SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número67Un abordaje sociológico del conflicto conyugalCaminos limitados o movilidad bloqueada?: Movilidad socioprofesional de los inmigrantes Brasileños en Portugal índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Indicadores

Links relacionados

  • No hay articulos similaresSimilares en SciELO

Compartir


Sociologia, Problemas e Práticas

versión impresa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.67 Oeiras dic. 2011

 

Trabalho moderno e serviço: uma discussão de tipologias e definições

 

Paulo Pereira de Almeida*

 * ISCTE-IUL, Departamento de Sociologia, investigador e sociólogo do trabalho. E-mail: paulo.pereira.almeida@iscte.pt

 

Resumo

O presumível esgotamento das explicações para a organização do trabalho ancoradas no modelo industrial e pós-industrial constitui uma oportunidade de alteração de paradigma e de incorporação de (novos) conceitos nas análises sociológicas do trabalho. Neste artigo discutimos a noção de serviço na perspectiva de diversos autores e apresentamos as suas tipologias nas sociedades em que o serviço e o sector economicamente definido como terciário adquiriram uma preponderância nos sistemas económicos de produção e de troca. Consideramos que uma melhor compreensão e exploração conceptual destes autores permitirá basear presentes e futuras pesquisas no campo da sociologia do trabalho aplicada aos serviços.

Palavras-chave trabalho, serviço (noção), sistemas de trabalho, serviços de proximidade, valor de uso.

 

Modern work and service: one possible discussion about typologies and definitions

Abstract

The apparent depletion of the explanations for the organization of work rooted in the industrial and post-industrial model is an opportunity to change paradigm and to incorporate (new) concepts in the sociological analyses of work. This article discusses the concept of service in view of several authors and presents their typologies in societies where the service and the sector economically defined as tertiary acquired paramount importance in the economic systems of production and exchange. We believe that a better conceptual understanding and exploration of these authors will be an important conceptual framework for present and future research in the field of sociology of work applied to services.

Keywords work, service (definition), systems of work, proximity services, use value.

 

Travail moderne et service: une discussion sur les typologies et définitions

Résumé

L’épuisement apparent des explications de l’organisation du travail ancré dans le modèle industriel et postindustriel est une occasion pour changer de paradigme et pour l’incorporation de (nouveaux) concepts dans les analyses sociologiques du travail. Cet article traite de la notion de service en vue de plusieurs auteurs et de leurs typologies dans les sociétés où le secteur des services et le secteur économiquement défini comme tertiaire acquit une prépondérance dans les systèmes économiques de production et d’échange. Nous croyons qu’une meilleure compréhension conceptuelle et l’exploration de ces auteurs va permettre de fonder des recherches actuelles et futures dans le domaine de la sociologie du travail appliquée aux services.

Mots-clés travail, service (notion), systèmes de travail, services de proximité, valeur d’usage.

 

Trabajo moderno y servicio: una discusión de tipologías y definiciones

Resumen

El presunto agotamiento de las explicaciones para la organización del trabajo ancladas en el modelo industrial y pos-industrial constituye una oportunidad de alteración de paradigma y de incorporación de (nuevos) conceptos en los análisis sociológicos del trabajo. En este artículo discutimos la noción de servicio en la perspectiva de diversos autores y presentamos sus tipologías en las sociedades en que el servicio y el sector económicamente definido como terciario adquirieron una preponderancia en los sistemas económicos de producción y de intercambio. Consideramos que una mejor comprensión y exploración conceptual de estos autores permitirá basar presentes y futuras  investigaciones en el campo de la sociología del trabajo aplicada a los servicios.

Palabras-clave: trabajo, servicio (noción), sistemas de trabajo, servicios de proximidad, valor de uso.

 

Introdução

A crescente importância do sector terciário e das actividades de trabalho com uma componente de serviço tem tido uma correlativa tradução em formulações teóricas e em tentativas de definição e de clarificação conceptual. Porém, em nosso entender, é algo paradoxal o facto de raramente estas propostas de aplicação terem integrado as preocupações dos sociólogos, sendo geralmente relegadas para o plano da economia e da gestão (mormente da gestão da qualidade e da normalização de procedimentos por via das normas da International Standard Organization — ISO).

Admitimos, naturalmente, que sendo estas conceitualizações oriundas de uma tradição disciplinar inicialmente tributária de outras disciplinas, elas têm vindo a ser progressivamente integradas no campo da sociologia do trabalho, mas os quadros teóricos desenvolvidos nesta interdisciplinaridade são — dada esta constatação simultaneamente histórica e epistemológica — instrumentos inacabados.

Todavia, é particularmente na década de 1990 que poderemos começar a situar análises à problemática do trabalho no(s) serviço(s) com um grau de maturação mais elevado. É precisamente de entre esse acervo conceptual que optamos por seleccionar neste artigo — e numa exposição necessariamente não exaustiva — algumas abordagens que serão apresentadas de forma relativamente compartimentada mas cujo carácter operativo assume uma dupla função: por um lado, permitem interrogar criticamente as concepções pós-industrialistas das formas de organização das actividades de trabalho e, por outro lado, constituirão a base para uma proposta de análise do trabalho numa lógica de organização tributária do que temos vindo a designar como processos de servicialização (Almeida, 2004; 2005; 2009).

Os critérios para uma semelhante escolha são de natureza epistemológica e conceptual. Vejamos cada um dos pontos em detalhe. Por um lado — e em termos epistemológicos — a tipologia de João Freire referente aos sistemas de produção nos serviços, as análises de Jean Gadrey do produto nos serviços, as críticas à sociedade dual de André Gorz, as tipologias de Alain d´Iribarne referentes às profissionalidades na indústria e nos serviços e as propostas de Philippe Zarifian para uma sistemática no tratamento e definição do conceito de serviço e da sua valoração e avaliação constituem, na década presente, as únicas propostas teóricas consolidadas na temática. Por outro lado — e em termos conceptuais — as obras destes autores constituem a base do acervo que, em nosso entender, integra os contributos mais relevantes para o actual estado da arte sobre estas problemáticas.

