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Sociologia, Problemas e Práticas

versão impressa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.73 Oeiras set. 2013

https://doi.org/10.7458/SPP2013732805 

Representações das demências na imprensa (2001-2010)

Representations of dementias in the press (2001-2010)

Représentation des démences dans la presse (2001-2010)

Representaciones de las demencias en la prensa (2001-2010)

 

Eduardo Cintra Torres*

* Professor auxiliar, Universidade Católica Portuguesa. Investigador do Centro de Estudos de Comunicação e Cultura da UCP. PhD em sociologia. E-mail: eduardocintratorres@gmail.com

 

RESUMO

No primeiro ano do século XXI a Organização Mundial de Saúde deu um grande destaque à celebração do Dia Mundial da Saúde Mental, estimulando o interesse pelas doenças mentais, nomeadamente pela sua cobertura mediática. Neste artigo, apresentamos os resultados de um estudo quantitativo das representações das demências em três jornais diários portugueses na década de 2001-2010. Considerando redutora uma análise limitada aos artigos nas secções de saúde, o estudo alargou-se a todo o corpo dos diários, o que permitiu mostrar uma atenção regular ao tema, em especial à doença de Alzheimer, em todos os géneros jornalísticos, uma grande variedade de fontes, protagonistas e assuntos, e ainda uma atitude de inclusão concomitante com um tratamento objetivo. O noticiário da imprensa portuguesa sobre as demências é no seu conjunto isento de estereótipos negativos, favorecendo uma informação suficiente dos leitores e a integração das demências entre os temas consensuais e relevantes no espaço público.

Palavras-chave: imprensa, saúde, demências, representações.

 

ABSTRACT

In the first year of the 21st century, the World Health Organisation added its weight to World Mental Health Day, with a view to stimulating interest in mental disorders, particularly through media coverage. This paper presents the results of a quantitative study on representations of types of dementia in three Portuguese daily newspapers between 2001 and 2010. The author did not want to limit the study to the articles in the health sections and therefore looked at the whole of the newspapers. This revealed a regular coverage of the topic in every section of the papers, especially with regard to Alzheimer’s disease, and with a large variety of sources, protagonists and specific subjects. It also demonstrated the existence of an inclusive attitude that is concomitant with an objective handling of the topic. As a whole, Portuguese printed media news about dementias is free of negative stereotypes and tends to give readers enough information and to include dementia among the themes that are both consensual in and important to the public space.

Keywords: press, health, dementias, representations.

 

RÉSUMÉ

En 2001, l’Organisation Mondiale de la Santé s’est jointe à la célébration de la Journée Mondiale de la Santé Mentale, afin de stimuler l’intérêt pour les maladies mentales, en particulier par le biais de leur couverture médiatique. Cet article présente les résultats d’une étude quantitative des représentations des démences dans trois journaux quotidiens portugais durant la décennie de 2001-2010. Considérant qu’une analyse limitée aux seuls articles des pages consacrées à la santé était réductrice, l’étude a été élargie à toutes les rubriques des quotidiens, ce qui a permis de montrer un intérêt régulier pour ce thème, en particulier la maladie d’Alzheimer, dans tous les genres journalistiques, une grande variété de sources, de protagonistes et de sujets, ainsi qu’une attitude d’inclusion concomitante avec un traitement objectif. Dans l’ensemble, les nouvelles parues dans la presse portugaise sur les démences sont dépourvues de stéréotypes négatifs. Elles favorisent une information suffisante des lecteurs et l’intégration des démences parmi les thèmes consensuels et importants de l’espace public.

Mots-clés: presse, santé, clémences, représentations.

 

RESUMEN

En el primer año del siglo XXI la Organización Mundial de Salud dio gran importancia a la celebración del Día Mundial de la Salud Mental, estimulando el interés por las enfermedades mentales, particularmente por su cobertura mediática. En este artículo, presentamos los resultados de un estudio cuantitativo de las representaciones de las demencias en tres periódicos de publicación diaria portugueses en la década 2001-2010. Considerando que un análisis limitado a los artículos en las secciones de salud sería reduccionista, el estudio se extendió a todo el contenido de los diarios, lo que permitió mostrar: una atención regular al tema, en especial a la enfermedad de Alzheimer, en todos los géneros periodísticos; una gran variedad de fuentes, protagonistas e asuntos; y todavía una actitud de inclusión concomitante con un tratamiento objetivo. El noticiario de la prensa portuguesa sobre las demencias es en su conjunto exento de estereotipos negativos, favoreciendo una información suficiente de los lectores y la integración de las demencias entre los temas consensuales y relevantes en el espacio público.

Palabras-clave: prensa, salud, demencias, representaciones.

 

Introdução

As representações coletivas ou sociais — as ideias coletivas a respeito de fenómenos concretos ou a respeito de outras ideias — determinam comportamentos coletivos e individuais, incluindo políticas públicas de saúde e formas de tratamento de pessoas padecendo de doenças. A demência, pela sua especificidade e pela sua entrada recente no discurso nacional e internacional, é um caso concreto em que as representações sociais tiveram historicamente uma carga negativa, com o inevitável agravamento da ação pública a respeito dos pacientes (Carbonelle, Casini e Klein, 2009).[1]

Os media, pelo seu lugar da maior relevância na perpetuação ou reformulação de representações sociais, tenderam, segundo alguns estudos, a reproduzir estereótipos negativos a respeito da demência e seus portadores. Post (2000) considera que estes são representados como pessoas privadas da sua humanidade essencial, e Kirkman (2006) encontrou, num estudo sobre a presença de Alzheimer na imprensa neo-zelandesa, os estereótipos do envelhecimento e da demência. A mesma tendência foi encontrada por Ngatcha-Ribert (2004) na imprensa francesa. Para Carbonelle, Casini e Klein (2009) a maioria das representações são negativas, no sentido em que apresentam os pacientes como associados à “morte social”, “abandonados, perdidos ou maltratados” e cuidados em instituições de pessoal “negligente”, sendo as representações positivas as que resultariam da informação a respeito de estudos científicos.

Estes trabalhos sobre as representações sociais da demência acentuam, portanto, o caráter negativo dos estereótipos. Na verdade, o termo não é neles usado para descrever “retratos igualmente fixos e igualmente fantásticos, positivos” (Hartley, 2002). McKee (2001) vai mais longe, defendendo ser construtivo compreender os estereótipos como refletindo um modo dominante de representação, mais do que apreciando-os pelo seu rigor. Este ponto de vista permite considerar os estereótipos menos como uma representação falhada da realidade exterior do que como ferramentas textuais operando a favor da economia narrativa.

O objetivo deste estudo foi o de traçar um retrato das representações das demências na imprensa portuguesa num período recente. Importava, em primeiro lugar, obter instantâneos concretos desse retrato de conjunto: quantas notícias, a respeito de quê, ocorrendo onde, recorrendo a que fontes, apresentando que protagonistas, tratando de que temas, correspondendo a que agenda. Dada a dimensão do levantamento a que nos dedicámos, deixámos de lado neste primeiro estudo a análise textual do discurso jornalístico. Todavia, diversos elementos metajornalísticos eram importantes para garantir a fidelidade dos instantâneos e do retrato de conjunto, como a dimensão e localização das notícias nos jornais, bem como o género.

Pretendíamos ainda responder às seguintes questões de partida:

Existem diferenças no tratamento da informação sobre as demências entre os diferentes tipos de jornalismo praticados por diferentes jornais diários? A cobertura noticiosa sobre as demências sofreu variações no período analisado? O jornalismo português manifesta os mesmos esterótipos negativos que são referidos pelos autores citados?

Através da metodologia quantitativa, foi possível responder às questões colocadas. Consideramos que o passo seguinte deverá ser o da análise textual do discurso nas notícias analisadas, o que poderá ser obtido no material reunido, quer através de uma investigação mais simples, a partir dos títulos das notícias, quer a partir dos próprios textos.

