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Sociologia, Problemas e Práticas

versión impresa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.68 Oeiras ene. 2012

https://doi.org/10.7458/SPP201268696 

Regulação de procedimentos na escola pública: entre o centralismo formal e a apropriação informal

 

Luísa Veloso*, Isabel Rufino** e Daniela Craveiro***

* Socióloga e investigadora sénior no Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do ISCTE — Instituto Universitário de Lisboa e investigadora associada no Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. E-mail: luisa.veloso@iscte.pt

** Doutorada em Sociologia do Trabalho, das Organizações e do Emprego, pelo ISCTE — Instituto Universitário de Lisboa, docente convidada da ESECS — Instituto Politécnico de Leiria, investigadora do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do ISCTE — Instituto Universitário de Lisboa, fundadora e gestora de organizações associativas e cooperativas de âmbito socioeconómico e formativo (Barafunda AJCSS, ADEB — Associação de Desenvolvimento Empresarial de Benedita). E-mail: rufinoisabel@gmail.com

*** Mestre em Psicologia Social pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, assistente de investigação no Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do ISCTE — Instituto Universitário de Lisboa (2008-2010), doutoranda em Sociologia na Universidade do Minho. E-mail: daniela.craveiro@gmail.com

 

Resumo

A presente análise propõe uma reflexão sobre a forma como os processos de coordenação do trabalho nas organizações escolares, ao nível da conceção e planeamento educativo, são enunciados nos relatórios de avaliação externa das escolas e pelas respetivas direções. Tem como base informação contemplada nos relatórios da avaliação externa das escolas de três regiões distintas em Portugal — Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve — e entrevistas realizadas aos dirigentes de 20 escolas. Esta abordagem permite conhecer modos de formalização dos instrumentos estruturantes e destacar a importância dos processos e mecanismos de apropriação informal (ajustamento mútuo) que têm lugar, tanto ao nível da construção como da operacionalização dos processos de regulação formais na gestão das escolas portuguesas (estandardização).

Palavras-chave organização escolar, formalização, estandardização, ajustamento mútuo.

 

Regulating procedures in public schools: between formal centralism to informal appropriation

Abstract

The analysis examines and reflects on the way in which the work coordination processes in school organisations, namely in terms of the conception and planning of education, are set out in the external evaluation reports of schools and by their respective boards. It is based on information in the reports of the external evaluation of schools in three distinct regions of Portugal: Lisbon and the Tagus Valley, Alentejo and Algarve, and on interviews conducted with the governors of 20 schools. This approach sheds light on the ways in which the structuring processes are formalised; it also highlights the importance of the informal appropriation processes and mechanisms (reciprocal adjustment) that take place in both the construction and operationalisation of the formal regulation processes in the management of Portuguese schools (standardisation).

Keywords school organisation, formalisation, standardisation, reciprocal adjustment.

 

Les procédures à l’école publique: entre centralisme formel et appropriation informelle

Résumé

Cette analyse propose une réflexion sur la manière dont les processus de coordination du travail au sein des établissements scolaires, au plan de la conception et de la planification éducative, sont énoncés dans les rapports d’évaluation externe des écoles et par leurs directions respectives. Elle se base sur l’information contenue dans les rapports d’évaluation externe des écoles de trois régions du Portugal: Lisbonne et Vallée du Tage, Alentejo et Algarve et les entretiens réalisés avec les directions des 20 écoles. Cette approche permet de connaître les modes de formalisation des instruments structurants et de souligner l’importance des processus et des mécanismes d’appropriation informelle (ajustement mutuel) qui ont lieu, tant au plan de la construction qu’à celui de l’opérationnalisation des processus de régulation formels dans la gestion des écoles portugaises (standardisation).

Mots-clés organisation scolaire, formalisation, standardisation, ajustement mutuel.

 

Regulación de procedimientos en la escuela pública: entre el centralismo formal y la apropiación informal

Resumen

El presente análisis propone una reflexión sobre la forma en como los procesos de coordinación del trabajo en las organizaciones escolares, al nivel de la concepción y planeamiento educativo, son enunciados en los informes de evaluación externa de las escuelas y por las respectivas direcciones. Tiene como base información contemplada en los informes de la evaluación externa de las escuelas de tres regiones distintas en Portugal: Lisboa y Valle del Tajo, Alentejo y Algarve, y entrevistas realizadas a los dirigentes de 20 escuelas. Este abordaje permite conocer modos de formalización de los instrumentos estructurantes y destacar la importancia de los procesos y mecanismos de apropiación informal (ajuste mútuo) que tiene lugar, tanto a nivel de la construcción como de la operacionalización de los procesos de regulación formales en la gestión de las escuelas portuguesas (estandarización).

Palabras-clave organización escolar, formalización, estandarización, ajuste mútuo.

 

Introdução

A escola constitui uma organização complexa e dotada de especificidades, com destaque para a autonomia dos docentes face aos mecanismos reguladores e normativos formalmente estabelecidos e para a importância do enquadramento de cada escola no contexto social mais amplo.

O presente artigo consolida uma reflexão sobre os mecanismos de coordenação do trabalho nas organizações escolares, centrada na conceção e planeamento da ação educativa, tal como são enunciados nos relatórios de avaliação externa e nos discursos dos dirigentes das escolas.

A análise prossegue com a apresentação da questão central proposta para debate e da metodologia aplicada. Segue-se o enquadramento teórico, em que se reflete sobre os processos de regulação da vida escolar. A análise empírica é apresentada na secção subsequente, focalizando-se nos resultados da pesquisa realizada ao nível da conceção e planeamento da ação educativa. Na discussão debate-se a importância da apropriação informal, dos processos de regulação formais na gestão das escolas portuguesas, tanto ao nível da construção dos instrumentos como da sua operacionalização. O artigo termina com uma secção conclusiva que sistematiza os principais resultados da abordagem proposta.

 

A problemática em análise

Neste artigo a questão central é compreender de que forma os processos de construção e operacionalização dos documentos que estruturam a vida escolar refletem as orientações provenientes da administração central do ensino e, simultaneamente, descrevem formas de coordenação e divisão de trabalho, enquanto consolidam processos de automonitorização que assumem um teor informal.