 

A tipologia de Freire e o enfoque no sistema empresarial: da década de 1980 à década de 2000

Na investigação, pioneira em Portugal, de Freire, referente aos encarregados na indústria, observaram-se separadamente dois principais tipos de mudanças — tecnológicas e organizacionais —, tendo aplicado um novo conceito operatório de “sistema de produção” para o qual o autor criou dois índices sistemáticos (i.e., relativos aos modos de organização das entidades empresariais) — um concernente à estrutura, e um outro ao funcionamento organizacional —, conceitos que foram ulteriormente integrados num esquema teórico mais elaborado (Freire, 1991; 2001).

Já na década de 2000, o autor ensaiou a aplicação empírica dos índices de “estrutura organizacional” e de “funcionamento organizacional” a uma amostra representativa de empresas portuguesas, sendo que o índice de funcionamento esteve depois na origem de um índice de modo de gestão empresarial, traduzido numa escala ímpar com as designações de “burocrático”, de “intermédio” e de “flexível” (Freire, 2002: 77-78).

Na proposta deste autor, os sistemas de trabalho correspondem a formalizações teóricas que permitem descrever a forma estruturada e estável como se organizam e combinam os diversos elementos presentes nos processos produtivos, incluindo designadamente (Freire, 1997: 50-56, 85): o ambiente ou quadro ecológico envolvente das situações de trabalho; a natureza do trabalho; as relações de trabalho; a forma de aprendizagem; e o tipo de produção. Parte-se do princípio de que a noção de sistema de trabalho pode ser traduzida no quadro de um modelo teórico sistémico, onde existem em interacção vários subsistemas, condicionando-se mutuamente mas sem se considerar qualquer carácter de determinação intersistémica (Freire, 1997: 51). A partir dos subsistemas retidos pelo autor — “técnico”, “económico”, “organizacional”, “profissional” e do “movimento social” — este procede à construção de uma grelha de análise dos sistemas de trabalho comportando alguns indicadores básicos, pormenorizados no quadro 1.

 

Quadro 1 Grelha de análise de postos de trabalho e tipologia de sistemas de trabalho

 

A proposta sequencial de Freire é a de apresentação de uma tríade de sistemas de trabalho, tendo como característica fundamental a convergência sobre um deles.

Para o autor, estes três tipos de sistemas de trabalho não podem ser vistos linearmente, como uma sucessão de modelos que se substituem no tempo e implicando a exclusão dos demais (Freire, 1997: 24-56): apenas em certos períodos históricos um dado sistema representa o modelo fundamental presente numa sociedade e na sua economia; assim, se o sistema fabril pareceu, em dada altura, eliminar o sistema de ofício, ficou mais tarde patente que isso não acontecia, tendo-se antes assistido a uma recuperação das suas potencialidades; por outro lado, se a noção de sistema empresarial só se tornou possível depois do pleno desabrochar do sistema fabril, uma tal constatação não indica que este último não irá ainda subsistir longamente. Aliás, as recentes análises e propostas de entendimento do trabalho moderno retomam o conceito “fabril” de ofício, associado a uma produção artesanal mais abrangente, e transversal a uma economia técnica de serviços materiais e imateriais (Sennett, 2009: 8-9).

É de relevar o facto de que esta reconcentração sobre o sistema empresarial reforça, do nosso ponto de vista, o interesse analítico da noção de empresa de serviço (Almeida, 2003a: 11 e ss.); além disso, convirá explicitar que a tipologia de Freire (figura 1) — referente às dinâmicas de convergência sobre o sistema empresarial no final da década de 1990 — inclui o “sistema de ofício”, o “sistema fabril” e o “sistema empresarial” (Freire, 1997: 53- 56).

 

Figura 1 Dinâmicas de convergência sobre o sistema empresarial no final da década de 1990

 

Detalhando, o “sistema de ofício” assenta na importância decisiva do trabalho-saber, na relevância assumida pela progressão profissional, sendo baseado num modo de produzir casuístico, unitário, original ou fracamente seriável; este sistema engloba o perfil do operário de ofício, artesanal, e pode corresponder a actividades de prestação de serviços imateriais ou de pequeno comércio, às profissões liberais tradicionais ou a novas ocupações qualificadas, ao trabalho científico e artístico, ou a boa parte do trabalho independente.

O “sistema fabril” baseia-se na substituição progressiva, e em grande extensão, do trabalho-saber pelo trabalho-máquina, combinado com doses mais ou menos importantes de trabalho-força para uma produção em série e normalizada nos seus produtos e nos procedimentos produtivos; neste sistema, as qualificações e o conhecimento distribuem-se de maneira muito desigual entre trabalhadores e entre os diversos órgãos funcionais, pelo que a organização unifica-se, formaliza-se e centraliza-se.

O “sistema empresarial” assenta na sofisticação tecnológica que permite a flexibilidade produtiva, com a utilização de uma maquinaria que tende a tornar-se mais soft, sendo que o trabalho-força desaparece quase completamente dando lugar a formas de combinação diversas de trabalho-saber e de trabalho-máquina; segundo o autor, é aqui que as diversas profissionalidades e qualificações encontram um espaço para reencontros, numa lógica de legitimação de centralidade da ideia de empresa, onde se abre espaço para as tecnologias automáticas de produção e de informação, para o marketing, e para as actividades industriais e — saliente-se — de serviços.

Mais recentemente, e já na década de 2000, Freire avança com um desenvolvimento das suas análises do trabalho, ensaiando a aplicação de um modelo de “sistemas operativos PTU — processamento, trabalho, utente”, particularmente direccionado para o estudo das organizações terciárias e do tipo de actividades de trabalho que aí são desenvolvidas (Freire, 2001: 6-7, 16-17).

Considerando que ainda se trata de um conceito em busca de operacionalização, o modelo do autor inclui três indicadores: o primeiro (P) refere-se à noção de “processamento”, i.e., aos principais elementos que são “processados” na actividade normal da empresa/tratados na organização; o segundo (T) é referente ao trabalho, e indica a natureza do “trabalho humano” predominante na empresa ou organização; e o terceiro (U) identifica o “tipo de utentes” que beneficiam das actividades da empresa ou da organização (figura 2).