 

Metodologia

Tratando-se de um primeiro estudo nesta área de informação bastante específica, optámos por um levantamento extensivo das notícias a respeito das demências ou referindo-se a elas, recorrendo à metodologia da análise de conteúdo (Krippendorff, 1980). A análise realizada é essencialmente quantitativa, com um tratamento estatístico simples, baseado em frequências e alguns cruzamentos de variáveis, para obter as regularidades que permitam inferir explicações a respeito do discurso jornalístico. Para permitir uma posterior análise textual, fez-se o levantamento dos títulos das notícias e vocabulário relevante. Fotografaram-se centenas das notícias para se poder, se necessário, aprofundar a análise textual. Os dados foram trabalhados no software SPSS. Deste modo, procurou-se a categorização sistemática do caráter simbólico dos textos jornalísticos, os quais se constituem como meio privilegiado de análise de fenómenos sociais pela sua proximidade aos referentes — independentemente dos filtros políticos, ideológicos e culturais, inevitáveis nos textos — e também porque o material empírico é à partida exterior a qualquer estratégia de investigação (Vala, 1986).

A escolha da imprensa a analisar recaiu sobre três jornais diários, de forma a dispor-se de unidades comparáveis. Escolhemos o Público, o Correio da Manhã (CM) e o Jornal de Notícias (JN), o primeiro, identificado como jornal de elite, os outros dois como jornais populares, um baseado em Lisboa, o outro no Porto. A escolha de jornais de informação geral de grande tiragem, à escala portuguesa, visa aproximar o estudo da circulação de ideias e informações na sociedade em geral. Apesar de o objetivo principal não ter sido comparar os jornais entre si no tratamento das demências, mas obter um quadro amplo da cobertura jornalística do tema, o estudo permitiu ver como tipos diferentes de jornalismo tratam o mesmo assunto.

Partiu-se do princípio de que se poderia comparar a agenda consensual de temas cobertos e quais as tendências centrífugas a essa agenda em jornais diversificados. Mais importante, pareceu-nos, porém, a verificação de tendências históricas no período, numa análise de conteúdo quantitativa longitudinal. Para obter uma série histórica, optou-se pelo levantamento de quatro anos afastados por intervalos regulares: 2001, 2004, 2007 e 2010. Esta opção permite uma visão sequencial do tratamento noticioso das demências durante uma década. Em 2001 a Organização Mundial de Saúde (OMS) associa-se pela primeira vez à celebração do Dia Mundial da Saúde Mental (10 de outubro), e o Relatório sobre Saúde no Mundo 2001, desta organização, centra-se nesse ano precisamente no tema da doença mental.[2] Isso permitiu explorar a evolução da cobertura jornalística das demências após a nova atenção e uma nova postura político-cultural a esse respeito por uma instituição respeitada internacionalmente.

Desde o início, planeámos um levantamento o mais alargado possível dos jornais. Seguindo o exemplo de Kirkman (2006), optámos por considerar que as demências são uma realidade que não se esgota na informação sobre saúde. Pensámos que limitar o levantamento às notícias de saúde, ou de política relacionada com a saúde, não permitiria uma visão completa, alargada, da presença das demências nas notícias. Partimos desse pressuposto pelo facto de as demências serem tema noutras áreas da vida e, portanto, do jornalismo, como crimes, desaparecimento de pessoas, óbitos, etc. Por esse motivo, alargámos a busca a todas as páginas de informação, incluindo política, obituários, desporto, economia, cultura, magazines. Se algumas áreas se mostraram quase improdutivas, como a economia e o desporto, outras compensaram, como a cultura, os magazines e os obituários. Não nos ativemos nos artigos com conteúdos informativos, mas alargámos a investigação a todos os géneros jornalísticos, incluindo a opinião. Foi este alargamento do campo de análise que permitiu uma visão ampla das representações da demência na imprensa. Apesar de esta opção ter alargado muitíssimo o corpo do material empírico, julgamos que foi compensador. Limitar a investigação a certas secções jornalísticas poderia enviesar a análise. Em resumo, o corpus de análise foi constituído pelo universo de artigos sobre a demência nos períodos indicados em três jornais escolhidos e não por uma amostra.

Assim, definimos como notícias com representação das demências todas aquelas em que surgem sintagmas associados às demências, quaisquer que sejam os restantes temas e o seu motor narrativo ou temático.

Foram folheados 4380 jornais nas edições em papel. Esta opção teve inconvenientes, que consideramos menores. Primeiro, dois dos jornais tiveram edições diferentes relativas ao Porto e a Lisboa (Público e Jornal de Notícias), tendo sido consultada apenas uma delas, consoante a disponível nos arquivos utilizados (Hemeroteca de Lisboa, Biblioteca Pública e Municipal do Porto e arquivo do Diário de Notícias em Lisboa).[3] Segundo, não foi possível fazer o levantamento de revistas semanais que acompanham o Jornal de Notícias e o Correio da Manhã, tendo sido feito apenas o levantamento sistemático da revista Pública, do jornal Público. Optámos por incluir os itens encontrados nessa revista no corpo dos dados, por não originar enviesamento do tratamento estatístico.

O levantamento visou localizar o maior número possível de elementos de conteúdo e de forma de apresentação jornalística através de indicadores de linguagem verbal e visual envolvendo as demências, incluindo no contexto dos desenvolvimentos científicos e políticos (células estaminais, por exemplo). Todos os gráficos têm como fontes as 4380 edições dos três diários (Correio da Manhã, Jornal de Notícias e Público) em 2001, 2004, 2007 e 2010.

 

Análise de conteúdo

Evolução

As notícias incluindo referências verbais a demências (a partir daqui indicadas apenas como “as notícias”, exceto quando descrito) tiveram uma presença bastante regular na imprensa entre 2001 e 2010. No total, localizámos 712 notícias, o que representa uma média de 59,3 notícias por jornal por ano, ou uma de seis em seis dias. Apenas 2007 apresenta um número um pouco superior aos outros anos estudados (quadro 1). O Jornal de Notícias é o único jornal que apresenta uma evolução regular, de crescimento, ao longo dos anos; o mesmo sucede nos três primeiros anos no Público e no Correio da Manhã, mas ambos registam uma diminuição de ocorrências em 2010 (quadro 1).

 

 

Podemos adiantar três justificações para esta diminuição em 2010, sendo as duas primeiras do domínio dos conteúdos jornalísticos: diminuição dos estudos científicos disponíveis sobre demências e menor novidade no tema em geral; uma “inflação” pontual de notícias em 2007, sem continuidade em 2010, que se apresenta com um valor semelhante aos dos primeiros anos estudados. A terceira justificação é do domínio metajornalístico: devido à crise da imprensa (internet, menos publicidade…), os jornais diminuíram o número de páginas, o que implica menos notícias; esta diminuição tanto pode resultar num investimento em trabalhos de maiores dimensões, diferenciando o medium da concorrência, com consequente diminuição de pequenas notícias, como, pelo contrário, numa gestão do menor espaço no sentido de maximizar o número de itens informativos.

No quadro 1 é igualmente notável a semelhança no número de notícias entre os três jornais ao longo do período, cujo total se distribui em cerca de um terço por cada um deles. Tal explicita um idêntico nível de interesse e de acompanhamento da atualidade em jornais com características diferentes, que adquire um caráter estrutural.

Apresentação jornalística

Do total das notícias, 54, ou 7,6% do total de 712, tiveram destaque na primeira página dos jornais, ora como chamada (4,8%), ora como manchete (2,8%). O Público (24) e o Jornal de Notícias (22) assemelham-se no total de referências de primeira página, o primeiro com mais manchetes (14) e menos chamadas (10), o segundo com menos manchetes (6) e mais chamadas (16), enquanto o Correio da Manhã se destaca pela ausência de manchetes e um número menor de chamadas de atenção (8). Os dois primeiros anos do estudo originaram mais manchetes (7 em cada) do que os anos seguintes. O ano com mais notícias, 2007, apenas motivou uma manchete, no Público.