O debate integra-se numa reflexão em que se cruzam, de forma profícua, abordagens oriundas da sociologia da educação e da sociologia das organizações, contribuindo para a análise da escola como uma organização com as suas especificidades associadas ao seu papel como instituição de aprendizagem por excelência.

A relevância sociológica da problemática proposta prende-se com a sua centralidade na compreensão das escolas como organizações, com pertinência acrescida pela introdução no sistema de ensino português de todo um conjunto de mudanças, entre 2005 e 2009, ao nível dos seus modelos de gestão. Não sendo aqui o lugar para uma apresentação destas transformações de forma detalhada, refira-se, em particular, a tendência para aumentar os mecanismos de controlo e de regulação (formalizados) centrados no gestor de topo (diretor), associados às modalidades de gestão estandardizadas ao todo nacional, pelo recurso aos instrumentos estruturantes a que se associa a possibilidade de autonomia das escolas (ao consubstanciar no cumprimento dos normativos legais o envolvimento de todos os agentes educativos de base local-regional).

A análise integra-se numa investigação mais ampla, que reflete sobre a dimensão organizacional da escola pública e a sua relação com o sucesso escolar. Incide sobre a informação contemplada na totalidade dos relatórios da avaliação externa das escolas/agrupamentos de escolas realizada pela Inspeção-Geral da Educação (IGE) nos anos letivos de 2006/2007, 2007/2008 e 2008/2009, nas regiões de Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve.[1]

O atual modelo de avaliação externa existente em Portugal resultou de um percurso prévio de experiências e de projetos, nacionais e internacionais, que conduziram ao Programa de Avaliação Externa das Escolas, da responsabilidade da Inspeção-Geral da Educação (IGE). Trata-se de uma iniciativa promovida pela administração central, iniciada pela proposta do Grupo de Trabalho para a Avaliação das Escolas (2006), de onde surgiu um quadro de referência, dirigido a escolas públicas que oferecem a educação pré-escolar e os níveis de ensino básico e secundário. O Programa de Avaliação Externa das Escolas foi desenvolvido para contribuir para a melhoria das escolas através da promoção de processos de autoavaliação e do reforço das suas capacidades para a autonomia, ao mesmo tempo que procura contribuir para a regulação do sistema de ensino e para o conhecimento das escolas por parte da comunidade (IGE, 2009).

 

Metodologia

A estratégia metodológica adotada na investigação foi constituída por um conjunto diversificado de técnicas de análise e recolha de informação. Para a análise apresentada neste texto, foram acionados, em particular, três procedimentos técnico-metodológicos.

Em primeiro lugar, foi efetuada uma análise de conteúdo de cariz categorial da informação identificada nos relatórios de avaliação externa relativa à organização escolar. A abordagem permitiu um trabalho sobre os relatórios numa lógica das categorias mais incidentes e respetivo modelo discursivo adotado, procurando ultrapassar a categorização prévia que os relatórios contemplam. A análise realizada subdividiu-se numa abordagem de cariz quantitativo, em que se atendeu aos valores absolutos (N) e relativos (%) de relatórios que referem a categoria, e numa análise categorial com uma ênfase qualitativa, em que são apresentados excertos da informação contemplada nos relatórios de avaliação externa (Neuendorf, 2002; Krippendorff, 2004; Shapiro e Markoff, 1997).

Em segundo lugar, realizou-se uma análise multivariada com base na informação objectivável (quantificável) identificada nos relatórios, com o objetivo de alcançar uma compreensão das categorias (convertidas em variáveis) que, ao estruturarem a informação, diferenciam as organizações escolares em função da análise de conteúdo.[2]

Em terceiro e último lugar, foi efetuada uma análise de conteúdo das entrevistas semidiretivas, realizadas num conjunto de 20 escolas aos dois principais dirigentes, isto é, o diretor da escola (ou do agrupamento de escolas) e o presidente do Conselho Geral, como uma forma de alcançar um conhecimento mais próximo da realidade das escolas.[3] Esta abordagem centrou-se, não tanto numa identificação e construção de categorias, mas antes na análise de enunciados dos entrevistados como manifestações que encerram juízos de valor sobre a realidade em estudo.

Os três procedimentos referidos concretizam-se numa pesquisa que enfatiza os enunciados presentes nos relatórios e nas entrevistas aos diretores das escolas e potenciam uma abordagem quantitativa e qualitativa dos primeiros.

 

A organização escola

O trabalho realizado exige uma reflexão sobre as especificidades da organização escolar e as relações entre os modelos organizacionais escolares e os processos de regulação no espaço da escola.

Scott (2004), no âmbito da sua reflexão sobre meio século de sociologia organizacional (organisational sociology), apresenta as organizações como um dos agentes sociais mais influentes do nosso tempo, estando presentes nos mais variados aspetos da nossa vida. Se a abordagem das organizações se centra, na sua génese, nas organizações industriais e nos organismos estatais, vai, posteriormente, alargar-se a diferentes organizações, de entre as quais as escolas.

A escola, analisada como uma organização, constitui uma entidade complexa, moldada simultaneamente pelas forças materiais ou recursos que detém e pelos sistemas sociais e culturais que produz e/ou em que se insere. Importa, portanto, considerar, à semelhança de todas as organizações, as suas especificidades.

A conceção dominante na bibliografia sobre gestão e administração escolar assenta no argumento da particularidade da escola relativamente às demais organizações. Esta radica no “objeto” de trabalho centrado em pessoas e não em bens transacionáveis (ver, por exemplo, Lacerda, 1977; Nóvoa, 2002). Todavia, é recorrente, entre muitos destes autores, o recurso às teorias da administração científica do trabalho (pela referência à necessidade de planeamento), desde Taylor (1911), com os princípios da divisão do trabalho, e Fayol (1918) e os seus seguidores, aos teóricos das relações humanas (como Mayo ou McGregor), e à abordagem sistémica — com a noção de “sistema” e de “contingência”. É nesse sentido que Sedano e Perez (1989) consideram a organização escolar como uma problemática emergente, numa caminhada em aberto, que muito pode receber das demais teorias da organização e da gestão. De facto, são inúmeras as referências à organização/administração científica do trabalho que se encontram nos teóricos da educação com vista à sua a aplicação às escolas (Dacal, 1985; Benítez, 1986; Sedano e Perez, 1989; Hutmacher, 1992, entre outros). A análise da escola com base na teoria das organizações é proposta, nomeadamente por Hutmacher (1992), para quem as escolas possuem poucas estruturas de trabalho que possibilitem a observação das atividades que desenvolvem, atribuindo este défice ao facto de a organização propriamente dita se situar a um nível institucional superior: o sistema de ensino.