 

Figura 2 Modelo de "sistemas operativos PTU — processamento, trabalho, utente" para análise das organizações de trabalho terciárias

 

Na fase de desenvolvimento em que se encontra o conceito, Freire entende que as alternativas propostas como respostas a cada um destes quesitos não são exclusivas, mas antes cumulativas.[1]

A figura 2 explicita, portanto, os três lados deste “sistema operativo”: o conceito P — o que é “processado” — refere-se a materiais e mercadorias, equipamentos, serviços, informação, conhecimentos, pessoas, património/espaços, sentidos/significados, ou outros; o conceito T — que tipo de actividade de “trabalho” humano — inclui os aspectos técnico (operação, condução ou reparação de equipamentos), de transacção ou negócio, de prestação de serviços pessoais, de manutenção e conservação de coisas e espaços, de tratamento sistemático de informação, de investigação, relacional, comunicacional ou expressivo (performativo), de controlo e segurança (de pessoas e espaços), ou outros; por fim, o conceito U reporta-se ao tipo de “clientes”/"utentes" — pessoas, empresas, Estado, outros entes públicos, entidades associativas sociais, ou outros — que consomem/utilizam os serviços.

É de salientar ainda que Freire observou na operacionalização empírica do modelo algumas frequências estatísticas significativas:

por exemplo, os escassos valores registados na operação de equipamentos, ou de trabalho técnico nos serviços, ou ainda de clientes individuais entre os utentes das empresas de comércio e restauração (em contraste com os clientes empresariais). É também de assinalar a escassa expressão dos processos e do trabalho “simbólico”, sobre “sentidos” e “relacional”, bem como do trabalho de investigação e mesmo de tratamento de informação codificada, bem distantes dos patamares percentuais alcançados por modalidades mais tradicionais como o trabalho de negócio ou de atendimento. (Freire, 2001: 17)

 

As análises de Gadrey: crítica e reabilitação do utilizador e do produto

A proposta de Gadrey, por seu turno, é a da diferenciação relativamente às análises que se referem explicitamente ao carácter improdutivo dos serviços (imputando-lhes parte dos custos sociais considerados excessivos, contributo essencial para as crises ou para o abrandamento no crescimento das economias desenvolvidas) e das teorias que consideram o terciário como algo que se assemelha a uma “esponja” ou a um “refúgio”, capaz de absorver o emprego em momentos de crise (sem atribuírem necessariamente ao sector uma conotação negativa).

Neste sentido, o autor associa a importância das actividades de serviços nas sociedades contemporâneas a dois factores (Gadrey, 1992: 20-30, 120-122): por um lado, uma crescente complexificação da produção, do consumo e das trocas e, por outro lado, uma complementaridade entre bens produzidos e serviços fornecidos. A primeira pode ser, segundo Gadrey, analisada a partir da dupla transformação do how we produce (complexidade da organização produtiva) e do what we produce (diversidade e diferenciação crescentes dos bens e dos serviços, associada a uma maior rapidez nas trocas); a esta última encontra-se adstrita uma complementaridade de necessidades ligadas quer à produção (serviços para as empresas, formação, etc.), quer à distribuição e ao consumo (este último associado a uma sucessiva sofisticação dos estilos de vida nas sociedades desenvolvidas).

Gadrey cita a definição aventada por Hill, autor que define um serviço como a transformação da condição de um indivíduo ou de um bem pertencente a um agente económico, resultante da actividade de um outro agente económico, a pedido ou com o consentimento do primeiro (Hill, 1977). Esta definição permite distinguir o serviço “como processo” e o serviço “como resultado” (transformação do estado de uma dada realidade); a noção destaca também o envolvimento dos agentes económicos numa relação de serviço, a propósito de uma realidade a transformar que constitui o suporte dessa actividade.

Qual é a proposta de Gadrey? Para este autor convém definir uma “actividade de serviço” como uma operação visando a transformação de uma realidade C, na posse ou utilizada por um cliente ou um utente B, e realizada por um prestador A, a pedido de B e muitas vezes em interacção com este, mas não confinada a um produto final susceptível de circular economicamente independente do suporte de C (Gadrey, 1992: 3, 16-19; 1994: 23-41; 1996: 169-172).[2] É justamente este modelo de prestação de serviços que o autor representa graficamente por um triângulo, em que cada um dos lados corresponde a um dos três elementos primordiais da sua definição (figura 3).

 

Figura 3 Modelo triangular de prestação de serviços

 

Complementarmente, Gadrey avança também com uma tipologia que inclui quatro tipos de serviços, e os seus respectivos conteúdos (Gadrey, 1996: 75-87). Em primeiro lugar, os “serviços com forte dimensão de tratamento material de suportes técnicos”.[3] Em segundo lugar, os “serviços intelectuais aplicados a saberes produtivos organizados”, tratando-se de serviços — mercantis ou não mercantis[4] — aplicados não a bens (daí a designação de “imateriais” ou “incorpóreos”) mas condicionando a produção, a organização e a gestão desses bens.[5] Agrupam-se numa terceira categoria os “serviços aplicados aos saberes e capacidades dos indivíduos no consumo final”, incluindo aqueles de que os particulares são beneficiários de um modo individual, sendo estes menos tangíveis ou mesmo imateriais.[6] Por último, e correspondendo a uma quarta categoria, também o resultado final das actividades dos “serviços de organização e gestão” poderá ser considerado imaterial, tratando-se aqui de actividades de carácter administrativo, no sentido mais lato do termo.[7]

Mas a insatisfação do autor em relação à abrangência da sua primeira definição de serviço — a qual possui, na sua argumentação, interesse quanto ao seu desiderato de “conceito tipológico” para a análise das diversas situações de serviço e das relações sociais a elas adstritas — leva-o a propor uma extensão do conceito adaptável à problemática da diversidade dos fundamentos de valor para os serviços prestados (Gadrey e Zarifian, 2002: 60-62, 161).

Postula-se que, nos sistemas capitalistas desenvolvidos, existe produção económica de serviços quando se está perante um de dois casos. Primo, quando uma organização A, que possui ou controla uma capacidade técnica ou humana (podendo falar-se de competências neste caso), vende (ou propõe a título gratuito se se tratar de serviços não comerciais) a um agente económico B o direito de uso dessa capacidade e dessas competências por um dado período de tempo, para produzir efeitos úteis sobre o referido agente económico B ou sobre os bens C (objectos ou sistemas materiais, informações, indivíduos nas dimensões físicas e intelectuais, organizações) que ele possui ou pelos quais é responsável. Secondo, quando um intermediário ou um consumidor final emprega ele mesmo um assalariado para se ocupar dos seus bens ou da sua pessoa (ou, em certos casos, de pessoas em relação às quais esse indivíduo possui um grau de responsabilidade delegável).