Quanto à dimensão, verifica-se uma apreciável diversidade. As notícias ocuparam pequena dimensão, ou “locais”, com um ou dois parágrafos (30,8%), mas também páginas inteiras ou mais (22,9%). No conjunto, as notícias de pequena dimensão (“locais” ou um oitavo de página) totalizaram metade (49,5%), enquanto as notícias com meia página ou mais foram 37,8%. No meio ficam as notícias de meia página (12,6%). Esta variável permite assinalar desde já uma variedade que ficará patente ao longo do estudo, para a qual chamamos aqui a atenção, pois as várias dimensões do texto inculcam uma sensação de constância do tema no espaço jornalístico.

O Jornal de Notícias e o Público voltam a assemelhar-se quanto ao espaço dado às notícias. Em ambos as que ocuparam uma página ou mais são as que ocorrem mais vezes: 30,4% no Público e 27,9% no Jornal de Notícias. Pelo contrário, o tipo de jornalismo praticado pelo Correio da Manhã, publicar mais notícias e mais curtas, explica que quase metade das notícias (48,4%) sejam da mais pequena dimensão e apenas 11,3% ocupassem uma página ou mais. Trata-se de um fenómeno próprio do jornalismo popular (também chamado tabloide, embora nesta qualificação marcado por um sensacionalismo não assinalado neste conjunto de notícias no Correio da Manhã).

Ao longo dos anos, a principal variação a assinalar é a do crescimento sistemático do número de notícias ocupando uma página ou mais, de 16,0% em 2001 até 31,5% em 2010, diminuindo as notícias de meia página na ordem inversa, de 32,7% em 2001 até 15,1% em 2010. À falta de uma explicação interna dos conteúdos, sugerimos que tal se possa dever a uma evolução do jornalismo de imprensa para textos mais aprofundados e diferenciados dos outros media, em especial na internet. Esta tendência verificou-se nos três jornais. Quanto às pequenas notícias, apenas o Correio da Manhã apresenta um aumento significativo ao longo do período, confirmando o seu caráter de jornal popular.

Em termos de ilustrações, ocorrem em mais de metade das notícias (60,0%), por vezes mais do que um tipo: a fotografia é a mais corrente (em 56,0% das notícias). Muito longe vêm o desenho (3,8%), o gráfico (2,0%), ou outra (caricatura, mapa, quadro: 0,6%). Considerámos a caixa de texto (24,4%) como um elemento de diversidade gráfica. A presença de fotografias nas notícias é muito próxima nos três jornais. No Público e Jornal de Notícias aumentou bastante o recurso a fotografia ao longo dos anos, enquanto no Correio da Manhã diminuiu moderadamente. Este jornal é dos três o que menos recorre à caixa de texto, em 15,3% das notícias, enquanto no Público tal ocorre em 28,1% e no Jornal de Notícias em 30,4%. Nos três jornais, mas em especial no Correio da Manhã, há casos de fotografias repetidas diversas vezes em notícias; as imagens servem em grande medida para criar espaços sem texto verbal, para “respiração visual”. Nesse sentido são usadas imagens simbólicas ou indiciais, sem relação concreta com os factos incluídos na notícia. Isto é, as imagens são usadas como um “passaporte”, servindo, através do simbolismo sugerido, para ilustrar qualquer notícia sobre demências. Todavia, as notícias em que se procurou imagens diretamente relacionadas com elementos referenciais do texto verbal — imagens icónicas — ultrapassam a metade (54,8%) das notícias que recorreram a imagem. As restantes, ora apresentam uma distância ao referente, sendo a relação por inferência ou contiguidade temática — as imagens indiciais —, o que acontece em 16,1% das notícias com imagem, ou são puramente simbólicas (22,7%), como seja um idoso de costas para conotar Alzheimer. Estas últimas são imagens de arquivo que quase sempre se utilizaram por mero intuito ilustrativo.

A secção em que as notícias relacionadas com demências se incluem é uma variável que não tem grande valor de análise, dado que as evoluções do jornalismo, como a fluidez de paginação, levam a que uma secção intitulada “Sociedade” inclua noticiário de temáticas muito diversas e seja a parte do jornal onde as notícias mais ocorrem. Não atribuímos valor estatístico a esta variável, pelo que nos limitamos a assinalar a presença das notícias referindo demências numa grande variedade de secções. Encontrámo-las nas seguintes secções:

Sociedade Internacional Regional, Local Nacional Saúde Economia Desporto Revista suplementos de publi-reportagem Cultura Opinião Religião última página publicidade

Este vetor permite assinalar uma segunda vez a variedade de ocasiões que proporcionaram referências a demências e justifica a opção pelo levantamento exaustivo realizado.

Anote-se, à margem, que se localizaram inúmeros anúncios da Associação Portuguesa de Familiares e Amigos de Doentes de Alzheimer. Essa inserção foi particularmente notada no Público e em 2004, com 42 inserções localizadas. Estes anúncios contribuem para a visibilidade da ONG e do Alzheimer, não tendo sido, porém, incluídos no estudo estatístico.

O género jornalístico encontrado permite assinalar, de novo, a variedade da abordagem jornalística dos temas abarcando as demências nalguma ou nalgumas das suas dimensões. A notícia jornalística propriamente dita tem uma presença superior a quatro quintos do total (83,1%). Seguem-se, a grande distância, a reportagem (8,1%), a opinião (4,8%), o fait-divers (3,4%), a entrevista (3,1%) e o dossiê (2,9%), incluindo este, além de algum artigo noticioso de fundo, elementos verbais ou ilustrativos com informação estatística, factos históricos, etc.[4] Os outros géneros totalizam 3,6% (agenda, carta, editorial, testemunho, magazine, conselhos, humor, correção de notícia, publi-reportagem, etc.). A variedade jornalística leva à acumulação de géneros no mesmo item, o que sucede em 9,3% das notícias, tendo nós associado num só registo as várias partes do item jornalístico (por exemplo: texto principal, imagem quadro, entrevista).

No quadro 2 pode verificar-se a presença das demências por géneros de notícias nos três jornais. Nota-se a prevalência quase total da notícia propriamente dita no Correio da Manhã, jornal que quase não recorre à reportagem incluindo referências às demências. É neste jornal que se encontra mais presente o fait-divers — o que comprova a capacidade deste género para abordar qualquer temática —, e é também o que apresenta menos presença do artigo de opinião. Os dois outros jornais apresentam resultados muito semelhantes, em géneros como a notícia, a reportagem, o artigo de opinião e outros, notando-se uma diferença na entrevista, mais presente no Público.

 

 

Análise do conteúdo informativo

A análise de conteúdo das notícias é o cerne deste trabalho. Pretendemos extrair das notícias quais as suas fontes, protagonistas, sintagmas, temas, locais, referências numéricas ou estatísticas, agendamento, sujeitos das doenças referidos; pretendemos também avaliar o registo jornalístico quanto às dicotomias inclusão/ exclusão e objetividade/subjetividade.

Em consequência do padrão do inquérito empírico que elegemos, a variedade do jornalismo envolvendo demências também se encontra em diversos aspetos do conteúdo das notícias; desde logo, nas fontes.

Ordenar as fontes permite-nos conhecer quem está na origem das notícias; quem tem a capacidade de originar informação jornalística; quem tem a possibilidade de orientar a informação, mesmo que sem o seu controlo final. Ao mesmo tempo, o conhecimento das fontes dá-nos imediatos sinais do padrão de protagonistas e até de temas, dado que as fontes coincidem inúmeras vezes com os protagonistas e as suas ações.