No âmbito da sociologia das organizações, é incontornável a referência a Mintzberg (1979), que problematiza o funcionamento da organização em termos da composição complexa do sistema de fluxos de comunicação, de tomadas de decisão e de trabalho operacional. No mesmo sentido vai o trabalho de Hutmacher (1992), ainda que este autor se centre na noção de “cultura organizacional”, tradicionalmente concebida pelas ligações hierárquicas de controlo e de supervisão e que, no seu entender, permite compreender a escola como uma unidade diferenciada e diferenciadora, nomeadamente ao nível dos recursos, do clima social, da eficiência pedagógica e dos públicos. Proporcionando um enfoque específico sobre as organizações escolares, este autor propõe um enquadramento conceptual que atenta nos aspetos organizacionais do espaço social da escola, aos seus papéis, à divisão do trabalho, às relações de dependência e à gestão do tempo e do espaço.

O entendimento da escola como organização é crucial, pelo facto de, no seu interior, haver um trabalho contínuo de gestão e de controlo de recursos humanos e materiais orientados para finalidades concretas. Enquanto organização especializada, a escola constitui uma construção humana histórica, política e culturalmente marcada pelo predomínio temporal de um determinado modelo escolar, que, no seu sistema de socialização, tende a esbater os traços de construção organizacional e a destacar os contornos institucionais normativos (Lima, 1998). Atendendo aos elementos característicos da escola por oposição a outras organizações, Lima refere: a importância dos objetivos, “quase sempre considerados mais difíceis de definir, e em todo o caso menos consensuais, do que os objetivos das organizações industriais; a existência de uma matéria-prima humana que conferirá à escola um caráter especial; o facto de os gestores escolares terem, em geral, a mesma bagagem profissional e partilharem os mesmos valores que os professores; a impossibilidade de avaliar e de medir os resultados obtidos da mesma forma que se avaliam as organizações industriais e, por isso também, a impossibilidade de submeter a escola a critérios de tipo económico; o caráter compulsivo da escola para os alunos de certas idades e a ambiguidade do seu estatuto” (id., ibid.: 54). Num momento em que o debate das políticas se centra em questões como a qualidade e a eficiência, equacionar a escola como uma organização merece uma reflexão apurada, a ser introduzida de forma sistemática nos estudos sobre as escolas. Tal organização, ainda que indo ao encontro das diretrizes emanadas de um organismo centralizado (o Ministério da Educação), não deixa, todavia, de se traduzir, empiricamente, em diferentes configurações com intensidades distintas dos usos dos termos educação, formação e instrução. Estes e as respetivas práticas encontram-se manifestamente vinculados aos projetos educativos das escolas, nas suas variações espaciais e temporais e, logo, espelham-se nos respetivos documentos estruturantes, objeto de análise neste artigo.

A forma como o trabalho é coordenado na organização escola constitui uma das suas especificidades. A esse nível destacam-se os contributos de Weick que, em 1976, introduz a noção de loosely coupled organizations para descrever as organizações escolares. Seguindo uma perspetiva construtivista, Weick descreve as organizações escolares como organizações pouco congregadas (loosely coupled organizations). Por força da grande autonomia dos seus agentes, uma decisão tomada numa instância não se repercute, necessariamente, nas instâncias hierarquicamente abaixo neste tipo de organizações (Orson e Weick, 1990; Weick, 1976; Czarniawska, 2005). Assim, coexiste uma coordenação formal e informal, como se verá mais adiante neste artigo. Considerando a elevada complexidade do trabalho dos professores e a dificuldade em definir critérios de eficiência, de eficácia e de sucesso, a consequente autonomia destes profissionais e a ausência de controlo autoritário na sala de aula tornam a organização escola pouco agregadora.

A especificidade da organização escola tal como foi apresentada aproxima-se particularmente de uma das cinco configurações organizacionais de Mintzberg (1979). A escola, pela elevada complexidade dos serviços que presta, caracteriza-se pelo nível considerável de autonomia dos docentes, sendo o principal meio de coordenação a estandardização das qualificações, uma vez que a estandardização dos processos e dos produtos é dificilmente operacionalizável. É estruturada em torno do corpo docente (centro operacional), tendo os dirigentes escolares mais uma função de coordenação do pessoal de apoio e de gestão dos recursos financeiros e materiais do que de coordenação do pessoal docente. Estas características definem uma burocracia profissional (Mintzberg, 1979; 1983).

Gamoran, Secada e Marrett (2000) defendem uma perspetiva mais ampla para a compreensão do contexto organizacional escolar, sublinhando a importância de outros aspetos agregadores para além da socialização dos profissionais. Gamoran e Dreebe (1986), por exemplo, demonstraram que o ensino da leitura é fortemente influenciado pela alocação de recursos a cargo da administração escolar. Fatores como a composição das turmas, a provisão de materiais curriculares e a gestão do tempo escolar moldam e determinam a forma como os docentes ensinam a leitura. Assumindo as evidências de que alguns elementos chave da autoridade formal (como são o cumprimento de regras, obediência ou supervisão) são altamente atenuados nas organizações escolares, os autores defendem que, considerando o currículo e o ensino como componentes da tecnologia, esta pode ser constrangida pela alocação de recursos. Assim, a coordenação do trabalho nas organizações escolares pode também ser explicada, em parte, pela tecnoestrutura, na medida em que a principal atividade de conceção das escolas é precisamente o uso e adaptação dos materiais curriculares (Gamoran e Dreebe, 1986; Gamoran, Secada e Marreth, 2000).