Para Gadrey podem então distinguir-se três situações. Primeiro, e em certos casos, essa utilização toma a forma de uma intervenção solicitada por B, sobre um suporte C detido ou controlado por B (pelo que se pode falar de modelo triangular de prestação de serviços (representado na figura 3 a que já aludimos), sendo esta uma situação corrente nas prestações de serviços dos bancos aos clientes, como a gestão dos depósitos ou o aconselhamento financeiro, por exemplo). Numa segunda situação, essa prestação resume-se à utilização temporária por B de uma capacidade técnica posta à sua disposição por A (como são os casos do aluguer, do arrendamento ou da locação). Finalmente, há os casos de uma representação humana (acompanhada pelo seu suporte técnico) que A organiza e à qual B assiste (no sentido de uma performance teatral, cinematográfica ou musical, por exemplo).

Portanto, a prestação de serviços reparte-se por três lógicas, particularizadas segundo uma duplicidade de critérios (figura 4): por um lado, o modo de activação desse agente económico em relação às capacidades e às competências utilizadas (procura de serviço ou decisão de se servir) e, por outro lado, a natureza (técnica ou humana) das capacidades com as quais o agente económico contacta a título principal, e para as quais o autor faz referência explícita à noção de competências mobilizadas.

 

Figura 4 Três tipos de lógica de prestação de um serviço

 

Da sociedade de serviços à sociedade dual: Gorz e a produção macrossocial e efeitos de uma sociedade dos serviços

No raciocínio de Gorz — que se posiciona numa perspectiva simultaneamente crítica e reflexiva — as preocupações passam pela discussão em torno da problemática da libertação do trabalho com finalidade económica, pela redução da sua duração e pelo desenvolvimento de outro tipo de actividades (designadamente de serviços) que confeririam um sentido positivo às economias de trabalho assalariado.

Para este autor, o projecto de uma “sociedade do tempo livre”, onde cada indivíduo possa trabalhar menos com uma finalidade económica a fim de que todos possam trabalhar melhor e viver mais, tornou-se um dos pilares da coesão social na década de 1990 (Gorz, 1988; 1997). Neste sentido, a teoria dos serviços de Gorz representa uma interpretação alternativa para a problemática da passagem de uma sociedade industrial a uma outra formação social: parte-se da constatação da existência de um número progressivamente superior de empregos atípicos[8] que segue a par com um desinvestimento nas indústrias de equipamentos clássicas (Gorz, 1997: 49-92).

Retomando a discussão acerca da terciarização das actividades, para Gorz assistir-se-ia, ao longo das décadas de 1970 e de 1980, ao surgimento de uma sociedade de serviços. Neste tipo de sociedade, um segmento importante do todo social possuiria rendimentos bastante elevados e teria como interesse estratégico (de acordo com a racionalidade económica dominante) deixar para outros uma série de tarefas “domésticas” (que eles mesmos poderiam assegurar), mesmo com o risco de ver a sua autonomia e a sua capacidade de execução reduzidas. Um outro segmento, bastante numeroso, seria constituído por uma massa crescente de “novos trabalhadores domésticos”: nova no sentido de que se trataria de assalariados dos serviços comerciais, não empregados numa relação de dependência.

Na tese de Gorz, o sector que se desenvolve e que cria empregos é o dos serviços. Ora o autor entende que um serviço corresponde, precisamente, a um trabalho executado na proximidade do seu utilizador, sob o seu controlo e sujeito a lógicas de (des)valorização e de disponibilidade (figura 5): no quadro deste tipo de divisão do trabalho Gorz sustenta que o trabalho se torna um factor de produção subalterno e que a classe operária (entenda-se, os trabalhadores não qualificados dos serviços) já não pode aspirar a qualquer forma de hegemonia (Gorz, 1997: 121-178).

 

Figura 5 Modo de produção de serviço e envolventes societais

 

Portanto, e na argumentação de Gorz, caminha-se-ia para uma sociedade dual: por um lado, verificar-se-ia a continuidade de um sector racionalizado e com uma produtividade muito elevada (para a qual o contributo da disseminação da microinformática teria sido decisivo) e, por outro lado, observar-se-ia o crescimento de um sector de serviços personalizados e directos, cujas principais características incluiriam a impossibilidade da sua racionalização e a sua fraca produtividade (este sector alimentar-se-ia da perda de empregos gerada no primeiro segmento). Para o autor, este “segundo sector” não é “comercial” na acepção mais corrente do termo, uma vez que os serviços que presta não são mensuráveis, normalizáveis ou armazenáveis, dado que estes são prestados num dado contexto mercantil mas possuem, de facto, um carácter mais comunitário.

Trata-se, então, da criação de dois sectores heterónimos — designados por Gorz como “comercial” e “não comercial” —, cuja coexistência o autor acredita ser possível no quadro de um Estado regulador dos mercados e distributivo dos valores e dos rendimentos dos bens do “sector concorrencial”, de forma a alimentar o “segundo terciário”.[9]

 

A tipologia de Iribarne: profissionalidades e reformulação da noção de sistemas de trabalho

Numa perspectiva mais microssocial, Iribarne inclui dois aspectos na análise do trabalho moderno: por um lado, o exame das relações do titular do posto de trabalho com os produtos, os serviços, os equipamentos, os métodos e os procedimentos; e, por outro lado, a análise das relações desse titular com os outros indivíduos.

Semelhante abordagem implica situar o trabalho de cada indivíduo em termos técnicos, organizacionais e sociais (Iribarne, 1993: 62). É, porém, a questão da existência de uma variável tecnológica determinante na organização dos sistemas de trabalho que conduz o autor a propor um esquema teórico mais global, na tentativa de ultrapassar as limitações da sua aplicação às situações de trabalho industrial. Nesta tipologia de Iribarne podem ser retidos três grandes “sistemas técnicos de trabalho” (quadro 2), cuja aplicação será depois desenvolvida e estendida pelo autor — pese embora com alterações — aos serviços (Iribarne, 1993: 62, 67-68).