A fonte, por definição, é o “agente que o jornalista observa e entrevista, no sentido de fornecimento de informação e sugestão noticiosa. Ela organiza-se para publicitar interesses próprios, garantindo acesso a enquadramentos específicos de um acontecimento e não apenas a sua simples menção ou cobertura. Como o jornalista nem sempre está em posição de observar uma ocorrência noticiável, precisa de alguém que lhe faça um relato o mais correto possível — a fonte” (Santos, 2001). Podemos acrescentar que a proliferação de meios onde encontrar matéria noticiável alarga a condição de fonte para além do agente com o qual há uma interação, servindo materiais escritos, sonoros e visuais como fontes secundárias, ou “fáceis”, cada vez mais divulgadas. Damos conta das fontes das notícias no quadro 3, no qual hierarquizámos as que foi possível identificar. Recorremos à categorização múltipla, tendo sido localizadas de uma a seis fontes. Metade das notícias (50,6%) recorreram a uma fonte e 46,3% recorreram a duas ou mais. O quadro não separa fontes nacionais e estrangeiras.

 

 

As universidades e centros de investigação, e cientistas e investigadores constituem, de longe, o tipo de fonte mais presente nas notícias (35,5%). O mundo da investigação foi o principal motor da informação sobre as demências ou que a elas se referiu. A tendência do jornalismo para noticiar “descobertas” e “inovações” científicas tem-se acentuado nas últimas décadas. Por um lado, pela coincidência do discurso científico com o discurso jornalístico na reivindicação da factualidade e da objetividade. Por outro lado, porque o acesso constante à internet pelos jornalistas de ciência os concentra na informação emanada pelos sites científicos. Esta “dependência da internet, e de comunicados de imprensa ‘pronto-a-vestir’ de publicações científicas, ameaça o jornalismo de ciência”, dado que os profissionais são “controlados pelos mesmos embargos [quanto à data de divulgação], usam as mesmas fontes e visitam os mesmos sites, qualquer que seja o país em que trabalham” (Granado, 2011). Esta redução de fontes agrava-se se os jornalistas trabalharem apenas com base nos relatos de outros media, incluindo agências noticiosas, o que estrangula a variedade informativa. Ao mesmo tempo, e do ponto de vista dos interessados na divulgação de informação, a crescente dependência dos jornalistas face à internet e aos outros media abre uma janela de oportunidade para a divulgação dos seus estudos ou de estudos capitalizando os seus interesses. Há também que considerar a crescente tendência de investigadores para procurar a divulgação dos seus trabalhos, não apenas no âmbito do seu meio científico, mas na opinião pública / publicada, como forma de aumentar o valor do seu trabalho e obter uma “celebridade” semelhante à de artistas e entertainers (Castelfranchi, 2012).

Três quartos dessas notícias relacionadas com investigação científica referem-se a países estrangeiros (74,3%) e/ou ao mundo em geral (2,0%); metade (49,4%) refere-se a Portugal, sendo um quarto das referências a Portugal em geral (24,9%), e/ou ao Porto (9,1%), e/ou Lisboa (5,1%), e/ou outro local português (10,3%), como Coimbra e Aveiro. Este cruzamento revela uma nova visibilidade das universidades portuguesas e um interesse do jornalismo pela investigação realizada em Portugal ou por cientistas portugueses, pela opinião de especialistas portugueses a respeito de investigações internacionais, bem como uma diversidade que rejeita um centralismo lisboeta nas fontes de informação.

Na segunda categoria de fontes mais citadas reunimos a agência de notícias Lusa e outros media. Muitas notícias de origem estrangeira não citam a fonte intermediária, normalmente a agência de notícias. Podemos considerar que a fonte de grande parte das notícias que agrupámos na categoria “não indicadas, nenhumas ou anónimas” (20,4%) deverá ser a agência Lusa ou outra agência de notícias. Este facto acentua o referido indicador de dependência dos jornais portugueses face às agências no que ao noticiário do estrangeiro diz respeito. No noticiário nacional, a agência serve muitas vezes como alavanca de investigação própria, para permitir diferenciação na notícia publicada, o que acontecia menos noutros tempos, mas continuamos, no caso de muitas notícias com origem em agências noticiosas, a encontrar exatamente o mesmo texto em jornais diferentes. O recurso às notícias oriundas das agências pela internet leva mesmo à repetição, por diversas vezes, da mesma notícia com as mesmas palavras no mesmo jornal, em dias próximos, mas também, num caso ou noutro, em páginas diferentes no mesmo dia, isto é, paginada por diferentes setores das redações.

A categoria “outros media” inclui as revistas académicas citadas. É o que ocorre em muitas notícias divulgando o resultado principal ou um resultado interessante de um novo estudo científico. Como referimos, os centros, universidades ou os próprios investigadores dão a conhecer, diretamente ou através de empresas de marketing e comunicação, os seus estudos às agências ou jornais, os quais citam depois as revistas científicas que os publicaram, procurando por vezes complementar com declarações dos investigadores, para isso contactados. Deste modo, algum noticiário científico chega aos leitores portugueses no final de uma “matrioska” de citações: o leitor português lê uma notícia num jornal português que cita um texto de uma agência nacional que cita um jornal / agência internacional que cita uma revista científica.

O poder político e estatal (governos, parlamentos, instituições do estado) não domina o fluxo informativo referindo demências. Tal resulta não só da variedade temática das notícias, mas também de alguma inércia das autoridades no que diz respeito a estas doenças. No período estudado, tiveram início diversas políticas de saúde nesta matéria, mas não constituíram prioridade dos governos, pelo que em diversas notícias as instâncias de poder têm, como fontes, uma presença reativa e não pró-ativa. As instâncias de poder mais referidas são os governos e os parlamentos, de Portugal e dos outros países. A União Europeia esteve ausente como fonte de notícia neste período.

Os portadores de demências e os seus familiares têm em conjunto uma presença importante como fontes do noticiário (11,2%). O facto de os doentes e familiares procurarem ter voz e/ou de os media lha proporcionarem permite à imprensa uma atitude de abertura, revelação e solidariedade silenciosa com as vítimas das demências. Isto é, não só outros falam por eles, como os próprios se exprimem no espaço público. Deste modo, notámos uma legitimação extensiva dos doentes e familiares nas notícias a respeito de demências. Esta vocalização pelos doentes e familiares surge diversas vezes associada à presença nas notícias de associações não governamentais de doentes ou familiares. Se considerarmos a voz dos médicos (13,9%) e das ONG (12,9%) como interventora pelos doentes, e por políticas de saúde que lhes sejam favoráveis, como acontece amiúde, conclui-se que as vozes alinhadas pelo doente, familiar e políticas de saúde mais avançadas têm uma presença muito importante como fontes das notícias. A voz dos doentes e familiares surge também em reportagens, um género privilegiado para, no terreno, ouvir os protagonistas diretos, e ainda nas notícias de desaparecimento de portadores de Alzheimer, por exemplo. Esta presença forte de fontes alternativas às vozes oficiais contraria estudos de imprensa recentes. No estudo de Silva (2009) sobre a saúde em termos globais na imprensa, os utentes representam 4,9% das fontes; e, tal como esse levantamento, um estudo sobre fontes nas notícias sobre saúde em três jornais — Público, Correio da Manhã e semanário Expresso — encontrou, num período mais próximo, uma grande prevalência das vozes oficiais (Lopes e outros, 2011a e 2011b, Ruão e outros, 2012).

Nota ainda para o facto de, do lado institucional, as empresas farmacêuticas e outras (biotecnologia, genética, etc.) constituírem uma das fontes importantes neste noticiário, dado o seu papel marcante em desenvolvimentos que as notícias relacionam com as demências e seu eventual tratamento e prevenção.

As fontes podem não corresponder aos protagonistas das notícias (quadro 4). Nestas, tanto prevalece a demência como tema central, como, em muitos dos itens localizados, é secundária, sendo, por exemplo, apenas indicada como causa de óbito de uma personalidade, etc. Os protagonistas tanto podem ser pessoas como instituições e profissões. Acima de metade das notícias (54,5%) apresentaram entre dois e seis protagonistas.

