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Sociologia, Problemas e Práticas

versão impressa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.74 Oeiras jan. 2014

https://doi.org/10.7458/SPP2014743200 

“O público vai ao teatro”: uma etnografia dos públicos em ação

“The public goes to the theatre”: an action-oriented ethnography on publics in action

“Le Public va au Théâtre”: une ethnographie des publics en action

“El Público Va al Teatro”: una etnografía de los públicos en acción

 

João Teixeira Lopes* e Sara Joana Dias**

* Faculdade de Letras da Universidade do Porto e Instituto de Sociologia da Universidade do Porto, Departamento de Sociologia, 4150-564, Porto, Portugal. E-mail: jmteixeiralopes@gmail.com

** Estudante no Doutoramento em Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Porto, Portugal, 4150-564, Porto. E-mail: sarajoanadias@hotmail.com

 

RESUMO

A partir de um desafio lançado pelo Teatro Municipal de Lisboa, as companhias de teatro independente do Porto foram convidadas a organizar a programação daquela instituição durante um mês. Uma jovem companhia portuense respondeu ironicamente com a apresentação do projeto “O Público Vai ao Teatro”. Tal projeto consistia em promover uma performance que parodiava uma excursão folclórica dos públicos provincianos do Porto à capital, antecedida de vários workshops de familiarização com os códigos da linguagem teatral. A pesquisa sociológica consistiu em, através da investigação-ação de cariz etnográfico, analisar e mediar modos de relacionamento com a cultura e com as instituições teatrais por parte das pessoas recrutadas. Este artigo faz uma primeira avaliação do projeto, não incluindo ainda a sessão final, a partir de um diagnóstico das representações dessa população sobre os seus modos de relação com o teatro.

Palavras-chave teatro, públicos, etnografia.

 

ABSTRACT

Challenged by Teatro Municipal de Lisboa, independent theatre companies from Oporto were invited to organize that institution’s programming throughout a month. “The public goes to the theatre” was the ironic response of a young company from Oporto to the challenge. This project aimed to promote a performance, a folk parody excursion that would lead the provincial public of Oporto to the capital, a journey preceded by several workshops to help them familiarize with theatrical language codes. Via research-action-oriented ethnographic methods, the sociological research intended to analyze and mediate the recruited individual’s relationship with culture and theater institutions. This article draws a preliminary assessment of the project, not including the final session, a diagnosis based on the population’s representations and theater relation approach.

Keywords theater, publics, ethnography.

 

RÉSUMÉ

À partir d’un défi lancé par le Théâtre Municipal de Lisbonne, les compagnies de théâtre indépendant de Porto ont été invitées à préparer la programmation de cette salle pendant un mois. Une jeune compagnie de Porto a répondu sur le ton de l’ironie en présentant le projet “ Le Public va au Théâtre ”: une performance qui parodiait une excursion folklorique des publics provinciaux de Porto à la capitale, précédée de plusieurs ateliers de familiarisation aux codes du langage théâtral. La recherche sociologique, menée au travers de l’enquête-action de nature ethnographique, a consisté à identifier et à analyser les rapports des personnes recrutées avec la culture et avec les compagnies théâtrales. Cet article propose une première évaluation du projet, sans inclure la séance finale, à partir d’un diagnostic des représentations de cette population sur son rapport au théâtre.

Mots-clés théâtre, publics, ethnographie.

 

RESUMEN

A partir de un desafío lanzado por el Teatro Municipal de Lisboa, las compañías de teatro independiente de Porto fueron invitadas a organizar la programación de aquella institución durante un mes. Una joven compañía de Porto respondió irónicamente con la presentación del proyecto “El público va al teatro”. Tal proyecto consistía en promover un performance que parodiaba una excursión folclórica de los públicos provincianos de Porto a la capital, antecedida de varios workshops de familiarización con los códigos del lenguaje teatral. La investigación sociológica ha consistido en una de investigación-acción de tipo etnográfico, analizar y mediar modos de relacionamiento con la cultura y con las instituciones teatrales por parte de las personas reclutadas. Este artículo hace una primera evaluación del proyecto, sin incluir la sesión final), a partir de un diagnóstico de las representaciones de esa población sobre sus modos de relación con el teatro.

Palabras-clave teatro, públicos, etnografía.

 

Considerações iniciais: génese e contextualização do projeto

“O Público vai ao Teatro” (PVT) nasce como resposta ao convite para a participação da companhia Teatro Meia Volta e à Esquerda Quando Eu Disser (TMV) num ciclo dedicado à criação vista e feita na cidade do Porto.

A proposta, com origem no Teatro Municipal São Luiz, consistia em “levar” à capital companhias do Porto (independentes ou “emergentes”), desprovidas da suposta centralidade inerente ao Teatro Nacional São João, num período que decorreria entre fevereiro e março de 2011.

O Ciclo de Teatro do Porto começa a ser projetado em 2009, inicialmente com uma amplitude territorial mais abrangente: Ciclo de Teatro do Norte. Mas, uma série de tragédias impossíveis de prever marcam um novo rumo.[1] A ideia traçada pelas mãos de Isabel Alves Costa, sob apelo de Jorge Salavisa, viria a ser repensada por João Pedro Vaz, sendo geograficamente restringida à cidade do Porto: “tão perto mas tão longe do público lisboeta” (Teatro São Luiz, 2010: 25). No desígnio do programa estaria a celebração desta arte: “Durante seis semanas o São Luiz é, orgulhosamente, o anfitrião de dezasseis companhias de teatro do Porto. A vontade é, reitera-se, que se descubra e se festeje o Teatro, o que se faz a norte e o que se faz aqui” (Jorge Salavisa, em Teatro São Luiz, 2011: 2).

Na planificação do evento é assumida a importância (quase centralidade) dos projetos teatrais na cidade do Porto, e como tal é exortada a participação de uma multiplicidade de propostas artísticas, espécie de “retrato de família” (Martins, 2011).

Assim, para satisfazer a tal panorâmica geral do teatro feito no Porto, foram convidadas dezasseis companhias,[2] entre as quais o TMV. No dia 27 de março, Tarde Mundial do Teatro e dia dedicado às companhias emergentes, os públicos de Lisboa e do Porto iriam encontrar-se no Teatro São Luiz, através da proposta da companhia TMV. Num misto de sarcasmo e algum sentido de responsabilidade no papel de formação de públicos, a jovem companhia de teatro estabelece que seria negligente apartar a criação dos seus públicos e propõe que a sua participação seja sob a forma de uma performance etnográfica em que o próprio “público do Porto” iria “mostrar-se” a Lisboa.