 

Quadro 2 Sistemas de trabalho aplicados à indústria e aos serviços

 

O sistema “homem-produto” corresponde a uma transformação do produto exclusivamente manual, pelo que o operário intervém apenas com utensílios na elaboração do produto que controla directamente, sem a intervenção de equipamentos na sua transformação (pertencem a este sistema todas as actividades artesanais e as actividades industriais arcaizadas, como as misturas e separações nas cadeias da indústria alimentar, por exemplo). O sistema “homem-máquina” — sistema intermédio —, equivale às situações em que o operário utiliza máquinas ou outros dispositivos para transformar ou intervir sobre os materiais, mantendo com estes uma relação de proximidade física e psicológica (este tipo de sistema predomina nas indústrias manufactureiras semiautomatizadas, ou automatizadas, como as máquinas-ferramenta com comando digital, por exemplo). Por fim, o sistema “máquina-produto” caracteriza-se por uma relação de transformação que é mediatizada pela concepção dos equipamentos, em instalações de produção automatizadas de tal modo que aos operadores cabe apenas vigiar e controlar os processos de transformação (através de elementos simbólicos de informação, ou por intermédio de automatismos de regulação) sem qualquer contacto com os materiais ou os produtos (este sistema corresponde a todas as salas de controlo nas indústrias de processo, como a indústria química, a indústria cimenteira ou a indústria de papel, por exemplo).

Um facto digno de nota refere-se à antinomia estabelecida nesta tipologia de Iribarne entre as profissionalidades requeridas para as actividades ligadas à produção e os empregos correspondentes a outras funções industriais. Na concepção do autor, as situações profissionais de fabricação requerem uma profissionalidade assente sobre uma capacidade para compreender a função do sistema técnico de fabricação e para ajustar as intervenções do trabalhador em função de situações concretas do seu desempenho, ou de representações abstractas (simbólicas ou conceptualizadas) adquiridas pela via da formação (isto para os casos dos sistemas “máquina-produto”). Por seu turno, os empregos correspondentes a outras funções industriais não ligadas à produção implicam referências mais constantes a corpus de conhecimentos organizados em torno das tecnologias: os trabalhos de manutenção, de escritório ou de laboratório são paradigma desta fundamentação, assente sobre uma profissionalização do tipo “homem-máquina” (aqui retida pelo autor enquanto progressivo domínio da influência dos produtos e dos equipamentos sobre os conteúdos de trabalho, sem existir uma passagem para um sistema do tipo “máquina-produto”).

Partindo das proposições antecedentes, o autor ensaia uma analogia entre as transformações na indústria, a evolução das suas profissionalidades e as transformações nos serviços (quadro 2) podendo — na sua argumentação — reter-se analogamente três grandes “sistemas de trabalho” (Iribarne, 1993: 70-72).

Mais do que na indústria, é no caso dos serviços que estes três sistemas coexistem nos mesmos sectores ou nas mesmas empresas, fazendo recurso ao modelo de organização taylorista. Segundo Iribarne (1993: 70), a passagem de um sistema a outro faz-se por uma de três razões: por um acréscimo da distância entre os clientes e os níveis técnicos de decisão; por um prolongamento e uma decomposição crescentes dos circuitos de tratamento de dados; ou por uma aplicação crescente da informática na gestão, no tratamento de operações e na prestação de serviços.

Temos assim: um sistema do tipo “artesanato evoluído”, correspondendo ao trabalho independente ou liberal, em que existe um contacto directo entre o profissional e os seus clientes (este acompanha as profissões regulamentadas, inclui colaboradores formados pela via da aprendizagem e um pessoal de apoio em número limitado); uma “organização burocrática” desenvolvida nas médias e grandes empresas, assente na normalização das prestações e dos procedimentos (a expansão destes sistemas é acompanhada por uma multiplicação de locais de contacto com a clientela, confiados a pessoal formado nas operações próprias do sector como, por exemplo, as operações bancárias ou da segurança social, sendo que o tratamento de dados tende a ser realizado em unidades de exploração centralizadas que recorrem à mecanização); e, por fim, uma “organização automatizada”, onde existe um vasto recurso à mecanografia e, posteriormente, à informática (o computador enquanto “utensílio” integra o conjunto dos procedimentos de tratamento, de gestão e de estocagem das informações estandardizadas, para as quais possibilita ganhos importantes na produtividade do trabalho e na performance das empresas).

Curiosa é ainda a referência às profissionalidades presentes no terciário. De entre estas, Iribarne destaca a dupla evolução das funções de enquadramento, fundada na tecnicidade e no desenvolvimento das grandes organizações burocráticas. A sua tecnicidade corresponderia ao desenvolvimento de especialidades de nível elevado (de marketing, de direito do trabalho ou de gestão contabilística, por exemplo) susceptíveis de criar necessidades em competências muito pontuais, com um número reduzido de efectivos a recrutar pelas empresas. Por seu turno, a burocratização (que implica procedimentos múltiplos e diversas necessidades de coordenação) traduzir-se-ia pela multiplicação do número de escalões hierárquicos, resultando numa estratificação entre as grandes categorias de pessoal, designadamente entre quadros médios e superiores: a profissionalidade dos primeiros corresponderia, então, ao domínio dos procedimentos das empresas, e a profissionalidade dos segundos ao domínio das estratégias empresariais, facto que também se traduz nas formas de racionalidade organizacional.

 

As propostas de Zarifian: lógica da competência e da avaliação dos resultados do serviço

Completando este périplo por cinco das principais abordagens ao trabalho no(s) serviço(s), é Zarifian quem apresenta uma extensão da noção de serviço (no singular) às novas formas de dividir e de avaliar a produção — i.e., de produzir um serviço — independentemente do sector de actividade económica (Gadrey e Zarifian, 2002: 90).

Este autor considera que se pode observar a persistência de formas tayloristas de organização do trabalho em determinados sectores da mão-de-obra (particularmente da mão-de-obra feminina), mas a verdade é que as novas realidades empresariais não invalidam uma outra hipótese, segundo a qual o núcleo do modelo clássico de organização — estruturado desde o século transacto — se encontra enfraquecido nas suas bases (Zarifian, 1999a: 108-115). Um tal fenómeno verificar-se-ia, na tese do autor, porque as teorias de eficácia (que constituem esse núcleo) se encontram desadequadas à realidade técnico-económica assim como às configurações dos meios e dos objectivos que condicionam a formação do valor na economia actual.