A escola como organização deve, assim, ser analisada na sua complexidade, atendendo a algumas das suas especificidades, com destaque para a autonomia dos docentes, o papel de outros mecanismos reguladores e normativos, alguns dos quais de cariz mais simbólico do que formal, e a importância do enquadramento de cada escola no contexto social mais amplo. De entre estes selecionou-se, para a análise, a dimensão relativa à conceção e planeamento da ação educativa.

Os processos de coordenação e controlo dos sistemas educativos por parte das autoridades públicas que descrevem a regulação em Portugal são igualmente fundamentais para a compreensão desta realidade (Barroso, 2005). A este nível, destaca-se a existência de claros mecanismos de controlo inerentes a uma regulação mais burocrática e centralizadora, ao mesmo tempo que se promove a descentralização e a autonomia das unidades escolares, numa lógica mais próxima da autorregulação pelo mercado. Tal lógica coexiste com as interações entre os diferentes atores ao nível das unidades escolares (microrregulação), que se fragmentam na pluralidade de perspetivas e interesses em jogo na gestão local (Barroso, 2005).

A gestão centralizada nas escolas, reafirmada nas recentes inovações legais no sistema de ensino português (Decreto-Lei n.º 75/2008), enquadra-se num processo de modernização da administração pública. Tem como pressupostos a livre escolha das escolas pelos pais, com a consequentemente criação de mercados educativos e a criação de mecanismos de concorrência para a captação de alunos e recursos, e exige uma análise mais centrada nas forças de regulação que agem ao nível da escola enquanto unidade organizacional (Barroso, 2005), tal como a que se propõe neste artigo.

Os modos de regulação local das unidades escolares portuguesas são definidos por Barroso (2003; 2005) em função do tipo de relação estabelecida entre o Estado, os professores e os alunos e as suas famílias. Estes três grupos polarizam forças com tendências distintas, nomeadamente a “estatização”, a “profissionalização” e a “privatização” (Barroso, 2005: 73). Segundo este autor, em grande parte do século XX nas escolas operava principalmente uma regulação burocrática-profissional, resultante da aliança entre o Estado e os professores, sendo diminutos os poderes dos alunos e das suas famílias. Na última década, a participação dos alunos e das suas famílias tem vindo a ser crescente, acompanhando as transformações na educação que temos vindo a referir. Por fim, o autor ainda identifica de forma menos abrangente a atuação de uma regulação comunitária que parece orientar as políticas educativas de abertura à comunidade. A este nível, professores e alunos e suas famílias são os agentes privilegiados que, segundo uma lógica mais comunitária, cooperam no sentido de adaptar e contextualizar a escola e os seus programas educativos (Barroso, 2005; 2003). De notar, ainda, que o aumento de poder de decisão dos agentes locais das escolas é acompanhado pelo aumento de mecanismos de controlo e de regulação do Estado, de entre os quais figuram os documentos estruturantes aqui analisados. O enfoque colocado na participação é igualmente visível na análise realizada. Os documentos estruturantes dão sentido e orientam as opções na tomada de decisão, determinam as obrigações dos membros da escola atendendo à definição de funções e funcionam como guia de procedimentos. Na sua maior ou menor definição, orientam e imputam tarefas, especificam dependências e estabelecem mecanismos formais de coordenação e controlo. Os objetivos, diferentemente formalizados e variáveis nas suas apropriações, estabelecem relações de cooperação dos elementos da organização, exigem a coordenação formal de ações pela prossecução de metas e diferenciam funções numa estrutura hierárquica, onde pesa a sociocultura da organização.

A análise empírica realizada perspetiva, precisamente, atender a esta dualidade: tem como base os discursos sobre a ação educativa patentes nos relatórios de avaliação externa face às orientações da administração central do sistema de ensino e os enunciados dos dirigentes das escolas entrevistados.

O contributo desta análise para uma compreensão da escola como organização centra-se na construção e operacionalização dos documentos que estruturam e formalizam as atividades nas escolas, funcionando como mecanismos de coordenação traduzidos em procedimentos de estandardização.

 

Análise empírica

Entre o centralismo formal e a apropriação informal: a coordenação do trabalho nas organizações escolares portuguesas

A análise realizada perspetiva refletir sobre a regulação da organização escolar, ao nível da conceção e planeamento da ação educativa, o que nos permite analisar alguns dos mecanismos de funcionamento e de regulação da organização.

Os tipos de organização escolar: o destaque da participação

A análise multivariada realizada permitiu concluir sobre a centralidade das modalidades de participação dos atores na distinção das organizações escolares.

A partir da sistematização da informação objectivável presente nos relatórios de avaliação externa reuniu-se um conjunto inicial de 74 variáveis. Desta informação selecionou-se a pertinente para chegar a perfis organizacionais, considerando 27 variáveis, indicadores de quatro dimensões de análise das organizações escolares: a oferta escolar, a participação na gestão escolar, a divisão e coordenação do trabalho e a qualidade das condições materiais e humanas de suporte à atividade escolar. Estas variáveis foram objeto de uma análise de correspondências múltiplas (ACM). Variáveis com elevadas taxas de não resposta e com menor poder discriminante foram eliminadas. Assim, a solução final da ACM contou com 19 variáveis ativas (quadro 1), através das quais foi possível identificar três tipos de organização escolar.