Para atingir estes objetivos, o TMV recruta uma equipa multidisciplinar composta por nove elementos (incluindo os criadores) distribuídos por áreas de conhecimento tão multifacetadas como o teatro, a produção cultural, o vídeo, a sociologia, o serviço social e a animação sociocultural.

Sendo um projeto coproduzido pelo São Luiz Teatro Municipal, o financiamento foi assegurado por esta entidade. Igualmente importante foi o apoio informal disponibilizado por entidades como o Teatro Nacional de São João (TNSJ), a Junta de Freguesia da Sé (JFS) e a Associação de Solidariedade da Zona das Fontainhas (ASZF).

As parcerias estabelecidas entre organismos como a ASZF e a JFS surgem com o objetivo de criar plataformas privilegiadas de acesso aos grupos que pretendiam integrar no projeto:

Esta relação privilegiada traduz-se não só num contacto quase diário com estas pessoas, mas também num conhecimento profundo da sua realidade socioeconómica. [Alfredo Martins, Fundador do TMV, 2011]

 

Do lado dos criadores: uma definição face ao centro

Assim, a génese do projeto assenta numa intencionalidade política que cruza, com ironia, o questionamento de graus desiguais de poder simbólico associado a posições territoriais (Lisboa versus Porto) e visões essencialistas ancoradas em determinadas políticas culturais.

O poder simbólico permite, a quem o detém, operar ações de classificação e de legitimação num dado espaço social, ao mesmo tempo que joga o seu reconhecimento (Bourdieu, 1989). Neste caso, a proposta do Teatro Municipal São Luís, de Lisboa (levar à capital a produção teatral que se faz no Porto), é encarada como uma proposição formulada a partir de um lugar central. Daí a resposta do TMV: trazer ao centro o que se faz no Porto. Mas fazê-lo a partir de uma definição endógena, própria, autocentrada.

Como se pode ler no excerto seguinte, a companhia TMV é clara ao referir o seu poder arbitrário de definição: “Definimos que ‘o nosso público do Porto’ será constituído pela população que vive num raio de 1 km a partir do Teatro São João” (Martins, 2011). Ou ainda:

A nossa proposta é, portanto, organizar uma excursão, em boa maneira portuguesa. Dia 27 de março de 2011, chega às portas do Teatro São Luiz um autocarro cheio de público do Porto para ver o que pelo Porto se faz e para que o público de Lisboa veja quem pelo Porto vê. Mas será que vê? Quem vê teatro? Se esta é uma das difíceis tarefas da Sociologia do Teatro, a de definir os contornos desse grupo instável que é o público teatral, herdámo-la nós ao tentarmos identificá-lo entre a população portuense. Perdidos em critérios sociológicos, económicos e culturais, incapazes de analisar a expressão que elites e massas têm na constituição de um público local de teatro (e talvez aborrecidos com este exercício), elegemos um critério geográfico e prometemos ser fiéis a ele. Sem dúvida que o Teatro Nacional de São João é uma espécie de epicentro da atividade teatral no Porto, chamando a si companhias e público e associando à sua programação aquilo que de mais significativo se vai produzindo por cá. Fiéis, então, ao nosso critério geográfico e ao limite de um autocarro, definimos que “o nosso público do Porto” será constituído pela população que vive num raio de 1 km a partir do Teatro São João […] e “o nosso público do Porto”? Será que a população que vive nas imediações da Praça da Batalha vai ao teatro? Alguma vez entrou no seu vizinho teatro nacional? Será que alguma vez viu algum espetáculo de teatro que se produziu no Porto? Se não viu, vai ver. Mantemos o critério e levamo-los em excursão à capital. Porque se o público de Lisboa vai poder ver, o do Porto também tem esse direito e aproveita e come uns pastéis. Recebê-los no átrio do São Luiz, com arraial, música popular, sardinha e pimento assado. Pois se o ciclo é do Porto, tem de cheirar a São João. Quem quiser, pode levar farnel. (Martins, 2011)

Em suma, existe aqui o exercício claro de uma contra-hegemonia, como que a querer “descolonizar” o debate dos seus termos habituais. Um Teatro Municipal de Lisboa, instituição consagrada e com poder de consagração, convida as companhias do Porto para exibirem, na capital, o seu teatro. A companhia TMV determina que não faz sentido dissociar a criação dos seus públicos e propõe que a sua “exibição” seja uma performance antropológica em que é o próprio público do Porto a ir mostrar-se a Lisboa.

Um jogo, pois, de quem vê o quê e de quem vê quem, na recusa de posições congeladas de antemão: “Porque se o público de Lisboa vai poder ver, o do Porto também tem esse direito e aproveita e come uns pastéis” (Martins, 2011). Ironia, assim, como forma de reparo contundente a um dado estado de relações de força no campo cultural. Assumpção plena de uma luta simbólica que passa antes de mais pela linguagem e pelo poder das palavras. Paródia, na inversão da ordem e do status quo teatral. Crítica radical, enfim, ao despir a solenidade das instituições teatrais: “Recebê-los no átrio do São Luiz, com arraial, música popular, sardinha e pimento assado” (Martins, 2011).

No entanto, os propósitos dos criadores vão mais longe, consubstanciando uma alternativa. Para além da destruição de uma doxa, propõe-se a criação de uma relação com os públicos, assente no que Teixeira Lopes apelidou políticas culturais de terceira geração ou democracia cultural (Lopes, 2007). O que acrescenta, a nosso ver, consequência propriamente política. Nas palavras de Alfredo Martins (2011):

Na prática, este projeto acaba por funcionar como uma iniciativa de formação de públicos, que qualquer teatro deveria promover.

Trata-se, pois, de formar públicos, isto é, de inculcar novas disposições para a fruição teatral, sinalizando uma missão insuficientemente cumprida pelas instituições responsáveis.

Aparentemente, a escolha dos potenciais públicos foi arbitrária. No entanto, tal definição acarreta consequências, uma vez que abarca uma das freguesias históricas do Porto — a Sé —, fortemente marcada por fenómenos cumulativos e multidimensionais de exclusão social. Desta forma, os potenciais públicos abrangidos manteriam, potencialmente, uma relação distante com a produção teatral, nomeadamente com a criação contemporânea.