Partindo desta proposição, Zarifian esboça uma definição de serviço elaborando uma dupla abordagem do “valor do serviço”, construída a partir dos seus “efeitos” e a partir dos seus “recursos” (Gadrey e Zarifian, 2002: 99). Primo — e na abordagem do serviço a partir dos seus efeitos —, o serviço equivale a uma transformação nas condições de actividade do destinatário, nomeadamente nas suas disposições para a acção, com efeitos julgados válidos e positivos por esse destinatário e/ou pelo colectivo. Secondo — e na abordagem do serviço a partir dos seus recursos —, o serviço corresponde a uma organização e a uma mobilização o mais eficiente possível de recursos (e logo de competências vivas) para interpretar, compreender e gerar a transformação anterior (i. e., nas disposições para a acção de um dado destinatário), sendo essa eficiência avaliada pela direcção de uma dada organização, pelos seus assalariados e mesmo pelo destinatário quando este age, ele próprio, como um recurso.

Note-se que — na tese do autor — a ordem de factores nesta definição não é arbitrária, pois a abordagem do serviço a partir dos seus efeitos “comanda” a abordagem do serviço a partir dos seus recursos.[10] Todo o serviço, na perspectiva do autor, se encontra submetido a uma avaliação baseada numa relação entre três elementos (figura 6): o que é esperado ex ante, ou seja, as expectativas de serviço e as expectativas construídas sobre os seus efeitos; o que é realizado ex post, tratando-se aqui de conhecer os efeitos produzidos pelo serviço e de avaliar em que medida estes correspondem às expectativas iniciais; e o modo de obtenção do serviço, ou seja, a prestação propriamente dita e a forma como o percurso seguido é considerado válido pelo destinatário e/ou pelo colectivo.

 

Figura 6 Formas de valor de produção de um serviço e formas de avaliação (jugement) dos seus efeitos

 

Posto isto, Zarifian propõe-se encetar uma reflexão a três níveis (Gadrey e Zarifian, 2002: 94-100): em relação às formas de produção de valor de um serviço, acerca dos seus efeitos (avaliações) e sobre as racionalidades sociais associadas à produção de sentido para a sua utilidade final (numa acepção da ética e da moral weberianas).

Quanto às formas de valor do serviço, Zarifian considera quatro (figura 6). A abordagem ao valor-trabalho foi, na sua perspectiva, completamente desenvolvida por Marx, designadamente através da distinção que este autor elabora entre o trabalho cristalizado em formas de capital constante e variável, fixo e circulante (máquinas, matérias-primas, etc.) e as forças de trabalho assalariadas, ou seja, as que se encontram envolvidas no processo produtivo e que acrescentam uma “mais-valia” ao que é produzido (e em torno da qual se estruturam os conflitos entre o salário pago e o lucro). O valor de uso, pelo seu lado, diz respeito a uma “ideia de bom senso”, segundo a qual uma dada mercadoria não será vendável caso não participe potencialmente num processo de consumo (produtivo ou final). O valor perfomance é entendido pelo autor como a representação do valor sob a forma de um sistema complexo que inclui custos, qualidade, prazo, variedade e inovação; este marca a introdução da figura do cliente como um dos seus referenciais e, portanto, de uma lógica de serviços.[11] Em quarto lugar, o valor financeiro do trabalho possui uma importância considerável, pois operou, segundo o autor, uma deslocalização das formas de apreensão das relações sociais,[12] designadamente da expressão formalizada do capital-trabalho (valor trabalho) e da relação concorrencial (valor perfomance) para a relação de propriedade e de controlo do capital pelos accionistas e dirigentes empresariais.

Também a problemática da avaliação se torna central para compreender os efeitos julgados válidos e positivos pelos destinatários. Não é introduzido, na formulação de Zarifian, um intermediário (pessoa, bem ou realidade) entre a realidade e os destinatários do serviço, pois, se a transformação operada pelo serviço é nas condições de actividade do destinatário, esse intermediário (um tratamento adequado de uma doença, um novo tipo de aço desenvolvido para um cliente específico, por exemplo) é um meio para realizar o serviço e uma causa eficiente da sua produção, mas não representa o serviço enquanto tal. Gadrey responde criticamente à noção de serviço proposta por Zarifian: para Gadrey falta a Zarifian considerar a operação visando a transformação de uma realidade C, uma vez que esta é subsumida como um meio para realizar esse serviço. Mas também Gadrey considera a definição de Zarifian de alcance limitado, dado o seu carácter normativo na tipificação do que se devem considerar os efeitos julgados válidos e positivos pelos destinatários (que Gadrey prefere remeter para o plano dos jogos na construção social de convenções entre actores). Ora serão justamente, para Gadrey, os meios de obtenção do serviço final e a sua organização social (interacções, relações de propriedade e modos de apropriação) que conferem especificidade à situação social de prestação de um serviço (Gadrey e Zarifian, 2002: 57-161).

Nesta medida, para Zarifian (Gadrey e Zarifian, 2002: 101-114) o serviço encontra-se sujeito a quatro tipos de avaliação, tal como esquematizámos anteriormente (figura 6).

Desde logo, a uma avaliação de utilidade que corresponde à produção de efeitos úteis sobre a actividade de um destinatário, sendo que o autor argumenta que a verdadeira utilidade reside na transformação das condições de actividade e, além disso, é no uso que os efeitos do serviço se revelam.[13] Em segundo lugar, o serviço encontra-se sujeito a uma avaliação de justiça, particularmente presente na noção de serviço público e expressa em termos de direitos adstritos a normas públicas e sociais (direito à saúde, à educação, por exemplo) e em termos de destinatários (indivíduos, ou associações de defesa dos seus direitos). No que diz respeito à avaliação de solidariedade, esta encontra-se associada a um número considerável de efeitos procurados pelos destinatários na estruturação dos seus modos de existência, expressa através do significado associado à ideia de “prestar um serviço a…” (quer quando se trata de trabalho social, ou quando estão em causa normas de urbanidade ou de cordialidade indispensáveis a uma interacção nas formas de serviço prestado por empresas privadas). Em quarto lugar, Zarifian acrescenta à sua tipologia uma avaliação estética do serviço, adstrita a uma transformação provocada no plano emocional e ético dos destinatários. Todavia, este autor considera que este tipo de avaliação não se encontra acantonado aos bens culturais, sendo solicitado na quase totalidade das actividades humanas (implica uma noção de partilha intersubjectiva de uma concepção estética, que é extensível quer a uma máquina quer a uma relação entre dois sujeitos).