 

Quadro 1 Variáveis ativas introduzidas na solução final da análise de correspondências múltiplas

 

A análise prosseguiu com o estudo da relação entre os tipos identificados e um conjunto de variáveis suplementares, que caracterizam as escolas ao nível do tipo de escola, do seu contexto, do nível de instrução que oferecem, da sua dimensão e antiguidade e da diversidade da população escolar.[4]

A descrição dos três tipos de organização escolar, apresentada de seguida, tem como base todos os procedimentos descritos. Por motivos de síntese, serão apenas referidos os aspetos que mais se destacaram na análise.[5] Os três tipos de organização escolar são: (1) as “organizações escolares inovadoras”, caracterizadas por uma oferta educativa ampla e uma maior articulação entre professores (articulação curricular), a existência de práticas consolidadas de reconhecimento do desempenho académico e cívico dos alunos (por exemplo: quadro de honra), a promoção da dinamização e planeamento de atividades por parte dos alunos, o envolvimento dos encarregados de educação e alunos na construção dos documentos estruturantes e a intervenção da Assembleia de Escola na vida escolar; (2) as “organizações escolares tradicionais”, em que a articulação curricular tende a ser ausente ou pontual e que tendem a não desenvolver atividades para o reconhecimento do mérito escolar e cívico dos alunos na comunidade educativa, a não implicar os alunos no planeamento e dinamização de atividades, a não promover a participação dos alunos e encarregados de educação ao nível dos documentos estruturantes e a atribuir à Assembleia de Escola um papel tendencialmente ausente ou formal; e (3) as “organizações escolares difusas”, com múltiplas unidades escolares (são agrupamentos de escolas e não maioritariamente escolas, como as organizações escolares inovadoras) com práticas de reconhecimento do mérito na comunidade educativa, participação de alunos e encarregados de educação na gestão escolar e de trabalho colaborativo entre docentes. Estas organizações escolares detêm tendencialmente um corpo docente mais instável e uma população discente com maiores carências económicas.

A estruturação das escolas nestes três tipos de organização constituiu o ponto de partida para a estruturação da análise de conteúdo dos relatórios de avaliação externa e das entrevistas, seguidamente explicitada.

Da construção ao uso: diferentes apropriações dos documentos estruturantes

As organizações escolares desenvolvem um conjunto de processos de conceção e planeamento da ação educativa. No âmbito dos relatórios de avaliação externa destacam-se as referências aos documentos estruturantes, a saber: Projeto Educativo,[6] Projeto Curricular de Escola ou Agrupamento de escolas[7] e Projeto Curricular de Turma.[8] Esta dimensão é considerada na avaliação externa, no sentido de perceber se o planeamento das atividades se articula com os objetivos dos projetos educativos e curriculares das escolas, se são identificados os critérios e formas de planeamento do ano escolar e se são qualificados os contributos de estruturas internas e externas na construção desses documentos (IGE, 2009).

Para a presente análise destaca-se a informação relativa aos processos de construção dos documentos estruturantes e aos diferentes mecanismos da sua apropriação.

No que diz respeito à participação da comunidade educativa na construção dos documentos estruturantes, há um ligeiro predomínio de escolas com mecanismos de escuta da comunidade educativa mais alargada (“Escuta da comunidade educativa”), isto é, junto de alunos, professores, funcionários, encarregados de educação ou representantes da comunidade envolvente, quando comparado com a centralização dessa tarefa nos professores ou em estruturas escolares diversas (“Exclusividade de agentes e estruturas escolares”). Atendendo às diferentes tipologias de organização escolar, os dados indicam que as organizações escolares tradicionais são as mais expressivas em ambas as categorias em estudo, destacando-se assim por revelarem predominância de escolas em que a construção dos documentos estruturantes passa pela exclusividade de agentes e estruturas escolares (quadro 2).

 

Quadro 2 Processos de participação da comunidade educativa na construção dos documentos estruturantes, por tipo de organização escolar (N e %)

 

Considerando o conteúdo das categorias em análise, destaca-se a diversidade das modalidades desses processos de participação, que vão desde a “escuta generalizada a todos os agentes diretos e indiretos da organização escola”, à “escuta restrita aos representantes formais”, como se pode ler no quadro 3.

 

Quadro 3 Processos de participação da comunidade educativa na construção dos documentos estruturantes, por tipo de organização escolar (excertos)

 

Esta variedade entre as organizações escolares foi identificada igualmente na análise das entrevistas realizadas. A forma como os responsáveis afirmam que reúnem e organizam a informação para a construção dos documentos estruturantes distingue as escolas analisadas. Alguns referem constituir um processo participado por toda a comunidade educativa, em particular as organizações escolares inovadoras, como no exemplo seguinte.

E a Direção levou a cabo inquéritos, questionários, perguntas mais ou menos informais. Portanto, foi um trabalho de dois anos e meio, quase três anos em que estava o outro em vigor, não é? Portanto, não tivemos um vazio, chamemos-lhe assim. E depois foi a Direção que elaborou. Elaborou, sujeitou à Assembleia de Escola, ao Conselho Pedagógico, aos professores, aos funcionários, reuniões para aqui, para ali e para acolá. Pais, alunos. Quer dizer: fez-se toda essa coisa que é obrigatória, ou melhor, que é desejável fazer. Daí obtiveram-se contribuições. O nível da participação foi muito elevado, muito elevado. Mas obtiveram-se contribuições e contribuições importantes. Portanto, melhorou-se o documento. Chegou-se a uma versão final e foi aprovada. [Diretor da escola D, organização escolar inovadora, região do Alentejo — freguesia semiurbana]

Enquanto outros diretores referem a opção em manter esta tarefa restrita a docentes e a estruturas internas da própria organização escolar, centralização que caracteriza as organizações escolares inovadoras:

Uma comissão do Conselho Pedagógico e elementos da Direção que integraram esse grupo de trabalho. Esse grupo de trabalho foi apresentando algumas propostas que foram sendo aferidas por mim e pela subdiretora também que deu realmente um grande contributo, e depois indo aperfeiçoando, interpondo o documento, o mais de acordo com o projeto de intervenção, portanto e foi assim que se chegou à proposta para depois ser aprovada no Conselho Geral. [Diretor da escola S, organização escolar tradicional, região de Lisboa e Vale do Tejo — freguesia urbana]

As entrevistas permitem identificar ainda outras diferenças entre as organizações escolares no que diz respeito à construção dos documentos estruturantes. Uma questão que se destaca neste contexto diz respeito à pluralidade de enunciados onde se encontram referências sobre os responsáveis pela realização do Projeto Educativo e do Projeto Curricular de Escola/Agrupamento de escolas. A este nível, identificam-se como denominadores comuns a referência à responsabilidade da Direção da escola e do Conselho Pedagógico, sendo que alguns entrevistados referem o papel de ambas as estruturas, e outros referem a existência de grupos de trabalho de apenas uma. A par da Direção e do Conselho Pedagógico os entrevistados referem, residualmente, o papel de outras estruturas como os coordenadores de departamentos, os coordenadores de ciclo, os coordenadores de ano e o Conselho Geral. A estrutura responsabilizada mobiliza, então, os recursos necessários para a realização dos documentos. Para este fim, refere-se que são nomeadas equipas de trabalho que reúnem a informação, sendo esta nomeação mais um aspeto distintivo entre escolas. Tomando como exemplo a construção do Projeto Educativo, é possível observar que as equipas de trabalho são reunidas quer por autonomeação, quer pela nomeação de profissionais por parte da Direção, com base em critérios tão diversos como a disponibilidade temporal, a formação adequada, o perfil ou a experiência anterior.