Não admira, por isso, que a preparação da performance tenha adquirido uma configuração de um programa estruturado e sistemático de formação de públicos, com objetivos estratégicos e operativos bem definidos, com uma rede de parcerias (o Teatro Nacional São João, o Teatro Carlos Alberto, a Junta de Freguesia da Sé, a Associação de Solidariedade da Zona das Fontainhas) e alguns mediadores/avaliadores. É neste âmbito, aliás, que se enquadra o convite aos sociólogos:

O convite ao Departamento de Sociologia da FLUP pretendia acrescentar ao projeto um olhar mais teórico e articulado e que, porque desviado da intenção artística, poderia trazer para a reflexão novas perspetivas. Esperávamos também que a participação de sociólogos nos ajudasse a calibrar o discurso de abordagem ao grupo de habitantes da Freguesia da Sé. (Martins, 2011)

A própria equipa de produção, com nove elementos, ganhou uma feição multidisciplinar, de valências várias, como que a provar o cariz coletivo de um Art World (Becker, 1982), mas também com o intuito de tornar de alguma forma exemplar o atual projeto, capacitando-o para servir de base a transferências futuras de experiências e conhecimento.

A complexidade do programa de formação de públicos encontra-se bem patente no plano de trabalhos do projeto (ver quadro 1). Na sua ambição, o projeto não deixa de levantar problemas e riscos.

 

 

Ao desessencializar o conceito de “teatro feito no Porto” e de “público do Porto”, cria-se uma outra definição arbitrária que desoculta a incompetência face à descodificação das linguagens teatrais contemporâneas, uma vez que esse potencial público, vivendo 1 km em redor do Teatro Nacional São João, necessita de ser formado. Ora, não se resvala, por aí, para uma atitude paternalista, que choca frontalmente com os propósitos bottom-up da iniciativa assente no empoderamento da população selecionada? Por outro lado, como compreender a ironia e a paródia anti-institucional face ao Teatro Municipal São Luiz quando se reconhece que, da banda do Porto, outra instituição, desta feita com a categoria de “nacional” (Teatro Nacional São João), se apresenta como “o epicentro da atividade teatral da região” (sic)? Quem garante, aliás, que os grupos selecionados (um de jovens, outro de idosos) desejavam “ser formados”?

 

Do lado dos sociólogos: para uma etnografia dos públicos em ação

Não deixa de ser curioso, num domínio onde, tão frequentemente, se trabalha em regime de silêncio e contrassilêncio, que um grupo de jovens dramaturgos, atores e encenadores se tenha dirigido à Universidade para solicitar a colaboração de académicos num projeto artístico de intervenção social. Na verdade, depois de décadas de experimentação artística com vocação política; depois de milhares de projetos, improvisações, intervenções, reinvenções, performances e happenings, arte comunitária e instalações; depois de ramificações e sub-ramificações de géneros artísticos contaminados pelo questionamento do lugar do espetador e pela inversão de tudo o que a priori estava definido como posição e disposição inexorável — eis que, contudo, nunca permanecemos tão distanciados — arte e ciência; cultura e povo; produtores, mediadores e espetadores. Mesmo quando os ditos académicos há muito escaparam do jardim eterno e etéreo da controvérsia estéril (embora amiúde resvalem para os movediços terrenos da investigação aplicada ultraespecializada, esquecendo a necessidade de retroalimentar permanentemente o núcleo duro da teoria social — teorias, conceitos, paradigmas), tal diálogo continua a suscitar novidade!

No caso concreto, os “artistas” desejavam uma tripla tarefa dos “sociólogos”: um melhor conhecimento dos instáveis públicos do teatro; um acompanhamento em termos de animação/mediação sociocultural do processo (levar — literal e simbolicamente — os públicos do Porto ao Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa) e uma avaliação on going e ex post do projeto.

Abordemos sem demoras a primeira demanda: todos os estudos de público baseados em inquéritos por questionário mostram que a ida ao teatro é uma das mais rarefeitas e socialmente selecionadas práticas culturais, altamente condicionada pela posse de elevados volumes de capital escolar (Fortuna e Silva, 2002; Gomes, 2000; Santos, 2001). Mas até que ponto tais estudos foram capazes de resgatar os públicos em ação, essa é questão fundamental. Dito de outra maneira, são raras as pesquisas sobre modos de receção teatral e as que se vão fazendo trazem, à sua pequena escala, resultados algo surpreendentes, uma vez que acrescentam variáveis de inteligibilidade que nos permitem falar de formas plurais de relação com a arte, neste caso via teatro. Os géneros, os textos, as encenações, os atores, os lugares são tudo menos variáveis negligenciáveis (Borges, 2002), como de resto nos mostrou Catarina Alfaia (2012) a respeito do espetáculo Vale, onde intérpretes amadores edificam uma obra onde se mesclam o teatro, a música e a dança. Na verdade, os objetos do nosso gosto não são inertes, como Antoine Hennion (2007) vem sublinhando a propósito do ofício de amador, exímio na multiplicação de detalhes significativos suscitados pelo “gostar” ou “não gostar”, acionando dimensões pragmáticas e performativas, tantas vezes ignoradas pela tradição sociológica radicalmente positivista. De igual modo, se na música, como Pedro Bóia (2010) evidencia, tocar viola d’arco cria disposições assaz diferentes no virtuoso do violino ou do violoncelo, então é caso para dizer que se impõe uma aproximação compreensiva aos atos, ocasiões e rituais de (des)gosto. Hennion insiste: os públicos são ativos produtores de sentidos, de dispositivos e métodos de fruição. Se o gosto é uma atividade reflexiva (embora não necessariamente calculada e instrumental), importa conhecer os meandros dessa fabricação/experimentação. Diz o autor francês que, para esse fim, é incontornável mergulhar na configuração da teia de relações entre práticas culturais e praticantes, para além da enunciação das regularidades estatísticas. Com Bernard Lahire (2002), avançaremos, ainda, no sentido de compreender como as situações e os quadros de interação (institucionais e informais) contribuem para alterar as disposições, estéticas e outras. E, por falar em disposições, urge entender a génese e o funcionamento dos mecanismos de transferência e de contaminação entre esferas de atividade social: de que forma alterações (bruscas ou paulatinas) nos esquemas de perceção e de ação estéticos conduzem a reorientações éticas mais gerais, com potenciais efeitos ressocializadores?

Por outras palavras, que laços se estendem do mundo das artes e das culturas para outros universos de significado e comportamento (partindo da hipótese de que não são estanques)? As gentes do teatro e os sociólogos deste projeto coincidiram também neste ponto. Se os primeiros, por via da ironia, questionaram estereótipos de um teatro municipal de Lisboa sobre o teatro que se faz no Porto, então, de uma assentada, poderiam evidenciar-se critérios de classificação/categorização em que mergulham essas fabulosas máquinas taxonómicas que são as instituições das políticas públicas, maxime quando existe esse desfasamento/competição interterritorial (Lisboa versus Porto). Se os de Lisboa queriam conhecer o teatro nativo do Porto, o que de melhor se lhes poderia oferecer senão a festa carnal dos próprios nativos, transformados em públicos e, mais ainda, do Porto, atores/espetadores do seu próprio show, em peregrinação/excursão à capital?