 

 Considerações finais

Tal como observámos neste panorama — necessariamente diacrónico — de alternativas conceptuais para a noção de serviço, as suas formas de definição e a estruturação das suas perspectivas de análise apresentam, naturalmente, diferenças significativas quando particularizamos as abordagens dos diversos autores.

O que nos interessa especialmente é a disseminação — nas sociedades avançadas — de uma “lógica de serviço” que contempla diversas características (Almeida, 2005; 2009; 2011): a estruturação das empresas de serviço de forma a potenciar a construção de acervos de informação pertinentes e actualizados sobre os clientes-utentes, que devem ser ulteriormente mobilizáveis para uma identificação das suas singularidades; a organização das actividades de trabalho de modo a que estas contribuam para a co-produção de respostas adaptadas aos “problemas” dos clientes; e a pressão no sentido de uma recomposição das tecnologias de produção e da logística relacional, em processos de co-produção de serviços e com autoformação de competências.

É esta a noção de empresa de serviço que temos vindo a desenvolver nos nossos trabalhos e para a qual as cinco tipologias supra são um contributo importante, orientador de problematizações presentes e futuras. Trata-se de apreender a produção de serviço nas suas relações com a oferta de serviços e com as estratégias das organizações, pensadas em termos de objectos, de conceitos, de constrangimentos da acção e de actores centrais para uma sociologia do trabalho aplicada aos mundos de produção e de trabalho terciário.

Uma tal abordagem sociológica propor-se-ia, então, identificar os objectivos e os recursos da produção, em ligação com a análise da oferta de serviços, colocando a questão do estatuto e do papel do cliente na produção e do carácter pluriobjectivo desta produção. Além disso, seriam também aspectos a considerar a organização da produção e das estruturas (lógica de agrupamento das actividades, dimensão das actividades, formas de coordenação), o perímetro e articulação entre o back office e o front office, e a estrutura e a organização dos sistemas de informação. Depois, ainda seria de interesse analisar as formas de condução da produção em termos de objectivos para as performances, bem como o sistema de animação dessa produção, relacionando-o com as competências dos trabalhadores, o sistema de avaliação, o sistema de remuneração e as políticas de formação. Por fim, alguns dos ulteriores domínios de estudo poderiam incluir as funções da produção contemporânea no domínio dos serviços e o papel da informação na delimitação dessas funções, a integração da variável “espaço”, ou ainda a produção de “serviços públicos” (Almeida, 2003; 2009). Interessará analisar quais são os processos associados à produção social de valorização dos bens de serviço. Poderá também interessar conhecer qual o impacto da emergência do modelo de empresa de serviço para a organização e para a estruturação do mercado de trabalho em Portugal, e qual o papel aqui reservado aos actores sociais colectivos (Almeida, 2003; 2009).

 

Referências bibliográficas

Almeida, P. P. de (2003), The Service Enterprise. Work, Competence and Performance in Servicelization Contexts, Lisboa, Dinâmia-ISCTE.         [ Links ]

Almeida, P. P. de (2004), “A servicialização do trabalho: perspectivas e tendências”, Sociologia, Problemas e Práticas, 44, pp. 83-107.         [ Links ]

Almeida, P. P. de (2005), Trabalho, Serviço e Serviços. Contributos para a Sociologia do Trabalho, Porto, Edições Afrontamento.         [ Links ]

Almeida, P. P. de (2009), The Service Enterprise. A Key Concept for the Sociology of Work, Nova Iorque, VDM Verlag Publishing.         [ Links ]

Almeida, P. P. de (2011), Sociology of Modern Work, Nova Iorque, VDM Verlag Publishing.         [ Links ]

Freire, J. (1991), “Uma economia mais democrática? Nota de pesquisa”, Sociologia, Problemas e Práticas, 9, pp. 161-168.         [ Links ]

Freire, J. (1997), Variações sobre o Tema Trabalho, Porto, Edições Afrontamento.         [ Links ]

Freire, J. (2001), Projecto de Estudo sobre Inovação Empresarial — Relatório Final para o Observatório das Ciências e das Tecnologias, CIES-ISCTE.         [ Links ]

Freire, J. (2002), Sociologia do Trabalho. Uma Introdução, Porto, Edições Afrontamento.         [ Links ]

Gadrey, J. (1990a), “Les systèmes d’emplois tertiaires au coeur des transformations du marché du travail”, Formation Emploi, 29, pp. 21-34.         [ Links ]

Gadrey, J. (1990b), “Société des services ou société de serviteurs?”, Futuribles, 147, pp. 61-65.         [ Links ]

Gadrey, J. (1992), L’Économie des Services, Paris, Éditions La Découverte.         [ Links ]

Gadrey, J. (1994), “Les relations de service dans le secteur marchand”, em De Bandt e Gadrey (dirs.), Relations de Service, Marchés de Services, Paris, Centre National de la Recherche Scientifique, pp. 23-41.

Gadrey, J. (1996), Services. La Productivité en Question, Paris, Desclée de Brouwer.         [ Links ]

Gadrey, J., e P. Zarifian (2002), L’Émergence d’Un Modèle du Service. Enjeux et Réalités, Paris, Éditions Liaisons.         [ Links ]

Gorz, A. (1988), Métamorphoses du Travail, Quête du Sens. Critique de la Raison Économique, Paris Galilée.         [ Links ]

Gorz, A. (1997), Misères du Présent. Richesse du Possible, Paris, Galilée.         [ Links ]

Hill, P. (1977), “On goods and services”, The Review of Income and Wealth, 23, pp. 315-338.         [ Links ]

Iribarne, A. (d’) (1993), La Competitivité. Défit Social, Enjeu Éducatif, Paris, Centre National de la Recherche Scientifique.         [ Links ]

Kovács, I. (2005), Flexibilidade de Emprego. Riscos e Oportunidades, Oeiras, Celta Editora.         [ Links ]

Rolle, P. (1997), Oú Va le Salariat?, Lausana, Éditions Page Deux.         [ Links ]

Sennett, R. (2009), The Craftsman, Londres, Penguin.         [ Links ]

