ocidental, sumariamente descritas, terão confluído na constituição de uma sociedade em que a noção de risco se funda como elemento estruturador da vida individual (Beck, 1993). Entretanto, as expetativas de segurança, primeiro tão ampliadas e depois tão profundamente desafiadas, terão favorecido a formação de uma aversão à incerteza, enquanto a lógica neoliberal tenderia a individualizar o risco. A vida nas cidades seria expressão dessa experiência — a fragmentação do quotidiano, transcrita na diluição dos vínculos que sustentaram as identidades coletivas, a perda da centralidade do trabalho e da família como fator de socialização e, a par, o esboçar de uma angústia difusa. Na sociedade complexa moderno-contemporânea, firmada sobre certos pilares — o consumo de massas, a pluralidade, o individualismo — estariam criadas as condições para o que Luís Fernandes (2006: 60) designa “híper-representação do risco” — o risco do risco — “uma conceção crispada da vida social a desenrolar-se num cenário de ameaças”. A insegurança seria, então, um modo de “dizer” o mundo e o medo, vivido internamente, espelharia certas mutações capazes de criar uma inquietação que iria, depois, ancorar-se em torno da criminalidade. Viver na sociedade de risco implicaria redefinir questões existenciais de segurança e de certeza.

 

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Receção: 20 de setembro de 2012. Aprovação: 14 de junho de 2013

 

Notas

[1] Ver, a propósito, Fernandes e Carvalho (2000).

[2] Sucintamente, o keynesianismo procurou, a partir da regulação da economia de mercado por parte do estado, “corrigir alguns defeitos estruturais do capitalismo”, tornados visíveis pela recessão de 1929, nomeadamente através de uma maior redistribuição, de políticas monetárias expansionistas e de grandes obras públicas (Carreira e Dâmaso, 2009: 95).

[3] Para uma análise detalhada do fordismo ver o capítulo que David Harvey lhe dedica (1998 [1990]: 125-140).

[4] O consumo dilatou-se, entre 1960 e 1999, de 46% da média da Europa a quinze para 74%, mantendo, todavia, o último lugar nesse grupo (Barreto, 2000).

[5] De forma muito esquemática, abriga-se sob o guarda-chuva da “criminologia crítica”, primeiro, a “criminologia radical”, cujas evoluções e variantes a levaram a formas menos extremadas, como o “idealismo e o realismo de esquerda”. Estes são, de forma geral, herdeiros diretos do interacionismo simbólico e de um corpo sociológico que é composto, entre outros, por Howard Becker (a reação social ao desvio), de Erving Goffman (os mecanismos opressivos das instituições totais) e de David Matza (a construção da identidade desviante). Depois, a “nova criminologia”, de cunho britânico, aplica o pensamento marxista ao crime e à criminalização da pobreza. O crime seria o resultado da exploração a que os grupos mais vulneráveis estariam sujeitos e a expressão da procura de uma espécie de reequilíbrio da balança da desigualdade. Jock Young, Stanley Cohen, Ian Taylor, PaulWalton, Louk Hulsman e Jonh Lea são alguns exemplos dos que militaram na criminologia crítica. Para uma revisão minuciosa deste legado ver Elena Larrauri (1991).

[6] A cultura da pobreza, distinta daquela que resulta do isolamento ou da ausência de desenvolvimento tecnológico, bem como de situações transitórias, é descrita como uma forma de vida que é transmitida geracionalmente, assente não só na privação, mas, em sentido positivo, numa estrutura de funcionamento, estável e persistente, e de mecanismos de defesa sem os quais os pobres não poderiam sobreviver (Lewis, 1970 [1961]).

[7] Os modelos criados por Maurice Cusson e Louise Shelley têm por base os países desenvolvidos, de cultura ocidental e regime democrático. As exceções registadas nas curvas do crime são mencionadas por ambos, o Japão e a Suíça, onde se observa uma relativa estabilidade ou mesmo um abaixamento da criminalidade. Os EUA, como notam Lourenço e Lisboa (1996), constituem igualmente um caso particular, mas pelo motivo oposto—ai a taxa de homicídio, por exemplo, é francamente superior aos restantes países ocidentais.

[8] Para uma análise da transformação da estrutura da criminalidade portuguesa, ver João Fatela (1988).

[9] De lembrar, a beat dos anos 1950, o movimento hippie de 60, a contracultura de 70, sem esquecer o período quente do Maio de 68 em que todos os ânimos se exaltaram.

[10] Os números do desemprego foram coligidos por Hobsbawm (2008): na Europa ocidental aquele subiu de 1,5%, nos anos 60, para 4.2%, nos anos 70; na Comunidade Europeia, atingia, em fins de 80, os 9,2% e, em 1993, os 11%. De acordo com o Eurostat, em março de 2013, aqueles números atingiam os 12,1% na zona euro.

[11] Ver, a propósito do Porto, Rio Fernandes (1998).

[12] Para um retrato geral das principais características do neoliberalismo, ver David Harvey (2005).

[13] A metáfora foi, depois, apropriado pelas políticas de tolerância zero, cuja mundialização é bem descrita por Wacquant (2000 [1999]).

[14] Com as análises a convergir sensivelmente no mesmo sentido (Santos e colabs., 1996; Lourenço e Lisboa, 1996; Ferreira, 1998) o panorama criminal português pode ser assim descrito: o crime contra as pessoas, que atingiu o seu ponto mais elevado em 1956, estabilizou, os crimes sexuais diminuíram e aumentaram os crimes contra a propriedade, e ainda assim, como ressalva Carla Machado (2004), estes muito assentes no crimes de viação e na emissão dos cheques sem cobertura, tipologias pouco suscetíveis de gerar desassossego entre a população.

[15] É necessário salientar que, não obstante, a ameaça terrorista está presente desde a década de 1970 na Europa — Espanha, Irlanda, Alemanha, Itália e mesmo em Portugal, embora aqui de forma fugaz e pouco expressiva.

[16] Ver especialmente a coletânea de textos organizada por Lee e Farrall (2009).

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