Mas as gentes do teatro depressa perceberam que poderiam ir além da paródia performativa (e muito se poderia dizer sobre o papel da performance na estética contemporânea, nomeadamente enquanto celebração canibalesca da arte pela arte na tentativa, nem sempre bem-sucedida, de fazer colapsar distâncias entre criadores e espetadores) e formar públicos.

Ideia, perigosa, bem o sabemos, uma vez que assente, desde logo, na presunção de desejabilidade — os públicos querem ser formados (Costa, 2004). E ser formado significa tantas vezes, do lado de quem forma, um exercício de violência simbólica, a imposição dissimulada de um arbitrário cultural que reifica um ponto de vista soberano sobre a realidade (Bourdieu e Passeron, 1970). Como se tratasse, alegoricamente, de uma transubstanciação — antes da formação não existiam como públicos, ou, se existiam, vegetavam nos seus primórdios bárbaros. Após a formação, dotados de uma aura de consagração e de sagrado, seriam legítimos praticantes culturais. Nas palavras de Jacques Rancière (2008), a educação do espetador parte da presunção de um abismo radical entre quem forma e quem é formado, ensinando a estes últimos (os públicos) o lugar da sua própria incapacidade.

Ora, o TMV planeou uma formação multidimensional, com os ingredientes de quem não pretendia fazer tábua rasa das experiências anteriores dos sujeitos, nem impor um determinado bom gosto cultural. Partindo de uma inquietação simples mas acutilante — será que as pessoas que vivem no bairro da Sé e que amiúde se cruzam na Praça da Batalha partilham algum tipo de familiaridade com o teatro português contemporâneo, mormente com o que se produz no Teatro Nacional São João, situado emblematicamente nessa praça? De um modo mais geral, que papel desempenham as memórias e práticas teatrais na vida dessas pessoas? Ao decidirem colaborar com associações e autarquias locais deram o mote para um processo que se pretendia bottom-up.

 

Uma abordagem metodológica “de terreno”

Excelente ocasião para os sociólogos, habituados a estudar práticas e políticas culturais. Convite, enfim, para a aplicação de uma etnografia dos públicos em ação, através de um trabalho de pesquisa de terreno alicerçada na cumplicidade das metodologias participativas. Nós, sociólogos, seríamos mais um elemento da equipa de formação que também tinha como incumbência produzir o evento/performance. Atuaríamos, é certo, como avaliadores do desenrolar do processo e dos seus impactos, mas seríamos, também, mediadores entre a equipa teatral e os habitantes da Sé selecionados para o projeto. Por isso, a nossa intervenção oscilou entre a pesquisa de terreno estruturada pela observação participante enquanto método, o aconselhamento e, de alguma maneira, a execução do projeto. As conversas informais entre os membros da companhia e de instituições artísticas participantes (nomeadamente o Teatro Nacional São João), os habitantes, a Junta de Freguesia da Sé (autarcas e técnicos) e dirigentes associativos articularam-se com dispositivos mais sistemáticos de produção de fichas de caracterização sociológica, inquéritos de satisfação, entrevistas semidiretivas e métodos visuais (quer a observação direta, nas suas versões deambulantes, quer a recolha de imagem, aqui não analisada, em articulação com a equipa de cinema documental).

Nesta etnografia dos públicos em ação, tentámos ainda concretizar a articulação entre fenómenos estruturais (pertenças de classe e de género, idade, etc.) e as singularidades/subjetividades dos participantes, focando-nos nos quadros de interação como unidade de análise facilitadora do contínuo vaivém macro-micro, especialmente adequados à análise dos “modos de relação entre as pessoas e os seus contextos de ação”, neste caso quer os modos de relação “com as artes e a cultura enquanto esferas institucionais especializadas”, quer “os modos de relação concretos, em situação, das pessoas singulares com os seus contextos imediatos de ação, no domínio das práticas culturais” (Costa, 2004: 134-135). Vários foram esses quadros de interação: o enquadramento da Junta de Freguesia ou do Teatro Nacional São João ou Teatro Carlos Alberto, nas sessões de conhecimento dos bastidores dos equipamentos ou durante o antes, o agora e o depois dos espetáculos teatrais a que os participantes foram assistir; as preparações da viagem em contexto associativo e, é claro, o apogeu da própria deslocação a Lisboa.

Esta abordagem permitiu-nos, para além de uma grande acumulação de registos de vária ordem, cruzar níveis de observação: das regularidades sociodemográficas, através do pequeno inquérito distribuído e da análise secundária de dados estatísticos, até à captação de sentidos atribuídos aos espetáculos teatrais, recolhidos nas próprias sessões, por observação direta metódica e sistemática, por conversas informais ou entrevistas, passando pelo uso do estatuto híbrido de sociólogo/membro da equipa de produção, no resgate de uma intersubjetividade situada nos quadros de interação da associação e da Junta de Freguesia em demorados convívios.

 

Do lado dos públicos: breve caracterização

A mediação da seleção do “público” através de instituições determinaria as características sociodemográficas dos participantes. Um “público” predominantemente idoso e reformado (42%), com reduzidas habilitações académicas — proveniente dos contactos com a JFS —, existindo igualmente um segmento não negligenciável de jovens estudantes (29%) recrutado pela ASZF de entre os seus frequentadores mais assíduos. No seu conjunto, com idades variando entre os 10 e os 84 anos. Importa, todavia, analisar estes dados mais atentamente, começando pelo grau de participação da amostra em estudo.

Ao longo do projeto participaram na sua totalidade 48 pessoas, e embora só se tenham registado 21% de desistências (15% antes do último encontro), observando-se alguma variabilidade na assiduidade dos participantes.[3]

Não obstante, no âmago desta dispersão foi possível verificar uma certa continuidade na comparência aos encontros numa amostra de 38 elementos repartidos entre a JFS (53%) e ASZF (47%).

Como podemos apurar na figura 1, também entre os participantes mais assíduos é possível descobrir uma certa variabilidade na sua participação. Apenas 39% estiveram presente em todos os encontros e 21% em quatro das cinco sessões organizadas. O primeiro e terceiro encontros foram os que contabilizaram maiores ausências da totalidade do “público do Porto” (46%).