Zarifian, Ph. (1999a), “Productivité, logique de service et mutations du travail”, Revue Française de Gestion, 126, pp. 106-116.         [ Links ]

Zarifian, Ph. (1999b), Objectif Compétence. Pour Une Nouvelle Logique, Paris, Éditions Liaisons.         [ Links ]

Zarifian, Ph. (2001a), Le Modèle de la Compétence. Trajectoire Historique, Enjeux Actuels et Propositions, Paris, Éditions Liaisons.         [ Links ]

Zarifian, Ph. (2001b), Temps et Modernité. Le Temps comme Enjeu du Monde Moderne, Paris, L’Harmattan.         [ Links ]

 

Notas

[1] Admitem-se, portanto, diversas combinações. Por exemplo: U1-2, relativa a empresas de comércio, que vendam tanto e retalho como por grosso, a pessoas e a outras empresas; P6 T1 U1 — transportes de passageiros; P1 T1 U2 — transportes de mercadorias; P1 T2 U1-2 — comércio por grosso e a retalho, e distribuição; P2 T1 U1-2 — reparação de automóveis e outros equipamentos; P3 T3 U1 — hotelaria, restauração e turismo; P2 T1 U1-2 — telecomunicações; P4 T2-5 U1-2 — intermediação financeira; P3 T2 U1-2 — actividades imobiliárias; P2-4 T5 U1-2 — informática; P5 T6 U2 — estudos e consultoria; P5 T7 U1 — ensino; P6 T7 U1 — saúde; P6 T5-7 U1 — apoio social; P7 T8U1-2 — segurança; P7 T4 U1-2 — limpeza; P4 T7 U1 — comunicação social; P8 T7 U1 — actividades de lazer, recreio, desporto e cultura; P0 T0 U1-2-3 — outras actividades de serviços.

[2] Segundo Gadrey, se uma tal condição de independência não se verificasse, estaríamos em presença de uma situação de produção agrícola, industrial ou artesanal (Gadrey, 1992: 17).

[3] Estes podem ainda desagregar-se em três subconjuntos de serviços ou de funções. No primeiro incluem-se os serviços para indivíduos, empresas ou qualquer unidade social, que se aplicam a bens ou a sistemas materiais, para modificar ou restaurar as suas características de utensílio (técnicas, sociais, espaciais) ou para os colocar à disposição de clientes para uma utilização codificada (redes de telecomunicações, por exemplo); enquadram-se aqui o transporte de fluidos, de mercadorias, a reparação e a limpeza, bem como a restauração e a hotelaria (nas suas funções de disponibilização de uma prestação). No segundo subconjunto temos os serviços aplicados principalmente a bens materiais ou a informações codificadas, para assegurar a sua disponibilização, venda, troca ou mudança de propriedade, transmissão ou aluguer, sem mudança considerável nas suas características; são enquadráveis neste subconjunto o comércio a retalho, os alugueres diversos, ou o tratamento estandardizado de informações codificadas. Em terceiro lugar, há os serviços destinados aos indivíduos ou à sua ménage, aplicando-se principalmente à sua pessoa física ou à sua corporalidade, para assegurar o transporte, a higiene corporal (cabeleireiros e esteticistas, por exemplo), ou a conservação da sua saúde (distinguindo-se, na medida do possível, das prestações médicas ou paramédicas).

[4] Esta distinção entre serviços mercantis e não mercantis releva de uma concepção franco-anglófona. Os serviços mercantis (marchands ou private market services) correspondem aos que podem ser adquiridos no mercado privado. Os serviços não mercantis (non marchands ou public and collective services) dizem respeito aos serviços de carácter público e, portanto, que não são transaccionados no mercado privado.

[5] O acervo de exemplos inclui, entre outros, os serviços de engenharia, consultoria e aconselhamento estratégico, e os serviços financeiros, bancários e jurídicos destinados às empresas.

[6] Trata-se da formação e das capacidades pessoais, da saúde e desenvolvimento físico, de todo o tipo de lazeres e concomitantes bens culturais consumidos, e também dos direitos e obrigações sociais (assistência social e medicamentosa, contribuição para os sistemas de segurança social, por exemplo).

[7] Neste caso o “produto principal” deste serviço corresponde, na sua essência, à influência sobre o conjunto da empresa.

[8] Neste caso o autor refere-se a “empregos atípicos” no sentido daqueles que se caracterizam por um vínculo contratual não adstrito ao assalariamento e à protecção social conquistada a partir das lutas sindicais da primeira metade do século XX.

[9] Aliás, estas teses são complementares das que abordam a problemática do dualismo do mercado de trabalho e os fenómenos de desqualificação da mão-de-obra.

[10] Neste ponto da definição Zarifian aproxima-se de Gadrey, considerando que as reflexões deste último permitiram demonstrar que não se pode elaborar uma avaliação mecânica (entenda-se, a partir de dados numéricos) acerca do valor (produtividade) do serviço (Gadrey e Zarifian, 2002: 100).

[11] "Serviços" na sua forma plural, pois na argumentação de Zarifian estes dizem respeito a formas de acompanhamento do produto (serviço pós-venda, serviços de publicidade, etc.) e a custos de serviço centrados no cumprimento de especificações de qualidade (Gadrey e Zarifian, 2002: 97).

[12] Zarifian critica a perspectiva de alguns economistas (que qualifica como construtivistas), os quais partem de uma construção convencionalista das modalidades de definição do valor do serviço. Implicitamente, trata-se de uma crítica a Gadrey e à noção de “convenções de serviço” (Gadrey e Zarifian, 2002: 98).

[13] Acrescente-se que, para Zarifian (Gadrey e Zarifian, 2002: 104), o uso de um determinado “eu” condiciona quase sempre o tipo de uso que é dado aos produtos, quer se trate de um uso do “eu” (virtual, potencial ou actual), quer se trate de um uso de produtos (bens ou serviços de que alguém dispõe). Por exemplo, e em relação à venda de um acesso à Internet por um Internet Service Provider (ISP), este depende não só do grau de formação tecnológica do potencial cliente/utilizador, como também o fornecedor desse serviço de acesso não pode ir muito além da transformação das condições de actividade do utilizador (e não pode, portanto, tornar este último “competente” na utilização da Internet).

Creative Commons License Todo el contenido de esta revista, excepto dónde está identificado, está bajo una Licencia Creative Commons