 

 

É significativo que os doentes com demências são os primeiros protagonistas das notícias (38,8%). Somando a essa presença a dos familiares dos portadores de demência (11,1%) constata-se que os protagonistas sem qualquer poder institucional protagonizam metade das notícias. A estes poderíamos somar os cidadãos comuns (3,6%). Em segundo lugar, estão os investigadores / universidades / centros de investigação que anunciaram alguma descoberta nesta área (37,3%). As ONG e as IPSS aparecem em terceiro lugar. Seguem-se as instituições oficiais de saúde, coincidindo este período com um debate sobre a questão do internamento prolongado de doentes com demências, com os consequentes temas de ocupação de camas, etc. Só depois aparecem as instituições diretamente representativas do poder político. Nota-se que as empresas farmacêuticas, interessadas em, através do espaço público, pressionarem a adoção de políticas públicas que lhes sejam favoráveis, surgem como protagonistas das notícias com uma presença expressiva, duplicando a sua presença em relação à sua ação como fontes, o que indicia a utilização de canais alternativos para garantirem espaço na informação publicada.

O levantamento do vocabulário das notícias deu-nos indicações sobre a linguagem utilizada para lidar com as demências, mas a proximidade da linguagem jornalística aos referentes explica que o levantamento dos temas nas notícias se aproxime muito do levantamento do vocabulário. Preferimos, por isso, concentrarmo-nos nos temas. Deixamos aqui nota, apenas, da variedade vocabular e temática, que ultrapassou largamente o que prevíramos antes do início do estudo.

O quadro 5 apresenta a frequência dos temas relativos às demências na imprensa. Temas diferentes ocorrem na mesma notícia, pelo que o total de ocorrências é superior ao número de notícias. As percentagens de cada tema são, entretanto, apresentadas em relação à sua presença nas 712 notícias. Excluímos temas com menos de 10 ocorrências.

 

 

Esta tipificação aponta, de novo, para uma grande variedade temática no noticiário em torno das demências. A diversidade vale por si, justificando que não agrupássemos temas nesta análise. As demências estão presentes, quer a montante (na investigação, nas causas e riscos, na prevenção), quer a jusante (no processo médico, nos cuidados, no internamento, na qualidade de vida); estão presentes, quer na esfera institucional (instituições e políticas de saúde), quer na esfera privada (consequências das demências na vida própria e dos familiares). Sem tomarmos em conta a qualidade concreta das notícias segundo critérios jornalísticos, que não está em estudo, podemos afirmar que o conjunto do noticiário analisado apresenta a qualidade da diversidade temática e uma ampla cobertura dos principais aspetos relacionados com as demências.

Das 712 notícias relacionadas com demências, mais de metade (52,2%) incluem referência à doença de Alzheimer. Este indicador destaca-se claramente da segunda referência mais presente, a doença de Parkinson (24,7%), que, aliás, aparece quase sempre associada ao Alzheimer, sendo poucas as notícias com referência ao Parkinson e sem referência ao Alzheimer.

Os temas e a presença vocabular na notícia têm história, evoluem ao longo do tempo, consoante o interesse da sociedade e do jornalismo. O interesse pela doença de Alzheimer aumentou significativamente no conjunto dos três jornais analisados da primeira (16,3% no total das notícias) para a segunda metade do período analisado (36,0%). Uma ligeira descida em 2010 ficou a dever-se ao Público e ao Correio da Manhã, dado que no Jornal de Notícias o aumento de referências apresentou uma subida constante. A descida explica-se pelo número menor de notícias no último ano do estudo e também pelo menor débito de estudos sobre a matéria pela comunidade científica, registando-se em 2010 uma descida da presença das universidades e investigadores, quer enquanto fontes, quer enquanto protagonistas das notícias, quer ainda, como veremos ainda, enquanto motores do agenda-setting. Tal como o Alzheimer, também a doença de Parkinson aumentou em referências de 2001 a 2007 e diminuiu em 2010, neste caso nos três jornais.

Alguns temas das notícias correspondem a debates em determinado momento, colocados na agenda mediática pelo poder político e pela comunidade científica (temas geralmente qualificados pelo jornalismo como “polémicos”). A seguir ao Alzheimer e ao Parkinson, o tema da manipulação genética (clonagem e células estaminais, neste caso em diversas variações linguísticas até estabilização nessa terminologia) surge em terceiro lugar nos temas mais correntes nas notícias. As referências às células estaminais concentram-se em cerca de dois terços no ano de 2004; e dois terços das referências à eutanásia ocorrem em 2001; mais de metade das referências ao estigma e à discriminação acontecem também no ano de 2001; os lares de idosos têm metade das referências nesse ano e vão desaparecendo até 2010; pelo contrário, o vocábulo demência aparece em crescendo, tendo quase metade das suas referências em 2010. Podemos dizer que a estabilidade terminológica corresponde à estabilização do tema na sociedade. Na década 2001-2010, a demência, incluída na agenda pela Organização Mundial de Saúde em 2001, tornou-se um tema do jornalismo, em especial através da sua face mais concreta, o Alzheimer.

Uma análise aos textos das notícias permite verificar como a doença de Alzheimer passou de novidade a sintagma vulgar na imprensa. No início do período estudado, o Jornal de Notícias referia-se à doença por duas vezes como “o mal de Alzheimer” e, logo em 5/1/2001, incluía esta descrição da doença: “A doença de Alzheimer — frequente e deselegantemente designada como doença dos ‘mortos-vivos’— …”. Nos outros dois jornais, em 2001 a nomenclatura desta demência já estava estabilizada.

Avaliando o eventual interesse noticioso para o seu público-alvo, a imprensa foca persistentemente as demências pelo lado da possibilidade de serem diagnosticadas, prevenidas ou tratadas. O levantamento dos temas revela o interesse da imprensa nos factos noticiáveis, referindo novos diagnósticos e tratamentos para as demências (14,7%) e sua prevenção (7,6%) através de exercícios físicos e mentais, da alimentação ou de certos alimentos e bebidas, etc. Esta atenção da imprensa à prevenção alarga-se à informação sobre causas e riscos (3,7%) e às hipóteses de cura das demências (2,2%), não faltando os anúncios de curas por oração e milagre. No conjunto, os temas relacionados com o diagnóstico, a prevenção, os tratamentos e alegadas curas somam 201 presenças, o que constitui 12,3% do total de referências.

O envelhecimento e a velhice têm presença menor como tema relacionado com as demências e a sua expressão diminui significativamente ao longo do período. Ao contrário, a perda de memória — índice por excelência do Alzheimer — mantém uma presença estável ao longo do mesmo.

A especificidade do jornalismo, que aponta para o tratamento do concreto em substituição do abstrato, poderá ajudar a explicar a presença mínima do tema saúde mental (1,4%). Outra ausência de nota é a do financiamento do tratamento e cuidados aos doentes com demência (1,4%). Contudo, acrescente-se que o tema dos medicamentos (2,2%) surge em especial na sua relação com a comparticipação do estado no seu pagamento. Quer dizer, de novo é no concreto que se aborda a questão, mais abstrata, do financiamento dos serviços de saúde.

O interesse jornalístico pelos eventos disruptores evidencia-se na atenção a crimes (3,8%) e julgamentos (3,8%) de acusados de crime sobre portadores de demências. As questões de justiça obrigam a um debate público sobre casos limite, o que proporciona um maior entendimento dos problemas da sociedade, neste caso relativos à demência.

No quadro 5 podemos ainda verificar uma presença do marcador “Dia Mundial de…” Inclui referências ao Dia Mundial da Saúde Mental, Dia Mundial da Menopausa, Dia Mundial do Café, mas principalmente ao Dia Mundial da Pessoa com Doença de Alzheimer (21 de setembro). Esta presença confirma a capacidade destes eventos para marcarem a agenda, servindo de alavanca a notícias sobre as próprias comemorações, mas principalmente como porta de acesso a trabalhos jornalísticos sobre o tema das demências. Aliás, podemos dizer que o arranque da década — e deste estudo — se faz com o destaque dado pela Organização Mundial de Saúde ao Dia Mundial da Saúde Mental de 2001, como notava o Jornal de Notícias em 7/1/2001, o que, a nosso ver, condicionou positivamente a atenção da imprensa ao tema. Podemos verificar o mesmo papel agenciador do Dia Mundial no que à doença de Alzheimer se refere. Por causa da efeméride, a principal associação obteve ampla visibilidade na imprensa, chamando a atenção, nos diversos anos, para questões diferentes relacionadas com aquela e para práticas inclusoras dos portadores de doenças, como atividades e passeios.