 

 

Mas quem é este “público do Porto”? Para responder a esta questão é preciso reanalisar os dados referentes aos elementos com maior participação e cruzá-los com a informação recolhida dos que efetivamente se envolveram na performance final e foram inquiridos nesse último encontro.[4] De forma a facilitar a exposição iremos aqui decompor a mescla de características contidas nos indivíduos com uma maior assiduidade ao longo do projeto.

 

 

 

 

Apesar da seleção arbitrária, notoriamente sem fiscalização no que concerne a critérios de amostragem científicos,[5] os participantes escolhidos para fazer parte do “público do Porto” acabariam por refletir algumas das singularidades próprias da população residente na Freguesia da Sé.

O género é um desses indicadores. Constatamos que 26% eram participantes masculinos e 74% femininos, o que pode sugerir uma acentuada feminização da disponibilidade para a participação associativa.

Em relação à variável idade, averiguamos uma prevalência de jovens com menos de 15 anos (18%) e na a faixa etária dos 15 aos 24 anos (13%), situação incentivada pela pertença associativa (ASZF). Entre os 18 e os 54 anos deparamo-nos com redes de apoio, i.e., familiares relacionados com outros elementos que cooperaram no projeto (13%) ou indivíduos que, mesmo mantendo ligações profissionais com as instituições em causa, foram encarados como agentes integrantes do “público do Porto” pelo caráter participativo demonstrado (n = 5).

Encontramos, igualmente, um elevado peso de população idosa entre os 65 e os 75 anos (24%) e com idades superiores a 75 anos (21%), fenómeno explicado pelo envolvimento com a JFS. Extrapolando os dados para a população do aglomerado da Sé, é possível reparar que 26% dos residentes desta freguesia têm 65 anos ou mais, 10% menos de 15 anos e 15% situam-se entre os 15 e os 24 anos (INE, Censos 2011), valores próximos dos identificados no “público” recrutado.

Considerando a elevada representatividade de jovens e idosos neste projeto, não é de admirar que, quando analisada a condição perante o trabalho, se testemunhe uma elevada percentagem de indivíduos reformados e estudantes.

Entre as profissões desempenhadas pelos intervenientes reformados do “público do Porto”, sobressai, no grupo feminino, o conjunto de funções na área dos serviços, em particular o cargo de “empregada” (limpeza/restauração/lojista). No meio masculino evidenciam-se os setores da construção civil e metalurgia. Carreiras profissionais longas, difíceis, pouco remuneradas e que em alguns casos se prolongam para além da idade desejável.

 

 

 

 

No que se refere aos níveis de escolaridade, cerca de 68% da nossa amostra detinham nove anos de escolaridade ou menos (ver quadro 6). Se pensarmos na história recente de Portugal encontramos inúmeras justificações para que se registe uma percentagem de 42% de indivíduos que apenas detêm o primeiro ciclo. Dados recentes do INE (Censos 2011) corroboram uma tendência de reduzidas qualificações académicas da população residente nesta freguesia, onde 36% detêm o 1.º ciclo, 14% o 2.º ciclo, um valor que cresce pouco em relação ao 3.º ciclo (15%) e rapidamente decresce em termos de ensino secundário (10%) e ensino superior (7,2%), aliás número muito abaixo da média do distrito do Porto (96%).

 

 

Em suma, como já foi mencionado, estamos na presença de jovens estudantes e reformados pouco qualificados, englobáveis, em termos de pertença social, no universo heterogéneo das classes populares urbanas.

 

Modos de relação com o teatro: algumas surpresas

Em seguida analisaremos a informação recolhida durante as sessões, sem entrarmos (algo que deixaremos para futura publicação) na descrição densa da performance final que, pela sua intensidade sociológica, requer outra minúcia.

Em primeiro lugar, surpreendeu-nos o elevado interesse de participação da população. Tal disposição poderá ser explicada por uma forte exposição destes grupos (idosos e jovens) à socialização de base associativa. Os elementos mais jovens, com idades rondando em média os 12,7 anos, explicam que concordaram em participar no projeto face ao convite exposto pela ASZF; os mais idosos (em média com idades próximas dos 72 anos) indicam que a possibilidade de convívio foi o motivo que mais pesou na decisão:

Porque gosto. Gosto de convívio, senão estou sozinha em casa a ver a novela. [Nazaré, reformada]

Eu vim para distrair, não é? [Maria da Glória, empregada de limpeza]

A forte exposição destes grupos à socialização de base associativa abre as suas disposições a um sentimento de boa vontade face a contextos potenciadores de ocasiões de convívio. Na verdade, estão “habituados” a “iniciativas” e “projetos”, bem como a uma certa proximidade face a instituições que colaboram com as suas associações:

[Estes] convívios até são bons, passa-se um bom bocado. [Maria Laurinda, reformada]

Inesperadamente, atendendo ao contexto em que se inserem, as práticas culturais desta amostra são relativamente diversificadas. Entre os jovens encontramos o futebol, os jogos de vídeo, a informática, a televisão, a música e até mesmo experiências de teatro amador. Para combater a solidão imposta pela reforma e em muitos casos a viuvez, os participantes seniores ocupam os seus tempos livres em atividades dinamizadas pela Junta de Freguesia, nomeadamente a “ginástica” e a hidroginástica. Simultaneamente, viagens, excursões e visitas dinamizadas pela JFS são aproveitadas ao máximo pelos participantes idosos. O visionamento de televisão e cinema compõe igualmente o rol de atividades procuradas por este grupo, em especial no que se refere a telenovelas. A audição de música e a frequência de concertos também os cativa. Entre as estratégias de combate às parcas reformas e usufruto de tempos de lazer destacam-se as peculiares viagens dos “papéis baratos”, panfletos informativos que recebem via correio de eventos organizados por agências de viagem ou empresas que pretendem reunir grupos para demonstrar os seus produtos.