Importa sublinhar que, tal como na análise multivariada realizada para a tipificação de escolas, também a análise de conteúdo realizada permitiu observar que as escolas mostram alguma variedade na forma como integram a comunidade educativa nos seus processos de tomada de decisão e nas suas atividades.

O novo enquadramento legal que introduz alterações ao regime jurídico de autonomia, administração e gestão escolar vem reafirmar os documentos estruturantes como instrumentos de promoção da autonomia das escolas, equacionando novas formas de participação da comunidade escolar (Decreto-Lei n.º 75/2008). Todas as regras de funcionamento da escola, descritas nos documentos estruturantes, são sujeitas à aprovação de um órgão colegial, o Conselho Geral, onde estão representados pessoal docente e não docente, alunos, encarregados de educação e representantes da comunidade. A participação dos atores (individuais e coletivos, internos e externos à escola) consolida uma proposta de mudança na organização escolar, na qual a construção do exercício de autonomia da escola assenta no seu Projeto Educativo e nas práticas de novas formas de gestão associadas à visão da organização em rede (em rutura com a visão estruturalista e burocrática das organizações), conforme Barroso (2000: 173-175), que advoga a legitimação da ação coletiva. As redes em autonomia, com interferência na forma de regulação das relações internas às escolas, carecem de “liderança”, com a organização a assentar em redes colaborativas (lideranças coletivas), deixando estas de estar afetas a cargos e passando a estar ligadas a funções, segundo os diferentes intervenientes. A “participação” e a “liderança” dos atores internos e externos (individuais e coletivos) apresentam-se para este autor como elementos de expressão e regulação necessários, porque envolvem na gestão todos os que aí trabalham, promovendo a gestão participativa e formas de gestão representativa (id., ibid.).

A análise permite evidenciar que os processos de apropriação destes instrumentos estão ainda em curso e a sua valorização varia de escola para escola, tal como diferem as modalidades (dimensão e intensidade) de integração da comunidade educativa nos processos de decisão.

Funções e fragilidades dos documentos estruturantes

A análise dos relatórios de avaliação permitiu a identificação das principais funções e fragilidades dos documentos estruturantes. Em termos quantitativos não se identificaram diferenças significativas entre regiões e tipos de escola. Já ao nível dos documentos, é claro o destaque para as referências sobre o Projeto Educativo relativamente aos restantes, ao longo dos relatórios das diferentes regiões e organizações escolares. Contam-se 180 (61,4%) relatórios de avaliação em que o Projeto Educativo é apresentado como o documento onde se define a “missão” da escola consolidada nas áreas de intervenção prioritárias. É descrito como um documento que explicita as linhas orientadoras das ações educativas das unidades escolares, seguindo maior ou menor nível de clareza na definição dos objetivos das escola, sendo esta indefinição uma das principais fraquezas identificadas.

O Projeto Curricular, inexistente em algumas escolas, tem um conteúdo mais variável interescolas. Tanto apresenta as orientações e objetivos para a ação educativa, como os aspetos relativos à gestão curricular ou definições de procedimentos organizacionais.

O Projeto Curricular de Turma é apresentado como um documento que formaliza a adequação do Projeto Curricular ao nível das especificidades de cada turma. Entre as fraquezas associadas a este documento sublinha-se a sua não utilização efetiva e a ausência de um modelo comum para a sua conceção.

Veja-se, no quadro 4, uma síntese que resulta da análise de conteúdo realizada.

 

Quadro 4 Síntese das principais características dos documentos estruturantes em destaque: Projeto Educativo (PE); Projeto Curricular de Escola/Agrupamento de escolas (PCA/PCE); Projeto Curricular de Turma (PCT)

 

Está-se perante um leque amplo de documentos que poderão, potencialmente, assumir uma importante função reguladora. Contudo, é de ter em linha de conta que os relatórios de avaliação externa espelham a diversidade das interpretações e incorporações destas diretrizes legais no âmbito da gestão escolar. A título de exemplo, é possível corroborar essa pluralidade atendendo também aos depoimentos recolhidos de diretores de escolas e de presidentes de Conselho Geral. Persistem diferentes posturas face à valorização do Projeto Curricular de Turma das escolas, tal como podemos concluir pela análise dos seguintes excertos, que expressam pontos de vista opostos a este nível, em organizações escolares difusas.

O Projeto Curricular de Turma é uma chachada [risos]. Aquilo não serve para nada. Aquilo foi uma coisa que alguém inventou, deve ter saído de uma destas correntes da pedagogia que nós não sabemos muito bem de onde é que vêm mas que nascem no nosso país como cogumelos… […]. O Projeto Curricular de Turma, no fundo, o que é? É pôr no papel aquilo que o diretor de turma e os professores quando chegam à turma veem que têm ali. No fundo, é uma descrição de que temos estes alunos que têm estes problemas, mas estamos a detetar que eles têm estas dificuldades e estas e estas na matéria. Ou seja: isto fazia-se tudo de uma forma informal, num conselho de turma, sem que as pessoas estivessem a escrever papéis. Mas como é importante fazer-se um papel, põe-se aquilo tudo no papel. Utilidade prática, se quer que eu lhe diga, não tem nenhuma. Mas eu sou obrigada a pedi-los e peço-os. [Diretor do agrupamento de escolas A, organização escolar difusa, região de Lisboa e Vale do Tejo — freguesia urbana]