Pensamos que o jornalismo a respeito das demências, ou onde as demências são referidas, beneficia de uma ampla variedade de abordagens, compensando este pluralismo as limitações próprias de práticas jornalísticas repetitivas ou pobres de conteúdo.

Como se manifesta o tema de inclusão / exclusão nas notícias? Esta avaliação pelo estudioso, eminentemente subjetiva, serve mesmo assim para dar conta da atitude nos eventos noticiados. Não se trata aqui do tom adotado pelo jornalismo (a que nos referimos noutro local), mas do tema implícito na realidade descrita quanto à inclusão ou exclusão. Dito de outra forma: os acontecimentos que motivam as notícias são ou não são tendencialmente inclusores dos portadores de demências e das políticas a estas associadas?

Descontada a subjetividade do estudioso, podemos afirmar que o noticiário sobre demências se refere a atos e declarações claramente favoráveis à inclusão. Comecemos, porém, pelas notícias com um tema neutro ou sem elementos de tom, as quais constituem a maioria (53,2%). Recordando que muitas delas dizem respeito à divulgação de estudos — em si mesmos favoráveis à solução de problemas —, podemos nesta categorizarão de neutralidade encontrar um ambiente inclusório, dado que mais informação permite a compreensão do fenómeno, logo a sua aceitação. O ambiente inclusório é, entretanto, explícito em 34,6% das notícias, ou um terço, enquanto as referências a atos de exclusão, desde o desleixo de políticas públicas até ao assassínio de portadores de demências, ocorre em apenas 6,5% das notícias. Há ainda um número não negligenciável de notícias que incluem as duas atitudes (5,7%), geralmente partindo de um ato de exclusão para o seu contraditório pelo discurso ou ato de inclusão. Esta verificação subjetiva da inclusão / exclusão como “categoria de representação de atores sociais” (Ponte, 2004) necessitará de uma análise crítica do discurso, que não esteve no âmbito deste estudo, mas ela é por agora confirmada pela já referida verificação objetiva, quantitativa, da grande presença nas notícias dos protagonistas das demências e seus familiares.

Uma variável importante na avaliação do tratamento jornalístico neste estudo é a da geografia a que a informação se refere. Encontrámos 859 informações sobre local ou locais nas 712 notícias. Num estudo recente em que se fez o levantamento da geografia das fontes em três jornais, verificou-se que as fontes portuguesas atingiam cerca de 75% a 80% do total (Lopes e outros, 2011b). No nosso estudo, a geografia — não das fontes mas dos locais referenciados nas notícias, incluindo as fontes — é um pouco mais variada.

Dois terços das notícias (66,4%) incluem localização portuguesa, seja quanto ao país em geral (30,3%), seja indicando locais concretos. Lisboa surge com 7,0%, mas deve tomar-se em conta que muitas das notícias registadas como falando do país em geral têm origem em Lisboa. Todavia, a cidade não era referida, nem como Lisboa nem como capital, pelo que não se anotou. Deve, em vez disso, anotar-se a forte presença do resto do país. Encontram-se inúmeras notícias de “fora de Lisboa”, relativas à divulgação de estudos realizados em universidades no Porto, em Coimbra, em Aveiro, ou por investigadores desses centros. Há também informações a respeito de hospitais, lares de idosos e iniciativas da sociedade civil em inúmeras localidades. Uma das presenças do Alzheimer nas notícias refere-se ao desaparecimento de pessoas de suas casas, de lares ou instituições, situação ocorrendo em qualquer local do país, mas sendo mais noticiada nas localidades pequenas. Há, ainda, um pequeno número de notícias sobre a situação dos idosos, em relação com demências, nas aldeias e no interior do país, onde as condições de tratamento, acompanhamento e qualidade de vida são vistas como mais difíceis.

As localizações fora de Portugal encontram-se também em mais de metade das notícias (54,2%). A sobreposição Portugal / fora de Portugal justifica-se principalmente pela tentativa dos jornais de encontrarem ângulos nacionais para informações oriundas do estrangeiro, originando a consulta de especialistas ou responsáveis nacionais, ou ainda a referência a estatísticas nacionais de um tema europeu ou mundial.

A quase totalidade de notícias com localizações estrangeiras diz respeito a países, como as que se referem a estudos científicos acabados de divulgar num certo país ou a casos concretos da política, da justiça, dos óbitos, etc. As poucas referências ao mundo em geral (2,7%) surgem em relação com estudos internacionais englobando estatísticas universais, como, por exemplo, a incidência do Alzheimer ou das demências em geral. A irrelevância da presença da União Europeia nos noticiários sobre as demências (1,7%) denota a ausência de uma política comum visível, incluindo a nível da divulgação de estudos e estatísticas, prática vulgar noutras áreas, como a economia e finanças, cultura, etc.

Vale a pena atentar na evolução temporal das referências geográficas. Em relação a Portugal há um crescimento constante ao longo da série temporal, terminando em 2010 com um aumento de 50% sobre o número de notícias de 2001. Esse crescimento de Portugal nas notícias a respeito das mudanças faz-se principalmente pelo aumento das que referem outras localidades, embora o Porto também cresça, enquanto as notícias de Lisboa não apresentam mudança significativa no seu número.

Quanto à evolução das notícias com locais de fora de Portugal, nota-se uma queda abrupta no crescimento no ano de 2010, chegando ao final da série com menos um terço do que ocorreu em 2001. Deste modo, se em 2001 as notícias com locais portugueses e com locais estrangeiros eram idênticas em número (95 cada), no final da série temporal, as notícias com locais portugueses (143) são quase o dobro das referentes a locais estrangeiros (73).

Esta evolução permite contextualizar o decréscimo, já várias vezes aqui referido, do número de notícias sobre demências no ano de 2010: verifica-se que foram as notícias “estrangeiras” que diminuíram substancialmente.

Dada a importância da validação da informação jornalística com dados factuais, procurámos a presença de referências quantitativas, em números absolutos ou estatísticos. Nas 712 notícias, ocorrem dados factuais deste género em 45,5%, nomeadamente nas que se referem a estudos científicos, à incidência das doenças, a políticas de saúde, etc. O Público apresentou referências numéricas em mais de metade das suas notícias (53,4%) e o Jornal de Notícias em quase metade (47,4%), enquanto o Correio da Manhã apresentou dados numéricos em apenas um pouco mais de um terço (36,7%), tendência que confirma o seu tipo de jornalismo.

Quais os motivos para as notícias ou artigos? O que acontece no mundo exterior que justifica o tratamento jornalístico? Procurámos alguns elementos do agenda-building, a construção da informação que marcará a agenda informativa, mas nem sempre é fácil encontrá-los a posteriori, com base nos próprios textos. Mesmo assim, achamos que resulta um indicador valioso.

Localizámos 95 notícias (13,3%) sem qualquer indicação sobre o seu agendamento, muitas vezes porque são tornadas sucintas ao ponto de desaparecer o contexto da informação incluída; também nos textos de opinião é frequente não se indicar razões de agendamento; finalmente, um género como a reportagem resulta amiúde da iniciativa da redação ou do repórter. Todas as restantes notícias (86,7%) têm um evento na sua base, numa latitude que vai dos eventos programados (uma visita governamental, comemoração de um Dia Mundial, divulgação de um estudo, etc.) aos eventos imprevistos ou os previstos que dele decorrem (óbitos, crimes, eutanásia, julgamento, etc.). Considerámos como evento qualquer acontecimento ou ação que se transforma em ato noticiado.