Terceira novidade: apesar de pertencerem a classes sociais frequentemente afastadas de práticas teatrais, várias foram as memórias partilhadas de encontros e vivências com esta atividade. Alguns dos participantes idosos recordam como iam enquanto crianças com os pais ao teatro, referindo que, outrora, era uma das formas de recreação procurada, devido à ausência de meios de comunicação, particularmente a televisão, e possibilitada pela inexistência de idades mínimas estipuladas para a entrada de crianças. A experiência teatral, por sua vez, estava longe de ser confinada aos géneros mais “nobres” e distintivos:

 […] E quando era miúda… ia muitas vezes com a minha mãe ao teatro, ao Sá da Bandeira. Muitas vezes. Porque nessa altura […] as crianças podiam ir. Vi A Costureirinha da Sé, vi A Casa dos Gaiatos, vi muita coisa, muita coisa de teatro. [Laurinda, reformada]

[…] Eu fui muitas vezes com a minha mãe ao Sá da Bandeira, era bem pequeneta! Tinha 7/8 anos e ia muitas vezes com a minha mãe ao cinema, ao teatro! Ao Sá da Bandeira, já se sabe que era o que havia! Veio esta coisa das leis, as leis por causa das idades pronto, ficou tudo em casa! Os pais não iam por causa de não deixar os filhos sozinhos em casa! Por isso… [Laurinda, reformada]

Indagados acerca do que anteriormente “chamava as pessoas ao teatro” respondem, sem grande hesitação, que eram os “grandes nomes”, os atores de teatro reconhecidos. Relembram saudosamente o papel da televisão na divulgação do teatro e a existência de programas específicos destinados a esta arte, algo que consideram perdido:

[…] hoje praticamente quem é que conhece […] quem está no teatro? Quais são os atores de teatro? Eu não vejo por exemplo, não acompanho muito não é? Mas não há aqueles atores famosos de teatro. Eles hoje fogem (sic) mais para a televisão. Não é? Para as novelas, porque […] tão sempre em casa das pessoas, do espetador na novela, enquanto que o teatro não. O teatro as pessoas têm de se deslocar lá fora. [Joaquim, reformado]

Presentemente, as suas redes de pensamento misturam e agregam “estrelas” de “antigamente” com intérpretes de agora, provavelmente conhecidos através de “novelas” ou outros programas televisivos nacionais: Laura Alves, Eunice Muñoz, Simone de Oliveira, Raul Solnado, Ruy de Carvalho, Ribeirinho, Cidália Moreira, Artur Semedo, Vasco Santana, Vasco Melgado, Florbela Queirós, Mário Viegas, António Feio, Fernando Mendes, Rita Guerra, José Raposo, Anabela, Óscar Branco, Alexandra Lencastre, Virgílio Castelo, Pedro Cerdeira, Pedro Teixeira, FF…

Este tipo de memória, que apela a uma receção emocional (longe da estética pura kantiana, baseada no ascetismo e distanciamento) — mas que é uma estética e não um subproduto degenerado do entretenimento popular —, está ainda associada a ciclos de vida em que ir ao teatro facilitava o namoro e o casamento:

Namorava eu com o meu marido […] já há quatro anos, e fomos lá ver um filme que era… Cantara a Bilhetera (sic) … Já vai há muitos anos… parece que era a Carmen Dolores… […] gostei muito! E… e quando era solteira ia várias vezes com ele ao teatro. Depois de casada… é claro… como ele era do Circulo Católico, ele entendia mais ir para o Circulo Católico que tinham os espetáculos deles lá! […] [Laurinda, reformada]

A vivência e o lado sensível da fruição suplantam claramente as categorias analíticas (Lopes, 2004), próprias de uma receção em sentido estrito. Confundem-se nomes e misturam-se referências:

[…] Lembro-me de ir ver A Menina do Mar e O Ulisses, acho que era O Ulisses ou era O Hércules, agora não tenho a certeza. […] [Iris, colaboradora da ASZF]

Ainda me recordo da primeira peça que fui ver ao Teatro Experimental do Porto que hoje já não existe, Um Pé de Laranja Lima da Sophia de Mello Breyner, ainda me recordo. [José, presidente da ASZF/vigilante]

Atualmente, o desencontro do “público” com o teatro é acentuado. Mesmo revelando uma inesperada familiaridade com teatro, patente, ainda, no conhecimento das várias salas da cidade (Sá da Bandeira, Carlos Alberto, Rivoli, Coliseu…), cedo os hábitos se vão perdendo num envelhecimento cultural, configurando uma espécie de regressão disposicional por ausência de contextos de ativação:

[…] Já fui ver lá há muitos anos a Helga. Atualmente não porque [pausa] não puxa. [Glória, empregada limpeza]

Mas ia muitas vezes, eh, até à minha adolescência […] ao teatro. Depois perdi o hábito por… sei lá! […]. [José, presidente da ASZF/vigilante]

O “hábito perde-se” por constrangimentos familiares, laborais e financeiros. Porém, e ao contrário do que poderiam esperar, a frequência de ida ao teatro não acresce com a libertação de constrangimentos laborais e a chegada da reforma.

Confrontados com a atualidade do teatro portuense, dificilmente conseguem identificar salas recentes em funcionamento, omitindo nomes como o Teatro do Campo Alegre, Teatro Helena Sá e Costa, Teatro da Vilarinha ou Teatro de Belomonte — Teatro de Marionetas do Porto. O próprio TNSJ, com o qual convivem diariamente nas suas deambulações urbanas, suscita estranheza e até desconfiança:

Acho que os espetáculos que têm lá, é mais pra “granfina” não é pra nossa classe. Acho que é assim mais pra gente… pra meninos queques e assim senhores. […] Porque agora no São João só vai gente mais chique, vai gente mais moderna, vai gente de, de rabona… […] e a gente não tem capacidade por isso não vai! […] [Glória, empregada limpeza]

Mas, apesar desse afastamento, é possível perceber um enorme interesse por esta arte e um desejo de ampliar a sua frequência:

Gostava imenso de ir ver um teatro! [Alice, reformada]

Adoro comédia! Adoro revista! Gosto muito! [Alice, reformada]

 […] Eu gostava até de ir, por exemplo, uma vez por semana, não me importava de ir [risos] ao teatro! [Alice, reformada]

Eu gosto também muito de ir ao teatro, e acho que não há ninguém que não goste! [Laurinda, reformada]

Até uma vez por mês já ficava toda contente. [Laurinda, reformada]

[…] Gostam, então não gostam? Eu acho que sim, eu gostei sempre de teatro! [Alberto, reformado]

Quarta surpresa: contrapondo às memórias atuantes dos idosos, os mais jovens possuem poucas recordações das suas visitas a espetáculos de teatro, o que talvez demonstre a franca concorrência de outras fontes de informação e oferta lúdica. Os adolescentes afirmam terem ido diversas vezes ao teatro, mas sempre através da escola, o que justifica que as crianças mais pequenas ainda não tenham tido essa vivência. Poderá questionar-se a qualidade dessa experiência, que os transforma em públicos cativos dos equipamentos culturais (Coulangeon, 2003), uma vez que a prática de ir ao teatro enquanto criança e através da escola sem prévia preparação constitui um ato que dificilmente se recorda ou cria mecanismos de perpetuação. Quando questionados sobre esta distância, remetem-se a um silêncio envergonhado. Uma das participantes adultas intervém na conversa e adianta algumas pistas interpretativas:

Não é uma questão de memória. É uma questão de obrigação! Porque eles na escola são obrigados a ir ver a peça! Eles não vão porque gostam são obrigados a ir! [Marlene, assistente técnica, Ministério da Saúde]

Se calhar se eles fossem ver uma coisa que dissessem assim: “Olhe eu vou porque gosto!” Se calhar lembravam-se! [Marlene, assistente técnica, Ministério da Saúde]

Em contrapartida, conquanto cientes de limitações na dinamização de parcerias e iniciativas deste tipo, como menciona uma das professoras voluntárias no ATL, seria porventura mais importante o teatro ir à escola e não o inverso:

É assim, eu penso que já é muito bom o facto de eles irem ao teatro pela escola, já os sensibiliza para esse âmbito e acho que… poderá abrir-lhes um bocadinho os olhos e […] sensibilizá-los para eles quererem continuar a ir ao teatro, penso que sim mas… [Deolinda, professora]

Mas acho que ainda, ainda podia haver mais, uma maior sensibilização nessa, nesse campo porque eles ainda não estão muito voltados para o teatro […] Acho que o teatro devia ir à escola, é essa a minha ideia. […]. Eh, como vocês estão aqui… [Deolinda, professora]

Podiam também fazer com as escolas. [Deolinda, professora]

Outro elemento importante para explicar a rarefação de saídas culturais neste grupo terá sido o aparecimento da televisão, enquanto “entretenimento no conforto do lar”, em especial para gerações mais envelhecidas. Cumulativamente, são referidos como concorrentes diretos do teatro o cinema, o vídeo e o boom da era digital e dos videojogos.

Os adultos da nossa amostra referem, por seu turno, que as obrigações familiares e os encargos que acarretam determinam opções de consumo e subalternizam a escolha do teatro como prática de lazer:

[…] E depois entretanto nasceram os filhos não é? E a gente fica mais um bocado mais… Mais presos, já não pode… E também é um bocado puxado para, pra ir uma família é um bocado puxado ir ao teatro. [Marlene, assistente técnica, Ministério da Saúde]

Contrariando expetativas que pudessem acalentar de segurança financeira na idade de reforma, os anos de sacrifício e trabalho árduo nas suas juventude e vida adulta garantiram apenas baixos subsídios de subsistência (entre os 100 e 200 euros). Estas reduzidas pensões não permitem grande margem de manobra do orçamento familiar e, mais uma vez, atividades extra são eliminadas da equação:

[…] vou poucas vezes ao teatro porque não tenho possibilidades. À uma, somos reformados, não é com 180 euros que eu ganho […] que me posso esticar. Isto é, é português é assim. [Maria Laurinda, reformada]

Quem quer ver o teatro vai ao teatro! Vai ao teatro. [Alberto, reformado]

Só que a finança é que é pouca. Agora… a massa é que é pouca! [Alberto, reformado]

Porque não podem! Porque não podem! É uma miséria e cada vez é mais miséria que eles tão a tirar tudo à gente! Como é que se há de ir ao teatro que a gente não tem dinheiro para governar-se? [Alberto, reformado]

A solidão ou o desinteresse por parte do cônjuge por práticas exteriores de lazer determinam igualmente uma menor frequência do teatro. A perda do cônjuge desempenha um papel ambivalente, consoante o tipo de relação afetiva: tanto pode levar à procura de saídas culturais no combate à exclusão social como, contrariamente, encerrar mais os indivíduos nas suas habitações e na solidão:

Eu […] junto-me mais agora porque estou viúva, desde que o meu marido faleceu […]. O meu marido era uma pessoa, durante o dia trabalhava, chegava cansado de andar agarrado à regueifa (sic) e depois chegava a casa depois de tomar um banho queria comer e deitar-se na cama, pronto e ficar ali. [Laurinda, reformada]

Agora estou, sou livre como os passarinhos vou pra todo o lado! [Laurinda, reformada]

Não vou assim a estes convívios porque sou… tenho… marido, não é? [Maria da Glória, empregada de limpeza]

O medo da cidade, associado a uma perceção subjetiva de insegurança, contribui também para o retraimento na esfera privada:

Agora também não se pode andar na rua de noite. [Alice, reformada]

Ora bem, eu falo por mim. Quem tem maridos tudo bem vão como é com os maridos. Agora nós que somos (a maior parte) que somos viúvas e moramos numa zona muito degradada não podemos andar sozinhas por aí. Eu falo por mim. [Laurinda, reformada]

Vou ver se vou ver este que é aqui perto de minha casa tá a compreender? Porque senão de noite não andava na rua também, além de ir com o marido. Não andava na rua que é perigoso. À noite, à noite chega-se às oito horas da noite, oito e meia… [Maria Laurinda, reformada]

É, a cidade, a cidade do Porto está… é muito só. Não há nada! Começa a cidade a ficar toda deserta! [Joaquim, reformado]

Surpreendentemente ou nem tanto, a divulgação da programação organizada pelos espaços culturais da cidade é compreendida como uma enorme falha que distancia o público do teatro:

[…] as pessoas não vão ao teatro não é por causa do dinheiro… absolutamente! Eu penso que não se vai ao teatro hoje por causa da divulgação! […] Primeiro porque não sabem! Se não vão ao teatro não sabem… [José, presidente da ASZF/vigilante]

[…] arranjava-se sempre 5 euros para se ir ao teatro se nós gostássemos e se fosse divulgado o que é que a companhia ou aquele grupo de teatro está a fazer em determinado teatro […]. [José, presidente da ASZF/vigilante]

O marketing utilizado na divulgação dos espetáculos e a insuficiente informação são persistentemente apontados como lacunas que, por vezes, os apartam da receção cultural. Vários problemas vão sendo enumerados ao longo dos encontros, como a incompreensão da mensagem dos cartazes, ou a excessiva utilização de língua estrangeira. De forma a aproximar os equipamentos e propostas culturais à realidade do “público do Porto” os participantes sugerem três abordagens distintas de divulgação: cartazes publicitários distribuídos pela cidade; recurso a anúncios televisivos e recuperação de uma prática antiga dinamizada no átrio dos espaços de espetáculo, a exposição fotográfica.

Ora, várias das instituições mencionadas (TNSJ, Teatro Municipal Rivoli, etc.) têm ao seu dispor meios de difusão sofisticados e diversificados. No entanto, mesmo concedendo que esta referência pode surgir, nas atitudes dos entrevistados, como transferência de uma “responsabilidade” a outrem (até porque têm consciência aguda de que é socialmente “desejável” frequentarem tais instituições…), não é menos verdadeiro que diversos estudos (por exemplo, Lopes, 2011) têm recorrentemente demonstrado que os dispositivos de divulgação falham amiúde na sua eficácia, tanto porque os destinatários mais retraídos não estão familiarizados com as linguagens utilizadas, como pelo facto de as cadeias de transmissão da informação passarem, antes de mais, pelas redes de sociabilidade e não pelos suportes institucionais.