E esse [Projeto Curricular de Turma] é o documento mais sentido, e que é mais trabalhado por cada docente e que depende da sua realidade, da sua turma.
Portanto, é o documento que também pode ser mudado e reconstruído a qualquer altura mediante o desenvolvimento do grupo e de cada um dos alunos.
É o documento para onde neste momento nós estamos mais a olhar. E que temos, fazemos avaliações periódicas dele. Amanhã, por exemplo, amanhã dia 16 de abril, último dia para entrega dos relatórios sobre avaliação de diversos documentos relativos ao segundo período. Portanto, é a avaliação constante daquilo que estamos a fazer para a sua monitorização e ajustamento. [Diretor do agrupamento de escolas E, organização escolar difusa, região de Lisboa e Vale do Tejo — freguesia semiurbana]

Os excertos apresentados da entrevista realizada ao diretor da escola A permitem evidenciar enunciados de desvalorização da utilidade desse documento (“O Projeto Curricular e Turma é uma chachada!”). Já a diretora do agrupamento de escolas E assume-o como o “mais sentido” e “trabalhado por cada docente”. Em ambos os casos, na opção está o necessário ajustamento mútuo a particularismos da situação específica de cada escola, onde pesa o modelo de liderança de maior ou menor partilha do trabalho numa lógica de rede, características que pautam as organizações escolares difusas.

Detetam-se igualmente diferentes formas de apropriação dos documentos na mesma escola, como no agrupamento de escolas E, em que a diretora descreve uma evolução diacrónica face a esses instrumentos, na medida em que “a maior parte dos documentos […] não eram sentidos como necessários. Os documentos eram elaborados para aquilo que nós chamamos ‘para inglês ver’”.

 

Discussão dos resultados

No campo da coordenação do trabalho docente, o fluxo de trabalho operacional e a organização do mesmo centram-se, nas organizações escolares, no corpo docente, o qual assegura a formalização dos planos “estratégicos” formalizados nos documentos estruturantes. Ao conselho executivo (atual diretoria — Decreto-Lei n.º 75/2008), também ele formado por docentes (mediante processo de eleição), cabe ao presidente (diretor) diligenciar para a efetivação dos respetivos instrumentos. As diferentes apropriações e valorizações dos documentos, visíveis nos excertos das entrevistas, indiciam a existência de um sistema de comunicação informal, que complementa ou contorna os canais estabelecidos e possibilita que os processos de decisão ad hoc funcionem a par do sistema regulado, com particular peso atribuído ao ajustamento mútuo como mecanismo de coordenação (Mintsberg, 1979). O docente é também o “gestor” (na turma com os alunos, por exemplo) e tem um papel de “programador” que pode conduzir a que se contorne o sistema formal de informação para recolher informações necessárias à execução do seu trabalho.

De acordo com Minztberg (ibid.), o favorecimento de determinados mecanismos de coordenação (ajustamento mútuo, supervisão direta ou estandardização de processos, resultados ou qualificações) e a forma de combinação dos mesmos definem a configuração da organização mais pela burocracia mecanicista (em que se destaca a autoridade da posição formal ocupada), ou pela burocracia profissional (ganha relevo o poder da competência de natureza profissional). Os documentos estruturantes podem ser analisados como formas de estandardização de processos e, ao constituírem instrumentos de formalização, contribuem para a centralização das relações na organização.

A proposta de estandardização é assegurada em conformidade com as propostas da tutela e materializa-se no cumprimento da missão formalmente definida, o que remete para a organização como sistema de fluxos regulados que os instrumentos consubstanciam. Contudo, o modo de estandardização dos processos de trabalho na escola, a partir dos conteúdos e da programação que os documentos estruturantes possibilitam, é interpretado de forma distinta, correspondendo assim a heterogéneas perceções organizacionais: o cumprimento por “obrigação” administrativa/processual, nas organizações escolares tradicionais, ou o cumprimento numa perspetiva coletivamente assumida com participação de todos os atores, nas organizações escolares inovadoras.

Equaciona-se, assim, uma reflexão sobre os mecanismos de regulação nas escolas com base nos resultados da avaliação externa e das entrevistas, que, ao refletir sobre as escolas no seu todo e não, isoladamente, sobre os alunos ou os professores, potencia uma análise das escolas como organizações.

A opção por centrar a análise nos relatórios de avaliação externa constituiu uma via desafiante para a investigação, na medida em que parte de um registo realizado pela equipa de avaliação a partir da informação disponibilizada pelas escolas. A análise de fontes secundárias faculta o acesso à informação a partir da interpretação que outros agentes — a equipa de avaliação, neste caso — fazem dela. Se, por um lado, esta pode ser encarada como uma limitação, na medida em que é uma informação mediada pelas representações dos agentes que avaliam, por outro, estas tornam-se, em si, objeto de análise, enquanto modelo standard formal da avaliação das escolas, proveniente da administração central do ensino. Trata-se, assim, de ter presente que estamos perante uma construção social. De facto, a grande diversidade da informação disponibilizada nestes documentos consistiu num importante desafio à análise, permitindo comprovar a heuristicidade contida numa análise de dados secundários.

 

Conclusão

A abordagem metodológica baseada no cruzamento entre dados quantitativos e qualitativos, e entre duas fontes de informação distintas permitiu confrontar os sentidos plurais de algumas das categorias identificadas pela análise de conteúdo com os discursos dos dirigentes e, por esta via, contrastar a informação de cariz formal com as perceções dos responsáveis pela gestão das escolas.

A análise permitiu identificar linhas orientadoras de alguns dos principais processos de coordenação do trabalho ao nível da conceção e planeamento da ação educativa e asseverar a sua distinção em função do tipo de organização escolar. Em processos mais ou menos participados, destaca-se, por um lado, a importância da estandardização, que se concretiza na definição dos documentos e critérios estruturantes, e, por outro, o ajustamento mútuo, inerente à apropriação informal pelas escolas das diretrizes emanadas pelo ministério.