Interessou-nos em especial verificar o peso da divulgação na imprensa de estudos científicos, de universidades e centros de investigação, ou estudos estatísticos, nomeadamente por organismos internacionais ou governos. O resultado confirmou a expectativa: das 617 notícias com tema de agendamento, 40,1% resultaram da divulgação de descobertas científicas ou de estudos, em geral pequenos apontamentos a respeito de estudos académicos ou outros. Recordemos que este facto indica o interesse do mundo académico na divulgação dos seus trabalhos, o seu fácil acesso à divulgação jornalística, bem como a correspondente predisposição dos media para os divulgar. Pode ser interessante anotar que a divulgação de estudos científicos sofreu um enorme aumento de 2001 e 2004 (43 e 47, respetivamente) para 2007, quando se publicaram 95 notícias. Esta “febre” diminuiu em 2010, mas, com 66 notícias, ficou num patamar muito superior ao início do período, o que faz coincidir a apetência do jornalismo por textos pré-escritos pelo marketing da investigação científica com o interesse desta em ver divulgados os seus trabalhos.

Quisemos tipificar o lugar na sociedade dos indivíduos com demências referenciados nas notícias. Mais de dois terços delas (69,1%) referem-se às doenças ou a doentes em geral, ou a conjuntos de indivíduos em testes científicos ou médicos. Entretanto, mais de um quinto das notícias (22,5%) diz respeito a cidadãos comuns ou seus familiares, todos nomeados e não anónimos, e 9,0% referem-se a pessoas “conhecidas” e “celebridades” ou seus familiares. Isto é, quer os membros das diferentes elites da sociedade, quer o cidadão comum são tema de notícia e potencial ângulo de abordagem das demências. Este marcador permite também avaliar a aceitação das demências no espaço público, dada a identificação dos seus portadores.

As notícias com “conhecidos” portadores de demências são mais frequentes nos anos de 2001 e 2004, cumprindo a função de elite, pois a publicitação da doença por políticos, artistas e escritores terá contribuído para uma maior aceitação da condição de portador de demência e até para o reconhecimento da existência enquanto categoria consensual e não associada a “loucura” ou “vergonha”. Por outro lado, corresponde à passagem das “celebridades” de “estrelas” a “pessoas como nós”, fenómeno há muito detetado (Morin, 1972) e que se acentuou nas últimas décadas (Heinich, 2012). É paradigmático deste papel das “celebridades” o reconhecimento pelo ator Rock Hudson de que padecia de sida (Bird, 2003). Na imprensa portuguesa, as notícias com cidadãos comuns nas mesmas circunstâncias dos “conhecidos” prolongam-se para 2007, ambas diminuindo em 2010, o que indica que o lugar do cidadão comum coexiste ou poderá até ser anterior ao das elites neste tipo de notícias.

A chegada da doença “à luz do dia”, que podemos associar ao período em estudo, tem dois marcadores importantes nas notícias: o reconhecimento pelo ex-presidente dos EUA, Ronald Reagan, de que padecia de Alzheimer, morrendo em 2004 (e originando grande fluxo noticioso com referências à doença); e, ao nível dos cidadãos comuns, a associação do desaparecimento de idosos a demências como o Alzheimer. Na verdade, nos dois primeiros anos do período verificámos a existência de diversas notícias relatando desaparecimentos que não tinham qualquer marcador de explicação, enquanto nos anos posteriores o mesmo tipo de notícia indica o Alzheimer como a causa do desaparecimento. No período em estudo em Portugal, a primeira personalidade cujo padecimento por Alzheimer teve uma grande visibilidade foi o futebolista José Torres [Público, 4/9/2010: “José Torres (1938-2010), o homem sem defeitos”]. O reconhecimento por algumas personalidades, como um político catalão (2007) ou um escritor britânico (2010), de que sofriam de Alzheimer, ou do ator Michael J. Fox de que sofria de Parkinson (atravessando todo o período em notícias sobre políticas de saúde ou cultura), contribuiu para combater o estigma e o silêncio a respeito destas doenças. Quer dizer, a visibilidade das demências e do Alzheimer terá correspondido a uma atitude de compreensão e de inclusão por parte da sociedade no seu todo, do topo à base, fenómeno social que este levantamento regista para um período fulcral para a inclusão das demências na agenda política, social e cultural.

Indicadores de avaliação do trabalho jornalístico

A terminar a análise empírica, damos conta de duas variáveis relativas ao trabalho jornalístico: a verificação do tom inclusor / exclusor do texto e uma avaliação da sua objetividade / subjetividade. De novo, trata-se aqui de introduzir a subjetividade do estudo para obter elementos adicionais, permitindo um conhecimento mais completo do material estudado. O tom inclusor / exclusor foi verificado com base nas variáveis “inclusor”, “exclusor” e “neutro”; a objetividade e subjetividade jornalísticas foram avaliadas segundo as variáveis “muito objetivo”, “objetivo”, “pouco objetivo” e “subjetivo”.

Quanto ao caráter inclusor / exclusor do texto jornalístico, verificámos uma esmagadora prevalência da neutralidade jornalística, em 79,1% das notícias. Nas restantes, o tom exclusor limita-se a um número residual de notícias, apenas quatro, ou 0,6%. O jornalista adota um tom tendencialmente inclusor em 19,1% das notícias. Estes resultados contrastam com o tom exclusor encontrado por Cristina Ponte (2004) a respeito da sida no Diário de Notícias e no Correio da Manhã na primeira parte do período de 1982-2000.

A avaliação da objetividade e subjetividade aponta para uma grande maioria de notícias muito objetivas (60,5%), seguidas das notícias objetivas (28,4%). O caráter subjetivo (4,8%) respeita em especial aos artigos de opinião. As notícias consideradas pouco objetivas constituem uma pequena minoria (5,1%), resultando a classificação menos da avaliação do tom adotado pelo jornalista do que da ausência de dados factuais, prejudicando a qualidade do texto.

 

Conclusões

A metodologia adotada, de levantamento completo do corpo noticioso da imprensa, e não apenas das secções de saúde, revelou-se compensadora, e permite questionar se uma análise restrita às páginas de saúde fornece um quadro completo da atenção jornalística a temas, não só relativos às demências, mas a qualquer realidade com impacto político e social. O noticiário catalogado como de saúde tenderá a dar prioridade ou mesmo monopólio à informação oriunda dos poderes institucionais, políticos ou não. O alargamento a todo o jornal possibilitou-nos verificar uma diversidade temática, de fontes e de protagonistas muito ampla, permitindo constatar como as demências se repercutiram não só como uma realidade das políticas de saúde, mas da sociedade em geral, refletindo-se na diversidade dos ângulos de abordagem pelo jornalismo. Em consequência, pode dizer-se que se confirma o papel dinâmico dos media na “construção social da realidade” (Berger e Luckmann, 2004), pela sua dupla função de reflexo da realidade e de potência de criação de representações sociais. Pode aplicar-se à demência o que António Fausto Neto concluía a respeito da sida: ela “se produz e reproduz pelo menos em três corpos: o corpo das suas vítimas, o corpo social (enquanto corpo cultural e simbólico) e o corpo dos media, por ela ‘invadido’ mediante uma ‘disseminação’ que, contudo, recebe junto às leis mediáticas as possibilidades da sua própria inteligibilidade” (Comunicação e Mídia Impressa. Estudo sobre a AIDS, 1999, apud, Ponte, 2004).

A análise aqui realizada permitiu concluir que o noticiário referindo as demências tem uma presença regular, constante e variada na imprensa portuguesa. Os três jornais — Correio da Manhã, Jornal de Notícias e Público — acompanharam com regularidade o tema no período estudado (2001-2010). A diferença de modelos de jornalismo entre os três diários não se manifesta nem no número de notícias sobre as demências nem nas mais importantes variáveis de análise, mas apenas em características da notícia, como a dimensão e a chamada de primeira página. No conjunto, a imprensa portuguesa deu uma atenção diversificada às demências, em especial ao Alzheimer, quanto a fontes, temas, protagonistas, nos mais variados géneros jornalísticos e nas mais variadas secções noticiosas dos jornais. O tratamento foi equilibrado quanto ao tom inclusor / exclusor e à objetividade jornalística.