Que a gente lê os cartazes, aquilo às vezes não nos diz nada! O que é que aquilo nos diz? Ainda agora está lá um… só vê um homem, e umas letras assim e não sei quê. Aquilo não diz nada à gente! Não me diz nada não vou! [Gracinda, empregada de limpeza]

E como reagiu o “público do Porto” aos encontros dinamizados? O inquérito de satisfação — alusivo às sessões e aos espetáculos a que haviam assistido no Teatro São Luiz —, aplicado no último encontro a uma amostra da população (n = 32) faculta algumas informações nesse âmbito. Como é visível na figura 2, presenciamos uma reação positiva referente aos diversos encontros, principalmente em relação à viagem a Lisboa (100%), ao visionamento da peça de teatro Bela Adormecida (81%) e à visita ao TNSJ (78%), superando na maioria dos casos as expetativas que tinham sobre os encontros, em especial o momento da viagem final (78%).

 

 

Destes dados conseguimos concluir que a fruição das peças propriamente dita é o que mais mobiliza este conjunto de pessoas, o que indicia uma franca abertura para um trabalho de formação de públicos. Mas um olhar mais profundo dar-nos-á novas pistas.

Apesar do registo de valores sempre acima dos 70%, nos indivíduos com ligações à JFS é verificável a preferência pelos últimos dois encontros (87% pela sessão 4 e 100% pela sessão 5). Estes números poderão indicar uma maior fidelização ao projeto com o avançar do mesmo. De certa forma, podemos considerar que não só o visionamento de teatro cativa este grupo, mas também a própria experiência, a troca intergeracional e o convívio proporcionado nestas ocasiões:

 […] Eu gostei imenso. Eu gostei muito. Gostei, eu gostei de tudo… gostei sim senhora. E assim como gosto destas reuniões que a gente tem tido. Em tudo por tudo. Fazemos convívio uns com os outros. Fazemos convívio com os jovens, saímos de casa, e puxa-se uns aos outros! “Vamos embora, vamos embora!” “Ah hoje não vou!” “Vamos sim senhora, vamos embora!” É muito bom. [Laurinda, reformada]

 

Notas finais

Não sendo ainda esta a altura para fazer a avaliação de impacto do programa (nomeadamente no seu eventual sucesso de criação de apetências e/ou disposições culturais favoráveis à fruição teatral, o que exige continuidade quer no projeto, quer na sua monitorização sociológica, ambos já assegurados),[6] importa contudo registar algumas (relativas) surpresas no diagnóstico dos modos de relação destes públicos com a cultura: não só apresentam, dentro de um quadro de privação relativa, atividades culturais e de lazer relativamente diversificadas (fruto, em parte, de uma forte exposição aos dispositivos e ofertas associativos), como revelam uma atitude favorável à novidade e à reativação/incorporação de apetências teatrais.

No caso dos adultos e dos participantes mais velhos, as memórias do teatro e das salas de espetáculo da cidade continuam ativas, embora fortemente relacionadas com fases de vida específicas. Todavia, constrangimentos financeiros, obrigações familiares, sentimento de insegurança e défice de capital social podem contribuir para uma certa anomia doméstica. Os mais jovens, por outro lado, apesar do contacto escolar esporádico com esta forma artística, não lograram ainda constituir um património afetivo. Entre as diversas gerações, sobressai também a densa concorrência de outras práticas culturais. Mas que não destruíram, em qualquer dos casos, uma intensa curiosidade e uma expetativa positiva face à possibilidade de uma renovada fruição teatral aberta por este projeto.

Os participantes eram, já o dissemos, espetadores e atores. Ora, o ator mantém a carga do original termo grego: hypokrites, aquele que interpreta. Interpretar significa, em parte, (re)criar; (re)inventar, ao invés da marioneta dependente de um demiurgo oculto — o ofício, precisamente, do recetor cultural que participa na própria expressão e criação artísticas.

Em suma, a etnografia dos públicos em ação mobilizada neste estudo pretendeu resgatar as possibilidades de criação de disposições ou de ativação de disposições adormecidas e/ou enfraquecidas mediante um programa aparentemente inovador de formação de públicos através da sua dignificação enquanto agentes que “observam, selecionam, comparam, interpretam” (Rancière, 2008: 19) em quadros de interação delimitados e territorialmente contextualizados.

 

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Receção: 21 de janeiro de 2013. Aprovação: 9 de julho de 2013

 

Notas

[1] Referimo-nos aqui ao lamentável desaparecimento de algumas figuras incontornáveis do teatro do Porto: Isabel Alves Costa, Paulo Eduardo Carvalho e João Paulo Seara Cardoso.

[2] Teatro Experimental do Porto, Teatro de Marionetas do Porto, Assédio, Ensemble, Circolando, Visões Úteis, As Boas Raparigas…, Teatro do Bolhão, Teatro de Ferro, Teatro Meia Volta…, Teatro do Frio, Palmilha Dentada, Erva Daninha, Radar 360o, Tenda de Saias e Pele, às quais acresce mais a companhia Noise´R´Us, encarregue da festa de encerramento.

[3] De salientar que 21% da amostra participaram em apenas um encontro. Registaram-se 15% de desistências efetivas do projeto, considerando que as desistências na sessão final se deveram sobretudo a questões de saúde.

[4] Na viagem final participaram 34 elementos, dos quais apresentavam 22 maior continuidade no projeto. Foram inquiridos 32 desses indivíduos, uma vez que não tínhamos informação relativa a algumas dessas pessoas. Os inquéritos administrados serviram dois propósitos: como forma de controlo dos dados disponíveis do “público do Porto” e da participação nas várias sessões e medição do grau de satisfação e expetativas em relação a cada um dos encontros de “O Público Vai ao Teatro”, bem como das peças apresentadas pelas companhias “emergentes” do Porto no Teatro São Luiz.

[5] Os indivíduos eram convidados a participar nas atividades do projeto sem qualquer tipo de obrigatoriedade ou fidelização em relação à presença nos diversos encontros.

[6] A segunda fase do projeto decorre em 2012, abrangendo vários dos participantes da primeira fase, mas incluindo também novos destinatários, em torno da peça Casas Pardas, uma encenação de Nuno Carinhas a partir do texto de Maria Velho da Costa com dramaturgia de Luísa Costa Gomes.

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