Prevalece a importância dos mecanismos informais na apropriação das diretivas por parte dos professores, associados ao grau de autonomia no desempenho das suas funções. Mintzberg (1979) chama a atenção para o que denomina “respostas disfuncionais”, que dizem respeito, nas burocracias profissionais, à tentativa de controlar o trabalho profissional através da supervisão direta, da estandardização dos processos de trabalho ou da estandardização de produtos. Defende que um controlo externo excessivo conduz à centralização e à burocratização da estrutura, aproximando-a de uma outra configuração — a burocracia mecanicista, na qual a tecnoestrutura ganha destaque — bem como à formalização dos procedimentos e à hierarquização das relações (Mintzberg, 1979; 1983). Esta tendência é evidenciada pela introdução do referido conjunto de medidas emanadas do Ministério da Educação para todas as escolas, nomeadamente em relação aos documentos estruturantes. Procurar um modelo estrutural comum à organização escola a nível nacional tem subjacente uma eficiência dos recursos. Tal estandardização poderá ter os seus efeitos positivos, ao permitir reduzir a supervisão direta e, atendendo à complexidade da função docente, ao adotar o ajustamento mútuo nas atividades de cariz mais pedagógico com os alunos, bem como na relação com os encarregados de educação e/ou a comunidade mais ampla.

A análise permite destacar, assim, que um cruzamento aparentemente contraditório entre uma gestão mais autónoma das escolas e uma orientação das atividades por diretrizes emanadas do poder central parece estar a concretizar-se.

As escolas e aos agrupamentos de escolas avaliadas, por força dos mecanismos informais de apropriação das regras formais, distinguem-se no que diz respeito à forma como utilizam os documentos estruturantes, as modalidades de interação com a comunidade local e o nível de integração dos atores na planificação e atividades escolares: mais inovadoras, mais difusas ou mais tradicionais. A distância entre as orientações descritas e a construção das regras na escola, a par da gestão da participação da comunidade educativa na gestão das escolas, constituem dois eixos analíticos fundamentais para compreender as dinâmicas organizacionais das escolas portuguesas.

A prossecução estimulante desta análise será, certamente, a realização de estudos de caso que permita evidenciar os processos efetivos de construção e apropriação dos documentos estruturantes e o respetivo confronto com os enunciados identificados nos relatórios de avaliação externa e os discursos dos dirigentes das escolas, em particular, e da comunidade educativa, de forma mais ampla.

 

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Decreto-Lei n.º 75/2008, DR, II série, 79 (22/4/2008) 2341.

 

Notas

[1] Dos 298 relatórios, foram eliminadas cinco escolas de tipologias pouco expressivas (escolas básicas integradas, escolas profissionais e escolas secundárias com segundo e terceiro ciclos).

[2] Para a tipificação das escolas foi efetuada uma análise multivariada em que foram acionadas as técnicas de análise de correspondências múltiplas e análise de clusters. Teve na sua base a construção de um conjunto de 74 variáveis, a partir da informação qualitativa disponível nos relatórios, à qual foi acrescentada alguma informação sobre os resultados escolares, com o objetivo de relacionar os tipos de organização escolar com o sucesso escolar. Para o efeito foram mobilizadas as seguintes técnicas de análise dos dados: técnicas da Anova uni-fatorial e do teste de independência do qui quadrado (_2).

[3] Foi selecionado um conjunto de escolas, a partir das tipologias de escolas, das regiões em que se enquadram e das taxas de sucesso/insucesso escolar. Para a definição de uma amostra de 20 casos, e considerando que foram avaliadas 144 escolas de Lisboa e Vale do Tejo, 70 do Alentejo e 41 do Algarve, optou-se por selecionar oito escolas da região de Lisboa e Vale do Tejo, sete escolas do Alentejo e cinco escolas do Algarve.

[4] Variáveis suplementares: tipologia de escola; região; tipologia de território; escola TEIP (territórios educativos de intervenção prioritária); nível de instrução: ensino pré-escolar; nível de instrução: 1.º ciclo do ensino básico; nível de instrução: 2.º ciclo do ensino básico; nível de instrução: 3.º ciclo do ensino básico; nível de instrução: ensino secundário; unidades escolares do agrupamento; número de professores; número de alunos; número de funcionários; percentagem de alunos com apoio social; percentagem de alunos estrangeiros; número de alunos com necessidades educativas especiais; antiguidade do agrupamento; nota de avaliação externa: organização e gestão escolar; nota de avaliação externa: liderança; avaliação externa: resultados.

[5] Para uma descrição detalhada da análise ver Sucesso Escolar e Perfis Organizacionais. Um Olhar a Partir dos Relatórios de Avaliação Externa (Relatório Final, capítulo 3), disponível em: http://www.cies.iscte.pt/publicacoes/ficha.jsp?pkid=2960&a=1293545712928.

[6] O Projeto Educativo é um documento que “consagra a orientação educativa do agrupamento de escolas ou da escola não agrupada, elaborado e aprovado pelos seus órgãos de administração e gestão para um horizonte de três anos, no qual se explicitam os princípios, os valores, as metas e as estratégias segundo os quais o agrupamento de escolas ou escola não agrupada se propõe cumprir a sua função educativa”. Tem o seu enquadramento legal no Decreto-Lei n.º75/2008.

[7] Projeto Curricular de Escola ou Agrupamento é um documento que consagra as orientações que adequam o Currículo Nacional do Ensino Básico à escola, sendo o suporte para a elaboração dos Projetos Curriculares de Turma. Tem o seu enquadramento legal no Decreto-Lei n.º 115-A/98 de 4 de maio, alterado pela Lei n.º 24/99 de 22 de abril, Decreto-Lei n.º 6/2001 de 18 de janeiro e Despacho Normativo n.º 1/2005 de 5 de janeiro.

[8] O Projeto Curricular de Turma é um documento que consagra as orientações que adequam o Currículo Nacional à turma. Temo seu enquadramento legal no Decreto-Lei n.º 115-A/98 de 4 de maio, alterado pela Lei n.º 24/99 de 22 de abril, Decreto-Lei n.º 6/2001 de 18 de janeiro e Despacho Normativo n.º 1/2005 de 5 de janeiro.

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