O leitor “encontra” as demências em páginas da política, da saúde, da sociedade, da criminalidade, nos obituários, etc. O noticiário sobre as demências ocorre na variedade de géneros jornalísticos, de fontes, protagonistas, temas, geografia e motores de agendamento. Verifica-se uma variedade de temas, de abordagens e de vozes. Os portadores de demência, seus familiares e outros porta-vozes, formais ou informais, têm uma forte presença, que equilibra vozes mais institucionais ou das instâncias de poder. Uma das constatações mais significativa da análise refere-se precisamente à abordagem das demências por ângulos não estatais e não governamentais, numa proximidade com doentes, familiares, ONG e IPSS.

O interesse ou a facilitação na divulgação de estudos científicos é igualmente favorável a uma visibilidade positiva das demências, dado que os estudos são divulgados numa perspetiva de diagnóstico, prevenção, tratamento e eventual cura das doenças. O noticiário sobre “celebridades” afetadas por Alzheimer ou Parkinson tende a “naturalizar” estas doenças, abrindo o caminho a uma maior atenção e abertura ao universo dos doentes, tratamento e acompanhamento.

Mais do que o conflito como motor da informação sobre as demências, a construção da agenda pelos diversos agentes envolvidos, como os centros de investigação, as instituições públicas, as ONG e IPSS, mas também as empresas farmacêuticas, revelou-se um fator significativo da produção noticiosa, através da criação de “eventos” motivadores da atenção jornalística. A confluência do negócio das farmacêuticas com o interesse do avanço do tratamento das demências mitigou eventuais notícias a partir de conflitos: estes encontram-se em especial, mas sem contundência, no noticiário que dá conta do atraso do aparelho de estado em responder às demências como uma realidade social, efetiva e/ou construída pela sua crescente visibilidade pública e mediática. A principal fragilidade do noticiário analisado é a falta de autonomia em relação às fontes “fáceis”, muito embora se note um esforço pelo recurso em simultâneo a fontes nacionais ou independentes das fontes originais no sentido de alargar os pontos de vista. Os “eventos” com origem nas “fontes fáceis” revelam-se não só como a matéria-prima do jornalismo, mas também como um constrangimento, ao originarem uma hierarquização sugerida exteriormente. Todavia, essa força exterior resulta da dinâmica dos atores político-sociais criadora de um “ar do tempo” inescapável. Deste modo, a cobertura das demências neste período repercute a sua “imposição” pela agenda, mas também um interesse independente pelo campo jornalístico. Por exemplo, a reportagem apresentou-se como um género em que a autonomia do jornalista se pode manifestar, por não depender dos constrangimentos da agenda e permitir a liberdade de escolha do ângulo de abordagem, dos temas concretos, de protagonistas e fontes.

O seguimento pela imprensa da agenda institucional e das fontes “fáceis”, como as agências noticiosas e as empresas de comunicação — podendo verificar-se no período estudado um interesse das empresas farmacêuticas e outras relacionadas com a saúde no aumento da visibilidade das demências —, não apagou a presença de vozes alternativas, podendo até ter servido para a potenciar. Pode dizer-se que a cobertura das demências pela imprensa mostra dois movimentos concomitantes e em interação, numa ação de conjunto própria do jornalismo em democracia: “de cima para baixo”, das instituições de poder e empresas para a população, e “de baixo para cima”, a partir dos doentes, familiares e das instituições que lhes estão mais próximas, como as ONG e as IPSS, para as instâncias de poder.

No conjunto, resulta um acervo de conteúdos globalmente positivos para a perceção pública das demências, em todas as suas envolventes, sendo de destacar a consciencialização de que elas crescerão inevitavelmente com o envelhecimento da população e que têm uma implicação diferente de outras doenças relativamente às famílias e outros cuidadores. O discurso inclusor deverá assim contribuir para a diminuição e apagamento da imagem negativa da demência na sociedade, contribuindo, como está comprovado, para contrariar reações negativas das pessoas comuns a respeito da doença e dos pacientes (Aelvoet, 2009).

Como entender a imagem positiva das demências na imprensa? Os temas da saúde são em geral tratados de forma inclusora pelos media, excetuando-se, quando do seu aparecimento, a sida, como vimos, doença que por algumas das suas características, como a transmissão por via sexual, originou um discurso moral específico (Ponte, 2004) que não encontrámos quanto às demências. No caso destas, verificámos que, apesar de o tema ainda constituir “novidade” no início do período estudado, não motivou uma moralização negativa e desde logo se foi transformando em “conhecimento” pela abordagem e divulgação resultante do discurso científico e político, e pela repetição do tema, através do saber objetivado repousando sobre factos verificáveis (Park, 2008).

A análise de conteúdo convida a que esta investigação se prolongue para a análise textual das notícias referenciadas, pois aponta para que o noticiário referindo as demências não corrobore os trabalhos que sublinham o lado negativo dos estereótipos a seu respeito. Pelo contrário, os estereótipos pretendem quase sempre resultar numa visão positiva do leitor a respeito dos portadores de demência, seus cuidadores e políticas de saúde favoráveis. A afirmação da demência como uma condição de diferença a necessitar de atenção e respeito é um trabalho a que a imprensa se entregou desde o início do período em estudo. Encontramos ainda diversos trabalhos jornalísticos que pretendem reverter situações estereotipadas anteriores, como a denúncia de conceções erradas sobre as demências em instituições consideradas envelhecidas. Pode mesmo dizer-se que a imprensa portuguesa contribuiu neste período para a formação de novos estereótipos sobre as demências, estereótipos positivos que as retiraram do âmbito dos estereótipos habituais da loucura e favoreceram a integração dos doentes, o diagnóstico e o tratamento humanizado.

 

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Notas

[1] Este estudo foi realizado pelo Cesop (Centro de Estudos de Sondagens de Opinião) para a Fundação Calouste Gulbenkian, durante o ano de 2011. Eduardo Cintra Torres, do CECC da UCP, foi o investigador e relator, tendo partilhado as decisões de investigação com Rogério Santos, então diretor do Cesop. Para a listagem das variáveis de vocabulário, a investigação beneficiou das sugestões de Alexandre Castro Caldas, diretor do Instituto de Ciências de Saúde da Faculdade de Ciências Humanas da UCP. O artigo beneficiou das sugestões de Pedro Alcântara da Silva, investigador do ICS-UL. O levantamento empírico foi realizado pelo autor e por Pedro Castro Torres, tendo beneficiado da colaboração da Alzheimer Portugal e da Hill & Knowlton em Portugal. A todos o autor agradece, nomeadamente à Dra. LuísaValle, diretora do Programa Gulbenkian Desenvolvimento Humano, da Fundação Calouste Gulbenkian, a autorização para a publicação do relatório em forma de artigo.

[2] O Relatório sobre Saúde no Mundo 2001 da OMS, significativamente intitulado Saúde Mental: Nova Concepção, Nova Esperança, considera, entre outros aspetos, que “[a] depressão grave é atualmente a principal causa de incapacitação em todo o mundo” e que “[uma] de cada quatro pessoas será afetada por um distúrbio mental em dada fase da vida” (OMS, 2001: vii).

[3] A Biblioteca Nacional esteve encerrada aos investigadores durante o período do levantamento deste estudo.

[4] A distribuição por géneros é muito próxima da que foi encontrada em 6714 peças do Correio da Manhã e do Diário de Notícias a respeito da sida no período 1982-2000: a notícia contabilizou 77% das peças no DN e 93%  no CM, a reportagem correspondeu a 9%, o artigo de opinião a 4% e a entrevista a 2% das peças no DN (Ponte, 2004).

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